sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Contra LAVA JATO. Adel El Tasse.

"Ganhei este livrinho. Leia e depois me devolve", me disse o meu amigo Bernardo, em evento de comemoração das festas de fim de ano. Agora já o li e, pretendo não devolvê-lo. Isso significa que gostei muito, e que, de livrinho - ele tem apenas o seu tamanho. No conteúdo ele é enorme. São apenas 90 páginas. Trata-se de Contra Lava Jato, de autoria do professor de Direito Penal em várias universidades, Adel El Tasse.

Contra Lava Jato. Adel El Tasse. 2023. Uma publicação do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais.

O livro é uma verdadeira aula, sob vários e diferentes aspectos. Como El Tasse é professor de Direito Penal, este será o tema principal do livro, mas, subjacente a ele, existe toda uma concepção filosófica, sociológica e histórica e é nisso que consiste a sua grandeza. O Direito, como o concebemos hoje, é uma invenção da modernidade. E, como se sabe, a modernidade é uma invenção da ascensão do pensamento fundado na razão, em detrimento do pensamento absoluto emanado do direito divino. A modernidade arrebatou o poder dos céus e o colocou nas mãos dos homens, que para isso deveriam se dar ao entendimento. A razão, porém, tomou dois caminhos fundamentais. Uma razão humana e uma razão instrumental.

A razão humana é a responsável pela evolução dos chamados direitos. Estes, segundo uma definição clássica de Marshall, evoluíram em direitos "civis, políticos e sociais". Uma bela e longa história de avanços e de retrocessos. Os Direitos da cidadania. O surgimento do Estado Democrático de Direito. São criados diversos mecanismo que limitam o poder do Estado contra os seus cidadãos. Estes ganham uma série de proteções legais. É a tendência à democracia

Por outro lado, a modernidade também fez surgir a sua ordem econômica, ditada por interesses dos indivíduos e da liberdade econômica em que a competitividade passou a ser a grande palavra de ordem. Essa ordem passou a ter na razão instrumental a sua fundamentação. Essa razão faz cálculos utilitários e gera níveis insuportáveis de competição. As guerras são uma mera consequência. Os sistemas autoritários também. A tendência é para o autoritarismo. O Direito e as instituições jurídicas se movimentam dentro dessas visões.

O Brasil tem as suas raízes profundamente fincadas no autoritarismo, portanto, na ausência de direitos. Vivemos as heranças de um sistema colonial e escravocrata. Raízes que constantemente lançam à superfície os seus tentáculos. Creio que podemos afirmar que a modernidade brasileira é uma modernidade tardia. Apenas, a partir de 1930 ela dá os seus primeiros passos. Francisco Oliveira nos faz uma síntese dessa democracia entre os anos 1930 e 1988, a data da Constituição da redemocratização. Duas longas ditaduras (Vargas e a civil militar de 1964) e uma tentativa de golpe de Estado a cada três anos. Depois de 1988 vivemos o nosso mais longo período de democracia. Mas foi um período breve. Durou apenas até 2016. 2016 foi golpe, sim. Os motivos dos golpes sempre foram os mesmos. Contenção de direitos da cidadania, restrição a direitos civis, políticos e sociais, em benefício de cálculos instrumentais, movidos à leis de responsabilidades sociais, perdão, fiscais.

O que eu devo dizer! Estas são reflexões que eu fiz a partir da leitura do livro de EL Tasse. Elas foram suscitadas pela leitura do livro, reflexões livres, não presas ao texto mas, de uma forma ou de outra, presentes no livro. Considero que o livro faz um grande movimento perpassando a história do Direito e de suas fundamentações. Um direito limitador dos poderes do Estado em favor da cidadania e o Direito movido por um espírito punitivista, seletivo em favor dos detentores do poder do Estado ou por busca de meios para alcançá-lo.

Mas, vamos a um esboço do livro. Primeiro pelo conteúdo da contracapa e depois pelos títulos dos capítulos, das belas e ilustrativas frases em epígrafe que antecedem cada capítulo. E ainda, por tópicos (entre parênteses), os temas abordados nestes capítulos. Vamos a contracapa:

"Contra a Lava Jato é uma obra técnica que aborda de forma didática o sistema processual penal e o modelo punitivo utilizado na operação lava jato e que parece se impor a todo país, após enorme exposição midiática desta invenção criminal.

Com estrita análise jurídica da questão, dentro de bases puramente científicas o texto discorre sobre os movimentos de sustentação da lava jato, seus fundamentos, estratégia e métodos, concluindo em importante análise sobre os reais efeitos dela para o País e para o sistema de justiça criminal.

A ilustração de capa, 'Saturno devorando a un hijo' é uma das pinturas a óleo sobre reboco que fazia parte da decoração das paredes da casa do pintor espanhol Francisco de Goya, sendo parte da série conhecida como 'pinturas negras' de Goya, integrando desde 1876 juntamente com as demais 'pinturas negras' o acervo permanente do Museu do Prado, em Madrid.

A representação do deus Cronos (Saturno na mitologia romana) devorando um de seus filhos para não dividir seu poder permite uma metáfora ao autor da presente obra do próprio Estado, ou agências controladoras do Poder estatal a utilizar o poder punitivo para opressão e assim reafirmação de seu poder".

Vamos então aos capítulos, nove no total, a seus títulos, frases em epígrafe e aos tópicos trabalhados nos capítulos.

Capítulo 1. A título de marco. "A mim a imprensa sempre me tratou bem". Francisco Franco. (MBL - 2015 - bancadas evangélica, armamentista e ruralista - reformas, ajuste fiscal. A operação Lava Jato, o punitivismo e a corrosão da democracia).

Capítulo 2. Os avanços ocorridos no direito penal brasileiro após a década de 1980 e seu atual processo. "A liberdade diminui à medida que o homem evolui e se torna civilizado". Antonio Salazar. (A afirmação de direitos na redemocratização do país. Contra o punitivismo. A glamourização da prisão. Penas espetaculares, ao arrepio da lei. Da lógica nazista à "solução final".  O sistema lava jato).

Capítulo 3. O afastamento da dogmática penal democrática e a corrosão do sentido de proteção do tipo. "Quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver em liberdade e não a destrói, espere para ser destruído por ela". Maquiavel. (O pós 2ª Guerra e a contenção do poder punitivo. O afastamento dos princípios onto-ontológicos. Lava Jato e MBL. A flexibilização dos direitos. Condenações sem provas).

Capítulo 4. A admissão da lógica tortura aceitável. "Nós vamos te quebrar por dentro". Delegado Fleury para Frei Tito. (O sistema carcerário brasileiro. A tortura. Massacres físicos e morais. O cárcere processual. A tortura e a violação dos Direitos Humanos. "Ordem e moralidade". O clamor público. Métodos do colonialismo e da escravidão. Métodos inquisitoriais. Lava Jato e ações agressivas).

Capítulo 5. A total corrosão do devido processo legal e da lógica da necessidade probatória para a condenação. "Demos um modelo para o mundo, com a criação dos Codis, dos Dois e com alterações na Lei de Segurança Nacional como a incomunicabilidade de 30 dias". General Brilhante Ustra. (Um não ao mínimo de respeito pelo Estado de Direito. Prisões arbitrárias sob o clamor do povo. A mídia e a divisão da sociedade entre os bons e os maus. A vingança contra os maus. Poderes ilimitados, fim do processo legal e Estado totalitário).

Capítulo 6. AI-5 e 10 medidas de combate à corrupção: desagradável coincidência. "Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência". Jarbas Passarinho, na instituição do AI-5. (cerceamento à defesa. Junção de acusador com julgador. Não ao habeas corpus. Validade de provas ilícitas. O cidadão desprotegido. A delação premiada. Abuso de prisões preventivas. Prender para intimidar. Faltou apenas uma Guantânamo brasileira).

Capítulo 7. A moral como critério. "Humanitarismo é a expressão da estupidez e da covardia". Adolf Hitler. (A prisão de políticos e de poderosos. Neutralizar os inimigos. A seletividade na escolha dos corruptos. Uma volta aos tempos da inquisição e seus métodos. Raízes morais para a condenação. Um Estado moralista. O MBL e a identificação dos inimigos. A hostilização de todas as causas libertárias. "Guerra Santa " às diversidades).

Capítulo 8. A deslegitimação do sistema político- eleitoral. "A imprensa é a arma mais poderosa do nosso Partido". Joseph Stalin. (Moral e religião e a desmoralização da atividade política. A defenestração da classe política. Os discursos de ódio.  Conduções coercitivas. LULA como alvo. O voto universal e o não saber votar. O voto do nordestino. Um ataque à democracia em favor de um regime totalitário).

Capítulo 9. A retomada do pensamento oligárquico. "Somente um país inferior, ordinário, insignificante pode ser democrático. Um povo forte heroico tende para a aristocracia". Benito Mussolini. (Um balanço da operação Lava Jato. O esfacelamento da economia e a fragilização das empresas brasileiras. O descrédito internacional das Instituições  brasileiras. Parcialidade nos julgamentos. Necessidade de reconstrução).

Por fim, a epígrafe geral do pequeno mas esclarecedor e necessário livro. "O único ditador que eu aceito é a voz da minha consciência". Mahatma Gandi. E uma palavrinha mais sobre o autor. No livro, ele é assim apresentado. "Professor na cadeira de Direito penal em cursos de graduação e pós-graduação em diferentes instituições de ensino superior. Professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná, professor do Curso LFG (São Paulo/SP) e do Curso CERS (Recife PE). Mestre e Doutor em Direito Penal. Coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais. Autor de vários livros e artigos publicados em diversos livros, revistas e periódicos".


segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

O CRISTO RECRUCIFICADO. Nikos Kozantzakis.

Vou começar dando uma volta. Creio que muitos já ouviram falar do maravilhoso filme Zorba, o grego, do diretor Michael Cacoyannis.  O filme teve sete indicações ao Oscar de 1964 e levou três. Ele tem a atuação extraordinária de Anthony Quiin. Pois bem, o filme é uma adaptação do romance homônimo de Nikos Kazantzakis. E, agora sim, Nikos Kazantzakis é também o autor de O Cristo recrucificado, romance escrito em 1948 e que veio a público em 1954.

O Cristo recrucificado. Nikos Kozantzakis. Abril cultural. 1971.

Vamos falar um pouco do autor e, justiça lhe seja feita, ele é um revolucionário. Ele nasceu em Heraklion, a capital da ilha de Creta, Grécia. Morreu em Freiburg, em 1957. Peregrinou mundo afora, em busca de um significado para sua vida e participar de movimentos revolucionários. Sofreu múltiplas influências, com destaque para Nietzsche e Marx. Do livro de biografias e contextualização de obras que acompanha a coleção - Os imortais da literatura universal -, destaco um dado biográfico seu:

"[...] Encontrava-se em Viena (1922) quando lhe surgiu no rosto um grande eczema, que nenhum médico conseguiu diagnosticar. Um discípulo de Freud encontrou finalmente a explicação. A moléstia era de fundo psicológico, um refúgio de pureza encontrado pelo asceta em que se transformara Kazantzakis, para quem as relações sexuais eram pecaminosas.

Escrevia incessantemente: cartas, esboços, meditações. Nessa época, começou a elaborar o romance Ascese, onde sua doença aparece como um símbolo, representando a luta para manter-se puro. Mais de trinta anos depois, voltaria a reviver a experiência através de Manólios, o jovem protagonista de O Cristo recrucificado (1954), escolhido para representar o papel de Jesus no drama da Paixão encenado por sua aldeia".

Está aí a essência de seu romance, que não deixa de ser uma paródia. Sobre ele, acompanhemos o livro de biografias: "Uma reviravolta política em sua pátria obriga-o ao exílio. No pequeno porto de Antibes, o escritor vive o seu período mais criativo (1948-1950), quando inicia O Cristo recrucificado. 'Um romance sem o eu', afirma a respeito de sua obra. E, de fato, O Cristo recrucificado não é uma autobiografia. Contudo, apesar de situada a ação na Ásia Menor, o vilarejo de Lycovrissi, com seus costumes, modo de pensar, egoísmos, mesquinharias, retrata indiscutivelmente a pequena cidade de Heraklion, onde o escritor nasceu, em fevereiro de 1883, passou a infância e formou o caráter". Acompanhemos o livro guia, contextualizando o romance:

"Justaposição entre o imaginário e o verdadeiro, entre o grotesco e o trágico, O Cristo recrucificado contém toda a vida do autor. Pessoas que conheceu, fatos que testemunhou estão aí presentes. Suas próprias dúvidas e aspirações reencarnaram-se na figura de Manólios. O conflito com o pai, que Kazantzakis ao mesmo tempo amava por sua coragem e odiava por seu espírito rude e brutal, é revivido através de Michellis, o jovem abastado e indeciso.

O massacre de Lycovrissi, descrito com intensa emoção, também corresponde à realidade passada do autor. Kazantzakis não completara ainda oito anos de idade quando, em sua aldeia, o favorito do chefe turco - ou agá - fora assassinado. As prisões abarrotaram-se. Sangue inocente jorrava sob as espadas dominadoras. Não suportando as perseguições, o povo acabou matando o agá. Então desabou a grande tempestade. O ocupante engendrou a mais terrível das vinganças. A cidade cerrou as portas, os comerciantes fecharam as lojas. Nas ruas desertas não se ouvia um só ruído. De repente, estoura a fuzilaria. Gemidos e estrondos vão ter à casa dos Kazantzakis. O Capitão Michellis, de espingarda em punho, defende a sua entrada. Após quatro dias, volta o silêncio. Estava acabada a vingança. Os gregos saem às ruas. Tomando o filho pela mão, o Capitão Michellis caminha lentamente até a praça. Levantando os olhos, o garoto grita de pavor. No frondoso plátano à sombra do qual brincava com seus companheiros, três cadáveres gregos balançam ao vento. 'Prosterne-se diante deles!', ordena-lhe o pai. E como Nikos procurasse escapar, obriga-o a beijar os pés dos massacrados. 'Olhe muito bem', exclama novamente o velho, 'que enquanto você viver, estes enforcados não desapareçam jamais da sua memória. Quem foi que os matou? A Liberdade. Bendita seja ela'". Este era o fato real.

O romance explora a tradição do vilarejo, de celebrar, de sete em sete anos, a crucificação. Os notáveis da cidade se reuniam para escolher os personagens: Jesus, os apóstolos, Madalena e, aquele que ninguém queria ser, o Judas. São cenas de raro humor. O fato é que Jesus assume verdadeiramente o fato de ser Jesus. Põe em prática a sua doutrina. E a ordem - representada pela religião, pátria, família e propriedade - começa a ser questionada e desmoronada. E, esta ordem estabelecida passa a ser preservada pelo padre e pelos notáveis da cidade, em conflito com uma aldeia vizinha, empobrecida pela dominação turca e sob a liderança de um padre, o padre Photis, de quem Manólios passa a ser discípulo e aliado. Como se trata de uma recrucificação, o final está revelado pelo título - recrucificado -, mas não a forma e os personagens.

Um livro para ser lido por muitos e muitos, especialmente nesses tempos de tanta e tanta hipocrisia religiosa, de tantos falsos profetas e cristos. O verdadeiro Cristo sempre seria e será recrucificado. Com este romance Kozantzakis se tronou um precursor da Teologia da Libertação.


sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

OS TRÊS MOSQUETEIROS. Alexandre Dumas.

Antes da resenha, uma confissão. Se há um ponto fraco em minha formação, este é, sem dúvida, a literatura. Eu explico: A minha formação é de seminário. Com certeza, os padres temiam a literatura. Ah, os romances, histórias de amor! Lembro de uma canção de muito sucesso na época - Asa Branca - do grande Luiz Gonzaga. Em vez de cantar - Entonce'eu disse: adeus, Rosinha // Guarda contigo meu coração, nós cantávamos - adeus mãezinha... E, por simplicidade ou ingenuidade nem percebíamos a troca. Amor, só o de mãe.
Os três mosqueteiros. Alexandre Dumas. Coleção- Os Imortais da Literatura Universal.

Pois bem, este teria sido o tempo mais adequado para a leitura desse belo romance, Os três mosqueteiros, romance de aventuras e bravuras, de romantismo e de história, de traições e de vilanias, muitas delas praticadas pelo cardeal, o cardeal Richelieu, um dos personagens do romance, muito mais do lado do mal, do que do bem, certamente. Então, eu não reli este romance, eu o li pela primeira vez. Não tem como não gostar e, mesmo que não gostasse, não o ousaria dizer. Afinal, é dos mais consagrados e festejados autores.

O livro que eu li é da coleção Os imortais da Literatura Universal. Uma coleção maravilhosa. Três volumes de biografia e contextualização acompanham a edição. Basicamente será a minha referência para esta explanação.

No epílogo ao romance, Alexandre Dumas nos dá a seguinte informação: "Privada de socorro da esquadra inglesa e da divisão prometida por Buckingham, a Rochela se rendeu após um assédio de um ano. No dia 28 de outubro de 1628, assinou-se a capitulação". Dou essa informação pela sua importância na contextualização, para chamar a atenção para a data de 1628. Se observarmos as datas de vida e morte do autor, veremos que ele nasceu em 1802 e morreu em 1870. A obra, portanto, é uma retrospectiva, uma volta ao século XVII. Tempo de Luís XIII e de Maria da Áustria como rei e rainha da França, secundados no poder pelo poderoso ministro, o cardeal Richelieu. São tempos complicados, cheios de intrigas. Muitas guerras. França, Inglaterra, Espanha, Áustria... As guerras de religião praticamente já tinham se assentado. Os territórios já estavam razoavelmente estabelecidos. Não a demarcação das fronteiras.

Mas, vamos ao romance, bem como ao seu autor. O Alexandre Dumas de Os três mosqueteiros é o pai. Não confundir com o filho, também escritor, e autor de A dama das camélias. Ele nasceu nas proximidades de Paris, mas a mudança para a capital, foi para ele extremamente significativa. O ambiente de Paris era contagiante. São contemporâneos seus, Victor Hugo, Honoré de Balzac e Prosper Marimée. Entrou para o campo das letras, pelo seu gosto pelo teatro e o fascínio por Shakespeare. Ali encontrou o campo de seus sonhos da juventude: "amores impetuosos, emoções violentas, suicídios". Vamos acompanhando o livro guia.

Ainda no teatro, ele entra em contato com os temas históricos. Sob a influência de Walter Scott (Ivanhoé) ele envereda de vez nesse campo. O livro guia nos fala dessa concepção, bem como do seu Os três mosqueteiros: "Dumas seguia o método de Scott. Os leitores de um romance histórico queriam sentir no relato as mesmas emoções suscitadas pela representação teatral: encontrar pessoas humanas sob os escudos e os mantos reais, conhecer a história de seu país, os costumes das épocas passadas, sem o esforço que um compêndio escolar exigia". E, um amigo lhe trouxe o esboço de seu romance mais famoso:

"O ponto de partida é o caso amoroso entre o cavaleiro D'Artagnan e a dama Constance Bonacieux, camareira de Ana da Áustria (1601-1666). Através da amada, D'Artagnan acaba participando de uma intriga política: Ana de Áustria, mulher do rei Luís XIII (1601-1643), ofertara ao amante, Buckingham, um cofre de joias que o marido lhe dera de presente. Sabedor do fato e desejoso de provocar a ruína da rainha, o ministro Richelieu (1585-1642) sugere ao rei que peça a Ana para usar as joias no próximo baile da corte. Desesperada, a rainha pede a D'Artagnan que recupere o pequeno tesouro, transportado por Buckingham para a Inglaterra. O cavaleiro une-se a três amigos e juntos partem para a aventura, enfrentando as ciladas do pérfido Richelieu e os traiçoeiros encantos da demoníaca Milady, cúmplice do ministro". E os efeitos?

"Nenhum dos outros numerosos volumes de Dumas provocou tamanha emoção. Os romances que retomam a história de D'Artagnan, ou o famoso Conde de Monte Cristo (1845), não conseguiram suplantar Os três mosqueteiros (1844). Grande parte do êxito se deve à simpatia que os quatro heróis despertaram. O público devia ter sentido que representavam desdobramentos do próprio Dumas, também dado a aventuras e façanhas. Nenhuma dessas personagens é de criação original; todas figuravam na obra de Sandras e viveram realmente no século XVII. Dumas, porém, deu-lhes nova vida, ressaltou-lhes as características, tornando-as mais temerárias, e ampliou o âmbito de ação. Através de uma trama apaixonante e de um estilo cheio de vitalidade, reviveu toda a atmosfera do século XVII francês, o esplendor da corte e o sensacionalismo das intrigas políticas, o poderio econômico e cultural de uma época brilhante. Graças a sua imaginação, alcançou suprir as lacunas do conhecimento histórico, que sua inquietude jamais lhe permitira aprofundar. Seu próprio tempo, ocupado com atrizes e conspirações, forneceu-lhe muitos dos pormenores que aproximam do real essa pintura do século XVII". E, para terminar, vamos lembrar dos três, na verdade quatro mosqueteiros:

"Todas essas personagens, ávidas de ação, refletem o espírito aventuroso do autor, falecido em 1870, ele mesmo lutador, incansável em prol da arte e de seus princípios políticos. Ousado como D'Artagnan, corajoso como Athos, sedutor como Aramis, alegre como Porthos, não seria falsear a verdade acrescentar ao quarteto dos famosos espadachins um quinto mosqueteiro: o próprio Dumas, herói de pena em punho, esgrimindo pela fama e pelo amor".

O romance que eu li tem 511 páginas, com letrinhas dignas de uma lupa. São, ao todo, 57 capítulos de deliciosas e espetaculares aventuras e uma bela reconstrução histórica. Por se tratar de um romance histórico, deixo a resenha da obra inaugural desses romances. Ivanhoé, de Walter Scott.



quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

As igrejas de Porto Novo. Itapiranga. São João do Oeste e Tunápolis. Colonização e arquitetura.

Recebi mais um livro do meu irmão, Hédio José, que mora na cidade de Mondaí, no oeste do estado de Santa Catarina. Hédio é o meu irmão mais velho. Já completou 89 anos. Em compensação, entre cinco irmãos, eu sou o mais novo. A história de vida do meu irmão está toda ela voltada para esta região, na qual ele está, desde os idos da década de 1960. Ele foi um dos professores recrutados pelo Volksverein, a entidade colonizadora da região, como veremos logo a seguir. O livro referência é As igrejas de Porto Novo, de autoria de Jaine Ott, Carine Kaufmann e Douglas Orestes Franzen. Na apresentação as autoras e o autor falam da origem do livro: um trabalho junto ao curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Fai-Uceff. A publicação é da editora Schreiben, do ano de 2023.

As igrejas de Porto Novo. Editora Schreiben. 2023.

O prefácio do livro, que, em parte, também está na contracapa, é de autoria do padre Dionísio Körbes, da paróquia de São Pedro Canísio, de Itapiranga. Ele, sabiamente, destacou o princípio, o objetivo da colonização desta região e, como consequência, a sua arquitetura, toda ela centrada na religião. Vejamos o trecho da contracapa:

"No período em que Porto Novo foi colonizada existia, nas pessoas que aqui se estabeleceram uma cosmovisão ou um universo cultural religioso homogêneo, no qual o diferente não tinha espaço ou lugar. Tal constatação é verídica uma vez que o projeto de colonização era fechado ou exclusivo para famílias alemãs e católicas. Não é por nada que uma das finalidades era dar continuidade ao projeto da cristandade, que é o de defender a moral, os costumes, princípios e valores da Igreja Católica.

Para que tal visão-religiosa fosse acessível e formasse um imaginário religioso, criaram-se os núcleos comunitários, dentre os quais a Igreja se destacava. Foi através das inúmeras expressões religiosas, tais como devoções, rezas, novenas, mas acima de tudo, os símbolos ou figuras de santos (as) que tiveram um papel importante na formação do imaginário religioso. Quem, das gerações passadas, não se lembra do quadro dos anjos protetores, imagens do Sagrado Coração de Jesus e de Maria, o quadro da ceia, da cruz e outras tantas imagens e estátuas. Nas igrejas edificadas não podia faltar o padroeiro ou outras
imagens de acordo com as devoções. Tudo isso formava o imaginário religioso que alimentava a vida religiosa das pessoas". Em outro livro, que também recebi do meu irmão, vi que a colonização de Mondaí, então Porto Feliz, obedecia aos mesmos princípios, só que formada por cristãos protestantes.

O livro está estruturado em nove capítulos, mais prefácio e apresentação e, ainda, mapas de localização e referências bibliográficas. Tudo ao longo de 248 páginas, recheadas de fotografias. Vamos aos títulos dos capítulos: 1. A religiosidade como expressão da cultura em Porto Novo; 2. As igrejas como referência da paisagem; 3. A edificação de igrejas: o valor comunitário; 4. Igrejas em madeira; 5. Igrejas (neo) góticas; 6. Igrejas modernistas e ecléticas; 7. Altares góticos e modernistas; 8.O canto coral: Patrimônio imaterial da música sacra; 9. Arquitetura cemiterial. Em minha resenha vou me ater mais ao primeiro capítulo, embora não represente a centralidade do livro. Faço isso, apenas por ele contemplar mais o meu foco de interesse, que é o da colonização.

Vejamos os três primeiros parágrafos desse primeiro capítulo: "O projeto de colonização Porto Novo foi idealizado pela Sociedade União Popular, Volksverein, instituição que coordenou a implantação de outras colônias alemãs em novas frentes de colonização no sul do Brasil. O projeto Porto Novo nasceu a partir da aspiração confessional católica e da etnicidade germânica, tendo como proposta formar um núcleo colonial no extremo oeste de Santa Catarina que atendesse às finalidades da preservação moral católico-cristã e principalmente dos valores comunitários que aspirassem a homogeneidade étnica e confessional. O empreendimento foi fundado oficialmente no ano de 1926. Já no ano de 1928, a colonização recebeu o nome de Itapiranga, atual nome do município, gerando mais tarde a emancipação dos municípios de Tunápolis e São João do Oeste.

A Volksverein für die deutschen Katholiken von Rio Grande do Sul não era necessariamente uma empresa de colonização. Era, na verdade, uma entidade associativa fundada para dar assistência à população de descendência alemã e católica no sul do Brasil. Essa associação chegou a ter no período da Primeira Guerra Mundial cerca de oito mil associados. Notadamente de caráter étnico e confessional, o Volksverein se engajou em projetos de caráter social que vislumbravam manter os princípios do germanismo e do catolicismo, promovendo eventos e atividades culturais, agremiações, atividades de cooperação comunitária, atividades agrícolas de assistência aos colonos, além de ser uma força coadjutora do espírito comunitário católico-cristão, atendendo à necessidade de manter os valores morais e culturais nas colônias alemãs como a família, a comunidade, a religiosidade e o associativismo.

Nesse sentido, famílias originárias das colônias do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina compraram terras nessa colônia em busca de novas fronteiras agrícolas. Da mesma forma, adquiriram terras em Porto Novo, imigrantes que fugiam das duras condições de vida em vilarejos europeus, expulsos pelas atrocidades da guerra, pela perseguição étnico-política, ou pelas péssimas condições de vida e de trabalho lá existentes".

À frente deste empreendimento encontramos os padres jesuítas, sob a liderança dos padres Theodor Amstad e João Rick. Estes padres eram muito ativos. Não é a primeira vez que eu me encontro com eles, principalmente com o primeiro. A sede do Volksverein era na cidade de Venâncio Aires. Também encontrei muitas expressões, típicas de minha infância e juventude, como: Gott über alles; Alles nach dem Gottes Willen; Es regnet, Gott segnet; Der liebe Gott wolte es so haben; Gott nimmt; Gott erfühlt; Der Mensch denkt und Gott lenkt. Percebam a onipresença da palavra Gott, ou seja, Deus. E, uma lembrança minha: a cada encontro com o padre vigário, a saudação: Gelobt sei Jesus Christus. Trago da minha infância um presente maravilhoso, a língua alemã. Eu fui aprender português na escola.

No segundo capítulo é destacada a importância da igreja, como construção referência, que tomava conta ou configurava toda a paisagem da localidade e, já no terceiro, se destaca a ação comunitária na edificação das mesmas. As famílias contribuíam com valores estabelecidos (um porco de cem quilos), doação de materiais, trabalhos voluntários, quermesses... Elas são vistas como uma herança, um legado a ser transmitido. O quarto capítulo nos mostra que a construção das primeiras igrejas sempre foi em madeira, pois, dela dispunham em grande abundância. No começo elas também eram usadas como escolas (Schulkapelle).

Os capítulos cinco e seis também se constituem em preciosos capítulos de arquitetura. Antes de apresentarem as principais igrejas e suas localidades, há uma contextualização social, histórica e cultural do estilo das igrejas. Também merece destaque a importância do Concílio Vaticano II (1962-1965) e a sua influência na alteração da construção das igrejas. Também os altares passaram por essas transformações. Eles se tornaram menos distantes e mais aconchegantes, ou modernos. Antes eram verdadeiras obras de arte. Em minha memória, a lembrança de aulas da história da arte. Nos dois capítulos finais, nos são dados, primeiramente, os cerimonias fúnebres e o significado dos cemitérios, para encerrar com o canto coral, uma tradição bem alemã. Me lembro que cantávamos muito, tanto na igreja, quanto em casa. Não esquecendo, somos nascidos em Harmonia, na época, terceiro distrito de Montenegro (RS).

Em suma, um belo livro e de um valor inestimável e escrito com muito cuidado. E, antes de terminar, algumas coisas da memória. Me lembro da minha infância em Harmonia. A propaganda de Porto Novo nos chegava pelos sermões bilíngues do padre vigário, cônego Oscar Mallmann. Tios meus, da família de minha mãe (Reichert) foram fazer a vida lá. Lembro que eu levava as cartas que minha mãe escrevia para eles, para a agência do Correio. No envelope se lia: - Linha Macuco - Itapiranga. Também lembro de alguma visita desses tios, quando voltavam para visitar os parentes. Era dia de galinhada. Dia de festa.

A única cidade desta região em que eu estive foi São João do Oeste. Fui com o meu irmão. Fomos tomar uns Chopp num clube de lá. Lembro da placa na entrada da cidade, em que manifestavam todo o orgulho da cidade: uma cidade de origem germânica. E por falar em Chopp, também li, que em Itapiranga se realizou a primeira festa do Chopp no Brasil. Me bate um saudosismo quando eu leio estas histórias de colonização. Um dia, também eu deixei a minha Harmonia para trás, e, sem dinheiro para voltar. Tinha que dar certo. Muita gente me ajudou. Eu vim para Umuarama no Paraná e hoje estou estabelecido em Curitiba.  

Dos autores, já tive um contato anterior com Douglas O. Franzen pelo seu livro sobre Mondaí. Deixo a resenha.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/08/porto-feliz-mondai-o-centenario-da.html





sábado, 2 de dezembro de 2023

Em "OS ENSAIOS" - Montaigne deixa um Projeto de Vida. Seu testamento intelectual.

O capítulo XIII do Terceiro Livro de Os ensaios tem por título - Sobre a experiência. É o último capítulo de toda a obra. Vejamos a apresentação escrita pela tradutora Rosa Freire D'Aguiar:
O ensaios. Montaigne. Sobre a experiência.

"O capítulo final de Os ensaios fornece o fruto do julgamento de Montaigne sobre o lugar de nossa humanidade na vida de cada um de nós. Ele o amarra firmemente ao contexto aristotélico. A frase inicial ecoa a primeira frase de um dos livros mais famosos de Aristóteles, que diz que não há desejo mais natural do que o desejo de conhecimento. As últimas palavras de Os ensaios eram, na primeira edição, 'diversidade e discordância'. Oito anos depois, Montaigne escolhe concluir sua obra com a experiência. Assim, é tentador ver aqui seu testamento intelectual. Montaigne fala de si mesmo. Como envelhecer? Como enfrentar a doença e a dor? A morte? Suas respostas vêm não tanto da leitura dos grandes filósofos, mas do convívio com as pessoas, da observação do real. A sabedoria já não vem do alto, já não é ditada pela razão; resulta de observações e ensinamentos acumulados ano após ano: quanto mais envelhece, mais Montaigne se convence de que não erra em seguir a natureza e em fugir tanto dos conselhos dos moralistas como das consultas dos médicos. Apesar da dívida com Aristóteles, não acredita que a experiência que existe por trás da Metafísica ou Física substitua sua própria experiência: 'Estudo a mim mesmo mais que a outro assunto. É a minha metafísica, é a minha física'".

Deixo apenas a mensagem final, que vai das páginas 578 a 583:

"Quanto a mim, portanto, amo a vida e cultivo-a tal como aprouve a Deus nos outorgá-la. Não estou desejando que lhe faltasse a necessidade de beber e comer. E me pareceria cometer um erro não menos desculpável se desejasse que ela a tivesse em dobro. O sábio indaga com a mais viva paixão sobre as riquezas da natureza - (Sêneca). Nem que nos sustentássemos metendo na boca só um pouco daquela droga com que Epimênides se privava de apetite e se mantinha. Nem que produzíssemos estupidamente filhos pelos dedos ou pelos calcanhares, voluptuosamente. Nem que o corpo fosse sem desejo e sem excitação. Seriam queixas ingratas e iníquas. Aceito de bom grado e reconhecido o que a natureza fez por mim, e alegro-me e sinto-me satisfeito com isso. Somos injustos com esse grande e todo-poderoso Doador ao recusarmos Seu dom, anulá-lo e desfigurá-lo: tudo é bom, Ele fez tudo bom. Tudo o que é conforme à natureza é digno de consideração - Cícero. Abraço com mais gosto os princípios da filosofia que são os mais sólidos: isto é, os mais humanos e nossos. Minhas opiniões correspondem ao meu comportamento, humildes e modestas.

A meu ver, a filosofia finge-se de criança quando levanta a crista para nos pregar que é uma aliança selvagem casar o divino com o terrestre, o honesto com o desonesto. Que o prazer é qualidade bestial, indigna de ser provada pelo sábio. E que o único prazer que ele tira da fruição de uma bela jovem esposa é o prazer de sua consciência por estar praticando uma ação segundo as regras. Como calçar suas botas para uma cavalgada útil. Possam os sequazes dessa filosofia ter, no desvirginamento de suas mulheres, tão pouca firmeza, e nervos e suco quanto têm seus argumentos! Não é o que diz Sócrates, preceptor deles e nosso. Ele aprecia, como deve ser, o prazer corporal, mas prefere o do espírito, por ter mais força, constância, facilidade, variedade, dignidade. Este não anda sozinho, segundo ele (que não é tão fantasioso assim), mas é apenas o primeiro. Para ele, a temperança é moderadora, não adversária dos prazeres. A natureza é um guia gentil, mas não mais gentil do que sábio e justo. É preciso progredir do conhecimento da natureza e proceder a um exame muito aprofundado do que ela exige - Santo Agostinho. Procuro por toda parte sua pista: nós a confundimos com rastros artificiais. E esse 'soberano bem' da Academia e dos peripatéticos, que é viver segundo a natureza, tona-se por isso difícil de delimitar e demonstrar, e também o dos estoicos, próximo dele, e que consiste em estar de acordo com a natureza. Não será um erro considerar certas ações menos dignas porque são necessárias? Não me tirarão da cabeça que é muito conveniente o casamento do prazer com a necessidade, com a qual, diz um antigo, os deuses vivem conspirando. Por que desmembramos uma construção tecida com uma cor correspondência tão fraterna e estreita, levando-a ao divórcio? Ao contrário, retemo-la por serviços mútuos: que o espírito desperte e vivifique o peso do corpo, que o corpo detenha a leveza do espírito e a fixe. Aquele que exalta a alma como um soberano bem e condena a carne como um mal, com certeza a um só tempo acaricia a alma carnalmente e foge da carne carnalmente, pois tal opinião nasce da vaidade humana, não da verdade divina - Sêneca. 

Não há elemento indigno de nosso cuidado nesse presente que Deus nos deu: dele devemos prestar contas até cada fio de cabelo. E não é uma missão meramente formal do homem conduzir a si mesmo de acordo com a condição do homem; ela é expressa, inata e primordial, e o Criador confiou-a a nós séria e severamente. Só uma autoridade pode convencer as inteligências comuns: e pesa mais se em língua estrangeira. Portanto, neste trecho, voltemos à carga: Quem não reconheceria que é próprio da estupidez fazer com moleza e reticência o que deve ser feito, empurrar o corpo de um lado, o espírito de outro, e deixar-se puxar entre movimentos contraditórios - Sêneca. Ora, então, só para ver, fazei com que vos contem um dia as reflexões e as ideias que um homem põe na cabeça, e pelas quais desvia seu pensamento de uma boa refeição e lamenta-se do tempo que passa a se alimentar: descobrireis que não há nada tão insípido em todos os pratos de vossa mesa quanto essa bela conversa de sua alma (quase sempre seria melhor dormirmos profundamente do que ficar acordados para ouvi-la) e descobrireis que seu discurso e suas intenções não valem vosso ensopado. E se fossem os arroubos do próprio Arquimedes, o que seria? Não incluo aqui e não meto nessa cambada de homens que somos e nessa vaidade de desejos e cogitações que nos desviam do essencial as almas veneráveis, que se elevam pelo ardor da devoção e da religião a uma meditação constante e conscienciosa sobre as coisas divinas, e que provam de antemão, pelo esforço de uma esperança viva e veemente, o alimento eterno, objetivo final e última etapa dos desejos cristãos, único prazer constante e incorruptível, e desprezam a atenção a nossos bens necessitosos, flutuantes e ambíguos, e abandonam facilmente ao corpo o cuidado e o uso do alimento temporal e dos sentidos. Esse é um esforço das almas privilegiadas. Entre nós, há coisas que sempre vi em singular concórdia: os pensamentos super celestes e os comportamentos subterrâneos. Esopo, esse grande homem, viu seu amo urinando ao passear. 'Como assim', disse ele, 'teremos de defecar ao correr?' Organizemos nosso tempo: ainda nos resta muito dele, ocioso e mal empregado. Nosso espírito não tem talvez outras horas suficientes para fazer seus deveres sem se dissociar do corpo durante esse pouco tempo de que este precisa para suas necessidades? Os filósofos querem escapar a si mesmos e escapar ao homem. Isso é loucura: em vez de se transformarem em anjos, transformam-se em animais, em vez de se elevarem, rebaixam-se. Esses humores transcendentes apavoram-me, como os lugares altos demais e inacessíveis. E nada me é tão desagradável digerir na vida de Sócrates quanto seus êxtases e suas demonices. Nada me é tão humano em Platão quanto a razão pela qual dizem que é chamado de 'divino'. E de nossas ciências, parecem-me mais terrestres e baixas aquelas que estão colocadas mais alto. E não acho nada tão humilde e tão mortal na vida de Alexandre como suas fantasias em torno de sua imortalidade. E Filotas, numa resposta que lhe deu por carta, alfinetou-o divertidamente quando congratulou Alexandre por ter sido colocado entre os deuses pelo oráculo de Júpiter Amon : 'Quanto a ti, estou muito feliz; mas não motivo para lamentar pelos homens, que terão de conviver e obedecer a um homem que ultrapassa e não se contenta com a medida de um homem'. É porque te submetes aos deuses que reinas - Horácio. A nobre inscrição com que os atenienses honraram a chegada de Pompeu à sua cidade corresponde a meu modo de pensar: 

Tanto mais és Deus
Quanto te reconheces como homem - Plutarco.

É uma perfeição absoluta, e como divina, saber gozar lealmente de seu ser. Procuramos outros atributos por não compreendermos a prática dos nossos, e saímos de nós mesmos por não sabermos o que nele se passa. No entanto, pouco adianta subir em perna de pau, pois mesmo sobre pernas de pau ainda temos de andar com nossas pernas. E no trono mais elevado do mundo ainda estamos, porém, sentados sobre nosso traseiro. As mais belas vidas são, a meu ver, as que se conformam ao modelo comum e humano, bem ordenadas, mas sem milagre, sem extravagância. Ora, a velhice tem certa necessidade de ser tratada mais ternamente. Recomendamo-la àquele deus protetor da saúde e da sabedoria: sim, mas alegre e sociável: Concede-me, filho de Latona, desfrutar dos bens que adquiri, a um só tempo em plena saúde e com o espírito intacto, suplico-te, e não arrastar uma velhice vergonhosa, privada da lira - Horácio".

terça-feira, 28 de novembro de 2023

MANIFESTO contra a plataformização compulsória, contra as escolas cívico militares e outras políticas educacionais do governo Ratinho Jr.

No dia 25 de novembro de 2023, foi lido e aprovado o Manifesto elaborado pelos participantes do Círculo de Leituras, promovido pelo NESEF-UFPR contra o uso compulsório de plataformas de ensino, contra as escolas cívico-militares e contra outras políticas educacionais implantadas ao longo do governo Ratinho Jr., no estado Paraná. Eis o seu inteiro teor: 

"Nós, participantes ativos dos Círculos de Leituras promovidos pelo NESEF-UFPR, como coletivo de educadores em defesa da escola pública democrática, temos acompanhado atentamente o projeto político educacional implementado no estado do Paraná pelo governo Ratinho Júnior desde o início do ano de 2019 e, simultaneamente, temos realizado frequentes denúncias dos ataques sistemáticos promovidos por este governo contra a educação pública.


Foto do evento com a leitura do MANIFESTO. Curitiba, 25 de novembro de 2023. UFPR.

 Ainda no ano de 2020, lançamos o livro Aulas não presenciais em tempos de pandemia: improviso, exclusão e precarização do ensino no Paraná, pela Platô Editorial, o qual procurou retratar a educação pública paranaense no contexto do pragmatismo gerencial das políticas neoliberais levadas às últimas consequências durante a pandemia da Covid-19 pelas mãos do então secretário de educação, o empresário Renato Feder. No ano de 2022, lançamos uma outra  obra com o título  Mercantilização da educação pública no Paraná: autoritarismo, violência e plataformização do ensino, também pela Platô Editorial, a qual, por sua vez, procurou desvelar os impactos destrutivos da política gerencialista adotada pela Secretaria de Educação do Paraná durante o período pandêmico, bem como sua continuidade e seu aprofundamento no controle e na vigilância dos procedimentos pedagógicos instaurados com o retorno das aulas presenciais.

Em ambos os livros, a partir da análise crítica de um grande conjunto de dados, denunciamos o processo de destruição da escola pública do Paraná, a precarização da carreira dos profissionais da educação, a retirada de direitos, o aumento da jornada de trabalho e o achatamento salarial, bem como as práticas de pressão por resultados, de constrangimento e de assédio moral que têm levado grande parte da categoria ao adoecimento. Também denunciamos o esmagamento dos princípios legais de gestão escolar democrática presentes na LDB pela vigência de um autoritarismo exacerbado, com diferentes mecanismos de vigilância, de controle e de punição, além da militarização e da privatização de unidades escolares. 

É neste contexto de luta que temos travado em defesa da escola pública, efetivamente democrática e de qualidade, que repudiamos, veementemente, o desrespeito do governo Ratinho Júnior ao direito humano fundamental de ensinar e de aprender com liberdade, princípio básico de qualquer procedimento pedagógico inerente a uma concepção de educação humanizadora.  Entendemos educação, acima de tudo, como prática de liberdade.

O educador não pode se constituir como tal sem direito ao exercício de autonomia plena, sem liberdade para estudar, pesquisar, planejar e ensinar de acordo com o conjunto de conhecimentos e de formulações teóricas de seu campo de formação aliados às necessidades de aprendizagem do contexto histórico-cultural em que atua. Esse desrespeito aos professores no estado do Paraná materializa-se, especialmente, na imposição da obrigatoriedade de uso de tecnologias e de plataformas estranhas ao trabalho docente.

Não se trata, obviamente, de negar a presença de inovações tecnológicas como recursos pedagógicos. Muito pelo contrário, a reivindicação da presença de tecnologia de ponta em nossas escolas é uma pauta histórica da luta dos trabalhadores da educação. Uma das exigências dos educadores comprometidos com a escola pública é a disponibilização de recursos tecnológicos atualizados e de qualidade. Entretanto, o que não podemos admitir, de forma alguma, é a obrigatoriedade do uso e a submissão dos educadores a aparatos tecnológicos estranhos às necessidades da mediação pedagógica. A tecnologia precisa estar a serviço do trabalho docente, jamais o contrário.

Por si só, a tecnologia não existe. Sua existência concreta depende de uma relação, mesmo que mecânica, com a pessoa que a utiliza. No âmbito educacional, portanto, repudiamos toda relação tecnológica que não agrega aprendizado, nem satisfação ou promoção de conhecimento. E, ainda, diante do cenário de obrigatoriedade do uso das plataformas no Estado do Paraná, registramos nossa indignação pela falta de fundamentação teórica e pela imposição de um currículo que não se sustenta de forma alguma na prática de ensino e tão pouco ao crivo da mais simples análise crítica. Por isso:

- repudiamos o uso das plataformas, pois elas não atestam o aprendizado efetivo de nossos estudantes;

- repudiamos o uso obrigatório das plataformas porque o tempo de ensino, o tempo de aprendizagem e o tempo de vida não cabem no tempo mecânico das plataformas; 

- repudiamos seu uso obrigatório, porque não garantem a acessibilidade de todos os docentes e discentes no território do Paraná; 

- repudiamo-nas, porque limitam a criatividade com propostas vazias e desvinculadas das realidades escolares; 

- repudiamo-nas, porque os resultados de seu uso não correspondem de maneira verossímil aos dados alardeados pela propaganda governamental na imprensa e nas redes sociais;

- repudiamos, ainda mais, porque expõem os estudantes a longas horas em frente às telas, o que pode desencadear incontáveis problemas, tanto físicos quanto psicológicos, tais como dor-de-cabeça, dores generalizadas pelo corpo, ansiedade, insônia, estresse e depressão, entre outros apontados por especialistas da saúde; 

- por fim, reforçamos nosso repúdio ao uso obrigatório das plataformas porque ele desrespeita a autonomia docente, estando a serviço do controle e da vigilância das práticas educativas, inibindo a pesquisa, a produção de conhecimento e a autoria docente, empobrecendo a mediação pedagógica e, consequentemente, comprometendo o processo de desenvolvimento e de aprendizagem de nossas crianças e de nossos jovens. 

Esse manifesto dialoga com a percepção e o sentimento de milhares de educadores do chão de nossas escola, considera inúmeros registros e documentos, tanto aqueles expressos em depoimentos nas redes sociais quanto rigorosas reflexões teóricas presentes em artigos, teses e livros recentemente produzidos e publicados, em âmbito nacional e internacional, inclusive as recentes manifestações da ONU e de responsáveis pela educação em diversos países europeus, os quais fizeram a experiência do uso de plataformas e retrocederam, após observarem os resultados catastróficos em suas comunidades educacionais.

Como educadores comprometidos com a formação plena de nossos estudantes e responsáveis com o atual momento histórico, convidamos a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, em um ou em outro setor da sociedade civil organizada, individual ou institucionalmente, atuem em defesa de propostas de educação humanizadora, somem-se a nós na defesa intransigente da escola pública, gratuita, democrática, laica e de qualidade, repudiando políticas e práticas de mercantilização da educação, de controle e de vigilância pedagógica, de autoritarismo, de violência, de plataformização, de precarização e, consequentemente, da negação do direito de ensinar e de aprender. 

Educação, acima de tudo, é prática de liberdade e, como tal, deve estar a serviço da construção de uma sociedade efetivamente democrática. O controle, a vigilância e a padronização inerentes ao uso obrigatório das plataformas de ensino, aliado às políticas de militarização e de privatização da escola pública, são mecanismos completamente antagônicos à construção democrática, aproximando-se, indiscutivelmente, de um modelo fascista de educação. 

Assinam esta carta manifesto, juntamente com os integrantes do Círculo de Leituras NESEF, muitos educadores da educação básica da rede pública do estado do Paraná e de outras unidades federativas, professores da UFPR, da UNICAMP, da UFSM, da UFRGS, da UERJ, da UFSC, da UFU, da UFMS, da USP, da UEL, da UFF, da UFPE, da UFPA, da UNIPLAC, da URI, da PUC-GO, da UTFPR, da UFFS, do IFPR, do IFS, do IFRJ, do IFRR, da ABEH, da CEDES, da UNINOVE, da UFPI, do IFRN, da UDESC, da FURB, do IFC, do IFMGM da UNESP/Marília (entre outras), parlamentares do estado Paraná, dirigentes sindicais e autores de obras expressivas da literatura filosófica e pedagógica brasileira".

Seguem centenas de assinaturas de educadores (as) que dedicaram a vida inteira ao trabalho de educar e de formar seres humanos, estudantes e representantes de entidades classistas e da sociedade civil.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

OS ENSAIOS - MONTAIGNE. Sobre três relações: amigos, belas mulheres e livros.

No capítulo III, do Livro Segundo, de Os ensaios, encontramos um título muito simples: Sobre três relações. Vamos à apresentação do capítulo, pela tradutora do livro, Rosa Freire D'Aguiar:

"Este é um dos capítulos mais pessoais da obra. Fala dos três passatempos favoritos: a conversa com amigos, a companhia de mulheres bonitas e honestas, se possível inteligentes, e a leitura dos livros. São as três relações examinadas por Montaigne: formas de convívio social que enriquecem a vida privada e fazem com que valha a pena viver. Depois da morte de La Boétie, o grande amigo, as amizades mais correntes não lhe suscitam entusiasmo, são insípidas. O único objetivo comum a amigos, mulheres é honnête (honrado e decente). A relação social ideal engajaria o homem por inteiro, corpo e alma. Por si só nenhuma dessas três relações responde a esse objetivo, pois as duas primeiras engajam o corpo e a alma em proporções muito diferentes, enquanto os livros praticamente não engajam o corpo. Ele insiste no fato de que a relação sexual é mais que uma necessidade física e que, portanto, não deve ser mera fome a ser satisfeita fisicamente sem o envolvimento de faculdades mais elevadas. O fidalgo que se isolou no alto de sua tore está, porém, pronto para abandonar as delícias da reclusão e cultivar o corpo ou as relações sociais". O trecho que selecionei terá como foco a relação com os livros.

Os ensaios. Sobre a relação com os amigos, com as belas mulheres e com os livros.

"[...] Os julgamentos, a prudência e os deveres de amizade são mais encontrados entre os homens; por isso governam os negócios do mundo. Essas duas relações (com os amigos e com as belas mulheres) são fortuitas e dependentes de outros: uma é difícil pela raridade, a outra murcha com a idade; assim, não preencheram o suficiente as necessidades de minha vida. A dos livros, que é a terceira, é bem mais segura e mais nossa. Cede às primeiras as outras vantagens, mas tem, por sua vez, a constância e a facilidade de seu uso: acompanha todo o meu percurso e assiste-me por todo lado; consola-me na velhice e na solidão; descarrega-me do peso de um ócio enfadonho; e a todo instante me livra das companhias que me aborrecem; atenua as pontadas de dor se não extrema e soberana. Para me distrair de uma ideia inoportuna, basta recorrer aos livros, eles me desviam facilmente para si e a esquivam de mim. E não se amotinam ao ver que só os procuro na ausência dessas outras comodidades mais reais, vivas e naturais: recebem-me sempre com o mesmo semblante. É muito bonito andar a pé quando se leva seu cavalo pela rédea, dizem. E nosso Jaime, rei de Nápoles e da Sicília, que, belo, jovem e saudável, fazia-se transportar pelo país numa padiola, deitado sobre um ordinário travesseiro de penas, vestindo uma túnica de pano cinza e um gorro do mesmo tipo, mas seguido por uma grande pompa real, com liteiras, cavalos de todo tipo levados pela mão, fidalgos e oficiais, manifestava um tipo de austeridade que ainda era delicada e vacilante. O doente que tem sua cura na manga não merece compaixão. Todo fruto que tira dos livros consiste em experimentar e praticar essa máxima, que é muito verdadeira. Na verdade, praticamente não me sirvo deles mais que os que não os conhecem, Desfruto deles, como os avarentos de seus tesouros, para saber que desfrutarei quando me aprouver: meu espírito sacia-se e contenta-se com esse direito de posse. Não viajo sem livro, nem na paz nem na guerra. Todavia, hão de se passar muitos dias, e meses, sem que me sirva deles; digo que será dali a pouco, ou amanhã, ou quando me der vontade: enquanto isso, o tempo corre e se vai, mas não me inquieta. Pois é impossível dizer quanto me repouso e me tranquilizo com essa ideia de que estão a meu lado para me dar prazer quando eu desejar; e reconhecer quanto trazem de socorro à minha vida: é a melhor provisão que encontrei nesta viagem humana e compadeço-me ao extremo dos homens inteligentes que não os têm. Aceito qualquer outro tipo de distração, por frívola que seja, desde que essa não possa me faltar. Em casa, desvio-me um pouco mais frequentemente para minha biblioteca, de onde, com uma só mão, comando minha residência. Estou acima da entrada e descortino, abaixo de mim, o jardim, o galinheiro, o pátio e a maior parte dos cômodos de minha casa. Ali folheio, a tal hora, um livro, a tal hora, outro, sem ordem e sem objetivo, por trechos disparatados. Ora devaneio, ora registro e dito, caminhando, meus sonhos que aqui estão. Ela fica no terceiro andar de uma torre. No primeiro está minha capela, no segundo, um quarto com suas dependências, onde não raro durmo, quando quero ficar sozinho. Acima, há um grande depósito. Era, no passado, o lugar mais inútil da minha casa [...].

A forma da biblioteca é circular e só é plano o espaço necessário para minha mesa e minha cadeira; ao curvar-se, ela vai me oferecendo com um só olhar todos os meus livros arrumados em estantes de cinco prateleiras em toda a volta. Tem três janelas com bela perspectiva livre e um espaço vazio de dezesseis passos de diâmetro. No inverno ali permaneço menos tempo, pois minha casa fica empoleirada numa montanha, como diz seu nome, e não tem aposento mais exposto ao vento do que esse, por ser um pouco afastado, de difícil acesso, me agrada tanto pelo exercício a que me obriga como por me afastar da multidão. Esta é a minha sede. Tento ter sobre ela um domínio absolutamente puro, subtraindo esse único recanto da comunidade conjugal, filial e social. Em todos os outros lugares minha autoridade é mais verbal que real: essencialmente vaga. Em minha opinião, ai de quem não tem em casa onde estar consigo, onde falar privadamente consigo mesmo, onde se esconder! A ambição paga bem a seus servidores por mantê-los sempre à vista, como a estátua de uma praça do mercado. Uma grande servidão é um grande destino (Sêneca). Eles não tem privacidade nem mesmo na privada. Na austeridade de vida que nossos religiosos adotam jamais encontrei nada tão rude como o que vejo em algumas de suas companhias: a regra de estar perpetuamente em companhia de alguém e em numerosa presença dos outros, em qualquer ação que seja. E, em suma, acho mais suportável estar sempre só do que nunca poder estar. Se alguém me diz que é aviltar as musas usá-las somente como brinquedo ou passatempo, é que não sabe, como eu, quanto vale o prazer, o jogo e o passatempo: eu quase poderia dizer que qualquer outra finalidade é ridícula. Vivo dia a dia, e, com o devido respeito, só vivo para mim: meus objetivos terminam aí. Quando jovem, estudava por ostentação; depois, um pouco para tornar-me sábio; agora, para me divertir, nunca pelo proveito. O gosto vão e gastador que eu tinha por essa espécie de objeto, não para satisfazer apenas minha necessidade mas, três passos adiante, para atapetar e adornar minhas paredes, há muito tempo abandonei. Os livros têm muitas qualidades agradáveis para os que sabem escolhê-los. Mas não há bem que se obtenha sem pena. É um prazer que não é mais puro nem mais fácil que os outros: tem seus inconvenientes, e bem pesados. Neles a alma se exercita mas o corpo, cujo cuidado também não esqueci, permanece enquanto isso sem ação, degrada-se e se entristece. Não sei de excesso mais prejudicial para mim, nem mais a evitar neste declínio da idade. Essas são minhas três ocupações favoritas e particulares. Não falo das que devo ao mundo por obrigação civil". Páginas 376 - 380.

Deixo ainda a resenha do livro. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/11/os-ensaios-montaigne-1533-1592.html

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Sobre as orações. MONTAIGNE, em "OS ENSAIOS", nos fala a respeito.

Reputo este texto como sendo de muita atualidade. Creio que em nenhuma época houve tanta hipocrisia e distanciamento entre DEUS e seus ditos ou autoproclamados representantes. Vendo certas figuras que se dizem religiosas, sempre afirmo, que é preciso muito - não acreditar - para fazer as barbaridades que eles têm coragem de praticar. Hipocrisia é o termo para aferir esta situação. Inicialmente apresento o texto introdutório ao capítulo, o de número 56, do Livro Primeiro, de autoria de Rosa Freire D'Aguiar. Vejamos:

Os ensaios. Montaigne. Penguin - Companhia. 

Para tratar desse assunto delicado, na fronteira do sagrado e do profano, Montaigne retrabalhou muito o texto, tornando o capítulo três vezes maior desde a primeira edição da obra, em 1580. A clareza se ressente um pouco desses sucessivos acréscimos, mas sua profissão de fé católica é claríssima. Temos aqui um enfoque mais aprofundado da austeridade e do rigor do catolicismo de Montaigne. Os numerosos acréscimos foram em parte uma resposta às críticas do Vaticano sobre a asserção de Montaigne de que quando um homem reza deve estar purgado de seus pecados, sem hipocrisia, e em lugar e circunstâncias próprias a essa prática. Os censores do Vaticano examinaram particularmente este capítulo, e finalmente recomendaram algumas correções. Tanto quanto em 'sobre o arrependimento', vemos que o catolicismo de Montaigne era exigente. Ele condena, assim como Rabelais e, claro, Calvino, a oração mecânica que se faz sem um recolhimento especial. Sua ortodoxia rejeita toda tentativa de tradução dos textos sagrados, para ele fonte de erros e de heresias. Vamos ao texto:

"[...] Não sei se me engano mas, já que por um favor particular da bondade divina certo tipo de oração nos foi prescrita e ditada, palavra por palavra, pela boca de Deus, sempre me pareceu que devíamos fazer dela uso mais corrente do que fazemos; e se acreditassem em mim, no início e no fim de nossas refeições, em nosso levantar e deitar, e em todas as ações particulares em que nos acostumamos a incluir orações, gostaria que fosse o padre-nosso que os cristãos usassem, se não somente, pelo menos sempre. A Igreja pode estender e diversificar as orações segundo sua necessidade de nos instruir, pois bem sei que é sempre a mesma substância e a mesma coisa. Mas àquela deveria se dar este privilégio: que o povo a tivesse continuamente na boca, pois é certo que diz tudo o que é preciso, e que é muito adequada a todas as ocasiões. É a única oração da qual me sirvo para tudo, e repito-a em vez de trocá-la. Disso resulta que não tenho outra tão bem na memória como aquela. Estava recentemente pensando de onde nos vinha esse erro de recorrer a Deus em todos os nossos projetos e empreendimentos, e de chamá-Lo em toda sorte de necessidade, e em qualquer lugar em que nossa fraqueza deseja ajuda, sem considerar se a ocasião é justa ou injusta; e de invocar Seu nome e Seu poder em qualquer situação e ação que pratiquemos, por mais pecadora que seja. Ele é de fato nosso só e único protetor, e para ajudar-nos pode todas as coisas, mas, conquanto se digne a honrar-nos com essa doce aliança paterna, é, porém, tão justo como bom e poderoso. Mas usa bem mais frequentemente Sua justiça do que Seu poder, e favorece-nos de acordo com essa justiça e não segundo nossos pedidos [...].

E a posição de um homem que mistura a devoção com uma vida execrável parece ser bem mais condenável que a de um homem coerente consigo mesmo e inteiramente dissoluto. Por isso, nossa Igreja (a católica) recusa todos os dias aos que se obstinam em fazer alguma insigne maldade o favor de admiti-los em sua comunidade. Rezamos por hábito e por costume, ou melhor, lemos ou pronunciamos nossas preces: não é, enfim mais que uma mímica. E desagrada-me ver fazerem três sinais da cruz no Benedicite, outros tantos nas Graças. (e desagrada-me mais por ser um sinal que reverencio e utilizo constantemente, mesmo quando bocejo) e, no entanto, todas as outras horas do dia vê-los dedicados ao ódio, à avareza, à injustiça. Hora para os vícios, hora para Deus, como por compensação e arranjo. É um milagre ver sucederem-se ações tão incompatíveis, de teor tão parecido, a ponto de não se sentir interrupção e hesitação nem mesmo nas fronteiras e na passagem de uma à outra. Que monstruosa consciência pode encontrar descanso enquanto nutre num mesmo lugar, em convívio tão harmonioso e tão pacífico, o crime e o juiz? Um homem cuja licenciosidade governa incessantemente sua cabeça, e que a julga muito odiosa aos olhos divinos, que diz ele a Deus quando lhe fala disso? Recupera-se, mas subitamente torna a cair.

Se, como diz, o conceito de justiça divina e sua presença golpearam e castigaram sua alma, por mais curta que fosse a penitência o simples temor volveria seu pensamento para ela, tão amiúde que, de imediato, ele dominaria esses vícios que lhe são tão habituais e lhe estão incrustrados. Mas qual! E os que fundam uma vida inteira nos frutos e nos lucros do pecado que sabem ser mortal? Quantos ofícios e profissões socialmente reconhecidas temos cuja essência é viciosa? E aqueles que, confiando-se a mim, recitava-me ter toda a sua vida professado e praticado o ritual de uma religião condenável, segundo ele mesmo, e contraditória com a que tinha no coração, para não perder seu crédito e a honra de seus cargos, como conciliava esses pensamentos em seu coração? Com que linguagem conversam com a justiça divina a respeito desse assunto? Como seu arrependimento requer uma reparação visível e tangível, perde o direito de evocá-lo, tanto perante Deus como perante nós. São tão ousados para pedir perdão sem satisfação e sem arrependimento? Penso que é o caso daqueles primeiros como destes, mas daqueles não é tão fácil mostrar a obstinação. Essa contradição e essa volubilidade tão súbitas, tão violentas, que fingem diante de nós me cheiram a milagre. Revelam o estado de um indigerível conflito. E, nesses últimos anos, tinham o costume de criticar qualquer um em que reluzisse certa clareza de espírito e que professasse a religião católica, dizendo que era fingimento! E até afirmavam, para honrá-lo, que pouco importava o que dissesse externamente, pois não podia deixar de ter, internamente, sua fé reformada pelos padrões deles. Fastidiosa enfermidade, a de se crer tão forte a ponto de persuadir-se de que não é possível acreditar no contrário, e mais fastidiosa ainda quando a pessoa se convence de que um espírito assim prefere não sei qual melhora de sua sorte atual às esperanças e ameaças da vida eterna! Eles podem crer em mim: se algo me tivesse tentado na juventude, boa parte disso teria sido o gosto pelos riscos e as dificuldades que acompanhavam esse recente empreendimento. Não é sem boa razão, parece-me que a Igreja proíbe o uso promíscuo, temerário e levianos dos salmos sagrados e divinos que o Espírito Santo ditou a Davi. Não devemos misturar Deus às nossas ações a não ser com reverência e atenção plena de ter outro uso que não exercitar os pulmões e agradar a nossos ouvidos. É na consciência que deve ser produzida e não na língua. Não é correto permitir que um caixeiro de armazém se entretenha e brinque com ela, entre seus pensamentos vãos e frívolos. Nem de certo é correto ver largado na sala ou na cozinha o Livro Sagrado dos mistérios de nossa fé. Outrora eram mistérios, agora são divertimentos e passatempos. Não é de passagem, nem de forma tumultuada que devemos manipular um estudo tão sério e venerável. Deve ser uma ação premeditada e séria, à qual sempre há que acrescentar este prefácio do nosso ofício, sursum corda, (elevemos os corações,) e tendo o próprio corpo disposto em atitude que ateste uma particular atenção e reverência. Não é estudo para todo mundo: é estudo para pessoas que a isso se dedicaram, que Deus chama para tal; os maus, os ignorantes tornam-se piores com isso. Não é uma história para contar; é uma história para reverenciar, temer e adorar. Engraçadas essas pessoas que pensam tê-la tornado manejável pelo povo, por tê-la posto em linguagem popular. Quando não entendem tudo o que encontram por escrito a culpa seria só das palavras? Direi mais? Quando trazem para um pouco mais perto delas essa história, na verdade a afastam. A mera ignorância, que se entrega inteiramente a outrem, era bem mais salutar e mais sábia do que é essa ciência verbal e vã e que nutre presunção e temeridade. Creio também que a liberdade de cada um de difundir uma palavra tão religiosa e importante em tantos tipos de idiomas apresenta muito mais perigo que utilidade. Os judeus, os maometanos e quase todos os outros desposaram e reverenciam a língua em que originalmente seus mistérios foram concebidos, e são proibidas sua alteração e mudança: não sem razão"... Páginas 180 - 185.

Para ter uma visão maior de Montaigne, deixo o post de Os ensaios, mas antes lembrando que ele viveu no tempo das Guerras Religiosas na França, entre os católicos e os huguenotes. Ainda tenho a dizer  que a coerência é um elemento fundamental na vida das pessoas. Um dia ganhei uma camiseta de presente. Ela continha os seguintes dizeres: É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática. Paulo Freire. Viver de forma coerente e distante da hipocrisia - creio ser uma fórmula para o viver bem.

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segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Os horrores da colonização e os indígenas canibais. Montaigne em "OS ENSAIOS".

O capítulo XXX do Livro Primeiro de Os ensaios, tem por título - Sobre os canibais. É um dos textos mais conhecidos e - aos brasileiros -, interessa particularmente. Ele tem a seguinte apresentação, da tradutora do livro, Rosa Freire D'Aguiar:

"Os canibais do título são os índios do Brasil. Montaigne leu muitos relatos da conquista do Novo Mundo, inclusive  o de Girolano Benzoni, Historia del mondo nuovo (Veneza, 1565), na tradução francesa de 1579, obra cujo subtítulo enfatiza o terrível tratamento dado aos nativos pelos conquistadores. Ele pretende se apoiar em testemunhos diretos, recolhidos junto aos atores do episódio da França Antártica, a colônia que os franceses tentaram implantar na baía da Guanabara a partir de 1555; junto a marinheiros e até mesmo a alguns índios que estavam no porto de Rouen em 1562. O 'primitivismo' de Montaigne tem pouco a ver com o 'bom selvagem' dos séculos seguintes. Seus índios são sanguinários e cruéis, antropófagos e polígamos. Estes dois últimos traços, longamente analisados, levam a pensar no caráter paradoxal e provocador do ensaio, muito trabalhado em sua eloquência. Se aqueles povos são de fato cruéis, nós também somos. Mas seus métodos simples têm muito a nos ensinar: podem servir de padrão para julgarmos A República de Platão, o mito da Idade de Ouro, a crueldade, a corrupção e a cultura da Europa. O que seduz Montaigne nos habitantes da costa brasileira é sua coragem, sua virtude, seu ascetismo espartano: cidadãos ideais de uma Grécia onírica que uniria Esparta e Atenas. Com seu título chamativo, este capítulo seduzirá Shakespeare (que o ecoa em A tempestade) e Rousseau. Mas vamos ao texto:

Os ensaios. Michel de Montaigne.

Os canibais - [...] Eles (Licurgo e Platão) não conseguiram imaginar uma ingenuidade tão pura e simples como a que vemos por experiência e nem conseguiram acreditar que nossa sociedade conseguisse manter-se com tão pouco artifício e solda humana. É uma nação, eu diria a Platão, em que não há nenhuma espécie de comércio, nenhum conhecimento das letras, nenhuma ciência dos números, nenhum termo para magistrado nem para superior político, nenhuma prática de subordinação, de riqueza, ou de pobreza, nem contratos nem sucessões, nem partilhas, nem ocupações além do ócio, nenhum respeito ao parentesco exceto o respeito mútuo, nem vestimentas, nem agricultura, nem metal, nem uso de vinho ou de trigo. As próprias palavras que significam mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja, difamação, perdão, são desconhecidas. Como ele consideraria distante dessa perfeição a república que imaginou!

"Eis as primeiras leis que oferece a natureza". Virgílio, Geórgicas, II, 20.

Ademais, vivem num país muito agradável e de clima ameno, de modo que pelo que me disseram minhas testemunhas é raro ver ali um homem doente; e garantiram-me não ter visto nenhum trêmulo, remelento, desdentado, ou curvado de velhice. Estão instalados ao longo do mar e cercados do lado da terra por grandes e altas montanhas, tendo entre os dois uma extensão de cerca de cem léguas de largura. Têm grande abundância de peixe e carnes, sem nenhuma semelhança com os nossos; e os comem sem outro artifício além de cozinhá-los. O primeiro que para lá levou um cavalo, embora já os tivesse encontrado em várias outras viagens, causou-lhes tanto horror naquela posição que o mataram a flechadas antes de chegarem a reconhecê-lo. Suas construções são muito compridas e com capacidade para duzentas ou trezentas almas; são cobertas de casca de grandes árvores, presas à terra por uma ponta e sustentando-se e apoiando-se uma na outra pela cumeeira, à moda de algumas de nossas granjas, cuja cobertura pende até o chão e serve de muro. Têm madeiras tão duras que as usam para cortar, e com elas fazem suas espadas e espetos para grelhar os alimentos. Seus leitos são de um tecido de algodão, suspensos no teto, como os de nossos navios, cada um com o seu, pois as mulheres dormem separadas dos maridos. Levantam-se com o sol e comem logo depois de se levantarem, para o dia todo, pois, não fazem outra refeição além dessa. Não bebem nesse momento, como Suídas (grande lexicógrafo do final do século X) conta sobre alguns outros povos do oriente, que só bebem fora da refeição; bebem várias vezes ao dia, em profusão. Sua bebida é feita de certa raiz e é da cor de nossos vinhos claretes. Só a tomam morna: essa beberagem se conserva apenas dois ou três dias, tem um gosto um pouco picante, nada inebriante, é salutar para o estômago e laxativa para os que não estão acostumados; é uma bebida muito agradável para quem está habituado. Em vez do pão comem uma substância branca, parecida com coriandro em conserva. Provei-a, o gosto é doce e um pouco insosso. Passam o dia dançando. Os mais moços vão à caça dos bichos, com arcos. Enquanto isso, uma parte das mulheres se ocupa de aquecer a bebida, o que é sua principal função. 

Há um dos velhos que, de manhã, antes de começarem a comer, prega ao mesmo tempo para todos os moradores, passeando de uma ponta à outra e repetindo a mesma frase várias vezes, até que tenha completado a volta (pois são construções que têm bem uns cem passos de comprimento), e só lhes recomenda duas coisas, a valentia contra os inimigos e a amizade por suas mulheres. E jamais deixam de salientar essa obrigação, como um refrão, de que são elas que lhes mantêm a bebida morna e temperada. Vê-se em vários lugares, e entre outros em minha casa, a forma de seus leitos, cordões, espadas, e pulseiras de madeira com que cobrem os punhos nos combates, e grandes caniços abertos numa ponta, cujo som marca a cadência de sua dança. São inteiramente raspados e barbeiam-se muito mais rente que nós, sem outra navalha que não de madeira ou pedra. Creem que as almas são eternas e aquelas que bem mereceram dos deuses estão alojadas no lugar do céu onde o sol se levanta: as malditas, do lado poente. Têm não sei que sacerdotes e profetas, que aparecem raramente ao povo e moram nas montanhas. Ao chegarem, faz-se uma grande festa e uma assembleia solene de várias tabas (cada granja, como descrevi, constitui uma taba, e distam  uma da outra cerca de uma légua francesa). Esse profeta lhes fala em público, exortando-os à virtude e ao dever, mas toda a moral deles só contém estes dois artigos: coragem na guerra e afeição por suas mulheres. Prognostica-lhes as coisas vindouras e os resultados que devem esperar de seus empreendimentos: encaminha-os ou os dissuade da guerra, mas com a condição de que, caso se engane em suas previsões e lhes aconteça diferentemente do que lhes predisse, ele é picado em mil pedaços, se o agarrarem, e condenado como falso profeta. Por isso, quem uma vez se enganou não é mais visto.  A adivinhação é dom de Deus: eis por que abusar dela deveria ser uma impostura punível. Entre os citas, quando os adivinhos falhavam eram deitados com ferros nos pés e nas mãos em cima de carroças cheias de urze, puxadas por bois, onde eram queimados. Aqueles que manipulam as coisas sujeitas ao governo da competência humana são desculpáveis se fizeram o que podiam. Mas esses outros, que vêm nos embair com garantias de uma faculdade extraordinária, que está fora de nosso conhecimento, não devemos puni-los por não manterem suas promessas e pela temeridade de sua impostura?

Eles têm suas guerras contra as nações que ficam além das montanhas, mais adiante na terra firme, para as quais vão inteiramente nus, não tendo outras armas além dos arcos ou de espadas de madeira, afiadas numa ponta, à modas das ponteiras de nossas lanças. É admirável a firmeza de seus combates, que sempre terminam em morte e efusão de sangue, pois eles não sabem o que é fuga e pavor. Cada um traz como troféu a cabeça do inimigo trucidado e a pendura à entrada de sua casa. Depois de tratar bem por muito tempo seus prisioneiros, e com todas as comodidades que podem imaginar, quem for o dono deles faz uma grande assembleia com seus conhecidos. Prende uma corda num dos braços do prisioneiro, por cuja ponta o segura, afastado alguns passos, temendo ser ferido por ele, e dá ao mais querido amigo o outro braço para que o segure da mesma forma; e os dois, em presença de toda a assembleia, o matam a golpes de espada. Feito isso, assam-no e o devoram juntos, e mandam pedaços aos amigos ausentes. Não é, como se pensa, para se alimentarem, assim como faziam antigamente os citas, mas para simbolizar uma vingança extrema. E, como prova, tendo visto que os portugueses, aliados de seus inimigos, usavam contra eles, quando os agarravam, outro tipo de morte, que consistia em enterrá-los até a cintura e darem no restante do corpo muitas flechadas e enforcá-los depois, pensaram que os homens desse outro mundo (pessoas que tinham espalhado pela vizinhança o conhecimento de muitos vícios e que eram mestres muito maiores que eles em toda maldade) não empregavam sem motivo esse método de vingança, que devia ser mais cruel que o deles, tanto assim que começaram a abandonar sua maneira antiga para seguirem essa outra.

Não fico triste por observarmos o horror barbaresco que há em tal ato, mas sim por, ao julgarmos corretamente os erros deles, sermos tão cegos para os nossos. Penso que há mais barbárie do que comê-lo morto, em dilaceram por tormentos e suplícios um corpo ainda cheio de sensações, fazê-lo assar pouco a pouco, fazê-lo ser mordido e esmagado pelos cães e pelos porcos (como não apenas lemos mas vimos de fresca memória, não entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e compatriotas, e, o que é pior, a pretexto de piedade e religião) do que em assá-lo e comê-lo depois que está morto. Crísipo e Zenão, chefes da escola estoica, pensaram que não havia nenhum mal em usar nosso cadáver, no que fosse para nossa necessidade, e dele tirar alimento, assim como nossos ancestrais, estando sitiados por César na cidade  de Alésia, decidiram enfrentar a fome desse cerco com os corpos dos velhos, das mulheres , das crianças e de outras pessoas inúteis para o combate". A tonalidade do ensaio continua por aí, a mostrar as hipocrisias do seu tempo. (Páginas 146 a 151). Deixo ainda a resenha completa do livro.

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quarta-feira, 15 de novembro de 2023

OS ENSAIOS. Montaigne (1533- 1592).

Uma releitura fascinante. Os ensaios de Michel de Montaigne. Vamos a algumas contextualizações. Montaigne nasceu no ano de 1533 e morreu em 1592. Século XVI. O século da Reforma Protestante e dos reinados de Felipe II, da Espanha (1556-1598) e de Elizabeth da Inglaterra (1553-1603) e das Guerras religiosas na França (1562-1598), que terminam com a ascensão de Henrique IV. Tempos de muita agitação mas que não impediram a Montaigne de se refugiar em uma vida interior e, sobre ela, tecer as mais profundas considerações.
Os ensaios. Michel de Montaigne. Penguin - Companhia. 2010.

Montaigne teve uma vida financeira tranquila, na qualidade de herdeiro de seu rico avô. Nunca se preocupou muito com a questão financeira e, muito menos, com a perspectiva de aumentar fortuna. Tratou, isso sim, do bom viver. Mesmo contra a sua vontade, foi por duas vezes prefeito de sua cidade, a cidade de Bordeaux. Pela leitura de seus ensaios e por dados biográficos seus, creio que podemos apresentá-lo como um senhor de boas relações, de grande afabilidade e de ótimas conversas, coisas de seu feitio. Os seus ensaios são conversas muito sinceras sobre os grandes temas da vida e de sua época, um retrato de seu tempo, mais precisamente, a segunda metade do século XVI.

O livro que eu li, é o da coleção - Clássicos - da Penguin - Companhia, uma edição do ano de 2010. A coordenação da obra (uma seleção de textos) é de M. A. Screech e tradução e notas de Rosa Freire D'Aguiar. Cada capítulo selecionado tem uma apresentação da tradutora. Nela ela sintetiza o ensaio selecionado e apresenta as suas repercussões e importância. Mas eu quero chamar uma particular atenção para a apresentação - O escritor Montaigne - de autoria do conceituado Erich Auerbach, autor do monumental Mimesis - estudos. Auerbach assim apresenta Montaigne e Os ensaios:

"Esse homem independente e sem profissão determinada criou assim uma nova profissão e uma nova categoria social: o homme de lettres ou écrivain, o leigo na condição de escritor. Conhecemos o caminho percorrido por essa profissão, primeiro na França e depois também em outros países de cultura: tais leigos tornaram-se os verdadeiros intelectuais, os representantes e guias da vida intelectual, e gozam hoje em dia de um tal reconhecimento que Julien Benda os chamou de clercs, o mesmo nome, portanto, daqueles a quem originalmente se opunham, os clerici ou religiosos. Isso equivale ao reconhecimento de que os escritores herdaram destes últimos o legado e o posto, isto é, a hegemonia intelectual na Europa moderna. De Montaigne a Voltaire há uma ascensão contínua; no século XIX, eles ampliam sua posição e alcançam repercussão sobre uma base mais larga, o jornalismo, e apesar de alguns sinais de decadência observados há tempos, é bastante provável que também no século XX eles venham a manter sua função de voz do mundo" (Página 16). Que beleza e que profundidade! Novos detentores da interpretação do mundo.

Montaigne, apesar de sua propensão ao recolhimento, não fica alheio às questões de seu tempo, e mais precisamente, à questão das guerras religiosas. Ele permanece monarquista e católico, mas o seu catolicismo não contagia a sua obra. Ele será um escritor leigo e que escreve para leigos, a partir da consonância com a natureza e sob as luzes da reflexão racional. Um autônomo. Está longe de empregar um método científico e da especialização em certos temas. Escreve muito e sobre os mais diversos temas. Os ensaios são escritos e revisados e, ao todo, ocupam mais de mil páginas. Por isso as seleções. Vida, morte, dores, doenças, são alguns de seus temas preferidos. Sócrates, Platão, Plutarco, Sêneca, Virgílio, entre outros, iluminam os seus escritos (a presente seleção tem 610 páginas). Segundo ele mesmo nos conta, três eram os seus afazeres prediletos: a conversa com amigos (La Boétie), a companhia de mulheres honestas e bonitas e a leitura.

Os textos da edição que eu li são retirados dos três livros que compõem Os ensaios. Vamos aos temas:

Livro Primeiro. Capítulo I - Por meios diversos se chega ao mesmo fim. O grande tema são as guerras e as versões a ela dadas; Capítulo VIII - Sobre a ociosidade. Aqui ele apresenta o conceito de ócio como um lazer letrado; Capítulo XV - Sobre a punição da covardia. Um alerta sobre os deveres para coma a pátria; Capítulo XVII - Sobre o medo. O pior medo é o medo do medo. Ele elimina a possibilidade do julgamento racional; Capítulo XIX - Que filosofar é aprender a morrer. O melhor preparo para a morte é o viver bem. Ela deve ser vista como algo muito natural. É um dos seus capítulos mais conhecidos e famosos; Capítulo XXV - Sobre a educação das crianças. Um belo capítulo que versa sobre uma educação aristocrática. Ainda não são tempos de educação pública. Belíssimos temas afloram como a importância de dizer "não" (La Boétie), que saber não é decorar, sobre professores encolerizados e sobre a espontaneidade do aprender, movido pela curiosidade natural; Capítulo XXVI - É loucura atribuir o verdadeiro e o falso à nossa competência. Aborda o tema da questão religiosa, mostrando a sua fidelidade ao catolicismo. Discute também a questão dos milagres, postos à prova pela razão; Capítulo XXX - Sobre os canibais. Fala dos horrores da colonização e nos apresenta os indígenas brasileiros. Apresentarei o tema em post especial; Capítulo XXXI - Que é preciso prudência para se meter a julgar os decretos divinos. Versa especialmente sobre as intervenções divinas nas guerras, ou não. Escrito logo após a Batalha de Lepanto (1571); Capítulo XXXVIII - Sobre a solidão. É sobre a sua busca e sobre os inimigos da felicidade humana, sendo a ambição o principal; Capítulo LVI - Sobre as orações. Versa sobre a excelência do Pai-Nosso e a sua aversão às orações mecanicamente repetidas e sobre o perigo das traduções em livros religiosos. Capítulo LVII - Sobre a idade. Escreve aos 47 anos e já se considera um velho. Fala de suas cólicas renais. É o capítulo que encerra a Primeira Parte.

Livro Segundo. Capítulo I. - Sobre a inconstância de nossas ações. Ela dificulta os estudos sobre a condição humana; Capítulo II. Sobre a embriaguez. Embora não despreze a bebida, mostra a embriaguez como um vício grosseiro e brutal; Capítulo V - Sobre a consciência. É a força que nos denuncia a nós mesmos. Nos faz perceber o certo e o errado. Já fala do absurdo da tortura como método de punição; Capítulo VIII - Sobre a afeição dos pais pelos filhos. Neste capítulo, profundamente revelador, aparecem belos temas, como a ausência da violência na educação, da precedência dos interesses sociais sobre os individuais, sobre o ser amado, mais que temido e sobre as suas obras, como seus filhos; Capítulo XI - Sobre a crueldade. Fala da morte de Sócrates, sobre os vícios, sendo a crueldade o maior de todos, inclusive com relação aos animais; Capítulo XXXII. Defesa de Sêneca e Plutarco. É um tributo que presta a estes autores, sempre entre os seus preferidos; Capítulo XXXV - Sobre três boas esposas. Afirma que não as há, às dúzias. Fala sobre os deveres e às virtudes no casamento. Mulheres trágicas e fortes. O capítulo revelaria dados de misoginia? Capítulo XXXVIII - Sobre a semelhança dos filhos com os pais. Montaigne não era muito bom ao atribuir títulos aos capítulos. Este mesmo, versa sobre um mundo de coisas, com destaque à sua visão negativa da medicina.

Livro Terceiro. Os capítulos são mais longos. Capítulo II. Sobre o arrependimento. As minhas ações estão em harmonia com as minhas condições. Sempre procedi sensatamente. Estes são indícios de que não tinha grandes simpatias com relação ao arrependimento. É um dos temas de abordagem religiosa. Capítulo III. Sobre as relações. Belíssimo. destaca as suas preferências: conversa com os amigos; estar em companhia de belas mulheres e a leitura. Sobre a sua companhia com os livros, um post especial como deferência à beleza do texto; Capítulo V - Sobre versos de Virgílio. Mais uma vez a fuga ao tema anunciado. Fala de sexualidade e casamento. Penso até em incluir este capítulo no meu curso de literatura erótica, que sempre anuncio e nunca programo. E, também por óbvio, sobre os versos do poeta latino. Capítulo VI - Sobre os coches. Fala da ostentação e da malversação do dinheiro público. O seu meio de transporte era o cavalo. Capítulo XI - Sobre os coxos. Fala da origem de muitas verdades, sobre a feitiçaria e sobre o pensamento filosófico e a valorização da dúvida. Este capítulo o relaciona ao iluminismo; Capítulo XIII. O capítulo final. Sobre a experiência. Apresenta o conhecimento como o mais natural dos desejos e reflete sobre o lugar do ser humano no mundo. Retoma alguns temas de sua preferência como o viver, o envelhecer, doença, dor e morte. Também merece um post especial.

Antes de encerrar, apresento ainda os três parágrafos da contracapa do livro: "Personagem de vida curiosa, Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) é considerado o inventor do gênero ensaio. Herdeiro de uma fortuna deixada pelo avô, um comerciante de peixes abastado, Montaigne foi alfabetizado em latim e também prefeito de Bordeaux. A certa altura, retirou-se para ler, meditar e escrever sobre praticamente tudo.

Esta seleção de ensaios oferece ao leitor brasileiro um panorama abrangente do pensamento (cada vez mais atual) de Montaigne, sem que se precise recorrer aos três volumes de suas obras completas. Selecionados para a edição internacional da Penguin por M.A. Screech, estes ensaios passam por temas como o medo, a covardia, a preparação para a morte, a educação dos filhos, a embriaguez, a ociosidade.

De particular interesse para nossos leitores é o ensaio "Sobre os canibais", que foi inspirado no encontro que Montaigne teve, em Ruão, em 1562, com os índios da tribo Tupinambá. Esta edição traz também um prefácio do crítico literário Erich Auerbach, que apresenta e contextualiza o autor para os leitores de hoje".