sábado, 2 de dezembro de 2023

Em "OS ENSAIOS" - Montaigne deixa um Projeto de Vida. Seu testamento intelectual.

O capítulo XIII do Terceiro Livro de Os ensaios tem por título - Sobre a experiência. É o último capítulo de toda a obra. Vejamos a apresentação escrita pela tradutora Rosa Freire D'Aguiar:
O ensaios. Montaigne. Sobre a experiência.

"O capítulo final de Os ensaios fornece o fruto do julgamento de Montaigne sobre o lugar de nossa humanidade na vida de cada um de nós. Ele o amarra firmemente ao contexto aristotélico. A frase inicial ecoa a primeira frase de um dos livros mais famosos de Aristóteles, que diz que não há desejo mais natural do que o desejo de conhecimento. As últimas palavras de Os ensaios eram, na primeira edição, 'diversidade e discordância'. Oito anos depois, Montaigne escolhe concluir sua obra com a experiência. Assim, é tentador ver aqui seu testamento intelectual. Montaigne fala de si mesmo. Como envelhecer? Como enfrentar a doença e a dor? A morte? Suas respostas vêm não tanto da leitura dos grandes filósofos, mas do convívio com as pessoas, da observação do real. A sabedoria já não vem do alto, já não é ditada pela razão; resulta de observações e ensinamentos acumulados ano após ano: quanto mais envelhece, mais Montaigne se convence de que não erra em seguir a natureza e em fugir tanto dos conselhos dos moralistas como das consultas dos médicos. Apesar da dívida com Aristóteles, não acredita que a experiência que existe por trás da Metafísica ou Física substitua sua própria experiência: 'Estudo a mim mesmo mais que a outro assunto. É a minha metafísica, é a minha física'".

Deixo apenas a mensagem final, que vai das páginas 578 a 583:

"Quanto a mim, portanto, amo a vida e cultivo-a tal como aprouve a Deus nos outorgá-la. Não estou desejando que lhe faltasse a necessidade de beber e comer. E me pareceria cometer um erro não menos desculpável se desejasse que ela a tivesse em dobro. O sábio indaga com a mais viva paixão sobre as riquezas da natureza - (Sêneca). Nem que nos sustentássemos metendo na boca só um pouco daquela droga com que Epimênides se privava de apetite e se mantinha. Nem que produzíssemos estupidamente filhos pelos dedos ou pelos calcanhares, voluptuosamente. Nem que o corpo fosse sem desejo e sem excitação. Seriam queixas ingratas e iníquas. Aceito de bom grado e reconhecido o que a natureza fez por mim, e alegro-me e sinto-me satisfeito com isso. Somos injustos com esse grande e todo-poderoso Doador ao recusarmos Seu dom, anulá-lo e desfigurá-lo: tudo é bom, Ele fez tudo bom. Tudo o que é conforme à natureza é digno de consideração - Cícero. Abraço com mais gosto os princípios da filosofia que são os mais sólidos: isto é, os mais humanos e nossos. Minhas opiniões correspondem ao meu comportamento, humildes e modestas.

A meu ver, a filosofia finge-se de criança quando levanta a crista para nos pregar que é uma aliança selvagem casar o divino com o terrestre, o honesto com o desonesto. Que o prazer é qualidade bestial, indigna de ser provada pelo sábio. E que o único prazer que ele tira da fruição de uma bela jovem esposa é o prazer de sua consciência por estar praticando uma ação segundo as regras. Como calçar suas botas para uma cavalgada útil. Possam os sequazes dessa filosofia ter, no desvirginamento de suas mulheres, tão pouca firmeza, e nervos e suco quanto têm seus argumentos! Não é o que diz Sócrates, preceptor deles e nosso. Ele aprecia, como deve ser, o prazer corporal, mas prefere o do espírito, por ter mais força, constância, facilidade, variedade, dignidade. Este não anda sozinho, segundo ele (que não é tão fantasioso assim), mas é apenas o primeiro. Para ele, a temperança é moderadora, não adversária dos prazeres. A natureza é um guia gentil, mas não mais gentil do que sábio e justo. É preciso progredir do conhecimento da natureza e proceder a um exame muito aprofundado do que ela exige - Santo Agostinho. Procuro por toda parte sua pista: nós a confundimos com rastros artificiais. E esse 'soberano bem' da Academia e dos peripatéticos, que é viver segundo a natureza, tona-se por isso difícil de delimitar e demonstrar, e também o dos estoicos, próximo dele, e que consiste em estar de acordo com a natureza. Não será um erro considerar certas ações menos dignas porque são necessárias? Não me tirarão da cabeça que é muito conveniente o casamento do prazer com a necessidade, com a qual, diz um antigo, os deuses vivem conspirando. Por que desmembramos uma construção tecida com uma cor correspondência tão fraterna e estreita, levando-a ao divórcio? Ao contrário, retemo-la por serviços mútuos: que o espírito desperte e vivifique o peso do corpo, que o corpo detenha a leveza do espírito e a fixe. Aquele que exalta a alma como um soberano bem e condena a carne como um mal, com certeza a um só tempo acaricia a alma carnalmente e foge da carne carnalmente, pois tal opinião nasce da vaidade humana, não da verdade divina - Sêneca. 

Não há elemento indigno de nosso cuidado nesse presente que Deus nos deu: dele devemos prestar contas até cada fio de cabelo. E não é uma missão meramente formal do homem conduzir a si mesmo de acordo com a condição do homem; ela é expressa, inata e primordial, e o Criador confiou-a a nós séria e severamente. Só uma autoridade pode convencer as inteligências comuns: e pesa mais se em língua estrangeira. Portanto, neste trecho, voltemos à carga: Quem não reconheceria que é próprio da estupidez fazer com moleza e reticência o que deve ser feito, empurrar o corpo de um lado, o espírito de outro, e deixar-se puxar entre movimentos contraditórios - Sêneca. Ora, então, só para ver, fazei com que vos contem um dia as reflexões e as ideias que um homem põe na cabeça, e pelas quais desvia seu pensamento de uma boa refeição e lamenta-se do tempo que passa a se alimentar: descobrireis que não há nada tão insípido em todos os pratos de vossa mesa quanto essa bela conversa de sua alma (quase sempre seria melhor dormirmos profundamente do que ficar acordados para ouvi-la) e descobrireis que seu discurso e suas intenções não valem vosso ensopado. E se fossem os arroubos do próprio Arquimedes, o que seria? Não incluo aqui e não meto nessa cambada de homens que somos e nessa vaidade de desejos e cogitações que nos desviam do essencial as almas veneráveis, que se elevam pelo ardor da devoção e da religião a uma meditação constante e conscienciosa sobre as coisas divinas, e que provam de antemão, pelo esforço de uma esperança viva e veemente, o alimento eterno, objetivo final e última etapa dos desejos cristãos, único prazer constante e incorruptível, e desprezam a atenção a nossos bens necessitosos, flutuantes e ambíguos, e abandonam facilmente ao corpo o cuidado e o uso do alimento temporal e dos sentidos. Esse é um esforço das almas privilegiadas. Entre nós, há coisas que sempre vi em singular concórdia: os pensamentos super celestes e os comportamentos subterrâneos. Esopo, esse grande homem, viu seu amo urinando ao passear. 'Como assim', disse ele, 'teremos de defecar ao correr?' Organizemos nosso tempo: ainda nos resta muito dele, ocioso e mal empregado. Nosso espírito não tem talvez outras horas suficientes para fazer seus deveres sem se dissociar do corpo durante esse pouco tempo de que este precisa para suas necessidades? Os filósofos querem escapar a si mesmos e escapar ao homem. Isso é loucura: em vez de se transformarem em anjos, transformam-se em animais, em vez de se elevarem, rebaixam-se. Esses humores transcendentes apavoram-me, como os lugares altos demais e inacessíveis. E nada me é tão desagradável digerir na vida de Sócrates quanto seus êxtases e suas demonices. Nada me é tão humano em Platão quanto a razão pela qual dizem que é chamado de 'divino'. E de nossas ciências, parecem-me mais terrestres e baixas aquelas que estão colocadas mais alto. E não acho nada tão humilde e tão mortal na vida de Alexandre como suas fantasias em torno de sua imortalidade. E Filotas, numa resposta que lhe deu por carta, alfinetou-o divertidamente quando congratulou Alexandre por ter sido colocado entre os deuses pelo oráculo de Júpiter Amon : 'Quanto a ti, estou muito feliz; mas não motivo para lamentar pelos homens, que terão de conviver e obedecer a um homem que ultrapassa e não se contenta com a medida de um homem'. É porque te submetes aos deuses que reinas - Horácio. A nobre inscrição com que os atenienses honraram a chegada de Pompeu à sua cidade corresponde a meu modo de pensar: 

Tanto mais és Deus
Quanto te reconheces como homem - Plutarco.

É uma perfeição absoluta, e como divina, saber gozar lealmente de seu ser. Procuramos outros atributos por não compreendermos a prática dos nossos, e saímos de nós mesmos por não sabermos o que nele se passa. No entanto, pouco adianta subir em perna de pau, pois mesmo sobre pernas de pau ainda temos de andar com nossas pernas. E no trono mais elevado do mundo ainda estamos, porém, sentados sobre nosso traseiro. As mais belas vidas são, a meu ver, as que se conformam ao modelo comum e humano, bem ordenadas, mas sem milagre, sem extravagância. Ora, a velhice tem certa necessidade de ser tratada mais ternamente. Recomendamo-la àquele deus protetor da saúde e da sabedoria: sim, mas alegre e sociável: Concede-me, filho de Latona, desfrutar dos bens que adquiri, a um só tempo em plena saúde e com o espírito intacto, suplico-te, e não arrastar uma velhice vergonhosa, privada da lira - Horácio".

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