segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

O CRISTO RECRUCIFICADO. Nikos Kozantzakis.

Vou começar dando uma volta. Creio que muitos já ouviram falar do maravilhoso filme Zorba, o grego, do diretor Michael Cacoyannis.  O filme teve sete indicações ao Oscar de 1964 e levou três. Ele tem a atuação extraordinária de Anthony Quiin. Pois bem, o filme é uma adaptação do romance homônimo de Nikos Kazantzakis. E, agora sim, Nikos Kazantzakis é também o autor de O Cristo recrucificado, romance escrito em 1948 e que veio a público em 1954.

O Cristo recrucificado. Nikos Kozantzakis. Abril cultural. 1971.

Vamos falar um pouco do autor e, justiça lhe seja feita, ele é um revolucionário. Ele nasceu em Heraklion, a capital da ilha de Creta, Grécia. Morreu em Freiburg, em 1957. Peregrinou mundo afora, em busca de um significado para sua vida e participar de movimentos revolucionários. Sofreu múltiplas influências, com destaque para Nietzsche e Marx. Do livro de biografias e contextualização de obras que acompanha a coleção - Os imortais da literatura universal -, destaco um dado biográfico seu:

"[...] Encontrava-se em Viena (1922) quando lhe surgiu no rosto um grande eczema, que nenhum médico conseguiu diagnosticar. Um discípulo de Freud encontrou finalmente a explicação. A moléstia era de fundo psicológico, um refúgio de pureza encontrado pelo asceta em que se transformara Kazantzakis, para quem as relações sexuais eram pecaminosas.

Escrevia incessantemente: cartas, esboços, meditações. Nessa época, começou a elaborar o romance Ascese, onde sua doença aparece como um símbolo, representando a luta para manter-se puro. Mais de trinta anos depois, voltaria a reviver a experiência através de Manólios, o jovem protagonista de O Cristo recrucificado (1954), escolhido para representar o papel de Jesus no drama da Paixão encenado por sua aldeia".

Está aí a essência de seu romance, que não deixa de ser uma paródia. Sobre ele, acompanhemos o livro de biografias: "Uma reviravolta política em sua pátria obriga-o ao exílio. No pequeno porto de Antibes, o escritor vive o seu período mais criativo (1948-1950), quando inicia O Cristo recrucificado. 'Um romance sem o eu', afirma a respeito de sua obra. E, de fato, O Cristo recrucificado não é uma autobiografia. Contudo, apesar de situada a ação na Ásia Menor, o vilarejo de Lycovrissi, com seus costumes, modo de pensar, egoísmos, mesquinharias, retrata indiscutivelmente a pequena cidade de Heraklion, onde o escritor nasceu, em fevereiro de 1883, passou a infância e formou o caráter". Acompanhemos o livro guia, contextualizando o romance:

"Justaposição entre o imaginário e o verdadeiro, entre o grotesco e o trágico, O Cristo recrucificado contém toda a vida do autor. Pessoas que conheceu, fatos que testemunhou estão aí presentes. Suas próprias dúvidas e aspirações reencarnaram-se na figura de Manólios. O conflito com o pai, que Kazantzakis ao mesmo tempo amava por sua coragem e odiava por seu espírito rude e brutal, é revivido através de Michellis, o jovem abastado e indeciso.

O massacre de Lycovrissi, descrito com intensa emoção, também corresponde à realidade passada do autor. Kazantzakis não completara ainda oito anos de idade quando, em sua aldeia, o favorito do chefe turco - ou agá - fora assassinado. As prisões abarrotaram-se. Sangue inocente jorrava sob as espadas dominadoras. Não suportando as perseguições, o povo acabou matando o agá. Então desabou a grande tempestade. O ocupante engendrou a mais terrível das vinganças. A cidade cerrou as portas, os comerciantes fecharam as lojas. Nas ruas desertas não se ouvia um só ruído. De repente, estoura a fuzilaria. Gemidos e estrondos vão ter à casa dos Kazantzakis. O Capitão Michellis, de espingarda em punho, defende a sua entrada. Após quatro dias, volta o silêncio. Estava acabada a vingança. Os gregos saem às ruas. Tomando o filho pela mão, o Capitão Michellis caminha lentamente até a praça. Levantando os olhos, o garoto grita de pavor. No frondoso plátano à sombra do qual brincava com seus companheiros, três cadáveres gregos balançam ao vento. 'Prosterne-se diante deles!', ordena-lhe o pai. E como Nikos procurasse escapar, obriga-o a beijar os pés dos massacrados. 'Olhe muito bem', exclama novamente o velho, 'que enquanto você viver, estes enforcados não desapareçam jamais da sua memória. Quem foi que os matou? A Liberdade. Bendita seja ela'". Este era o fato real.

O romance explora a tradição do vilarejo, de celebrar, de sete em sete anos, a crucificação. Os notáveis da cidade se reuniam para escolher os personagens: Jesus, os apóstolos, Madalena e, aquele que ninguém queria ser, o Judas. São cenas de raro humor. O fato é que Jesus assume verdadeiramente o fato de ser Jesus. Põe em prática a sua doutrina. E a ordem - representada pela religião, pátria, família e propriedade - começa a ser questionada e desmoronada. E, esta ordem estabelecida passa a ser preservada pelo padre e pelos notáveis da cidade, em conflito com uma aldeia vizinha, empobrecida pela dominação turca e sob a liderança de um padre, o padre Photis, de quem Manólios passa a ser discípulo e aliado. Como se trata de uma recrucificação, o final está revelado pelo título - recrucificado -, mas não a forma e os personagens.

Um livro para ser lido por muitos e muitos, especialmente nesses tempos de tanta e tanta hipocrisia religiosa, de tantos falsos profetas e cristos. O verdadeiro Cristo sempre seria e será recrucificado. Com este romance Kozantzakis se tronou um precursor da Teologia da Libertação.


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