domingo, 25 de abril de 2021

O mestre de esgrima. Arturo Pérez-Reverte.

Mais um livro comprado em promoção e não lido logo após a compra. O comprei no ano de 2011 e, como já contei em outro post, nas promoções eu comprava, ou pelo autor, pelo tema, ou pela editora. Este - O mestre de esgrima, de Arturo Pérez-Reverte, certamente foi em função da editora, a Companhia das Letras. Do autor, nunca tinha ouvido falar e nunca me detive sobre o tema da esgrima, nem como arma e nem como esporte. 

O professor de esgrima. Arturo Pérez-Reverte. Companhia das Letras. 2003. 

Não me decepcionei com a leitura. O tema é muito interessante. A disciplina exigida para a prática da esgrima é algo impressionante. Era uma arma da nobreza e exigia total disciplina, concentração e o cumprimento de todo um ritual, até mesmo para eliminar o adversário. Atrás da esgrima havia um rigoroso código de postura e de ética. Quanto ao autor, fiquei surpreso. Ele é lido em mais de vinte países. O livro pode ser enquadrado como um romance policial e histórico e, sob certo aspecto, até romântico amoroso.

O ano dos acontecimentos é o ano de 1868 e o país é a Espanha e a sua monarquia. Isabel II era a rainha, no poder desde 1830. O tema do livro são as insurreições deste ano que a derrubam do poder, mas não derrubaram a monarquia. Essas intrigas são parte integrante do romance, do qual, no entanto, o professor dom Jaime Astarloa, mestre pela Academia de Esgrima de Paris é o protagonista. Os personagens coadjuvantes, às quais o leitor deverá prestar atenção, são Dom Luis de Ayala, o marquês de Alumbres, amigo e aluno do mestre dom Jaime, a bela Adela de Otero, uma mulher estranha que entra na história também como aluna de dom Jaime e o amigo jornalista Agapito Cárceles. 

O romance, desenvolvido ao longo de oito capítulos e 271 páginas, se ocupa da descrição da esgrima e os lamentos do professor, no que diz respeito às armas de fogo e a consequente decadência dessa arte de defesa e ataque em duelos, especialmente, em defesa da honra. Essa decadência também afetava a demanda por alunos, cada dia mais escassos. Contra os princípios de Dom Jaime ele admite Adela de Otero como sua aluna, por quem se apaixona perdidamente. Sempre, no entanto, soube manter a compostura. Já era um senhor de certa idade. Bem, o resto é a trama do enredo, começando a parte policial. A leitura é extremamente agradável e fluente. É daqueles livros que você não quer parar de ler.

Para dar o tom do romance transcrevo um parágrafo em torno da ética e valores da esgrima e sobre a decadência desses mesmos valores, em que Adela de Otero cobra do mestre os ganhos do seu, digamos, estoicismo: "De todos os personagens deste drama, senhor Astarloa, foi o senhor o mais crédulo, o mais querido e o mais digno de dó. - As palavras pareciam gotejar lentamente no silêncio. - Todo mundo, os vivos e os mortos, mandou a consciência às favas. E o senhor, como nas comédias ordinárias, com sua ética ultrapassada e suas tentações vencidas, interpretando o papel de marido enganado, o último a saber. Olhe para o senhor, se for capaz. Pegue um espelho e me diga onde foi parar agora todo o seu orgulho, toda a sua segurança, sua fátua auto complacência. Quem diabo o senhor achava que era? Bem, tudo foi muito enternecedor, está certo. Se desejar, pode se aplaudir mais uma vez, a última, porque já é hora de baixar o pano. O senhor precisa descansar". p. 264. Foi para humilhar!

Deixo a orelha do livro para aguçar a sua curiosidade para a leitura: "Dom Jaime de Astarloa, um homem habituado aos usos da tradição, a honra é mais importante que o sucesso ou o poder político. O sexagenário professor de esgrima permanece fiel aos valores de toda uma vida: a lealdade é um princípio natural e a nobreza significa mais do que títulos adquiridos em ocasião propícia.

Nas ruas de Madri, porém, a agitação crescente - ouvem-se rumores sobre tropas revolucionárias que planejam deixar o exílio e derrubar a casa real dos Bourbon. A esperança republicana toma corpo, mas dom Jaime não se deixa levar pela instabilidade.  Apesar das transformações em curso, tudo é ordem e têmpera para o mestre de esgrima.

O mecanismo de relógio que rege a pacata existência do professor, entretanto, está prestes a ser desregulado.  A misteriosa e sedutora Adela de Otero, de pele acobreada e olhos cor de violeta, acrescenta vertigem à vida do experiente mestre e convence dom Jaime a lhe ensinar os segredos de um golpe fatal, conhecido como a mortífera 'estocada de duzentos escudos'.

À súbita paixão vêm se somar os percalços das intrigas políticas, que chegam aos ouvidos de dom Jaime pelas confissões de um de seus alunos, dom Luis de Ayala, o influente marquês  do los Alumbres. A dom Jaime somente, graças à lealdade do professor, o marquês confia segredos de alcova e documentos lacrados, bem como suas mais secretas opiniões sobre o poder.

Uma investigação policial termina por lançar o mestre de esgrima definitivamente no centro das convulsões políticas e sociais. A perícia de esgrimista terá então de conduzir seus movimentos, e qualquer hesitação poderá custar-lhe a vida. Como afirma o próprio mestre nesta inquietante parábola, 'em esgrima, o simples, é inspiração; o complexo é técnica'. Este parece ser também o norte do estilo do autor: um mínimo de retórica para um máximo de efeitos".

Plenamente recompensado com a leitura do livro e mais do que recomendações para a sua leitura. O autor é espanhol, nascido em 1951. É jornalista de profissão, profissão que abandona em favor da literatura. O mestre de esgrima data do ano de 1988. A edição brasileira é de 2003. A tradução é de Eduardo Brandão.



domingo, 18 de abril de 2021

A misteriosa chama da rainha Loana. Romance ilustrado. Umberto Eco.

É mais um Umberto Eco. Trata-se de A misteriosa chama da rainha Loana. Romance ilustrado. Comprei o livro em 2009 e o li em partes. Fiz até alguns apontamentos. Deles não me lembrava absolutamente nada. Não, não se apavorem. Eu não perdi a memória. Apenas para dizer que o livro trata da perda da memória e da tentativa e dos esforços feitos para recuperá-la. O livro se divide em três partes: Primeira: O acidente; Segunda: Uma memória de papel; Terceira: OI NOZTOI (O Z, na verdade é o Zigma).

A misteriosa chama  da rainha Loana. Umberto Eco. Record. 2005. Tradução: Eliana Aguiar.

Na primeira parte Yambo, o protagonista do romance, sofre um acidente (certamente um AVC) e perde a memória em partes. Não mais lembra quem ele é ou como se chama, mas ainda consegue dirigir, identificar as diferentes cores e não perdeu o sabor (ainda bem - assim pode tomar uma garrafa de vinho, acompanhando as refeições). Relembra a sua profissão de comerciante de livros raros e de sua secretária, a bela (bela até demais - segundo Paola, a esposa) Sibilla. Politicamente, lembra que era um pacifista. São os quatro primeiros capítulos.

Na segunda parte, Yambo busca a recuperação da memória, indo para a pequena cidadezinha de Solara, onde, na casa do avô, volta a ter contato com os anos de sua infância e juventude. É a parte mais longa do livro e grande parte dele se passa no sótão, onde estão encaixotadas as coisas desse tempo. Passa por reencontrar uma enciclopédia, revistas em quadrinhos, um rádio e documentos e recortes de jornais dos anos do Fascismo e da Guerra. A época retratada, os anos de infância e juventude, são os da década de 1930 e 1940. Encontra ainda discos e seus cadernos e livros escolares. Aí está a preciosidade do romance. A reconstituição de uma época, retratada pelos livros oficiais. Como eles vão até depois da guerra, é notável observar a mudança de posição com relação a valores e heróis. Passa oito dias no sótão e a sua pressão se altera, ela sobe.

Quando descobre um livro raro de Shakespeare, que vale uma fortuna, ele não aguenta. Entra em coma. Aí vem recordações enevoadas. As artimanhas de um narrador. É a terceira parte do livro. As contraposições da história oficial se acentuam com as derrotas do nazi-fascismo, mostradas especialmente nas revistas em quadrinhos, onde agora irão aparecer os heróis norte-americanos. O capítulo dezesseis é o mais rico deles. Nele, Yambo estabelece diálogos com Gragnolo, um jovem anarquista, um contestador, qualidade inerente a todo anarquista. Deus, o Bem e o Mal, Fascismo e Livre Arbítrio são alguns temas abordados. Nesta parte do livro ele entra, não sei se é correto dizer, em fluxos de consciência. Relembra os seios nus de Josephine Baker e a homenagem que lhe presta, devidamente confessada ao padre, - mas se fixa mesmo, num amor platônico de sua adolescência, - a menina, LILA, que na história real desaparecera por completo de seus horizontes. Ela viera para o Brasil e dela não se teve mais notícia. Sim, o romance tem a Itália fascista como cenário junto com a eclosão da Segunda Guerra e o seu final. Esse amor seria a misteriosa chama?

Para dar uma ideia mais precisa do livro, transcrevo a sua orelha: "Depois de Baudolino, Umberto Eco lança um romance cheio de calor e lembranças, de suspiros (mitigados) e saudades. Decidiu assumir a paisagem de sua geração e, a partir dessa luz, obteve uma narrativa de fundo biográfico, num vasto painel dos anos 1930 e 1940, do brevíssimo e sobressaltado século XX.

O protagonista, Yambo, é um senhor de meia-idade, provido de grande cultura, que trabalha com livros raros, em Milão. Após salvar-se de uma doença grave, Yambo perde uma parte da memória afetiva ou biográfica. Para tentar recuperá-la, passando um longo período nas montanhas do Piemonte, na casa que fora de seu avô. As lembranças reaparecem - com idas e vindas - quando se depara com um acervo que lhe marcou a infância: jornais, discos, quadrinhos - um imenso parque (ou cemitério) de objetos. Toda uma semiologia que leva aos tempos do Fascismo e às portas da Segunda Grande Guerra.

Desdobra-se o romance no repertório fundamental da primeira e da segunda infâncias de Yambo-Eco, nos sonhos de heróis e distâncias impossíveis: das figurinhas de álbuns famosos aos mais diversos gibis; do suplemento Corrieri dei Piccoli; das obras de Emilio Salgari, em orientes perdidos e suspirados; da canção popular, por onde passam jovens frágeis e inesquecíveis (Signorinella pallida), outras, apaixonadas (C'erevamo tanti amati), ousadas, patriotas ( Le ragazze di Trieste); além dos hinos fascistas, com suas promessas de perenes primavera e juventude (Primavera , Giovinezza),, visando ao fortalecimento moral das fronteiras do Império Italiano. E mais, o rádio de galena, as ondas curtas e a BBC de Londres.

Que o leitor descubra todo o percurso de Yambo, e que reconheça imagens e canções, que marcaram parte essencial da história da Itália e do Mundo.

Nesse romance pós-moderno, será difícil não evocar as Confissões de Agostinho ou a filogenética, a delicada fronteira do repertório individual e do coletivo, o palácio da memória e a digital da história. Eco nos traz um romance largo e emocionado"

Como pontos altos do livro, destacaria, do capítulo 17 (são 18 ao todo), a discussão entre Yambo e Gragnolo, o seu amigo anarquista, uma discussão sobre o fascismo (p. 341), sobre os males contidos nos dez mandamentos (apenas quatro são bons), ditados por um Deus fascista (p. 342-345), sobre o Bem e o Mal e o Livre Arbítrio. Do Livre Arbítrio tomo a reflexão final: "Você fala como um teólogo, só que todos eles falam de má-fé. Dizem como você que o Mal existe, mas Deus nos deu o mais belo presente do mundo que é o livre-arbítrio. Podemos livremente fazer o que Deus ordena ou o que o diabo sugere, e se depois vamos para o inferno é porque não fomos criados como escravos, mas como homens livres, só que usamos mal a nossa liberdade e isso foi uma decisão nossa". Isso. Isso? Mas quem lhe disse que a liberdade é um presente? p. 349. E aí vem as contestações.

O fato de ser um romance ilustrado nos põem em contato com um rico acervo de capas de livros e de revistas, de manchetes de jornais e artistas em cartaz na época. Coisa bem do campo e do domínio do escritor.  Dois grandes temas em foco. A perda da memória e a memória dos tempos do fascismo.

terça-feira, 13 de abril de 2021

O Cemitério de Praga. Umberto Eco.

É um Umberto Eco. Comprei O Cemitério de Praga em 2011, quando ainda estava em sala de aula. Por esta razão, apenas comecei a sua leitura, sem concluí-la. É um livro volumoso. São 479 páginas. Agora o retomei e o li em uma só sentada. Não é um livro de leitura fácil. São muitos personagens e vários fatos históricos, dos quais você precisa ter algum conhecimento, para que a leitura flua. Ao final do livro, o próprio autor procura facilitar a leitura, através de uma coluna em que alinha o capítulo com o enredo e a história. Ao todo são 27 capítulos e o tempo histórico descrito vai de 1830 até 1898.

O Cemitério de Praga. Record. 2011. Tradução de Joana Angélica d'Avila Melo.

Simone Simonini é o personagem central do livro e, segundo o autor, é o único personagem inventado na história. Todos os outros são personagens reais. Simonini divide o seu protagonismo com o seu alter ego, o padre Della Piccola. Simonini escreve o seu diário de memórias, iniciado em 24 de março de 1897 e o termina em 20 de dezembro de 1898. Ele conta a sua história de vida, desde os anos de sua infância vividos em Turim, a sua participação nas guerras da unificação italiana, o seu exílio em Paris, de onde assiste e participa, nos bastidores, com a elaboração de documentos históricos e falsificações, dos episódios da segunda metade do século XIX. Catolicismo, jesuítas, maçonaria e judeus constituem o núcleo central do livro. 

Ao final do livro, na página 478, temos uma espécie de adendo - Fatos póstumos - que esclarece muitas coisas. Aparecem quatro datas; 1905, quando na Rússia se fala de uma "sinistra conspiração mundial", uma "conspiração maçônica judaica", que pode ser conhecida através  de um manuscrito, sob o título Protocolos dos anciãos de Sião; 1921, quando o London Times estabelece relações entre o livro de Joly (este autor aparece muitas vezes ao longo do romance) e os protocolos e os considera como uma falsificação; 1925, Hitler cita os protocolos no Mein Kampf e 1939, ano em que Henry Rollin considera os protocolos como a obra mais difundida no mundo depois da Bíblia.

Vamos agora procurar elucidar o título do livro - O Cemitério de Praga. É neste cemitério que se reuniam os rabinos para debaterem o seu plano de dominação do mundo. Esse projeto envolvia judeus,  maçons e os jesuítas, que não passam de "maçons vestidos de mulher". p. 22.  Muitas tramas neste romance, que pode ser qualificado como um romance histórico, uma vez que os personagens envolvidos são reais. Uma história de horrores, que viria a desaguar nos acontecimentos da primeira metade do século seguinte. Espionagem e contraespionagem, traições e assassinatos, cadáveres ocultos em cloacas, falsificação de documentos, perfuração de hóstias consagradas em missas de magia negra vão se sucedendo ao longo dos 27 capítulos do livro.

Na resenha vou me ater ao capítulo 26 que leva o título de "A solução final". Nele está revelado o famoso plano de dominação mundial. Assim lemos: "Conferi o que eu já tinha usado para os discursos  precedentes do rabino. Os judeus se propunham apoderar-se das vias férreas, das minas, das florestas, da administração, dos impostos, do latifúndio; visavam à magistratura, à advocacia, à instrução pública; queriam infiltrar-se na filosofia, na política, na ciência, na arte e, sobretudo na medicina, porque um médico entra nas famílias mais facilmente do que um padre. Convinha minar a religião, difundir o livre pensamento, suprimir nos programas escolares as aulas de religião cristã, açambarcar o comércio do álcool e o controle da imprensa. Santo Deus, o que mais eles pretendiam". p.450. Na sequência, são listados os meios para atingirem seus fins. A frase atribuída a Maquiavel aparece explicitamente:

"Para impedir que o povo descubra, por si só, uma nova linha de ação política qualquer, nós o manteremos distraído com várias formas de divertimento: jogos ginásticos, passatempos, paixões de vários gêneros, tabernas, e o convidaremos a participar de competições artísticas e esportivas... Estimularemos o amor pelo luxo desenfreado e aumentaremos os salários, mas isso não trará benefícios ao operário, porque simultaneamente acresceremos o preço das substâncias mais necessárias, sob o pretexto de maus resultados nos trabalhos agrícolas. Minaremos as bases da produção, semeando os germes da anarquia entre os operários e encorajando-os ao abuso de bebidas alcoólicas. Procuraremos dirigir a opinião pública para toda espécie de teoria fantástica que possa parecer progressista ou liberal". p. 451. Também havia um programa de controle dos estudantes:

"Quando estivermos no poder, supriremos dos programas educativos todas as matérias que possam perturbar o espírito dos jovens e os reduziremos a criancinhas obedientes, que amarão seu soberano. Em vez de estudar os clássicos e a história antiga, que contêm mais exemplos ruins que bons, mandaremos que estudem os problemas do futuro. Cancelaremos da memória dos homens a lembrança dos séculos passados, que poderia ser desagradável para nós. Com uma educação metódica, saberemos eliminar os resíduos de independência de pensamento da qual desde há muito nos aproveitamos para nossos fins... Sobre os livros com menos de trezentas páginas, baixaremos uma taxa dupla, e essa medida obrigará os escritores a publicar obras tão longas que terão poucos leitores. Nós, ao contrário, publicaremos obras baratas para educar a mente do público. A taxação determinará uma redução da leitura deleitável e ninguém que deseje atacar-nos com sua pena encontrará um editor". p. 452. Quanto a imprensa também havia um programa:

"Quanto aos jornais, o plano judaico prevê uma liberdade de imprensa fictícia, que sirva para o maior controle das opiniões. Dizem os nossos rabinos que será preciso apoderar-se do maior número de periódicos, de modo que expressem opiniões aparentemente diferentes, a fim de dar a impressão de uma livre circulação de ideias, ao passo que, na realidade, todos refletirão as ideias dos dominadores judeus. Observem que comprar os jornalistas não será difícil, porque eles constituem uma maçonaria e nenhum editor terá coragem de revelar a trama que liga todos à mesma trilha, uma vez que ninguém é admitido ao mundo dos jornais sem ter tomado parte em algum negócio escuso na sua vida privada.... p. 452. E assim por diante...

Como não tenho imagens do cemitério, vai aí um dos símbolos da cidade. O relógio astronômico.

Quero deixar ainda uma frase que, para mim, foi a mais marcante do livro. Ela é dita por um russo, Rachkovsky, que pede a Deus, para que sempre tenham um judeu a quem possam expressar o seu ódio: "É necessário um inimigo para dar ao povo uma esperança. Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por quem não é idêntico. É preciso cultivar o ódio como paixão civil. O inimigo é o amigo dos povos. É sempre necessário ter alguém para odiar, para sentir-se justificado na própria miséria. O ódio é a verdadeira paixão primordial. O amor, sim, é uma situação anômala. Por isso, Cristo foi morto: falava contra a natureza. Não se ama alguém por toda a vida; dessa esperança impossível nascem adultérios, matricídios, traições dos amigos... Ao contrário, porém, pode-se odiar alguém por toda a vida. Desde que esse alguém esteja sempre ali, para reacender nosso ódio. O ódio aquece o coração". Hoje poderíamos dizer, - um inimigo, seja ele quem for, mas um inimigo, nem que ele seja uma construção, uma invencionice. 

Para dar uma ideia mais precisa do livro, transcrevo o primeiro parágrafo da orelha da capa: "Ao longo de todo o século XIX, entre Turim, Palermo e Paris, encontramos uma satanista histérica, um abade que morre duas vezes, alguns cadáveres no esgoto parisiense, um garibaldino que se chamava Ippolito Nievo, desaparecido no mar nas proximidades de Stromboli, o falso bordereau de Dreyfus para a embaixada alemã, a disseminação gradual da falsificação conhecida como Protocolos dos sábios de Sião (que serviriam de inspiração a Hitler para os campos de concentração), jesuítas que tramam contra maçons, maçons, carbonários e mazzinianos que estrangulam padres com as tripas das próprias vítimas, um Garibaldi de pernas tortas, os planos dos serviços secretos piemonteses, franceses, prussianos e russos, os massacres numa Paris da Comuna em que se comem ratos, golpes de punhal, horrendas e fétidas reuniões por parte de criminosos que, entre doses de absinto, planejam explosões e revoltas de rua, barbas falsas, falsos notários, testamentos enganosos, irmandades diabólicas e missas negras. Um material perfeito para um romance-folhetim ao estilo oitocentista, ilustrado com os feuilletons daquela época".

Este romance aparece em 2010, trinta anos após o insuperável O nome da rosa. Trata-se de uma antevisão dos horrores do século XX, quando efetivamente todos os ódios implodem ou explodem. Uma obra, para implodir também, toda e qualquer ingenuidade. E, acima de tudo, extremamente atual. "Que Auschwitz não se repita", nos alertava Adorno. Será difícil. E, como diz Primo Levi, um raro sobrevivente de Auschwitz, em frase de epígrafe no livro Fascismo - um alerta, de Madeleine Albright, "Toda era tem o seu próprio fascismo". Infelizmente, o Brasil tem o seu, com uma dose de ódio mais forte do que as doses de absinto que são sorvidas no livro.

terça-feira, 6 de abril de 2021

A morte de Rimbaud. Leandro Konder.

Em 2011 eu ainda dava aulas na universidade. Assim eu não lia todos os livros que eu comprava. Lembro que as livrarias Curitiba faziam grandes promoções de queima de estoque, livros encalhados, certamente. Eu comprava por dois critérios, por autor ou por editora. O livro A morte de Rimbaud atendia a estes dois critérios: um bom autor, Leandro Konder e, uma grande editora, a Companhia das Letras. Também um terceiro quesito me chamou a atenção. Rimbaud, o escritor francês. Somente agora eu fiz a leitura.

A morte de Rimbaud. Leandro Konder. Companhia das Letras. 2000.

Não tenho grande experiência em fazer resenhas de romances policiais e o livro é do gênero. Não quero dar pistas que possam retirar a curiosidade ao leitor. Então tomo, da contracapa do livro, o seu enredo: "Um milionário apaixonado por literatura francesa resolve sustentar cinco escritores que julga muito talentosos. Passa a chamá-los pelo nome de grandes autores franceses: Rimbaud, Aragon, Rousseau, Malraux e Claudel. Oferece-lhes uma polpuda verba mensal e despacha-os anualmente para férias na França. Rimbaud é encontrado morto. Pode ter sido acidente - ou não". O local do acidente é o Grande Hotel Combray. Bem interessante.

Depois de um pequeno problema em identificar o narrador, a leitura fluiu, como deve fluir um romance policial. Nele notei muito humor, ironia e, com certeza, um fundo moral, motivado pelo financiamento do milionário e a improdutividade dos escritores. O cenário, como os nomes poderiam sugerir, não é a França, mas sim, fictícias cidades brasileiras. Todos os personagens são brasileiros, embora os seus nomes não induzam a isso.

Os cinco escritores são: Cláudio Nicodemo da Silva, o Claudel, Mauro Teodoro dos Santos Oliveira, o Maurô, ou Malraux, José Tibúrcio Gonçalves Aragão, o Aragon, João Carlos Suslov, apelidado de russo, pelo sobrenome, passou a ser chamado de Rousseau e Severino Cavalcante, que na academia de musculação era chamado de Rambo, que se transformou em Rimbaud. O mecenas atende por Bergotte. e o personagem central do romance é Sdruws, um detetive e guarda-costas do milionário mecenas dos escritores. Outro personagem com papel de protagonista é Saint-Ex (Saint-Exupéry), o gerente do hotel onde se dão os acontecimentos. Outros personagens também são envolvidos. Um romance policial sempre precisa de pistas e despistes. É óbvio que um delegado de polícia também é personagem. 

Os escritores, embora os grandes apelidos, são absolutamente grotescos e perversos e são totalmente desprovidos de qualquer criatividade. Os quatro sobreviventes são suspeitos do crime. Se odiavam reciprocamente o suficiente para provocarem tais suspeitas. Também o próprio investigador, Sdruws dá motivos para ser suspeito. Como bons componentes de romance policial também não faltam cenas de traição, de desconfianças, de ciúmes, de desavenças e de relações sexuais com alto teor de perversão. Até traficantes frequentam as páginas do romance.

O livro tem também uma curiosidade interessante, que só poderia estar presente no livro pela enorme erudição de seu autor. Todos os capítulos são antecedidos por frases em epígrafe e que se relacionam com o teor do capítulo. No capítulos final tem uma epígrafe de cada um dos escritores famosos. O livro todo tem uma epígrafe de Marx, a grande especialidade do autor, que é professor de filosofia. Eis a epígrafe: "Perseu precisava de um capacete para perseguir os monstros. Nós, puxando o capacete para baixo, cobrimos os olhos e os ouvidos, para podermos negar a existência dos monstros". A frase está escrita também no original, em alemão. Leandro Konder foi exilado na Alemanha, como vítima da ditadura militar brasileira de 1964. 

Sobre o romance lemos na orelha da capa: "Sem a sua experiência de leitor, ele com certeza não teria escrito um livro que se enquadra com tanta exatidão no gênero policial. Aqui existe, por exemplo, uma morte, que pode ter sido acidente ou assassinato; uma ilustre coleção de suspeitos; um conjunto variado de motivações para o crime e de oportunidades para cometê-lo; pequenas tramas paralelas que são puro diversionismo; uma série de detalhes aparentemente gratuitos e que no entanto se revelam determinantes para o desenrolar da ação; um detetive paciente, pertinaz e autoconfiante, desses que são capazes de se fazerem de bobos apenas para soltar a língua de um suspeito".

O livro integra um projeto da Companhia das Letras, envolvendo a morte de grandes escritores. Rimbaud foi um escritor bastante controvertido e toda a sua literatura foi produzida antes dos vinte anos. Deixo o link de Uma temporada no inferno. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/01/uma-temporada-no-inferno-e.html. Ao final do livro também encontramos notas bibliográficas dos escritores franceses envolvidos.


sábado, 3 de abril de 2021

Neoliberalismo e globalização. 40 anos de deterioração da vida social e construção de desigualdades.

Tempos de pandemia são tempos de recolhimento, tempos de leitura e de reflexão. As presentes reflexões tem como fonte principal os dois últimos livros que eu li. Fascismo - um alerta, de Madeleine Albright e A tirania do mérito - o que aconteceu com o bem comum, de Michael J. Sandel. Os dois livros tem em comum, o título que atribuí ao presente texto, o tema dos quarenta anos de deterioração da vida social e da construção de desigualdades. As consequências são as que estamos vivenciando neste momento de insanidades, de ódio e ressentimento, que, por vezes, sufoca até a esperança presente em nosso imaginário, teimosamente, ainda não reduzida.

Fascismo - um alerta. Crítica. 2020. Tradução de Jaime Biaggio.

Nesses livros encontramos duras advertências: Madeleine Albright nos adverte que, em nada menos de 170 países existem hoje sérias ameaças à democracia, enquanto Sandel nos aponta para o entendimento das insanidades que diariamente estamos assistindo: "Isso ajuda a explicar porque os deixados para trás pela globalização ficam irritados e ressentidos, e porque se sentem atraídos por populistas autoritários que atacam as elites e prometem reafirmar as fronteiras nacionais com vingança".

As frases que mais detiveram minha atenção foram, - de Madeleine Albright, a de que "Em termos globais, mais de um terço da força de trabalho não tem emprego em tempo integral. Na Europa, o desemprego juvenil passa de 25% e a taxa aumenta quando se trata de imigrantes. Nos Estados Unidos, um em cada seis jovens está fora da escola e sem trabalho. Em termos práticos, salários estão estagnados desde os anos 1970" (p. 117), e a de Sandel, a retiro do capítulo sete, todo ele dedicado ao não reconhecimento do trabalho: "A renda média de homens estadunidenses está estagnada, em termos reais, por meio século. Apesar de a renda per capita ter aumentado 85%, desde 1979, homens brancos sem um diploma universitário de um curso de quatro anos hoje recebe menos, em termos reais, do que recebiam". Tomo a liberdade de enunciar a primeira frase do parágrafo seguinte: "Não é surpreendente que eles sejam infelizes" (pp. 283-4).

Retrocedamos então aos anos 1970, ao seu final e ao início dos anos 1980. Ou então, retrocedamos ainda mais, ao final da Segunda Guerra, para entendermos as mudanças havidas. Os anos posteriores à grande guerra  são marcados, em termos, pela construção do Estado de bem-estar social e por uma certa cooperação internacional, com os Planos Marshall, para a Europa e a Aliança para o Progresso, para a América Latina. O Estado de bem-estar social, social democracia ou Estado Democrático de Direito compreende que a estrutura social é fundada sob três pilares básicos: O indivíduo, o mercado e o Estado. O Estado faz o papel de mediação, de regulação e até, de intervenção econômica para direcionar a economia em favor do bem estar social. Afirma a precedência do Estado sobre os mercados. Nesta concepção o Estado faz a mediação entre os indivíduos (organizados em sindicatos e entidades representativas) e o mercado, passando a regulamentar as decisões tomadas. Surge assim toda uma legislação de afirmação de direitos, sob a convicção de que o ser humano é portador de direitos, que são, em contrapartida, deveres do Estado. 

Esta concepção de sociedade promoveu grande euforia, pelo que se convencionou chamar estes anos, de "anos de ouro" do sistema capitalista. Quais foram os seus feitos? Recuperação da Europa destruída pela grande guerra, ter promovido a terceira revolução industrial, a da nano tecnologia e, ainda industrializar uma série de países da periferia do mundo capitalista, entre eles o Brasil. Dominava nesta época o conceito de que industrializar era desenvolver. Só que no Brasil, esse desenvolvimento se deu sob a forma de "modernização conservadora", utilizando até as Forças Armadas (1964) para concretizar essa modernização, sem efetivar os seus benefícios sociais.

Mas em meio a tudo isso, as causas da grande guerra não foram removidas. Vejamos o discurso do presidente Truman, na Conferência de São Francisco, na recém fundada Organização das Nações Unidas: "O fascismo não morreu com Mussolini. Hitler está liquidado, mas as sementes espalhadas por sua mente doentia estão solidamente enraizadas em um número muito grande de cérebros fanáticos. É mais fácil depor tiranos e destruir campos de concentração do que matar as ideias geradas por eles", lemos no livro de Albright, na página 103.

O germe do mal não foi extinto nem com os horrores vividos durante a grande guerra. As sementes estavam sendo guardadas para serem plantadas e fertilizadas em momentos propícios posteriores. No plano político ideológico elas vieram através de um obscuro senador, influenciado por um ainda mais obscuro padre jesuíta. É o senador Joseph McCarthy. Com o macarthismo estava arremessada a semente contra todo o movimento por justiça social. Todos os que por ela lutavam foram rotulados de comunistas. Estava lançado o conceito da "ideologia da segurança nacional", a salvaguarda para o combate ao comunismo. Em nome das liberdades e valores do ocidente cristão surgiram as mais diversas organizações de extrema direita, fanaticamente atuantes até os dias de hoje.

Já no campo econômico, não se esperou pelo término da guerra. Ainda em 1944, Friedrich Hayek lançava as sementes do neoliberalismo, com o livro O caminho da servidão e, já em 1947, dá organicidade à chamada Mont Pèlerin Society. O que ele advogava? Segundo Perry Anderson, em texto no livro Pós-neoliberalismo (livro organizado por Emir Sader e Pablo Gentili), ele faz um balanço deste movimento e denuncia as suas pretensões: "Hayek e seus companheiros argumentavam que o novo igualitarismo (muito relativo, bem entendido) deste período, promovido pelo Estado de bem-estar, destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos. Desafiando o consenso oficial da época, eles argumentavam que a desigualdade era um valor positivo - na realidade imprescindível em si -, pois disso precisavam as sociedades ocidentais. Esta mensagem permaneceu na teoria por mais de 20 anos" p.10. Trilhar qualquer caminho fora do "livre mercado", seria trilhar O caminho da servidão.

Assim o todo social ganha uma nova estrutura em que as relações se estabelecem apenas entre os indivíduos e o mercado, sem a ação reguladora do Estado. Já não existem mais direitos, e o Estado não deve mais nada a ninguém. O que antes era tido como direito (saúde, educação, previdência...) agora são serviços disponíveis no mercado. Os direitos viraram mercadoria. "Não existe almoço grátis", diriam os adeptos posteriores dessa doutrina. Agora os mercados precederiam à política, subordinando-a a ele. É o anúncio do Estado pós-democrático. Perry Anderson, no texto já citado, critica os seus princípios, pelos quais pretendiam conter as crises econômicas: "O remédio então era claro: manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco  em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos com o bem-estar, e a restauração da taxa "natural" de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalhadores para quebrar os sindicatos. Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis para incentivar os agentes econômicos. Em outras palavras, isso significava redução de impostos sobre os rendimentos mais altos e sobre as rendas" p. 11.

Pós -neoliberalismo. Paz e Terra. 1995.

Ainda no balanço do neoliberalismo, Perry Anderson nos mostra que, os princípios que permaneceram latentes por vinte anos, com a crise do petróleo, nos anos 1970 se tornaram política dominante já ao final da década. Em 1979 foi eleito o governo de Thatcher, em 1980 Reagan se elege presidente dos Estados Unidos e em 1982, Kohl derrota os sociais democratas na Alemanha. Essa onda neoliberal avança ao longo da década de 1980 por toda a Europa, independente de governos de direita ou de esquerda e nos anos 1990 atinge toda a América Latina, lembrando que sob a ditadura monstruosa de Pinochet, no Chile, se fez o experimento pioneiro, diretamente acompanhado e supervisionado por Milton Friedman, um de seus teólogos, que agora emergem aos borbotões da Universidade de Chicago. O Brasil enveredou por esses caminhos, logo após a promulgação da Constituição de 1988, com os governos Collor e FHC e revertida com a eleição de Lula em 2002. Os governos petistas só foram apeados do poder com o golpe institucional de 2016 e com a eleição de Bolsonaro em 2018. Antes a Justiça se encarregou de afastar, fraudulentamente, Lula dessas eleições.

Guardo comigo um texto, ainda do final dos anos 1990. Nele constam seis palavras que marcaram a efetividade prática do neoliberalismo, evidenciando, que o que o Estado de bem estar regulamentava, o Estado neoliberal desregulamenta. Eis as seis palavras, que aglutinadas, formam o tripé neoliberal: desestatização - desnacionalização; desregulamentação - desconstitucionalização e desuniversalização - desproteção. Creio que todos lembram como estas políticas foram implementadas e como elas vem sendo realizadas agora, quando já estamos vivendo esta triste realidade na política brasileira pela segunda vez. A primeira vez, confesso, que mesmo com toda a perversidade, procuravam executá-las com um certo charme, junto com uma tentativa de construção de hegemonia, sob lideranças como FHC e Jaime Lerner aqui no Paraná. Agora, a partir do do golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro em 2018 ele se reveste, além da violência real e simbólica, do grotesco, do ridículo, do antiintelectualismo e do negacionismo, sob as figuras públicas de Bolsonaro e de Ratinho.

Ainda dos anos 1990, guardo um trabalho sobre o futuro da democracia nos tempos do neoliberalismo. A frase que evoco de memória é a que diz que não se constrói a democracia sob a destruição sistemática e planejada dos direitos civis, políticos e sociais do povo. Isso só se faz mediante o uso da violência e da supressão das instituições democráticas. E, como nos afirmam os livros motivadores dessas reflexões, já faz meio século que assistimos e sofremos sistematicamente  a essa destruição.

Hoje, cada vez que sopram os ventos da democracia as fanatizadas forças conservadoras, inspiradas no anticomunismo dos tempos da guerra fria e banalizada pelo macarthismo, somadas com a dogmática teologia do "livre mercado", associadas às religiões conservadoras vinculadas ao capital, entram em cena para barrar os benefícios que poderiam ser gerados pelo fortalecimento da democracia. Esses ventos também sopram com mais força, transformando-se em verdadeiras tempestades, com a nefasta pregação ideológica da meritocracia, do empreendedorismo, da teologia da prosperidade e da manipulação feita pela indústria cultural do entretenimento. 

Reverter esse quadro, por meio do fortalecimento da democracia e de valores de solidariedade e do bem comum, é o objetivo maior dos dois livros aqui trazidos e que inspiraram este texto. É esta preocupação contida nas exortações finais de Madeleine Albright, quando fala da razão da escrita de seu livro: "Se Donald Trump não tivesse sido eleito presidente, ainda assim eu teria mergulhado neste trabalho, pois concebi o projeto com a ideia de dar impulso à democracia durante o primeiro mandato de Hillary Clinton. A eleição de Trump só fez aumentar o sentido de urgência" p. 254. Já, de A tirania do mérito, tomo a sua preocupação com a democracia, dos primeiros parágrafos do primeiro capítulo - Ganhadores e perdedores: "Estes tempos são perigosos para a democracia. O perigo pode ser visto no aumento da xenofobia e no crescente apoio público de figuras autocráticas que testam os limites das normas democráticas". p.29. Madeleine nos adverte de que a democracia hoje corre sérios riscos em, nada mais, nada menos do cento e setenta países, mundo afora. Com certeza, monstros como Trump, Bolsonaro e tantos outros, se elegeram sob princípios democráticos mas representavam também profundos ressentimentos e ódios incontidos. Que tempos! Meio século de degradação da vida social e da dignidade do trabalho.