Tempos de pandemia são tempos de recolhimento, tempos de leitura e de reflexão. As presentes reflexões tem como fonte principal os dois últimos livros que eu li. Fascismo - um alerta, de Madeleine Albright e A tirania do mérito - o que aconteceu com o bem comum, de Michael J. Sandel. Os dois livros tem em comum, o título que atribuí ao presente texto, o tema dos quarenta anos de deterioração da vida social e da construção de desigualdades. As consequências são as que estamos vivenciando neste momento de insanidades, de ódio e ressentimento, que, por vezes, sufoca até a esperança presente em nosso imaginário, teimosamente, ainda não reduzida.
Fascismo - um alerta. Crítica. 2020. Tradução de Jaime Biaggio.
Nesses livros encontramos duras advertências: Madeleine Albright nos adverte que, em nada menos de 170 países existem hoje sérias ameaças à democracia, enquanto Sandel nos aponta para o entendimento das insanidades que diariamente estamos assistindo: "Isso ajuda a explicar porque os deixados para trás pela globalização ficam irritados e ressentidos, e porque se sentem atraídos por populistas autoritários que atacam as elites e prometem reafirmar as fronteiras nacionais com vingança".
As frases que mais detiveram minha atenção foram, - de Madeleine Albright, a de que "Em termos globais, mais de um terço da força de trabalho não tem emprego em tempo integral. Na Europa, o desemprego juvenil passa de 25% e a taxa aumenta quando se trata de imigrantes. Nos Estados Unidos, um em cada seis jovens está fora da escola e sem trabalho. Em termos práticos, salários estão estagnados desde os anos 1970" (p. 117), e a de Sandel, a retiro do capítulo sete, todo ele dedicado ao não reconhecimento do trabalho: "A renda média de homens estadunidenses está estagnada, em termos reais, por meio século. Apesar de a renda per capita ter aumentado 85%, desde 1979, homens brancos sem um diploma universitário de um curso de quatro anos hoje recebe menos, em termos reais, do que recebiam". Tomo a liberdade de enunciar a primeira frase do parágrafo seguinte: "Não é surpreendente que eles sejam infelizes" (pp. 283-4).
Retrocedamos então aos anos 1970, ao seu final e ao início dos anos 1980. Ou então, retrocedamos ainda mais, ao final da Segunda Guerra, para entendermos as mudanças havidas. Os anos posteriores à grande guerra são marcados, em termos, pela construção do Estado de bem-estar social e por uma certa cooperação internacional, com os Planos Marshall, para a Europa e a Aliança para o Progresso, para a América Latina. O Estado de bem-estar social, social democracia ou Estado Democrático de Direito compreende que a estrutura social é fundada sob três pilares básicos: O indivíduo, o mercado e o Estado. O Estado faz o papel de mediação, de regulação e até, de intervenção econômica para direcionar a economia em favor do bem estar social. Afirma a precedência do Estado sobre os mercados. Nesta concepção o Estado faz a mediação entre os indivíduos (organizados em sindicatos e entidades representativas) e o mercado, passando a regulamentar as decisões tomadas. Surge assim toda uma legislação de afirmação de direitos, sob a convicção de que o ser humano é portador de direitos, que são, em contrapartida, deveres do Estado.
Esta concepção de sociedade promoveu grande euforia, pelo que se convencionou chamar estes anos, de "anos de ouro" do sistema capitalista. Quais foram os seus feitos? Recuperação da Europa destruída pela grande guerra, ter promovido a terceira revolução industrial, a da nano tecnologia e, ainda industrializar uma série de países da periferia do mundo capitalista, entre eles o Brasil. Dominava nesta época o conceito de que industrializar era desenvolver. Só que no Brasil, esse desenvolvimento se deu sob a forma de "modernização conservadora", utilizando até as Forças Armadas (1964) para concretizar essa modernização, sem efetivar os seus benefícios sociais.
Mas em meio a tudo isso, as causas da grande guerra não foram removidas. Vejamos o discurso do presidente Truman, na Conferência de São Francisco, na recém fundada Organização das Nações Unidas: "O fascismo não morreu com Mussolini. Hitler está liquidado, mas as sementes espalhadas por sua mente doentia estão solidamente enraizadas em um número muito grande de cérebros fanáticos. É mais fácil depor tiranos e destruir campos de concentração do que matar as ideias geradas por eles", lemos no livro de Albright, na página 103.
O germe do mal não foi extinto nem com os horrores vividos durante a grande guerra. As sementes estavam sendo guardadas para serem plantadas e fertilizadas em momentos propícios posteriores. No plano político ideológico elas vieram através de um obscuro senador, influenciado por um ainda mais obscuro padre jesuíta. É o senador Joseph McCarthy. Com o macarthismo estava arremessada a semente contra todo o movimento por justiça social. Todos os que por ela lutavam foram rotulados de comunistas. Estava lançado o conceito da "ideologia da segurança nacional", a salvaguarda para o combate ao comunismo. Em nome das liberdades e valores do ocidente cristão surgiram as mais diversas organizações de extrema direita, fanaticamente atuantes até os dias de hoje.
Já no campo econômico, não se esperou pelo término da guerra. Ainda em 1944, Friedrich Hayek lançava as sementes do neoliberalismo, com o livro O caminho da servidão e, já em 1947, dá organicidade à chamada Mont Pèlerin Society. O que ele advogava? Segundo Perry Anderson, em texto no livro Pós-neoliberalismo (livro organizado por Emir Sader e Pablo Gentili), ele faz um balanço deste movimento e denuncia as suas pretensões: "Hayek e seus companheiros argumentavam que o novo igualitarismo (muito relativo, bem entendido) deste período, promovido pelo Estado de bem-estar, destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos. Desafiando o consenso oficial da época, eles argumentavam que a desigualdade era um valor positivo - na realidade imprescindível em si -, pois disso precisavam as sociedades ocidentais. Esta mensagem permaneceu na teoria por mais de 20 anos" p.10. Trilhar qualquer caminho fora do "livre mercado", seria trilhar O caminho da servidão.
Assim o todo social ganha uma nova estrutura em que as relações se estabelecem apenas entre os indivíduos e o mercado, sem a ação reguladora do Estado. Já não existem mais direitos, e o Estado não deve mais nada a ninguém. O que antes era tido como direito (saúde, educação, previdência...) agora são serviços disponíveis no mercado. Os direitos viraram mercadoria. "Não existe almoço grátis", diriam os adeptos posteriores dessa doutrina. Agora os mercados precederiam à política, subordinando-a a ele. É o anúncio do Estado pós-democrático. Perry Anderson, no texto já citado, critica os seus princípios, pelos quais pretendiam conter as crises econômicas: "O remédio então era claro: manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos com o bem-estar, e a restauração da taxa "natural" de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalhadores para quebrar os sindicatos. Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis para incentivar os agentes econômicos. Em outras palavras, isso significava redução de impostos sobre os rendimentos mais altos e sobre as rendas" p. 11.
Pós -neoliberalismo. Paz e Terra. 1995.
Ainda no balanço do neoliberalismo, Perry Anderson nos mostra que, os princípios que permaneceram latentes por vinte anos, com a crise do petróleo, nos anos 1970 se tornaram política dominante já ao final da década. Em 1979 foi eleito o governo de Thatcher, em 1980 Reagan se elege presidente dos Estados Unidos e em 1982, Kohl derrota os sociais democratas na Alemanha. Essa onda neoliberal avança ao longo da década de 1980 por toda a Europa, independente de governos de direita ou de esquerda e nos anos 1990 atinge toda a América Latina, lembrando que sob a ditadura monstruosa de Pinochet, no Chile, se fez o experimento pioneiro, diretamente acompanhado e supervisionado por Milton Friedman, um de seus teólogos, que agora emergem aos borbotões da Universidade de Chicago. O Brasil enveredou por esses caminhos, logo após a promulgação da Constituição de 1988, com os governos Collor e FHC e revertida com a eleição de Lula em 2002. Os governos petistas só foram apeados do poder com o golpe institucional de 2016 e com a eleição de Bolsonaro em 2018. Antes a Justiça se encarregou de afastar, fraudulentamente, Lula dessas eleições.
Guardo comigo um texto, ainda do final dos anos 1990. Nele constam seis palavras que marcaram a efetividade prática do neoliberalismo, evidenciando, que o que o Estado de bem estar regulamentava, o Estado neoliberal desregulamenta. Eis as seis palavras, que aglutinadas, formam o tripé neoliberal: desestatização - desnacionalização; desregulamentação - desconstitucionalização e desuniversalização - desproteção. Creio que todos lembram como estas políticas foram implementadas e como elas vem sendo realizadas agora, quando já estamos vivendo esta triste realidade na política brasileira pela segunda vez. A primeira vez, confesso, que mesmo com toda a perversidade, procuravam executá-las com um certo charme, junto com uma tentativa de construção de hegemonia, sob lideranças como FHC e Jaime Lerner aqui no Paraná. Agora, a partir do do golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro em 2018 ele se reveste, além da violência real e simbólica, do grotesco, do ridículo, do antiintelectualismo e do negacionismo, sob as figuras públicas de Bolsonaro e de Ratinho.
Ainda dos anos 1990, guardo um trabalho sobre o futuro da democracia nos tempos do neoliberalismo. A frase que evoco de memória é a que diz que não se constrói a democracia sob a destruição sistemática e planejada dos direitos civis, políticos e sociais do povo. Isso só se faz mediante o uso da violência e da supressão das instituições democráticas. E, como nos afirmam os livros motivadores dessas reflexões, já faz meio século que assistimos e sofremos sistematicamente a essa destruição.
Hoje, cada vez que sopram os ventos da democracia as fanatizadas forças conservadoras, inspiradas no anticomunismo dos tempos da guerra fria e banalizada pelo macarthismo, somadas com a dogmática teologia do "livre mercado", associadas às religiões conservadoras vinculadas ao capital, entram em cena para barrar os benefícios que poderiam ser gerados pelo fortalecimento da democracia. Esses ventos também sopram com mais força, transformando-se em verdadeiras tempestades, com a nefasta pregação ideológica da meritocracia, do empreendedorismo, da teologia da prosperidade e da manipulação feita pela indústria cultural do entretenimento.
Reverter esse quadro, por meio do fortalecimento da democracia e de valores de solidariedade e do bem comum, é o objetivo maior dos dois livros aqui trazidos e que inspiraram este texto. É esta preocupação contida nas exortações finais de Madeleine Albright, quando fala da razão da escrita de seu livro: "Se Donald Trump não tivesse sido eleito presidente, ainda assim eu teria mergulhado neste trabalho, pois concebi o projeto com a ideia de dar impulso à democracia durante o primeiro mandato de Hillary Clinton. A eleição de Trump só fez aumentar o sentido de urgência" p. 254. Já, de A tirania do mérito, tomo a sua preocupação com a democracia, dos primeiros parágrafos do primeiro capítulo - Ganhadores e perdedores: "Estes tempos são perigosos para a democracia. O perigo pode ser visto no aumento da xenofobia e no crescente apoio público de figuras autocráticas que testam os limites das normas democráticas". p.29. Madeleine nos adverte de que a democracia hoje corre sérios riscos em, nada mais, nada menos do cento e setenta países, mundo afora. Com certeza, monstros como Trump, Bolsonaro e tantos outros, se elegeram sob princípios democráticos mas representavam também profundos ressentimentos e ódios incontidos. Que tempos! Meio século de degradação da vida social e da dignidade do trabalho.
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