quarta-feira, 25 de junho de 2025

LEITURAS PROIBIDAS. Uma história da leitura. Alberto Manguel.

Ao ler O diário de H. L. Mencken me deparei com uma nota de rodapé sobre um tal de Comstock. Essa nota me fez brotar da memória uma leitura dos anos 2000. Trata-se do livro Uma história da leitura, do escritor argentino, mas cosmopolita, Alberto Manguel. Um capítulo em particular que versava sobre leituras proibidas. Nele aparece o notável censor de livros, Anthony Comstock, presidente de uma sociedade que tinha por finalidade a extinção do vício.

Uma história da leitura. Alberto Manguel. Companhia das Letras. 2002.

O livro de Manguel é notável. É, como diz o título, um passeio pelo mundo da leitura. Os livros nunca provocaram a indiferença das pessoas. Ou eles são amados, ou então, profundamente odiados. O capítulo das leituras proibidas nos remete ao ano de 1660, a Carlos II, rei da Inglaterra. O rei nos é apresentado como um monarca alegre "por seu amor ao prazer e aversão aos negócios". Ele acreditava, de acordo com Lutero, que "a salvação da alma dependia da capacidade de cada um ler a palavra de Deus por si mesmo". Os escravocratas discordavam. "Não acreditavam nos argumentos de que uma alfabetização restrita à Bíblia fortaleceria os laços da sociedade; percebiam que, se os escravos pudessem ler a Bíblia, poderiam ler também panfletos abolicionistas e que mesmo nas Escrituras seriam capazes de encontrar noções incendiárias de revolta e liberdade". 

Depois de algumas digressões, Manguel volta a Carlos II, desta vez sendo confrontado por Comstock. "Em 1872, pouco mais de dois séculos após o decreto otimista de Carlos II, Anthony Comstock - um descendente dos antigos colonos que tinham se oposto aos impulsos pedagógicos de seu soberano - fundou em Nova York a Sociedade para a Extinção do Vício, o primeiro conselho de censura efetivo dos Estados Unidos. Pensando bem, Comstock teria preferido que a leitura jamais tivesse sido inventada, mas, já que o fora, estava decidido a controlar seu uso.  Comstock considerava-se um leitor dos leitores, aquele que sabia o que era boa e o que era má literatura, e fazia todo o possível para impor suas ideias aos outros". Em seu diário se lia:

"Quanto a mim, estou decidido, com a força de Deus, a não ceder à opinião dos outros, e se sentir e acreditar que estou certo, hei de me manter firme. Jesus jamais foi afastado do caminho do dever, por mais duro que fosse, pela opinião pública. Por que eu o seria?" Manguel nos fornece alguns dados de seu personagem:

"Anthony Comstock nasceu em New Canaan, Connecticut, em 7 de março de 1844. Era um sujeito corpulento e, no decorrer da carreira de censor, utilizou muitas vezes seu tamanho para derrotar fisicamente os oponentes. Um de seus contemporâneos descreveu-o assim: 'Com um metro e meio (de sapatos), carrega tão bem seus 95 quilos de músculos e ossos que você diria que não pesa mais de oitenta. Seus ombros de Atlas, de enorme circunferência, encimados por um pescoço de touro, estão de acordo com um bíceps e uma panturrilha de tamanhos excepcionais e solidez de ferro. Suas pernas são curtas e lembram troncos de árvore'". E a narrativa continua:

"Comstock tinha vinte e poucos anos quando chegou a Nova York com 3,45 dólares no bolso. Conseguiu emprego como vendedor de tecidos e artigos de armarinho e logo economizou os quinhentos dólares necessários para comprar uma pequena casa no Brooklin. Poucos anos depois, casou com a filha de um ministro presbiteriano, dez anos mais velha que ele. Em Nova York, Comstock descobriu muita coisa que julgava censurável. Em 1868, depois que um amigo lhe contou como fora 'desencaminhado, corrompido e pervertido' por um certo livro (o título dessa poderosa obra não chegou até nós), Comstock comprou um exemplar na loja e depois, acompanhado por um policial, fez prender seu dono e confiscar o estoque. O sucesso desse primeiro ataque foi tal que ele decidiu continuar, provocando periodicamente a prisão de editores e impressores de material excitante.

Com a ajuda de amigos da Associação Cristã de Moços que lhe forneceram 8500 dólares, Comstock pôde fundar a sociedade pela qual ficou famoso. Dois anos antes de morrer, disse a um entrevistador em Nova York: 'Nos 41 anos em que estive aqui, condenei um número suficiente de pessoas para encher um trem de passageiros de 61 vagões, sessenta vagões com sessenta passageiros cada, e o sexagésimo primeiro cheio. Destruí 160 toneladas de literatura obscena'.

O fervor de Comstock foi também responsável no mínimo por quinze suicídios. Depois que conseguiu mandar o ex-cirurgião irlandês Willian Haynes para a prisão, Haynes se matou. Um pouco mais tarde, Comstock estava prestes a tomar a barca para o Brooklin (relembrou posteriormente) quando 'uma Voz' lhe disse que fosse até a casa de Haynes. Lá chegou quando a viúva estava descarregando de uma carroça as chapas de impressão de livros proibidos. Com grande agilidade, Comstock saltou para o assento do condutor e levou a carroça para a ACM, onde as chapas foram destruídas". E vamos deixar a a escrita de Manguel fluir:

"Que livros lia Comstock? Ele era um seguidor involuntário do conselho jocoso de Oscar Wilde: 'Jamais leio um livro que devo resenhar; ele o torna muito parcial'. Às vezes, porém, folheava os livros antes de destruí-los e ficava horrorizado com o que lia. Achava a literatura da França e da Itália 'pouco melhor que histórias de bordeis e prostitutas nessas nações lúbricas. Com que frequência se encontram nessas histórias torpes heroínas adoráveis, excelentes, cultivadas, ricas, e encantadoras em todos os aspectos, as quais têm por amantes homens casados; ou, depois do casamento, os amantes cercam a jovem esposa, gozando de privilégios que pertencem somente ao marido!'. Até mesmo os clássicos não estavam acima da exprobação. 'Tome-se, por exemplo, uma obra bem conhecida de Boccaccio', escreveu em seu Traps for the young [Armadilhas para os jovens]. O livro era tão imundo que Comstock faria qualquer coisa para 'evitar que ele, como uma besta selvagem, se soltasse e destruísse a juventude do país'. Balzac, Rabelais, Walt Whitman, Bernard Shaw e Tolstoi estavam entre suas vítimas. A leitura cotidiana de Comstock, dizia ele, era a Bíblia". Depois Manguel vai além em suas análises:

"Os métodos de Comstock eram selvagens, mas superficiais. Faltava-lhe a percepção e a paciência de censores mais sofisticados, que escavavam o texto com um torturante cuidado em busca de mensagens enterradas. Em 1981, por exemplo, a junta militar liderada pelo general Pinochet baniu Dom Quixote do Chile porque o general achava (com bastante razão) que o livro continha um apelo pela liberdade individual e um ataque à autoridade instituída.

A censura de Comstock limitava-se, num ataque de ultraje, a pôr as obras suspeitas em um catálogo dos amaldiçoados. Seu acesso aos livros também era limitado: só podia caçá-los se aparecessem em público, quando muitos já tinham escapado para as mãos de leitores ávidos. Em 1559, a Sagrada Congregação da Inquisição Romana publicara o primeiro Índice dos livros proibidos - uma lista de livros que a Igreja considerava perigosos para a fé e a moral dos católicos. O Index, que incluía livros censurados antes da publicação, bem como livros imorais já publicados, jamais pretendeu ser um catálogo completo de todos os livros banidos pela Igreja. Porém, quando foi abandonado, em junho de 1966, continha, entre centenas de obras teológicas, outras tantas obras de autores seculares, de Voltaire e Diderot a Colette e Graham Greene. Comstock certamente acharia essa lista muito útil.

'A arte não está acima da moral. A moral vem primeiro', escreveu Comstock. 'A lei vem em seguida, como defensora da moral pública. A arte só entra em conflito com a lei quando sua tendência é obscena, lasciva ou indecente'. Isso levou o New York World  a perguntar num editorial : 'Foi realmente determinado que não há nada de saudável e proveitoso na arte a não ser que ela esteja vestida?'. A definição de Comstock de arte imoral, como a de todos os censores, foge da dificuldade. Comstock morreu em 1915. Dois anos depois, o ensaísta americano H. L. Mencken definiu a cruzada de Comstock como 'o novo puritanismo', não ascético, mas militante. Seu objetivo não é elevar santos, mas derrubar pecadores'.

Manguel continua suas análises, rumando para o oriente, afirmando antes que a censura não era apenas uma exclusividade do mundo ocidental. Termino por fazer um insistente apelo para a leitura do belo livro de Manguel, do qual deixo a sua resenha. Lembrando ainda, que recentemente, o livro de Jeferson Tenório, O avesso da pele, foi motivo de censura de diversos governadores brasileiros, entre eles, o do Paraná. Permaneceu sob análise, alegou o governador do Paraná.

Segue a resenha de Uma história da leitura.


Adendo. 1 de julho 2025. Do livro: História universal da destruição de livros. Das tábuas sumérias à guerra do Iraque, de Fernando Báez. Um inquisidor em Nova York: "Em 21 de setembro de 1915 morreu Anthony Comstock, aos 71 anos. Durante quarenta longos anos foi o inquisidor religioso mais temido do mundo e ainda hoje seu nome está relacionado com a destruição do maior número de livros dos Estados Unidos.

Comstock nasceu em 7 de março de 1844, em Nova Canaã, Connecticut. Lutou na Guerra Civil e no exército da União, e algo do que viu ou não viu determinou suas ações posteriores. Instalou-se em Nova York e, em 1872, trabalhou na Young Men's Christian Association. Lia a Bíblia com um fervor que assustou todos seus amigos. No seu entender, o demônio se apoderara de muitos escritores e sua missão na Terra era por fim a essa atrocidade. Nada o deteve nessa inexplicável cruzada moral.

Em 1873 fundou a Sociedade de Nova York para a Eliminação do Vício e, como se não bastasse, conseguiu a aprovação no Congresso da chamada Lei Comstock, que impôs a proibição de transportar pelo correio qualquer texto considerado imoral. Revisou de graça milhares de livros e revistas e com uma única folheada podia encontrar as verdadeiras agressões aos bons costumes.

Cerca de 120 toneladas de livros, revistas e folhetos foram queimados publicamente. Sabe-se que odiava a obra de George Bernard Shaw" (Páginas 217-218).

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Uma história da Leitura. Alberto Manguel.

Ao ler O Diário de H. L. Mencken me deparei com uma nota referente a Anthony Comstock, numa de suas diatribes com o escritor Garland. A nota diz o seguinte: "Anthony Comstock (1844-1915) era secretário da Sociedade para a supressão do Vício e empreendia uma guerra incessante contra todos os livros que, em seu juízo, eram obscenos ou pudessem causar um rubor de vergonha nas bochechas de alguma jovem virgem e pura" (página 121). Isso me fez lembrar do belo livro Uma história da leitura, de Alberto Manguel, que eu lera no ano de 2004.

Uma história da leitura. Alberto Manguel. Companhia das Letras. Tradução: Pedro Maia Soares.

Do livro, um capítulo em particular me chamou muito a atenção. Ele tem por título - Leituras proibidas, onde este secretário é citado e largamente analisado. Quis retomar esta leitura quando governadores, para ser bastante condescendente com eles, não muito afeitos com livros, submeteram o belo livro O avesso da pele, de Jeferson Tenório, sob censura. Entre esses governadores, lamentavelmente, figurava o governador do Paraná. Outras leituras, no entanto, me detiveram. Agora o retomei.

Alberto Manguel, como filho de pai diplomata, é um cidadão do mundo. Nasceu em Buenos Aires no ano de 1948 e atualmente é cidadão canadense. Um de seus feitos foi ter conhecido Jorge Luís Borges numa livraria e, para ele passou a fazer leituras, quando o escritor já estava acometido por um cegueira quase que total. Certamente este fato o influenciou bastante para dedicar uma vida toda ao mundo das letras.

O livro, de extrema erudição, está estruturado em quatro partes: A última página; atos de leitura; os poderes do leitor e páginas de guarda. De - A última página - destaco a primeira afirmação - a de que ler é como respirar e a segunda - a eterna relação de adversidade entre a leitura e as ditaduras. Vejamos: "Os regimes totalitários exigem que não pensemos, e portanto proíbem, ameaçam e censuram [...] exigem que nos tornemos estúpidos e que aceitemos nossa degradação docilmente" (página 36).

Da segunda parte - Dos atos de leitura - destaco os subtítulos: Leitura das sombras; os leitores silenciosos; o livro da memória; o aprendizado da leitura; a primeira página ausente; leitura de imagens; a leitura ouvida; a forma do livro; leitura na intimidade e metáforas da leitura. O destaque vai para para a mensagem para os leitores silenciosos. Para as possibilidades de diferentes interpretações, para o surgimento de heresias e para toda uma história do livro, até ele adquirir a sua forma atual e a sua comercialização.

Já os subtítulos da terceira parte - Os poderes do leitor são: Primórdios; ordenadores do universo; leitura do futuro; o leitor simbólico; leitura intramuros; roubo de livros; o autor como leitor; o tradutor como leitor; leituras proibidas e o louco por livros. O meu grande destaque vai para dois subtítulos: O já assinalado - leituras proibidas e o roubo de livros. Para o - leituras proibidas - darei um destaque especial, num post em separado e sobre o roubo de livros devo dizer e concordar que para os seus ladrões poderia ser aplicada a pena da excomunhão. 

No - páginas de guarda - um novo livro de Uma história da leitura se abre como uma possibilidade. Livros que não escrevi, livros que não li.

Gostei da apresentação do livro que consta da contracapa: "Leitor voraz e ciumento, um grão-vizir da Pérsia carregava sua biblioteca quando viajava, acomodando-a em quatrocentos camelos treinados para andar em ordem alfabética. Em 1536, a lista de preços das prostitutas de Veneza anunciava uma profissional que se dizia amante da poesia e tinha sempre à mão algum livrete de Petrarca, Virgílio ou Homero. Na segunda metade do século XIX, em Cuba, os operários de algumas fábricas de charuto pagavam um lector, um leitor que se sentava junto às bancadas de trabalho e lia alto enquanto eles manuseavam o fumo. Lia, por exemplo, romances didáticos, compêndios históricos e manuais de economia política. A ditadura de Pinochet baniu o Dom Quixote, identificando ali apelos à liberdade individual e ataques à autoridade instituída.

A leitura é a mais civilizada das paixões. Mesmo quando registra atos de barbarismo, sua história é uma celebração da alegria e da liberdade".

Tomo ainda as orelhas da capa e contracapa: "De certa forma, todo livro escolhe seu leitor, mas Uma história da leitura parece ter um modo muito particular de exercer essa escolha: talvez com uma ou outra exceção, todos os que se dispõem a lê-lo integram a comunidade das pessoas que gostam de ler. Por isso, cada uma delas encontra aqui certos fragmentos de sua própria experiência: o encantamento com o aprendizado da leitura, a leitura compulsiva de tudo (livrinhos de escola, cartazes de rua, rótulos de remédio), o prazer solitário de ser amigo do peito de Sinbad, o Marujo, de acompanhar a multiplicação dos significados de uma palavra, de descobrir o final da história. Como um volume da biblioteca impossível de Borges, o livro de Alberto Manguel contém um pouco da autobiografia de cada um de seus leitores.

E, sem dúvida, também do autor, cuja erudição ao falar de séculos e séculos de história é primeiro filtrada por uma vivência pessoal intensa. A clareza de texto de Alberto Manguel parece refletir uma generosidade, uma vontade de compartilhar informações, perspectivas e modos de sentir o ato de ler.

'Ler para viver', Flaubert escreveu, ou, na visão de Kafka, 'ler para fazer perguntas'. Das plaquinhas de argila da Suméria aos nossos cibertextos, sabemos que a história registra não só uma infinidade de motivações para a leitura, mas também para a sua proibição, como se fosse da natureza da palavra escrita penetrar a intimidade do leitor e fazê-lo agir, fazê-lo mover-se para lugares que só ele é capaz de escolher. O ato de ler pressupõe e, simultaneamente, cria uma liberdade.

Alberto Manguel é primeiro um leitor, e, nesta condição, se escolheu narrar as conformações da leitura ao longo do tempo, é porque está ciente de quantos tentáculos uma boa história pode ter".

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Educação como prática da liberdade. Uma apresentação para o ciclo de leituras.

Num certo dia, naquelas mensagens de lembranças trazidas pelo facebook, apareceu uma fala que eu fiz, contextualizando o primeiro grande livro de Paulo Freire - Educação como prática da liberdade. Revi a fala e deixei por isso mesmo. Alguns dias depois, a resgatei para deixá-la num espaço para que possa ser acessada mais facilmente. Mas antes de apresentá-la, quero deixar aqui a contextualização dessa fala.

Educação como prática da liberdade. Paulo Freire. Paz e Terra.

Duas datas relativas a Paulo Freire - o cinquentenário do lançamento de Pedagogia do oprimido (1968) e o centenário de seu nascimento (Recife 19 de setembro 1921) mereceram uma especial atenção nossa. Seguramente seriam datas a serem comemoradas. E resolvemos fazer isso. Quem e como isso foi feito? Na época, havia na APP-Sindicato, um grupo de oposição, capitaneado pelo Núcleo Sindical Curitiba Norte, mas com capilaridade em todo o Paraná, denominado APP-Independente. Desse Núcleo partiu a ideia da realização de ciclos de leitura denominados - Ciclos de Leituras e Estudos do Pensamento de Paulo Freire. Logo, a ideia foi abraçada pelos DEPLAE e NESEF, órgãos da UFPR e pelo Instituto Federal do Paraná, campus de Curitiba. Estes ciclos tiveram grande abrangência. No Brasil inteiro se formaram círculos de leitura, reunidos em cinco encontros, somados a um encontro final de celebração com os participantes possíveis de se reunirem.

Foi um dos trabalhos mais promissores dos quais eu participei ao longo de toda a minha vida. A fala, aqui resgatada, é datada de 21 de abril de 2021. Realizávamos o Terceiro Ciclo, com foco no Educação como prática da liberdade. Desse ciclo participaram mais de 150 grupos. Em outro desses ciclos, o foco se voltou, por óbvio, à Pedagogia do oprimido e ao seu magnífico - Pedagogia da autonomia. Em outros, vários livros, com os grupos escolhendo uma determinada obra. Foi um trabalho maravilhoso.

No presente vídeo, numa parceria com o professor Luís Paixão, apresentamos uma contextualização do meu primeiro contato com a obra de Paulo Freire, que é também o primeiro grande trabalho do Paulo - Educação como prática da liberdade. Com muito orgulho, devo ainda dizer, que conheci pessoalmente o grande educador, encontrando-o em vários e significativos momentos de minha vida. Deixo com vocês esta fala, datada do dia 26 de abril de 2021.

https://www.youtube.com/watch?v=S3SEEeKSWbo

Deixo ainda um post de uma das atividades promovidas pelo Ciclo, realizado na UFPR, uma peça de teatro denominada - Paulo Freire - o andarilho da utopia. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/09/paulo-freire-o-andarilho-da-utopia.html


quinta-feira, 5 de junho de 2025

O Diário de H. L. Mencken. Edição de Charles A. Fecher.

Na leitura de Babbitt encontrei uma referência a H. L. Mencken  Nela Babbitt encontra-se sozinho em sua residência, algo a que não estava acostumado. Eis a referência: "Estava desinquieto. Sentiu vagamente a necessidade de ler alguma coisa mais divertida que a seção cômica do jornal. Subiu ao quarto de Verona (filha), sentou-se no virginal leito azul e branco trauteando e grunhindo no tom de um cidadão sólido enquanto examinava os livros da filha: Rescue, de Conrad, um volume que trazia o título singular de Figuras de Terra, contendo poesias (extravagantes, disse Babbitt consigo) de Vachel Lindsay, e ensaios de H. L. Mencken - ensaios sumamente inconvenientes, que metiam a ridículo a Igreja e todas as coisas decentes. Nenhum dos livros lhe agradou". Página 308.


O Diário de H. L. Mencken. Edição de Charles A. Flecher. Tradução Bento Lima.

De Mencken (1880-1956) eu já tinha lido O livro dos insultos e como tenho em minha biblioteca outro livro seu - O Diário de H. L. Mencken, me dei à curiosidade de conhecer algo mais e encontrar as inconveniências e ridicularizações que C. S. Lewis, ironicamente atribuíra ao autor. Devo ter comprado o livro numa grande liquidação e procurei lê-lo quando da leitura de O livro dos insultos, mas não me atraiu tanta atenção. Agora o retomei e tomei fôlego.

Verifiquei a sua estrutura. Um diário. As datas limítrofes eram os anos de 1930 a 1946. Já sabia da fama do escritor e como o período retratado é de grande interesse, mergulhei na leitura. Devo confessar que ela não correspondeu a toda a minha expectativa. Sabia que ele era ferrenho adversário de Roosevelt e da política do New Deal e esperava que ele analisasse criticamente esses anos pós crise de 1929 e os anos da Segunda Guerra Mundial. O livro tem peculiaridades que precisam ser sabidas. Na capa, além do título, temos a anotação de que o livro foi editado por Charles A. Flecher. Será ele também o autor de um esclarecedor prefácio. Depois que ele apresenta o autor e sua obra ele assim se refere aos diários:

"Finalmente havia o diário. Quando o começou em 1930, manteve-o com regularidade, mas depois da morte de Sara (a esposa), por vários anos, tocava-o raramente e, mesmo quando o retomou, o fez de modo intermitente. Foi no início dos anos 40 que voltou a escrever nele com regularidade e de modo sistemático. Em 31 de dezembro de 1943, assinalou que apenas os registros daquele ano superavam 65 mil palavras, 'o equivalente a um livro de bom tamanho'. É claro que, também, o diário - quase sempre no tom direto e sem-cerimônia, que o caracterizava - tratava de pessoas que ainda estavam vivas e, mais uma vez, preocupou-se em não ferir ninguém. Ordenou que fosse lacrado por 25 anos depois de seu falecimento". Foi quando a edição veio a público.

Como um notável homem de imprensa, com um desgosto profundo assistiu a superação dos jornais pelo rádio, instrumento que, segundo ele, era dirigido para retardados mentais. Nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, mostrou-se implacável contra a política do New Deal e contra a entrada dos Estados Unidos na Guerra. Vejamos uma anotação sua, datada de 2 de novembro de 1944: "... Contudo, de modo geral, dificilmente sou afetado pelo enorme esforço  de salvar a humanidade e de arruinar os Estados Unidos". Ele era absolutamente conservador e considerava como o melhor governo a sua inexistência. Era descendente de alemães e considerava um erro, o fato de o seu avô ter migrado para os Estados Unidos.

O livro é longo, são 574 páginas. Creio que a metade é dedicada a queixas sobre estados de saúde, quando não os seus, os de seus amigos. Quase outro tanto é dedicado a reuniões de trabalho de editores e jantares com os homens do mundo editorial, onde era uma pessoa de enorme influência. A ironia crítica está onipresente em suas anotações, em que a mediocridade da escrita é a anotação mais constante. Todos os grandes escritores do período fazem parte de seu diário, entre eles, com grande destaque, C.S. Lewis, de quem era grande amigo.

Vou transcrever duas passagens do ano de 1945, para ver um pouco da tonalidade da obra. A primeira é a sua visão dos Estados Unidos como a Pátria das liberdades: "Nestes dias que correm, até meu vocabulário é proibido. Não podia nem sequer mencionar Roosevelt, Churchill nem qualquer outro embusteiro sem ter de enfrentar um ataque violento, marcado por golpes baixos. A ideia tão difundida de que a liberdade de discurso prevalece nos Estados Unidos sempre me fez gargalhar" (página 449).  Na outra ele descreve o fim da guerra: 

"Na noite de ontem (ele escreve no dia 15 de agosto de 1945), quando se anunciou o fim da guerra, estava em meu escritório, trabalhando em minhas memórias nos dias de revista. As primeiras notícias do fato chegaram através dos sinos das igrejas. Até as freiras da Casa do Bom Pastor tocaram seu sino, embora apenas brevemente. Era 7:05 da noite. O barulho continuou intermitente por duas horas, com os debiloides andando em seus carros e tocando suas buzinas. às 8h50 fui até a esquina das ruas Baltimore e Gilmor (Ele morou a vida toda na cidade de Baltimore) para colocar algumas cartas na caixa do correio. Algumas dúzias de migrantes do campo, sulistas e gentalhas do gênero, estavam reunidos em grupos de esfarrapados, mas não faziam barulho...". Ele era acusado de nazista e de racista, fato negado pelo editor.

Não podia deixar de mencionar uma frase sobre Nietzsche e uma opinião sobre Freud. Como a de Freud é bem curtinha, começo por ela: "Adolf Meyer, diretor do Instituto Phipps, falou sobre livros de sexo em sua biblioteca com grande desdém. Guardava-os numa prateleira junto com livros a respeito de Freud e outras charlatanices do gênero" (página 154). A anotação sobre Nietzsche data de 15 de outubro de 1944. "Hoje completa-se o centenário de nascimento de Friedrich Wilhelm Nietzsche. Caso seja lembrado em algum lugar da América será porque era um sujeito nocivo e inventor de todas as diabruras de Hitler. Não consigo ver muita esperança para este grande país cristão. Por toda minha vida, assisto sua sistemática decadência e, ultimamente, o ritmo acelerou-se com rapidez" (página 422).Vejamos ainda as orelhas do livro:

..."O diário de H. L. Mencken, por expresso desejo seu, foi mantido em sigilo nos cofres da Biblioteca de Enoch Pratt de Baltimore, durante vinte e cinco anos depois de sua morte. O diário cobre os anos de 1930 a 1948 e proporciona um retrato vivo, autêntico e, às vezes, até chocante do próprio Mencken, de seu mundo, de seus amigos e antagonistas, dentre os quais aparecem personagens como Theodore Dreiser, F. Scott Fitzgerald, Sinclair Lewis, William Faulkner e até Franklin D. Roosevelt, por quem Mencken nutria um ódio especial que resultou em espetaculares e celebrados atos de ataques injuriosos.

Charles A. Flecher, estudioso de Mencken, trabalhou o manuscrito datilografado com mais de duas mil páginas, que agora se publicam, e fez uma generosa seleção de registros cuidadosamente escolhidos para que se preservasse toda a amplitude, o colorido e o impacto do diário. Aqui, em toda sua plenitude. Mencken surge como um observador ímpar e como perturbador da sociedade americana. Aparece também como ser humano com seus impulsos contraditórios: o cético preso a pequenas superstições, o destemido guerreiro que era um obcecado hipocondríaco, o marido apaixonado e o amigo generoso que, infelizmente, era um intolerante".

E, como foi Babbitt que me fez retomar o livro, deixo aqui a resenha.


E também o seu livro O livro dos insultos