terça-feira, 16 de julho de 2024

ZELOTA. A vida e a época de Jesus de Nazaré. Reza Aslan.

Há muito eu ouvia falar do livro Zelota - A vida e a época de Jesus de Nazaré, do historiador iraniano, radicado nos Estados Unidos. Quem mais dele me falava era o meu amigo Valdemar Reinert, um estudioso apaixonado pela tema da religião. Agora foi o livro da vez. O li de um só fôlego. Embora eu tenha toda uma vida de formação religiosa, adquirida nos seminários de Bom Princípio, Gravataí e Viamão, todos no Rio Grande do Sul, pude constatar o quão pouco realmente sabemos sobre a figura histórica de Jesus e da implantação do cristianismo, seguramente uma religião que pretendeu ser universal. Será que era esse mesmo, o projeto de Jesus de Nazaré? 

Zelota - A vida e a época de Jesus de Nazaré. Reza Aslan. Zahar. 2013. 9ª reimpressão. Tradução: Marlene Suano.

Antes de entrar na questão da análise do livro, apresento as orelhas: "Uma biografia fascinante e provocadora que desafia nossa compreensão do homem Jesus de Nazaré e de sua época.

Dois mil anos atrás, um pregador judeu atravessou a Galileia realizando milagres e reunindo seguidores para estabelecer o que chamou de 'Reino de Deus'. Assim, lançou um movimento revolucionário tão ameaçador à ordem estabelecida que foi capturado, torturado e executado como um criminoso de Estado. Seu nome era Jesus de Nazaré. Poucas décadas após sua morte, seus seguidores o chamariam de 'o filho de Deus'.

Com uma prosa envolvente, baseada em pesquisa meticulosa, o escritor e especialista em religião Reza Aslan mergulha na turbulenta época em que Jesus viveu, reconstruindo com maestria a Palestina do século I em busca do Jesus histórico. Ao fazê-lo, encontra um rebelde carismático que desafiava as autoridades de Roma e a alta hierarquia religiosa judaica - um dos chamados zelotas, nacionalistas radicais que consideravam dever de todo judeu combater a ocupação romana.

Comparando o Jesus dos Evangelhos com o das fontes históricas, Aslan descreve um homem cheio de convicções, paixão e contradição; e aborda as razões porque a igreja cristã preferiu promover a imagem de Jesus como um mestre espiritual pacífico em vez de revolucionário politicamente conscientizado que ele foi.

Em uma narrativa de tirar o fôlego, Zelota oferece uma nova perspectiva sobre aquela que talvez seja a história mais extraordinária da humanidade, e afirma a natureza radical e transformadora da vida e da missão de Jesus de Nazaré".

Instigante? Intrigante? Ao longo de toda a minha formação religiosa eu sempre recebi tudo pronto. Religião é uma questão de fé e, na dúvida entre a fé e a razão, agostinianamente sempre ficávamos com a fé. Assim éramos preparados para exercer a função de manter viva essa fé, no caso, a sua versão católica. A verdade nos foi revelada. A Bíblia é a palavra de Deus e Jesus é o próprio filho de Deus. Tudo envolto em mistérios. Os mistérios da fé. O livro de Aslan nos traz a história, nos traz a construção de uma narrativa, nos traz as contradições encontradas na própria Bíblia e no confronto com as fontes históricas.

Em suma, se em poucas linhas eu tivesse que sintetizar o livro eu faria o seguinte esforço: Jesus, nascido em Nazaré, era um judeu e abraçava uma versão de uma parte de seu povo, os zelotas. Os zelotas pregavam o "Reino de Deus", livres do jugo romano, mantido em uma aliança com os sacerdotes do Templo. Jesus os afrontou e foi condenado e executado ao modo romano (a crucificação). Jesus teve discípulos. Uns, sediados em Jerusalém, seguiam Tiago, o irmão de Jesus. Seguiam a Torá. Outros se helenizaram, ocupando as principais cidades do Mediterrâneo. Estavam dispostos a aceitar flexibilizações à lei judaica e eram comandados por Paulo. Com a morte de Tiago, Roma ganhou ascendência sobre Jerusalém como sede do cristianismo. Ali Tiago já havia instalado Pedro como o chefe de seu grupo. Paulo chega depois e procura tornar o cristianismo adaptável aos gentios (aos não judeus). Paulo transforma a religião, retirando dela o caráter revolucionário e de justiça social que os zelotas lhe tinham imprimido e cola em Cristo o seu caráter divino e conciliador. Com a destruição de Jerusalém (ano 70 d. C.) Roma se torna o centro do cristianismo e este se afirma com Constantino e o Concílio de Niceia. Este estabeleceu a ortodoxia da natureza divina de Jesus e transformou o cristianismo em religião de Estado. Paulo triunfou?

Essas polêmicas entre os seguidores de Tiago e Paulo nos foram muito bem ocultados. No epílogo, o autor nos lembra que o cristianismo para se afirmar, além de Niceia, também definiu no ano de 398 d.C., em Hippo Regus (atual Argélia) os 27 livros que comporiam o Novo Testamento. Mais da metade são livros de Paulo ou dele falam (p.233).

Creio que ainda precisamos definir quem eram os zelotas. Vamos ao autor: "Muitos judeus na Palestina do século I se esforçaram para viver uma vida de zelo, cada um à sua própria maneira. Mas houve alguns que, a fim de preservar os seus ideais zelosos, estavam dispostos a recorrer a atos extremos de violência se necessário, não apenas contra os romanos e as massas não circuncidadas, mas contra os compatriotas judeus, aqueles que ousaram se submeter a Roma. Eles foram chamados de zelotas" (p. 65).

A frase em epígrafe reflete esse espírito zelota: Não pense que eu vim trazer paz sobre a terra. Eu não vim trazer paz, mas a espada (Mateus 10:34). O livro, de 303 páginas, contém um mapa da Palestina do século I, do Templo de Jerusalém, de nota do autor, introdução, cronologia, o corpo do livro dividido em três partes, epílogo, notas e referências. Vou me ater às três partes. Cada uma delas tem um prólogo. Ao todo são quinze capítulos. Vamos ás partes e e aos respectivos capítulos:

Parte I: Prólogo: Um tipo diferente de sacrifício (uma descrição do Templo, sua estrutura e os sacrifícios); 1. Um buraco no canto (Jerusalém para o Império Romano); 2. Rei dos judeus (o domínio romano e a busca da libertação); 3. Vós sabeis de onde venho (Jesus de Nazaré - Belém - fuga para o Egito?); 4. A quarta filosofia (Nazaré - carpinteiro - Séforis - família e a filosofia dos zelotas); 5 Onde está sua frota para varrer os mares romanos? (Pilatos e Caifás - As rebeliões - os sicários - o Zelo); 6. Ano Um (O povo de Deus e a sua destruição (70 d.C), o arrefecer das lutas do Povo de Deus).

Parte II. Prólogo: Zele por sua casa (a vida pública, entrada em Jerusalém, o Templo - um covil de ladrões, os tributos, a prisão e a execução).7. A voz clamando no deserto (João Batista e o anúncio do reino, o batizado de Jesus); 8. Segui-me (A Palestina sob o Império Romano, 12 tribos, doze apóstolos, Caifás, o maior inimigo, os milagres e a fama). 9. Pelo dedo de Deus (um exorcista em Cafarnaum, o dedo de Deus que cura). 10. Que venha a nós o teu Reino (Um convite para todos, o Pai nosso, os zelotas e não princípios éticos abstratos, não ao domínio romano). 11. Quem vós dizeis que sou? (Tu és o Messias? "Eu o sou".  De zelota a celestial e divino). 12. Nenhum rei senão César (A prisão, Caifás e Pilatos, a condenação por Pilatos, a morte romana pela crucificação).

Parte III. Prólogo: Deus feito carne (A ressurreição. Estevão, o primeiro mártir. O homem-Deus. Saulo-Paulo. A reinterpretação helenística. De zelota a um deus romantizado. Tiago X Paulo. A abertura para um Deus global). 13. Se Cristo não foi ressuscitado (Duas correntes: a de Jerusalém - Tiago, Pedro e João e a helênica - Paulo. A grande transformação; de religião nacional para uma religião global. Paulo e a conversão dos gentios). 14. Não sou eu um apóstolo? (De Saulo a Paulo. De judeu a helenista. Os confrontos entre Tiago e Paulo. Pedro e Paulo em Roma). 15. O Justo (Tiago. Oposições com Paulo. A fé e as obras. Depois do ano 70 d.C., - de Jerusalém a Roma. A partir dos séculos III e IV, o domínio de Paulo. Do Jesus Zelota a Jesus de Nazaré). 

Epílogo: Deus verdadeiro de Deus verdadeiro (325 d.C. - O Concílio de Niceia. Constantino, o primeiro imperador cristão. A ortodoxia em torno da natureza de Deus. A construção do Novo Testamento - Hippo Regius - 398 d.C. - O triunfo de Paulo). Deixo ainda o último parágrafo do historiador:

"Dois mil anos depois, o Cristo da criação de Paulo totalmente subjugou o Jesus da história. A memória do zelota revolucionário que atravessou a Galileia reunindo um exército de discípulos com o objetivo de estabelecer o Reino de Deus na terra, o pregador magnético que provocou a autoridade do sacerdócio do Templo em Jerusalém, o nacionalista judeu radical que desafiou a ocupação romana e perdeu, ficou quase completamente perdida para a história. Isso é uma pena. Porque a única coisa que qualquer estudo abrangente sobre o Jesus histórico deveria ter esperança de revelar é que Jesus de Nazaré, Jesus, o homem, é tão atraente, carismático e louvável como Jesus, o Cristo. Ele é, em suma, alguém em que vale a pena acreditar" (p. 233). Um caminho aberto para um cristianismo conservador.

O próximo desafio será a leitura de Jesus militante - Evangelho e projeto político do Reino de Deus, de Frei Betto, que, como já verifiquei na bibliografia, não inclui Zelota na sua relação. 

domingo, 14 de julho de 2024

INQUISIÇÃO - O reinado do medo. Toby Green.

Há muito que eu desejava ler algo mais substancial sobre o tema da Inquisição. Numa propaganda das redes sociais, me deparei com um título: Inquisição - O reinado do medo, de Toby Green. Conferi na Estante Virtual e encontrei um exemplar disponível no Sebo Kapricho II, aqui de Curitiba. Fui lá. O exemplar, inclusive estava mais barato do que o enunciado. Por óbvio, não reclamei. Com certeza, adquiri um belo e valioso livro. 
Inquisição - o reinado do terror. Toby Green. Objetiva. 2011. Tradução: Cristina Cavalcanti.

Na contracapa, um enunciado aterrador. A Inquisição foi e continua sendo inspiração. Ela insiste em permanecer, embora sob diferentes formas, sempre tenebrosas: "Inquisição: O reinado do medo conta uma história vasta que, embora conhecida, é também surpreendente e estranha O terror inquisitorial na Ibéria e nas suas colônias é um assunto familiar, mas bem menos exploradas são a propagação desse terror aos quatro cantos do mundo e sucessivas mudanças de alvo de acordo com o teor dos tempos, prenunciando o totalitarismo moderno".

Nesse sentido, fascismo, nazismo, os regimes de Franco e de Salazar são todos herdeiros da nefasta Inquisição. Como também o regime de Pinochet no Chile e as ditaduras militares da América Latina, inspiradas na Ideologia da Segurança Nacional. Todos esses movimentos têm nela a sua mais remota inspiração. Assim também o racismo e o MCarthismo se inspiraram em seus horrores. Também o permanente autoritarismo que paira sobre o Brasil, num eterno espírito golpista. Inimigos, se não os há, uma fértil imaginação sempre os poderá inventar e reinventar, criar e cultivar. Na Inquisição, as vítimas foram os convertidos (cristãos novos), os luteranos, os mouros, os cristãos velhos. Afinal, todos, com ou sem culpa. Culpa do que? Motivos sempre foram encontrados, mesmo que os autores os ignorassem. Eles os confessavam, nunca no entanto, espontaneamente. Sempre sob tortura.

O livro é longo e denso. Possui glossário, cronologia e prólogo, seguidos por 14 capítulos, um sem fim de notas e uma rica bibliografia. São 463 páginas. Os capítulos têm títulos bastante ilustrativos. Eu os apresento, junto com alguma explicitação a mais: 1. O fim da tolerância: O medo como uma forma de vida na Espanha, em meio a sua grande e rica fusão cultural. Torquemada. 2. O fogo se espalha: Portugal é atingido, havendo conversões em massa. 3. Justiça torturada: A tortura: aperfeiçoamento dos métodos e o prazer sádico dos torturadores. 4. Fuga: a expansão para as colônias. Os indígenas e a escravidão; protestantes e piratas ingleses. 5. O inimigo interno: um conceito de inimigo. Fugas - sempre por culpa, nunca por medo. A Espanha e as crises com a Holanda. Os seguidores de Erasmo.

6. O terror envolve o mundo: México e Peru. Os protestantes ingleses, a comunidade judaica de Amsterdã. 7. A ameaça muçulmana: os mouros como alvo: Granada e Valência; as permanentes desconfianças. 8. Pureza a qualquer custo: poderia haver pureza em tamanha fusão racial e cultural?   As exigências para a ocupação de cargos; as burlas. A pureza racial como fonte de racismo. 9. Todos os aspectos da vida: Uma sociedade de espionagem. Nunca foi apenas uma instituição religiosa. O medo e a estagnação da criatividade. 10. A administração do medo: O monopólio da punição e do perdão. Os abusos de poder e a corrupção financeira e sexual. Sequestro de bens. Seu poder de autodestruição. A expulsão dos mouros, a crise econômica espanhola com a destruição de seus alicerces.

11. A ameaça do conhecimento: A imposição do silêncio aos eruditos; atraso e declínio como consequência. Montaigne, sua ascendência judaica; seus familiares de Saragoça; o início da filosofia do ceticismo. A inquisição e a oposição a uma visão científica de mundo. O livro - sempre o maior inimigo. "A verdadeira importância da Inquisição não reside tanto nas horríveis solenidades dos autos de fé nem nos casos de algumas vítimas célebres, e sim na influência silenciosa que sua obra incessante e secreta exerceu entre as massas e nas limitações que impôs ao intelecto espanhol" (p. 300). O declínio e a paralisação econômica e intelectual. A cultura, sempre a maior vítima. Creio que perceberam a importância e a beleza desse capítulo. 12. A sociedade neurótica: a ação das beatas, as noivas de Cristo. Os padres confessores ou acossadores; as praticas sadomasoquistas. Os exorcismos. O início do desmoronamento. 13. Paranoia: A França - um dos berços do iluminismo e os franco maçons; os novos alvos. Portugal sob Pombal. Pombal e os jesuítas. A luta travada contra o iluminismo. 14. O fracasso do medo e o medo do fracasso: A Revolução Francesa e as guerras napoleônicas. A liberdade de imprensa. O fim da Inquisição na Espanha e em Portugal.

Creio que perceberam que a Inquisição na península Ibérica é um fenômeno dos séculos XV, XVI e XVII, que conheceu sua decadência com a ascensão das ideias do ceticismo e do iluminismo. Foi uma das mais tenebrosas instituições e representou a soma do poder político e religioso, de consequências desastrosas e infinitas, ainda não extirpadas de todo em nossos tempos. Somos todos herdeiros da Inquisição. Deixo ainda os dois parágrafos finais do livro:

"Pobre Península Ibérica! Portugal e Espanha, antigas sedes dos maiores impérios do mundo, estavam arruinados. Havia divisões por toda parte. A Inquisição tentara produzir uma ideologia unificada e perseguiu as ameaças quando e onde as encontrou, mas só conseguiu presidir o declínio imperial. Não se pode dizer que a perseguição ao inimigo tenha contribuído para a prosperidade ou para melhorar a vida do povo. Ela resultou em repressão e frustração. Da frustração brotou a raiva, e dela o rancor mútuo.

O cenário para uma amargura crescente estava montado. Com o tempo, as divisões produziriam o terrível conflito da Guerra Civil Espanhola e o antagonismo entre conservadores e liberais que antecedeu o regime de Salazar, em Portugal. O inimigo nunca desapareceu. A Inquisição ajudou a persegui-lo, mas, como consequência, a divisão que se produziu ficou mais larga do que um oceano. A paranoia em Portugal e na Espanha transformou a prosperidade em decadência. Foram a intolerância da sociedade imperial e a perseguição às ameaças ilusórias que carregaram seu próprio império pelos arroios melancólicos do esquecimento" (p. 388).

Devo ainda dizer que o autor é inglês, nascido em Londres, no ano de 1974. É filósofo, formado em Cambridge. Vive na Inglaterra. Inquisição - o reinado do medo é também um belo livro de história e que te proporciona uma viagem, não tão agradável pelas principais cidades da península.

E um pouco sobre os judeus e a inquisição no Brasil, nesse belo livro do Lira Neto.




segunda-feira, 8 de julho de 2024

A mente de Adolf Hitler. Walter C. Langer.

A curiosidade aguçada pelo "momento cultural" de O é da coisa, do Reinaldo de Azevedo, me levou a esse livro. Me parece óbvio que o tema que envolve a construção da personalidade de Hitler sempre foi, é e será revestido de enorme curiosidade. Como é que alguém conseguiu chegar ao ponto, ou ao grau de loucura, a que ele chegou. Estou falando do livro A mente de Adolf Hitler - o relatório secreto que investigou a psique do líder da Alemanha nazista. O autor é o psicanalista estadunidense Walter C. Langer. O seu trabalho foi uma encomenda do Escritório de Serviços Estratégicos (OSS) o órgão que antecedeu a CIA nos Estados Unidos. A encomenda é datada do ano de 1943.

A mente de Adolf Hitler. Walter C. Langer. LeYa, 2018. Tradução: Carlos Szlak.

Sem delongas vou à contracapa, para apresentar uma pequena síntese do livro: "Este livro que você tem em mãos é o histórico relatório feito durante a Segunda Guerra Mundial - enquanto Hitler ainda estava vivo -, fruto de profundas investigações para compreender quem era de fato o maior líder nazista que já existiu. Mantido como documento confidencial por quase um quarto de século, este estudo pioneiro apresenta uma das pesquisas mais fascinantes e reveladoras já feitas em relação aos conflitos inconscientes por trás da ascensão e da queda de Adolf Hitler, que ajuda a tecer a grande teia de eventos da história mundial e nos faz refletir como surgem mentes como essa". O seu autor, volto a repetir, é o psicanalista Walter Langer.

O que mais me impressionou? Os dados de sua infância, adolescência e juventude, basicamente passados na Áustria, que ele aprendeu a odiar, até a sua chegada em Munique, na Alemanha, a Mãe Pátria, que ele aprendeu a amar. Filho de uma família totalmente desestruturada, onde, para ele, foi fácil reviver ou viver o seu complexo de Édipo particular. O pai era bêbado e violento e a mãe sofredora protegia o filho. Flagrou-os em relação sexual. Na visão de criança, flagrara o pai violentando a mãe. Não seria a sua Mãe-Pátria sendo violentada? O Hitler que viveu na Áustria só colhera fracassos em sua vida. Era descuidado de si e se odiava. A sua vida posterior teria sido uma projeção desse ódio contra alguém ou a algum povo? Lembrando que Hitler nasceu em Branau am Inn, na Áustria, muito próximo da fronteira com a Alemanha (Munique), em 1889. 

Este Hitler alcança seus êxitos em Munique, onde participa da Primeira Guerra Mundial, da qual sai meio chamuscado (temporariamente mudo e cego - teriam sido gases ou distúrbios psíquicos?) mas que lhe proporciona os primeiros meios de exercer os seus dons de oratória junto a outros soldados. Aí começa a sua ascensão e a sua troca de personalidade, de quem pela força, violência e crueldade começa a se impor, em um caminho sem volta. E uma questão: Hitler construiu a Alemanha nazista ou a Alemanha destroçada pela Primeira Guerra e humilhada pelos seus vencedores é que proporcionou a ascensão de tão insólito personagem? Do fracassado Putsch de Munique (1923) segue para a prisão de Landsberg, onde escreve o Mein Kampf.

Com certeza, um personagem extremamente complexo e que, conforme é destacado por Eurípedes Alcântara, prefaciador da edição brasileira, é diagnosticado por Langer como "provavelmente psicopata neurótico, beirando a esquizofrenia". Numa rápida pesquisa Google procuramos um primeiro significado para essas palavras da psiquiatria. Psicopata: padrão invasivo de desrespeito e violação dos direitos do outro; neurótico: reações intensas e instabilidade emocional; esquizofrenia: delírios e alucinações, falas desordenadas e comportamento bizarro e inadequado. Psicoses. É grave.

O livro relatório, de 268 páginas, tem um prefácio de contextualização, escrito pelo jornalista Eurípedes Alcântara, seis partes, notas e referências bibliográficas. As partes são: Parte I. Como ele acredita ser; Parte II. Como o povo alemão o conhece; Parte III. Como seus colaboradores o conhecem; Parte IV. Como ele se conhece; Parte V. Análise e reconstrução psicológica; Parte VI. Seu possível comportamento no futuro. Dessas partes a mais longa e a mais importante é, sem dúvida, a parte V, a de análise e reconstrução psicológica. Muitos dados biográficos coletados no Mein Kampf, em biografias e entrevistas são as fontes do relatório de Langer.

Como demandaria um espaço maior para a resenha de cada capítulo, me atenho a apresentar a síntese das orelhas do livro: "Este relatório é uma fascinante reconstrução psico-histórica que, além de esmiuçar a mente de Adolf Hitler - trazendo desde fatos de seus primeiros anos de vida, das conturbadas relações familiares e amorosas até suas manias, perversões e comportamentos durante a guerra -, nos leva a um grande questionamento: a história é feita por pessoas ou elas são meras personagens dentro de sua força avassaladora? Será que o grande responsável pelo terror do nazismo foi Hitler e sem ele nada daquilo teria acontecido? Ou de qualquer forma a história mundial teria tido esse triste episódio? 

É justamente isso que Walter Langer procura compreender ao longo destas páginas. Sua profunda análise detalha os desvios da complexa personalidade de Hitler capazes de levar milhares de pessoas a colaborarem na execução de planos atrozes contra o ser humano e a criarem um dos períodos mais cruéis da história da humanidade. Afinal, de acordo com a avaliação do psicanalista, com base em seus estudos e nos depoimentos colhidos, não foi só Hitler, o louco, que criou a loucura alemã: a loucura alemã também criou Hitler".

Nesse mesmo sentido, Eurípedes Alcântara também encerra o seu prefácio, com destaque para o insólito personagem: "Sem Hitler, o nazismo poderia muito bem ter alcançado posição política relevante na Alemanha. Mas é impossível imaginar o louco Rudolf Hess, o arrogante Hermann Göring ou mesmo o fanático Joseph Goebels mesmerizando as massas com a mesma eficiência de Adolf Hitler, cuja mente este livro nos oferece na bandeja". 

Como estamos numa fase de recrudescimento da extrema direita fascista, tanto no mundo quanto no Brasil, deixo o essencial do discurso nazista, quando Hitler condena toda a passividade, vista como hostil à vida  e a troca por um ser absolutamente impiedoso como revelam as frases de sua pregação:

"Se um povo quiser se tornar livre, precisará de orgulho, força de vontade, provocação, ódio, ódio e de novo, ódio".

"A brutalidade é respeitada. A brutalidade e a força física. O homem comum só respeita a força bruta e a brutalidade".

"Queremos ser os defensores da ditadura da razão nacional, da energia nacional, da brutalidade e determinação nacionais".

É. A direita fascista não cria, ela apenas copia. Um perigo para o já tão abalado processo civilizatório. Auschwitz já está apagado da memória dos povos. Já não mais apavora ninguém.  



terça-feira, 2 de julho de 2024

CARTA AO PAI. Franz Kafka.

Andei por uma série de leituras que, se assim posso dizer, seriam um tanto depressivas. Não a leitura propriamente, mas sim, os temas abordados. Um realismo de fazer doer e doer muito. Entre essas leituras incluiria Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas e Deixe o quarto como está - ou estudos para a composição do cansaço, de Amilcar Bettega, que, como se lê na contracapa de seu livro, flertava com Kafka. Não custaria continuar por aí. Confesso que comecei a leitura de Carta ao pai, algumas vezes, apenas começava. Dessa vez a empreitada não ficaria pela metade.
Carta ao pai. Franz Kafka. L&PM - Pocket.

Uma pergunta: Carta ao pai é a autobiografia de Kafka? É uma obra de psicologia ou de psicanálise? É um tratado ou um ensaio sobre a autoridade ou sobre o autoritarismo? Creio que a resposta para as três perguntas é: SIM. Ela é uma autobiografia em que Kafka revela a atribulada relação com o seu pai, uma relação profundamente edipiana e é, acima de tudo, um grito agudo de dor e uma manifestação de profunda impotência de um filho diante de um pai autoritário, tirano, medida de todas as coisas. É um jogar na cara todos os estragos havidos e incorporados ao longo de toda uma Erziehung. Um pai autoritário e um filho tímido e inseguro.

Qual foi a razão para isso? Tudo indica que Franz buscava, com a carta, uma reconciliação com o pai. Não obstante nunca ter enviado a mesma a ele. Provavelmente porque sabia da fria recepção que ela teria. Certamente jamais seria lida. Como carta, ela é longa. Foi um manuscrito de mais de cem páginas. Um enfileirar de queixas e mais queixas. Quais foram as principais? O medo, medo presente, inclusive na escrita da carta. Para ti, tudo era simples. Uma vida inteira sacrificada em função dos filhos, para que nada lhes faltasse. Parece que faltou o principal. Afeto. Sempre me escondi de ti e, entre nós, nunca houve uma conversa franca. Algumas citações fortes:

Já nos primeiros parágrafos, logo depois do Lieber Vater.  "Tu me perguntaste recentemente porque afirmo ter medo de ti. Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes na justificativa desse medo, que eu não poderia reuni-los no ato de falar de modo mais ou menos coerente. E se procuro responder-te aqui por escrito, não deixará de ser de modo incompleto, porque também no ato de escrever o medo e suas consequências me atrapalham diante de ti e porque a grandeza do tema ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento"(p. 17-18)

Quem eu sou? "Naturalmente, não quero dizer que me tornei o que sou apenas através da tua ascendência. Isso seria por demais exagerado (e eu até me inclino a esse exagero). É bem possível que eu, mesmo se tivesse crescido totalmente livre da tua influência, não pudesse me tornar um ser humano na medida em que o teu coração o desejava. É provável que mesmo assim eu me tornasse um homem débil, amedrontado, hesitante, inquieto" (p. 21).

Consequências? "A impossibilidade da relação tranquila teve uma outra consequência, muito natural no fundo: eu desaprendi a falar. Por certo eu não teria sido, sendo outro o contexto, um grande orador, mas sem dúvida teria dominado a linguagem humana corrente e comum. Mas tu me proibiste a palavra desde cedo, tua ameaça: 'Nenhuma palavra de contestação!' e a mão erguida para sublinhá-la me acompanham desde então. Adquiri junto de ti - és, quando se trata  de tuas coisas, um orador excelente - um modo de falar entrecortado, gaguejante, e também isso era demais para ti, de modo que por fim calei, primeiro por teimosia talvez, mais tarde porque diante de ti eu não conseguia pensar nem falar. E uma vez que eras meu educador verdadeiro, isso repercutiu por tudo em minha vida" (p.35).

As tuas armas? "Teus recursos oratórios, eficazes ao extremo e jamais falhos, pelo menos no que diz respeito a mim eram: insultar, ameaçar, ironia, riso malvado e - curiosamente - autoacusação" (p.37).

E a arma da educação pela ironia? "Era ela a que melhor correspondia à tua superioridade sobre mim. Em ti, uma advertência tinha comumente a seguinte forma: 'Não podes fazer isso assim ou assado'? 'Será que isso já é demais para ti'? 'Pra isso naturalmente não tens tempo'? e assim por diante. E cada uma dessas perguntas era acompanhada por um riso irritado e uma cara feia. De certa maneira a gente já se sentia punido antes mesmo de saber que havia feito algo errado" (p.39). E por aí vai.

Creio que até essas páginas (por volta da 40) estão as questões essenciais. Depois Kafka passa a examinar os destroços de sua educação autoritária e de total ausência do diálogo sobre os diferentes setores de sua vida: sobre o seu comportamento na loja, com ele e com os funcionários; sobre a sua religiosidade, de um judaísmo praticado com superficialidade e sem nenhum comprometimento. (Neste particular viveram a transição de uma religião praticada no campo e transferida para a cidade); sobre a sua atividade de escritor, que Kafka tanto prezava, sobre a sua profissão, numa atividade burocrática que ele detestava e, sobretudo, sobre a sua vida sexual e afetiva e que nunca passou da fase de noivado.

O noivado, aliás foi o motivo maior, a razão da escrita da carta. A respeito lemos na contracapa "entre os dias 10 e 19 de novembro de 1919, Franz Kafka, insatisfeito com a fria recepção paterna diante do noivado com Julie Wohryzek, escreveu ao pai, o comerciante judeu Hermann Kafka, uma longa carta - mais de cem páginas manuscritas. Kafka tinha então 36 anos".

A Carta ao pai que eu li é uma publicação da L&PM Pocket, com tradução, prefácio e notas de Marcelo Backes. O seu prefácio é precioso. É uma contextualização da mesma. Desse prefácio, entre o que eu sublinhei, destaquei essa passagem:

"Porém é o pai - um verdadeiro catálogo de seus erros na educação do filho é estendido à frente do leitor - que aparece debruçado em toda a sua inteireza sobre o mapa-mundi, numa imagem que lembra as brincadeiras bem mais tardias de Charles Chaplin com o Grande Ditador; é a sua presença avassaladora que faz o filho proclamar: 'Da tua poltrona, tu regias o mundo' e chamá-lo de tirano, de regente, de rei e de Deus. Há exageros, claro - coisa que o próprio autor  reconhece -, e floreios retóricos. Kafka era advogado, leitor apaixonado das cartas de Kleist, Hebbel, Flaubert, e a objetividade da consideração jamais foi seu forte. Mas há também a luta honesta, típica da obra kafkiana, que Peter Handke detectou num dos aforismos de A história do lápis: 'Percebo que Kafka lutou por cada frase, e sobretudo pela continuação de cada frase'. E estamos lendo uma autobiografia, não há a menor dúvida... Em vez de interpretar a obra a partir do complexo de Édipo, no entanto, o mais interessante talvez fosse interpretar o complexo de Édipo a partir da obra. Ademais, assim como em seus romances, é o próprio Kafka - e Benjamin já o havia constatado - que está o 'centro' de sua obra".

Leitura instigante sob todos os aspectos. Para mim, o que mais me marcou foram os destroços causados pelo autoritarismo na formação da personalidade. Creio que essa marca me veio a partir do momento em que recrudescem no país os projetos ditatoriais com as suas sanhas autoritárias na política educacional com a instituição das nefastas escolas cívico militares. Tempos sombrios. Autor - autoridade - autoritarismos - anulações...

Deixo também resenhas biográficas de Kafka:




segunda-feira, 24 de junho de 2024

Deixe o quarto como está. Amilcar Bettega. Vestibular UFRGS - 2025.

É pela terceira vez que começo a resenha deste livro - deixe o quarto como ele está, de Amilcar Bettega. Trata-se de um livro muito difícil de ler, e muito mais de resenhar, pois trata-se de um livro inteiramente aberto. Ele exige leitura atenta, reflexões e interpretações suas, e que nunca necessariamente são as mesmas. É um livro de 2002 e uma indicação para o vestibular de 2025, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, indicação pela qual cheguei ao livro. A sua primeira edição é do ano de 2002.

Deixe o quarto como está. Amílcar Bettega. Companhia das Letras. 2020.

"Flertando com Kafka, Rulfo e Cortázar, Amilcar Bettega faz deste livro uma das melhores amostras da literatura brasileira contemporânea", lê-se na contracapa. Confesso que não li  Rulfo e Cortázar, mas senti os mesmos desassossegos que senti com a leitura de Kafka. Também tive as minhas lembranças: A sociedade do cansaço, de Byung-Chul Han, Necropolítica, de Achile Mbembe e, especialmente, de realismo capitalista - é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, de Mark Fisher. Deste último, a impactante ideia de que vivemos um fracasso há cinquenta anos, mas um fracasso inteiramente consolidado, que não se imagina em mudar. Um infelicitar de todos. Também lembrei muito do documentário Janela da alma, de João Jardim. Nele há uma fala de Saramago, se não me engano, sobre a necessidade de também ler as entrelinhas.

A interpretação de Deixe o quarto como está me ficou mais fácil depois de ver uma entrevista do autor, concedida ao Jornal da Universidade da URGS, que pode ser encontrada no Google, digitando - Escrevo porque não sei - jornal da universidade. A entrevista é datada de 10 de dezembro de 2020. Nela, Bettega está muito feliz, pois além da indicação de seu livro para o vestibular da universidade, também ocorreu o lançamento do livro em tradução para o italiano.  Algumas observações a partir dessa entrevista.

A primeira é uma dica preciosa, uma pista para a interpretação. Preste atenção ao subtítulo: ou Estudos para a composição do cansaço. O cansaço, não o físico, mas o moral, o emocional, aquele que adoece, aquele que infelicita é um dos temas que perpassa os contos. Sim, é um livro de contos, 14 no total. A segunda é sobre o título e a frase de epígrafe: "Deixe o quarto como está. Agora, está tudo pronto. Estamos prontos. Quer ir? A frase é do contista estadunidense, Raymond Carver, admirador e biógrafo de Tchekhov. É sobre a morte de Tchekhov, que, em seu leito de morte, atendido por um médico que constata não haver o que fazer, manda servir champanhe. Certamente uma celebração do momento derradeiro da vida. Quando o garçom do hotel procura limpar o quarto, a esposa lhe pede para deixar o quarto como ele está. Lindo, lindo. Mas trata-se da morte. Não há saída.

Outra observação, a partir da entrevista, é sobre o conto O encontro. Conta-se que o escritor espanhol, Vila-Matas fora convidado para um encontro literário em Paris. Ele chega, se hospeda em um hotel e espera o contato com os organizadores do evento. Como eles não aparecem, aproveita a ocasião para refletir e escrever sobre a espera, ficar esperando, rodando, aguardando. Para mim, também, uma reflexão sobre a dificuldade de encontros em nossa sociedade, muito mais dada a desencontros. 

Na entrevista também é interessante observar as perguntas, pois são muito bem feitas. Elas denotam conhecimento da obra. Elas contém o teor da obra, o que obriga o autor a responder sobre ela. Aí percebemos os temas fundamentais: cansaço, o vazio do cotidiano, falta de sentido, aprisionamento, ausência de perspectivas, insistências... No meu tempo de estudante de filosofia, a gente chamava isso de angústias da existência, ou o famoso "estamos condenados a ser livres". As pessoas sabem que vão perder, mas não desistem, responde Bettega, a uma das perguntas. Um dos mais belos contos, cheio de significados: Exílio. Tomar o trem de volta e, começar tudo de novo, apesar de se defrontar sempre com muralhas, como ocorre no conto sobre "o encontro".

Também é muito interessante dar uma olhada na biografia, na história de vida do escritor. Ele nasceu na militarizada cidade de São Gabriel, no emblemático ano de 1964. São Gabriel conta hoje com um pouco mais de 60.000 habitantes. Está a 320 quilômetros distante de Porto Alegre, para onde foi estudar engenharia civil, na sua conceituada universidade. Mas não era este o seu campo. O campo das Letras o levou a Paris, para a Sorbonne, para estudar escrita criativa. E isso ele consegue fazer, mesmo dentro da mais brutal e depressiva realidade. 

Acima de tudo, contos para refletir, para dar voltas ao redor dos fatos, para enxergá-los por todos os ângulos e lados. Um livro aberto, para nele, também você, inscrever as suas letras, aproveitando para isso, as suas entrelinhas. As reflexões precisam ter continuidade.

Deixo a resenha de Sociedade do cansaço:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/01/sociedade-do-cansaco-byung-chul-han.html

terça-feira, 18 de junho de 2024

um útero é do tamanho de um punho. angélica freitas. Vestibular - 2025. UFRGS.

"não queria fazer uma leitura // equivocada // mas todas as leituras de poesia // são equivocadas" (p. 52). Abro a minha resenha de um útero é do tamanho de um punho, dessa maneira como uma forma de prevenção. Confesso que tenho enorme dificuldade em ler livros de poesia. Faço essa ressalva, para antecipadamente justificar problemas de entendimento, usando para isso, as palavras da própria autora, a poeta gaúcha Angélica Freitas. Cheguei ao livro por meio de uma listagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para o vestibular de 2025. A edição que eu li é da Companhia das Letras, 2017, 9ª impressão.

um útero é do tamanho de um punho. angélica freitas. Companhia das Letras.

Procurando facilitar os caminhos, começo apresentando dados biográficos de Angélica, que, creio, ajudam na interpretação de sua poesia, ou então, fazem uma aproximação com os temas por ela trabalhados, os mesmos que foram por ela vividos. Angélica Freitas nasceu na histórica, tradicional e aristocrática cidade de Pelotas, no ano de 1973. Depois passou a ser uma espécie de cidadã do mundo, tomando a este, como o espaço de suas experiências, angústias e vivências. E também de sua poesia.

Em Porto Alegre, na sua Universidade Federal, fez o curso de jornalismo, indo depois para São Paulo exercer a profissão de jornalista, na redação do tradicional O Estado de S. Paulo. Vão vendo.... Duas vezes já usei a palavra tradicional. Rupturas à vista? Andou pela Holanda, pela Bolívia, mas as suas experiências mais marcantes ocorreram na Argentina e no México. Na revista TRIP encontrei uma entrevista sua, dada para Natasha Cortêz (Revista datada de 26.10.2012), em que ela fala dessas experiências.

Na Argentina ela conviveu com um grupo de mulheres, feministas, mergulhando no tema da construção da mulher (A mulher é uma construção) e no México, onde assistiu a uma colega, em um aborto. No México o aborto é legalizado e com cobertura da Saúde Pública. O fato que a sensibilizou foi a atitude de mulheres religiosas, católicas, que, primeiro, mansamente tentaram demover os familiares da sua prática e passando, progressivamente, para um discurso muito forte, violento. Esses fatos, segundo ela, a levaram ao tema - mulher, às suas inquietações e aos padrões que lhe são impostos. Está aí o núcleo central do livro.

Com essas questões em mente, ela retorna a Pelotas e, por um ano, se ocupa com a escrita do livro, começando com uma pesquisa sobre o corpo da mulher, quando se depara com a frase "um útero do tamanho de um punho fechado". Estava aí o título (apenas com a supressão do fechado) e o mais longo dos poemas do livro (Um útero do tamanho de um punho p. 59-66). Ela também fala sobre a razão de escrever o livro em sua cidade natal. Uma cidade provinciana, onde os papéis de gênero são bem definidos, com o patriarcado e o machismo empurrando a mulher para os espaços domésticos. Rupturas e ironias à vista?

Perguntada se ela teria uma predileção especial por algum dos poemas, ela diz que não, mas em sua resposta começa a falar sobre "Uma mulher limpa" (p.11-14), contrapondo-a com a mulher suja e feia. Ironia pura, um soco de punho fechado! No poema ela se recusa a ser a mulher padronizada, de como ela deve ser, se comportar, de se vestir, para ser mulher limpa e fofa. Para encontrá-la (essa mulher limpa e fofa) basta ir a uma loja de departamentos, ao setor de vestuário feminino, que você a encontrará. Tudo igual. Esse poema ocupa a primeira parte do livro, (e deixo uma dica, o poema mereceu a atenção de Márcia Tiburi, na revista Cult, datada de 12 de maio de 2013). Um poema que, além da ironia, também é de muita coragem nesses tempos obscuros.  Merecem também destaques - a mulher que incomoda muita gente e a ironia que a fez retornar a gracinhas de sua infância (i piri qui).

Vamos ainda ver um pouco da história do próprio livro, que além de prêmios, também ganhou um mundo, com traduções para o espanhol e para o alemão. A sua primeira edição é do ano de 2012, pela Cosac Naify, recebendo nova edição em 2017, pela Companhia das Letras. Pela data dos comentários das duas revistas, dá para perceber que o lançamento causou e, continua causando, agora com a indicação para o vestibular da grande universidade gaúcha. 

Vamos a dois pequenos aperitivos. O primeiro sobre a mulher limpa:

"porque uma mulher boa // é uma mulher limpa // e se ela é uma mulher limpa // ela é uma mulher boa"

há milhões de anos // pôs-se sobre duas patas //  a mulher era braba // braba e suja e ladrava

porque uma mulher braba // não é uma mulher boa // e uma mulher boa, é uma mulher limpa

há milhões, milhões de anos // pôs-se sobre duas patas // não ladra mais, é mansa // é mansa e boa e limpa (p.11 - tem sequência). ...

E - o segundo, sobre  a mulher em construção:

"A mulher é uma construção // deve ser

A mulher basicamente é pra ser // um conjunto habitacional // tudo igual // tudo rebocado //só muda a cor

particularmente sou uma mulher // de tijolos à vista // nas reuniões sociais tendo a ser // a mais malvestida

digo que sou jornalista

(a mulher é uma construção // com buracos demais

vaza

a revista nova é o ministério // dos assuntos cloacais // perdão // não se fala em merda na revista nova)

vocé é mulher // e se de repente acorda binária e azul //e passa o dia ligando e desligando a luz?

(você gosta de ser brasileira? // de se chamar virgínia woolf)

a mulher é uma construção // maquiagem é camuflagem

toda mulher tem um amigo gay // como é bom ter amigos

todos os amigos tem um amigo gay // que tem uma mulher // que lhe chama de fred astaire

neste ponto, já é tarde // as psicólogas do café freud // se olham e sorriem

nada vai mudar -

nada nunca vai mudar - a mulher é uma construção". (p.45-6). 

"Em seu segundo livro de poemas, publicado pela primeira vez em 2012, a poeta subverte imagens absolutamente gastas do que se espera da mulher - anunciadas em capas de revistas e em vitrines de lojas  de departamentos - para discutir, de modo transgressor, sobre questões de gênero". É o que lemos na contracapa do livro e, certamente, também a intenção da UFRGS, ao incluí-lo em sua lista para o vestibular.


quinta-feira, 13 de junho de 2024

200 livros para entender o Brasil. Folha de São Paulo. 4 de maio de 2022.

Pelos idos dos anos de 1990, estudando o tema da globalização e do neoliberalismo me deparei com o termo desterritorialização. Por que estou me lembrando desse conceito? É que em 2022 o Brasil (não) comemorou os duzentos anos de independência. A efeméride passou praticamente despercebida, mesmo tendo um governo que afirmava o princípio de "Deus, Pátria, Família e Liberdade". Ainda mais, os governantes afirmavam-se como sendo os verdadeiros patriotas. Acontece que, com a globalização e o neoliberalismo, a PÁTRIA ficou desterritorializada, e o território que antes era o da Pátria, agora passou a ser o do mercado globalizado, sem limites e fronteiras.

Quarto de despejo. Carolina Maria de Jesus. O livro com o maior número de indicações.

Essa é a razão pela qual os duzentos anos da Pátria brasileira, isto é, seu território, seu povo e suas instituições, passassem quase em branco, ao contrário do que ocorreu no centenário e no sesquicentenário, mesmo que este último fosse festejado sob o peso de chumbo da ditadura militar. Digo isso, para lembrar, que no espírito dessas comemorações, a Folha de S.Paulo fez uma pesquisa junto a 169 intelectuais sobre quais teriam sido os livros mais importantes para entender o Brasil. A classificação foi ordenada pelo número de menções recebidas. Para quem tiver interesse maior na matéria, a publicação dessa pesquisa ocorreu no dia 4 de maio de 2022.

Eu fiquei muito feliz, comigo mesmo, com os resultados obtidos, uma vez que li (ou o livro ou ensaio a respeito) e resenhei os dez primeiros da lista e a grande maioria entre os duzentos. Mesmo assim, devo dizer que ainda não conheço suficientemente este grande e maravilhoso país. Destaque-se que não são necessariamente os que melhor interpretam o Brasil e, possivelmente, numa listagem de um curso de uma universidade, ao menos entre os dez que mereceram o maior número de indicações, apareceriam outros. Os estudos das interpretações do Brasil sempre me trouxeram grande motivação. A Folha traz uma pequena síntese de cada um dos livros mencionados.

Mas vamos aos dez mais do ranking:

Em primeiro lugar: Quarto de despejo. Carolina Maria de Jesus. 1960.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/09/quarto-de-despejo-diario-de-uma.html  

Em segundo lugar: Grande sertão veredas. Guimarães Rosa. 1956. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/01/grande-sertao-veredas-joao-guimaraes.html

Em terceiro lugar: A queda do céu. Davi Kopenawa e Bruce Albert. 2015.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/04/a-queda-do-deu-palavras-de-um-xama.html

Em quarto lugar: Raízes do Brasil. Sérgio Buarque de Holanda. 1936. Uma síntese retirada do livro Um Banquete no Trópico - Introdução ao Brasil. Vol. 1. Lourenço Dantas Mota (organizador). O ensaio é de autoria de Brasílio Sallum Jr. (p. 235-256). Os dois volumes dessa introdução são altamente recomendáveis.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-11-raizes-do.html

Em quinto lugar: Casa Grande & Senzala. Gilberto Freire. 1933. Uma síntese retirada do livro Um Banquete no Trópico - Introdução ao Brasil. Vol. 1. Lourenço Dantas Mota (organizador). O ensaio é de autoria de Élide Rugai Bastos (p. 215-234).

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-10-casa-grande.html  

Em sexto lugar: Memórias póstumas de Brás Cubas. Machado de Assis. 1881.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/07/memorias-postumas-de-bras-cubas-machado.html

Em sétimo lugar: Um defeito de cor. Ana Maria Gonçalves. 2006.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/05/um-defeito-de-cor-romance-ana-maria.html

Em oitavo lugar: Macunaíma. Mário de Andrade. 1928.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/01/macunaima-uma-rapsodia-de-mario-de.html

Em nono lugar: Vidas secas. Graciliano Ramos. 1938.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/03/vidas-secas-graciliano-ramos.html

Em décimo lugar: Brasil: uma biografia. Lilia Schwarcz e Heloísa Starling. 2015.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/10/brasil-uma-biografia-lilia-m-schwarcz-e.html 

Além desses dez, faço mais algumas indicações da lista, mas sem obedecer a ordem de indicações. Entre elas cito: Os sertões. Euclides da Cunha. O povo brasileiro. Darcy Ribeiro. Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro. Triste fim de Policarpo Quaresma. Lima Barreto. Úrsula. Maria Firmina dos Reis. Escravidão. Laurentino Gomes. Os sete volumes de O tempo e o vento, de Érico Veríssimo. Os cinco volumes de Élio Gaspari sobre a Ditadura militar de 1964-1985. Além de toda a obra de Jorge Amado. E um que eu ainda não conheço, O genocídio do negro brasileiro, de Abdias do Nascimento e o livro pelo qual eu cheguei a esta pesquisa da Folha, A terra dos mil povos, de Kaká Werá Jecupé.

Deixo ainda a preciosa indicação de Antônio Cândido, numa listagem das dez mais importantes interpretações do Brasil. Ele separou por temas.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/10/dez-interpretacoes-de-brasil-indicacoes.html


segunda-feira, 10 de junho de 2024

Nada de novo no front. Erich Maria Remarque.

Não me lembro exatamente como cheguei ao Nada de novo no front, do escritor alemão, Erich Maria Remarque (1898-1970). Creio que tenha sido por algum comentário ouvido no rádio. Em todos os casos, fiquei muito satisfeito com a sua leitura, que me fez confirmar o escrito na contracapa, na qual o livro é apresentado como "o mais importante romance pacifista do século XX". A edição que eu li é da L&PM Pocket, com tradução de Helen Rumjanek. A primeira edição do livro foi de 1929 e, logo em seguida, foi levado ao cinema. A edição da L&PM que eu li é de 2023.

Nada de novo no front. Erich Maria Remarque. L&PM Pocket. 2023.

Para falar do livro, por mínimo que seja, é absolutamente necessário falar da biografia do autor, pois ela se confunde com o teor do livro. Vejamos a já mencionada contracapa: "Aos dezoito anos de idade, Erich Maria Remarque conheceu as trincheiras alemãs da Primeira Guerra Mundial. Foi ferido em três ocasiões. Saiu do conflito profundamente marcado e perplexo com a crueldade da guerra. Durante a década de 20, enfrentava a insônia carregada de fantasmas tomando notas sobre os horrores que viu e viveu no front. Os rascunhos formavam o núcleo de um romance". Este é o teor do livro, narrado ao longo de dez capítulos, sendo que cada capítulo se ocupa mais especificamente de um determinado tema. Mas vamos continuar com a sua biografia, agora de uma nota introdutória ao livro.

"... Parou de estudar aos dezoito anos para juntar-se ao exército alemão na Primeira Guerra Mundial. Nas trincheiras foi ferido três vezes, uma delas gravemente". Fora levado à guerra por um entusiasmo patriótico, incentivado pelos pais, imaginando que a guerra era também sua, mas, rapidamente descobriu que ela não o era.  Vou me ater ainda à questão biográfica, especialmente no que diz respeito às repercussões do livro, uma vez que reflete o espírito de uma época. Terrível.

"Após o conflito, lutando para sobreviver em um país completamente corroído pela guerra, exerceu diversas profissões: foi pedreiro, organista, motorista e agente de negócios, até estabilizar-se, mais ou menos, no jornalismo, exercendo funções de crítico teatral e repórter esportivo, entre outras, em alguns jornais de Hannover e Berlim". Mas o conflito não o abandonou. Ele continuou em suas longas noites de insônia, que aproveitou para escrever e, desta forma, não enlouquecer. Estes seus manuscritos foram publicados primeiramente sob a forma de folhetim e, em 1929 se transformaram em livro. Mas vamos às repercussões, lembrando dos horrores dos anos 1930, com a ascensão de tudo o que era sombrio e cinzento.

"Com o recrudescimento dos sentimentos nazistas, a perseguição a Erich Maria Remarque aumentou, pelo seu pacifismo manifesto nas suas obras (em 1931, publicou também O caminho de volta, que retratava as frustrações dos que regressavam das frentes de luta). Um ainda ascendente Joseph Goebbels e seus homens teriam interrompido sessões do filme, espalhando ratos brancos nas salas de projeção. Em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, o filme foi proibido. Remarque exilou-se primeiro na Suíça e, a partir de 1939, nos Estados Unidos. No dia 10 de maio de 1933, seus livros foram queimados na fogueira na praça da Ópera de Berlim. Em 1938, as autoridades alemãs retiraram sua cidadania alemã, por ter "arrastado na lama" os soldados da grande guerra e apresentado uma visão "antigermânica" dos acontecimentos da guerra". A essas alturas ele já estava seguro em seu exílio, mas a sua irmã pagou alto preço. Foi condenada à morte por decapitação. E, ainda sobre as repercussões vamos ao parágrafo final da apresentação biográfica:

"Remarque, que junto a Goethe é o escritor de língua alemã mais lido no mundo, faleceu aos 72 anos de idade, no dia 25 de setembro de 1970, em Lucarno, na Suíça. Não perdoou a Alemanha do pós-guerra pelo tratamento brando para com as autoridades nazistas. Constatou com amargura, por ocasião de uma visita ao seu país natal, em 1966: 'Pelo que sei, nenhum assassino do Terceiro Reich perdeu a sua cidadania alemã'". E, uma triste constatação: custa caro a luta pelo pacifismo. Mas voltamos ao livro, do qual "o protagonista é Paul, jovem alemão de família humilde que, como tantos de sua geração, deu ouvidos aos pais e professores, abandonou a escola e partiu para uma guerra que - conforme descobriria - não era a sua", como lemos na contracapa. Vamos ao livro, aos seus dez capítulos:

No primeiro, temos uma espécie de apresentação da guerra aos jovens. Paul, junto com seus companheiros, estão a nove quilômetros do front. Eram 150. Ainda restam 80. Isso, por alguns dias, propiciou uma grande anormalidade, qual seja, a comida farta. Mas a regra geral era sono e fome. A palavra covarde era usada com frequência, aplicada aos que tinham medo. Diante de roubos, atitudes autoritárias absurdas de comandantes, de ferimentos e amputações e, acima de tudo,  mortes, logo perceberam os absurdos da guerra.

O segundo capítulo é um primor de texto sobre os horrores da guerra, das vidas que ela interrompe, e sobre os absurdos da formação militar, definida como uma renúncia à personalidade e um vil embrutecimento. Sugiro uma atenta leitura das páginas 24 e 25. Eu voltarei ao tema, uma vez que - no Brasil pós extrema direita golpista - a abertura de escolas cívico militares, se transformou em meta em ascensão.

O terceiro capítulo é uma descrição do cotidiano do acampamento. A fome é companheira em todos os momentos. É pão, salada, prato principal e sobremesa de nabo todos os dias. Além disso é um suceder de futilidades e de vinculações entre a farda e o autoritarismo.

O quarto capítulo é dedicado a uma batalha no front. Nela os humanos simplesmente se transformam em animais, agindo instintivamente. Ao lado, o sofrimento dos cavalos e dos homens mutilados e mortos. Espasmos e êxtases. Cinco mortos e oito feridos.

No quinto capítulo voltamos ao cotidiano do acampamento, agora enfocando mais o ponto de vista psicológico. Vejamos uma descrição: "A guerra arruinou-nos para tudo", afirma uma dos personagens. E Paul continua: "Ele tem razão. Não somos mais a juventude. Não queremos mais conquistar o mundo. Somos fugitivos. Fugimos de nós mesmos e de nossas vidas. Tínhamos dezoito anos e estávamos começando a amar a vida e o mundo e fomos obrigados a atirar neles e destruí-los. A primeira bomba, a primeira granada, explodiu em nossos corações. Estamos isolados dos que trabalham, da atividade, da ambição, do progresso. Não acreditamos mais nessas coisas; só acreditamos na guerra" (p.74).

O sexto capítulo é dedicado à descrição dos ataques no front, um encontro, cara a cara com a morte. Somos algo parecido com seres humanos, mais como demônios em fúria. E muito preocupantes são os intervalos nos ataques, quando explodem os desconcertos da mente. Nos sentimos como mortos e nada nos poderá fazer renascer. De cento e cinquenta sobraram trinta e dois.

No capítulo de número sete, voltamos ao front, em raros momentos de paz. Estes são momentos de fuga da loucura que assola a todos. Se divertem com garotas francesas. Um leve sopro de juventude e de vida. Paul ganha uma folga de dezessete dias. Junto a família silenciada pelos aflitos da guerra, sente a percepção da mesma, a partir do imaginário popular. Os heróis na defesa da pátria. A guerra como forma de provar atos de heroísmo. O forte desejo do expansionismo... Tomar a Bélgica, o carvão francês, partir sobre a Rússia. Para Paul, um destroçar de todas as relações humanas, do mundo da afetividade e dos sonhos mínimos. Um dos mais duros capítulos.

No oitavo capítulo volta uma bela cena de ternura. No acampamento cuidam dos prisioneiros russos. Paul recebe a visita do pai e da irmã.. A mãe lhe manda bolinhos. São um raro banquete. Ele não hesita em reparti-los com os inimigos russos, feitos prisioneiros. Eles se tornam mais fraternos, talvez -, por estarem mais infelizes.   

O nono capítulo, o mais longo deles, é dedicado a reflexões sobre a guerra, quando os soldados concluem que a mesma não lhes diz respeito, mas que há gente que dela tira proveito: "Mas, então, para que serve a guerra? indaga Tjaden, Kat dá de ombros. - Deve haver gente que tira proveito dela. - Bem, eu não faço parte deles - ri Tjaden, irônico. - Nem você, nem nenhum de nós aqui" (p. 158). Outra reflexão forte está, já nas páginas finais do livro, quando afirma que os verdadeiros resultados da guerra só se conhecem no interior de um hospital e logo a seguir o jovem Paul emenda:

"Sou jovem, tenho vinte anos, mas da vida conheço apenas o desespero, o medo, a morte e a mais insana superficialidade que se estende sobre um abismo de sofrimento. Vejo como os povos são insuflados uns contra os outros e como se matam em silêncio, ignorantes, tolos, submissos e inocentes, Vejo que os cérebros mais inteligentes do mundo inventam armas e palavras para que tudo isto se faça com mais requintes e maior duração. E, como eu, todos os homens de minha idade, tanto deste, quanto do outro lado, no mundo inteiro, veem isto; toda a minha geração, sofre comigo [...]. Durante todos esses anos, nossa única preocupação foi matar. Nossa primeira profissão na vida. Nosso conhecimento da vida limita-se à morte. Que se pode fazer, depois disto? Que será de nós" (p. 200).

Do décimo capítulo, tomo as duas frases finais. "Tombou morto (Paul) num dia tão tranquilo em toda a linha de frente, que o comunicado limitou-se a uma frase: Nada de novo no front.

Caiu de bruços e ficou estendido, como se estivesse dormindo. Quando alguém o virou, viu-se que ele não devia ter sofrido muito. Tinha no rosto uma expressão tão serena, que quase parecia estar satisfeito de ter terminado assim" (p.220).

É a geração que depois enfrentou a Segunda Guerra Mundial e o mundo da Bipolaridade e da Guerra Fria. Talvez apenas a Guerra do Vietnã tenha provocado literatura semelhante. Prefiro ficar com o enunciado da contracapa: O mais importante romance pacifista do século XX.





sábado, 1 de junho de 2024

A terra dos mil povos. Kaká Werá Jecupé. Vestibular UFRGS - 2025.

As indicações de livros para os diferentes vestibulares também me levam à leituras. Dessa vez, vendo as indicações para 2025, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, me deparei com - A terra dos mil povos - História indígena do Brasil contada por um índio - de Kaká Werá Jecupé. A publicação não é recente, data de 1998, ainda no espírito dos 500 anos do "descobrimento". A pergunta que se impõe necessariamente é - mas o que havia aqui antes dessa data. Uma das teses do livro é a de que hoje temos a necessidade de pacificar os brancos, que nos trouxeram a "civilização". Isso implica num mergulho profundo na visão de mundo desses mil povos, anteriores ao processo civilizatório da cultura ocidental.

A terra dos mil povos. Kaká Werá Jecupé. Peirópolis. 2023.

A versão que tenho em mãos é a sua segunda edição, datada de 2020, em 5ª reimpressão, de 2023. O livro é da Peirópolis, mais que uma editora, uma Fundação de Educação em Valores Humanos. Kaká usou dessa Fundação para desenvolver a temática  e a visão de mundo da tradição tupi-guarani. Confesso que fiquei encantado com o livro, um dos melhores sobre a cultura indígena, junto com os livros de Darcy Ribeiro e de Manuela Carneiro da Cunha. Apenas mais recentemente temos outras obras como as de Ailton Krenak (Ideias para adiar o fim do mundo) e Davi Kopenawa (A queda do céu) escrito em parceria com o antropólogo Bruce Albert.

Outra observação a partir da leitura do livro é a do quanto que desconhecemos este mundo indígena na formação da identidade nacional brasileira e a relativamente pouca literatura existente a respeito. Digo isso, em comparação com a leitura que envolve a questão dos negros, originários da África. Nesse sentido o livro preenche uma enorme lacuna. Vale também a preocupação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul ao incluir o tema, sob a forma de livro incluído em seu vestibular.

Primeiramente algumas impressões ao longo da leitura. Uma cultura ou visão de mundo fundada na observação dos sábios da tribo e de experiências passadas de geração em geração, absorvendo a herança ancestral e em consonância com uma grande unidade com a natureza, unindo o espiritual ao material é muito diferente de uma cultura que foi prescrita. Por isso, entre eles, o maior respeito à natureza, à generosidade da Mãe-Terra. Muito semelhante com as outras culturas dos povos originários da América, de sua cultura à Pachamama. Muita semelhança também com os ancestrais africanos e mesmo com os gregos. E a força dos quatro elementos: Terra, Ar, Água e Fogo. Em suma, uma cultura oriunda da observação dos fenômenos da natureza, entrelaçados ao humano e perpetuada pelo culto à ancestralidade. Ou, uma cultura não fundada em livro de prescrições.

Entre os muitos trechos sublinhados, destaquei este, que tinha por título: "Somos parte da terra e ela é parte de nós". Diz assim: "Contudo, a maior contribuição que os povos da floresta podem deixar ao homem branco é a prática de um ser uno com a natureza interna de si. As tradições do Sol, da Lua, e da Grande Mãe ensinam que tudo se desdobra de uma fonte única, formando uma trama sagrada de relações e inter-relações, de modo que tudo se conecta a tudo. O pulsar de uma estrela na noite é o mesmo do coração. Homens, árvores, serras, rios e mares são um corpo, com ações interdependentes. Esse conceito só pode ser compreendido por meio do coração, ou seja, da natureza interna de cada um. Quando o humano das cidades petrificadas largar as armas do intelecto, essa compreensão será compreendida. Nesse momento, entraremos no ciclo da unicidade, e a terra sem males se manifestará no reino humano" (p. 64). Este mundo sucumbiu à civilização do branco, à chamada racionalidade do mundo ocidental. Lembro de Leonardo Boff, numa aproximação com esta visão, quando fala de três tipos de razão: a da inteligência, a do coração e a da espiritualidade.

Ele também nos apresenta crenças indígenas a respeito da origem do mundo e da humanidade. "De maneira geral, pode-se dizer que o índio classifica a realidade como uma pedra de cristal lapidado, com muitas faces. Nós vivemos em sua totalidade, porém só apreendemos parte dela pelos olhos externos. para serem descritas, é necessário ativar o encanto para imaginarmos como são as faces que não se expressam por palavras" (p.71).

Uma parte notável do livro apresenta uma pequena síntese cronológica da história indígena brasileira, o espírito do tempo, de 1500 a 1998, ano da escrita do livro. Pena que essa cronologia não foi atualizada até 2020, por ocasião da 2ª edição. É uma história de atrocidades e de resistências, atrocidades dos bandeirantes e de grande parte dos catequistas. De resistência pelas inúmeras lutas contra a dominação e colonização, como a experiência da República Comunista Cristã dos Guaranis e a luta presente até os dias de hoje, pela visibilidade e preservação de suas culturas e demarcação de terras. Aí ele nos apresenta os resistentes dos tempos mais recentes, como Mário Juruna, Raoni, Ailton Krenak, Álvaro Tukano e Sônia Guajajara, esta aliando à luta indígena, a luta das mulheres.

Outro belo capítulo é o das  múltiplas contribuições indígenas na formação da cultura brasileira, com destaque para a agricultura, o cultivo da terra, a classificação das plantas, contribuições para a saúde, para a ética e para a filosofia, para alcançar uma longevidade, além de seus saberes fármacos, entre outros tantos. A identidade brasileira tem as suas raízes plantadas nas três grandes culturas que a formaram, todos com os seus saberes. E, como nos lembra o grande mestre Paulo Freire, que não existem saberes superiores e inferiores, mas sim, saberes diferentes. Depois da leitura desse capítulo vi um vídeo sobre a atual agricultura biodinâmica. Impressionante a sua origem.

Ele também aborda a delicada questão religiosa, nos chamando a atenção para o conceito latino do religare. "Religar-se a alguma coisa. Com o Divino, com Deus. Foi essa a ideia trazida para esses trópicos no século XVI". Mas não foi bem isso. Werá Jecupé não se intimida em nos apontar para a terrível hipocrisia e contradição entre o pregado e a sua prática: 

"Vimos que, no decorrer deste século, essas ideias se manifestaram nos templos, nas catedrais, nas capelas, nos livros. E vê-se que essa ideia não surge na atitude da civilização. Enquanto isso, o espaço entre a ideia e a atitude tem gerado a miséria humana. A palavra corre pelo governo humano sem espírito, sem cumprimento do que se diz. Pois palavra e espírito estão longe. A voz sai morta, porém maquiada para dar a impressão de vida. A religião é surda, pois o espírito está mudo" (p. 99). Mais uma vez lembrei de Paulo Freire, numa inscrição em camiseta que ganhei numa participação em seminário sobre o grande mestre: É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática.

Com muita satisfação, quando eu li as duas últimas páginas do livro, que falam da biografia do autor, encontrei a referência de que A terra dos mil povos - História indígena contada por um índio - "...em 2022 foi listada pela Folha de S.Paulo dentre as 200 obras importantes para entender o Brasil, em levantamento de 169 intelectuais da língua portuguesa" (p. 125). Parabéns aos envolvidos que me fizeram chegar ao livro e, especialmente ao autor, pelo rico aprendizado.

E..., a partir do contido no livro, uma reflexão final. É preciso pacificar o branco e isso implica em...

Deixo ainda uma dica de Antônio Cândido, na sua indicação dos livros mais importantes para conhecer o Brasil. Para a questão indígena ele indicou o livro aqui resenhado:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/12/indios-no-brasil-historia-direitos-e.html

 E o grande clássico sobre o colonialismo, o colossal Os condenados da terra, de Frantz Fanon.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/03/os-condenados-da-terra-frantz-fanon.html



terça-feira, 28 de maio de 2024

O avesso da pele. Jeferson Tenório. Vestibular 2025. UFRGS.

Santa Cruz do Sul é uma cidade do Rio Grande do Sul com cerca de 130.000 habitantes. A imigração alemã é que deu origem à cidade, situada a uns 150 Km da capital. A cultura do tabaco sempre foi a sua grande ocupação econômica, sendo considerada, segundo a Wikipédia, a "capital mundial do fumo". Não, o post não é sobre a cidade de Santa Cruz do Sul. O post é sobre o livro O avesso da pele, do escritor carioca, radicado em Porto Alegre, Jeferson Tenório. Mas, então qual é a razão de começar o post falando de Santa Cruz do Sul?

O avesso da pele. Jeferson Tenório. Companhia das Letras.

Acontece que uma pudenda senhora desta cidade, diretora de uma escola, criticou o livro. A razão para tal, é a de que o livro continha um vocabulário de baixo nível. Essa crítica, na sequência, causou um verdadeiro furor moralista, uma violenta onda de "pudor" contra a "indecência" do livro. A onda se estendeu, atingindo todo o Rio Grande do Sul, além dos estados do Paraná e de Goiás. O livro chegou a ser recolhido das escolas, para averiguação, ou seria censura mesmo. A censura não vingou e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul incluiu o livro entre os selecionados para o seu vestibular - 2025. Antes o livro fora incluído no Programa Nacional do Livro Didático e recebido o prêmio Jabuti de 2021. A primeira edição do livro data de 2020 e já está em 17ª reimpressão. É editado pela Companhia das Letras.

Afinal de contas, do que trata o livro? Ele merece a acusação de ser um livro com "expressões, jargões e cenas de sexo inadequadas", conforme os acusadores?  É ele um livro erótico ou pornográfico? Longe disso. Pornográfica é a realidade nele descrita. Essa sim é profundamente pornográfica. E, creio, que o ocultamento dessa realidade, tenha sido o real motivo para os atentados contra o livro. Eu destacaria três grandes temas sugeridos pelo autor como a centralidade do livro. "No sul do país, um corpo negro sempre será um corpo em risco" (p. 184). Corpo negro e corpo em risco chamam para o tema do racismo e da violência policial. "Você entrava na sala dos professores. Dava bom-dia, mas ninguém te respondia. Estavam com preguiça, sonolentos, tristes ou indignados por terem de estar ali" (p. 163). Eis o terceiro grande tema. Em síntese: Racismo, violência policial e o fracasso do sistema educacional.

Desde os gregos até os modernos, como nos atestam Sófocles, Freud e Kafka, entre tantos outros, a relação entre pais e filhos, sempre foi uma relação complexa e difícil. Isso não foi diferente com Pedro, um aluno do curso de arquitetura de uma pequena faculdade de Porto Alegre. Pequena, mas a única que ele tinha condições de pagar. Pedro era filho de Henrique Nunes, um professor da rede pública do ensino do estado do Rio Grande do Sul, em escolas, repito, em escolas  (no plural) de periferia de Porto Alegre e de Martha, sendo ela uma tradutora. E..., negros. Pedro está em busca da sua identidade e para isso mexe no passado de seus pais, do pai de maneira mais particular. Famílias desestruturadas, sonhos negados, tropeços repetidos. Insegurança a toda prova, além  de amores frustrados e fracassados. Timidez diante de arrogâncias. Eis o teor. Mas o vejamos também, o que está dito na contracapa:

"O avesso da pele é a história de Pedro, que, após a morte do pai, assassinado numa desastrosa abordagem policial, sai em busca de resgatar o passado da família, refazendo os caminhos paternos. Com uma narrativa sensível e por vezes brutal, Jeferson Tenório traz à superfície um país marcado pelo racismo e por um sistema educacional falido, um denso relato sobre as relações entre pais e filhos". Na orelha do livro encontramos uma descrição do pai, confundido com a sua própria vida: "a vida de um homem inteligente e sensível, inquieto, abalado pelas fraturas existenciais da sua condição de negro em um país racista, um processo de dor, de acerto de contas, mas também de redenção e, dentro desta, de superação e liberdade".

Uma das passagens mais belas do livro ocorre quando Henrique, em uma de  suas aulas, rompe com a aula prescrita (No Paraná seria o uso compulsório de plataformas) e mergulha em personagens da literatura e os identifica com a realidade vivida pelos alunos e, em troca, deles recebe atenção e reconhecimento. E isso lhe proporciona alegria. Ele se sente autor de suas aulas, em sintonia com a realidade dos alunos ( Foi Raskólnikov, de Crime e Castigo, que lhe permitiu a abordagem do tema da criminalidade e da culpa). E, caminhando pela São Petersburgo do personagem ele irá ao encontro da morte, numa abordagem policial. Em seu funeral, um aluno lhe renderá tributo:

"Um rapaz jovem, negro, que se identificou como ex-aluno, pediu para falar: eu queria começar dizendo que eu conheci o professor Henrique Nunes na sétima série, eu tinha doze anos. E não tenho como medir tudo que ele fez por mim, tudo que ele fez por inúmeros alunos, tudo que ele me ensinou. Estou arrependido de não ter dito isso a ele. Quero dizer também que o professor Henrique Nunes não morreu por mera circunstância da vida, morreu porque era alvo de uma política que persegue e mata homens negros e mulheres negras há séculos" (p. 179-180).

O livro tem quatro capítulos, subdivididos em pequenos sub capítulos. Eis os títulos: 1. A pele; 2. O avesso; 3. De volta a São Petersburgo (a cidade do personagem de Dostoiévski); 4. A barca (referência a viatura policial). São 189 páginas.

Mas, quero encerrar este post, com uma frase, já do primeiro sub capítulo da primeira parte do livro. Com ela pretendo prestar uma homenagem a todas as professoras e professores, que ainda resistem e ainda encontram alegria e esperança no ato de educar e que, junto com os alunos, compartilham o gosto pelos livros, por acreditarem na sua real força e grandeza na construção do humano. "Na verdade, você nunca soube ir embora. Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas" (p. 13). Se, de um lado, a homenagem, do outro, o repúdio aos que tolhem, aos que NÃO "acreditam que os livros poderiam (podem) fazer algo pelas pessoas".

E como recentemente reli a obra de Érico Veríssimo, nela encontrei, em Solo de clarineta, vol. 2 - algo relativo ao fato de também ele responder a questão de ter sido considerado um escritor erótico ou pornográfico. A sua resposta é acima de tudo uma acusação lindíssima:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/05/e-erico-verissimo-um-escritor-erotico.html



sexta-feira, 24 de maio de 2024

Um defeito de cor. Romance. Ana Maria Gonçalves.

Há uns dois anos eu dediquei um bom tempo para estudar as principais vozes da abolição da escravidão no Brasil. Entre elas figurava a de Luís Gama, o temido Dr. Gama, o grande libertador de escravizados, com base na Lei de 1831, acertada com os ingleses, que declarava livres os escravizados que chegassem ao Brasil, a partir daquela data. Era a famosa lei para "inglês ver". Mas não para o Dr. Gama. Foram mais de 500, os libertos por ele. 

O Dr. Gama tem uma história singularíssima. Ele nasceu na Bahia, filho de mãe escravizada liberta e de um rico comerciante português, que se arruinou com a bebida e o jogo. Premido pelos cobradores, vendeu o próprio filho como escravizado. Sabe-se que ele foi trazido para São Paulo, que fugiu, que se alfabetizou e se tornou um importante personagem de nossa história. Sabe-se também que muito procurou por sua mãe, Luísa Mahin, mas que não a encontrou.

Um defeito de cor. Ana Maria Gonçalves. Record. 2024. 39ª edição.

Pois bem. Em 2006, a escritora mineira Ana Maria Gonçalves, publicou um romance sob o título, Um defeito de cor. A edição que acabo de ler é de 2024 e é a edição de número 39. Fato raro num país em que os leitores estão minguando. Qual é o tema de Um defeito de cor? Por que será que ele teve tão grande repercussão? Qual é o seu tema. A resposta é simples. De forma romanceada e repleta de história real, Ana Maria Gonçalves nos relata a história da menina Kehinde, menina capturada no atual Benim e trazida para a Bahia, na condição de escravizada. O seu nome brasileiro foi Luísa. É a Luísa Mahin, a mãe de Luís Gama.

A história de Kehinde, ou de Luísa, é narrada em dez capítulos, ao longo de 950 paginas, de leitura que se torna praticamente ininterrupta, tal a sua força narrativa. Que menina e que mulher extraordinária!. Uma vida dedicada à sobrevivência e à busca do filho. Quanto à sobrevivência, essa tarefa foi superada com bastante facilidade, sim, reafirmo, com bastante facilidade, em meio às condições mais adversas. De volta à África, tornou-se empresária, atuando como comerciante de armas e no ramo da construção civil. Era uma espécie de rei Midas, em sua versão feminina. Quanto a busca do filho... É a parte principal e o objetivo da escrita do livro.

Coube a Millôr Fernandes a escrita das orelhas do livro, como forma de sua apresentação. Entre essas linhas lemos: "Um defeito de cor narra a história de Kehinde, negrinha de 8 anos capturada no Daomé (Benim), trazida pro Brasil, rodando por Bahia, Maranhão, Santos, São Paulo, e por aí vai, nesse mundo perdido que era este país.

A saga de Kehinde atravessa oito décadas, mais ou menos o mesmo tempo que o negro Damião vive no romance de Josué Montelo, ouvindo Os tambores de São Luís, romance já merecidamente clássico.

Rebeliões, violências inauditas - como arrancar olhos de escravas e castrar escravos por ousarem ser rivais sexuais de senhores, a negritude muçulmana, um mundo que se debate, com liberdades falsas, mas também verdadeiras como a da própria Kehinde, que a conquista aprendendo a ler, escrever e falar inglês. E lhe permite fugir pro Maranhão e pro Recôncavo, e até pro Rio (1840 - emocionante reconstituição), na procura desesperada de um filho vendido.

Madura e liberta mesmo em sua alma, Kehinde volta à África, vira 'industrial', casa com negro 'inglês', e, já velha, volta ao Brasil. Aonde não chega".

Fiz questão absoluta de transcrever o trecho em que Millôr acentua que o livro  trata de "rebeliões, violências inauditas...", para ressaltar o que mais me impressionou na leitura do livro, que me fez pensar comigo mesmo, que a sua leitura é fundamental para se ter um quadro preciso do que foi o violento sistema da escravidão. Isso é visto desde a captura na África, a viagem para a América, a venda em mercados cuja mercadoria eram os próprios seres humanos, além do cotidiano cruel da escravidão. E... o que a moral dominante permitia e absolvia com generosidade aos escravocratas. Uma história de muita dor e sofrimento. O livro também aborda a questão da volta dos escravizados para a África, uma história cheia de complicações. As incongruências do ser humano.

Se mais acima eu usei a expressão - "Rei Midas, em versão feminina", para a "empreendedora" Kehinde, confesso que a questão dessa relativa facilidade me trouxe um certo desconforto (e os outros?). Em tudo o que ela "empreendeu", ela sempre foi muito bem sucedida. Ela virou 'industrial', como aponta Millôr. Uma industrial da construção civil. Por outro lado, esses seus êxitos lhe permitiram ajudar a muita gente. Mas voltemos ao livro, aos seus dez capítulos, ao longo das suas 950 páginas, além do belíssimo prólogo.

Esse prólogo tem por título: - Serendipidades! Magnífico. Uma viagem pode levar a muitas coisas, para além dos propósitos iniciais, planejados para esta mesma viagem. Isso explica a origem do livro. Em uma viagem a ilha de Itaparica ela encontrou uma série de manuscritos que resultaram no teor básico do romance: A história de Kehinde, a mãe do Dr. Luís Gama.

Os dez capítulos não tem títulos. Em compensação, a cada duas ou três páginas, tem uma palavra que sintetiza as páginas seguintes, fato que auxilia bastante a leitura. Vou aqui tentar dar, não um título aos capítulos, mas apontar para o fato mais importante de cada um deles. 

Assim o capítulo de número um aponta para a captura na África e a travessia para o "estrangeiro". O de número dois descreve  o desembarque em São Salvador, a venda e a ida para uma fazenda na ilha de Itaparica. O de número três, por sua vez, mostra cenas do cotidiano da escravidão, escravizados domésticos e do campo, das rebeliões e o fato de ficar pajeada, por obra de seu sinhô e, ainda, a morte deste. O quarto capítulo nos apresenta "Banjokô, o filho, a Sinhá e a moradia em São Salvador, onde ela será escrava de ganho, em casa de ingleses. Lá ela aprende a fazer cookies, que tanto a ajudarão em breve. No quinto capítulo é apresentada a sua relação com a Sinhá, a ajuda de Oxum na compra de sua alforria, o início de suas atividades econômicas (cookies e padaria), o encontro com os muçurumins, com o padre Heinz, com um babalorixá e Alberto. 

O capítulo de número seis é dedicado à relação com  Alberto, a gravidez e o nascimento de um menino, que Kehinde sempre tratará por "você". Mostra também que a relação começa a se complicar, com o envolvimento de Alberto com jogo e bebida. Alberto se casa com moça branca. O capítulo de número sete é repleto de dificuldades para Kehinde. Economicamente ela vai bem, mas com Alberto tudo vai mal, só e sem dinheiro. Banjokô morre e ela se envolve em rebeliões com os muçurumins, e depois, com os federalistas. Fugas

No oitavo capítulo encontraremos Kehinde em suas fugas. Para Itaparica, para o Maranhão e para Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Soube da venda de "você" e inicia a sua desesperada busca. De Salvador ruma para o Rio de Janeiro, Santos, São Paulo e Campinas e, finalmente, para a África. O capítulo de número 9 se passa todo ele na África e mostra o seu envolvimento com o "negro inglês" John, de quem terá gêmeos Mostra também o enorme sucesso financeiro, com o comércio de armas e de casas. O capítulo dez é dedicado aos gêmeos e a sua tentativa de volta ao Brasil em busca de "você".

Cada capítulo tem em torno de cem páginas, uns mais e outros menos. O meu intuito, com a apresentação do principal fato, ou fatos, de cada capítulo é oferecer um primeiro contato com o teor do livro, fatos já bastante conhecidos em seus títulos, mas não em seus detalhes, uma incitação à leitura, portanto. Ainda devo dizer que o livro, na qualidade de romance, é uma mistura de ficção e realidade e, digo mais, de muita história. Possivelmente seja o grande livro, aquele que melhor mostra os horrores do que foi a escravidão no Brasil. Quanto a leitura, uma fluência incomparável, leitura de um fôlego só, embora todo o seu volumoso e rico conteúdo. Recomendo também demais as quase três páginas de indicações bibliográficas, as bases para a pesquisa do presente livro.

Simplesmente um livro necessário. O fato de estar na 39ª edição explica o seu extraordinário êxito. Há alguns anos eu estive em São Luís do Maranhão. Lá me deparei com o livro citado pelo Millôr, na orelha do livro. Deixo a sua resenha:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/07/a-saga-da-raca-negra-os-tambores-de-sao.html


    

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Érico Veríssimo declara princípios básicos. Sociedade e política. Solo de clarineta. Vol. 2.

"Qual deve ser a posição do escritor diante dos problemas sociais, políticos e econômicos de sua época? Essa é a pergunta que continua no ar, sempre atual, e jamais respondida de modo a satisfazer a todos".

Érico Veríssimo responde a esta instigante pergunta em seu livro de memórias Solo de clarineta, volume 2. A resposta é clara e direta e sem subterfúgios ou rodeios. Questão de convicção e de vida militante em favor da democracia, dos direitos fundamentais básicos e da liberdade e contra todos os excessos e arbítrios de poder, seja de direita ou da esquerda. Publico este texto em reverência ao grande escritor e para que seja melhor compreendido entre seus milhares de leitores e também entre os iniciantes na pesquisa. O seu compromisso é "com o homem e a vida". O texto é belíssimo, de um humanismo profundo. Vejamos:


Solo de clarineta - memórias. Érico Veríssimo. Companhia das Letras.

"Para principiar, direi que só quem pode e deve decidir sobre o comportamento político do escritor é ele próprio. Se quiser permanecer alheio a todos esses problemas e inquietações na sua Torre de Marfim e puder viver sem remorsos nessa ausência do mundo, que o faça e tenha bom proveito. Rechaço a ideia de que o escritor deve estar necessariamente a serviço dum partido político, mas aceito a de que ele possa fazer isso, se assim entender. Fala-se muito em literatura engajada. Repito mais uma vez que, o engajamento dum escritor deve ser com o homem e a vida, no sentido mais amplo e profundo dessas duas palavras.

É muito comum ouvir-se ou ler-se que eu jamais me comprometo ou defino politicamente. Ridículo! Creio que durante estes quarenta últimos anos me tenho manifestado claramente sobre problemas e acontecimentos políticos e sociais de maneira que me parece coerente e inequívoca, sempre a favor da liberdade e dos direitos do homem e contra todas as formas de opressão - coisas que nem sempre poderia fazer se fosse obrigado a seguir obedientemente a linha sinuosa e muitas vezes autocontaditória dum partido político.

Não tenho gosto nem talento para a política ativa. Restrinjo-me a princípios de ordem geral. Claro, sei que se eu me aproximar do leito em que um doente agoniza e romper a berrar que amo a saúde e a vida e detesto a doença e a morte - esses protestos ruidosos em nada poderão ajudar o moribundo, que necessita, isso sim, dum medicamento ou de uma intervenção cirúrgica de urgência para salvar-lhe a vida. Parece-me, entretanto, que também é importante não cessar de proclamar a necessidade de curar o organismo enfermo sem mutilações inúteis.

Afinal, em que posição política me encontro? Considero-me dentro do campo do humanismo socialista, mas - note-se - voluntariamente e não como um prisioneiro.

Por que socialista? - hão de perguntar. Porque o extremismo da esquerda e o da direita não passam de faces da mesma moeda totalitária; e porque o centro é quase sempre o conformismo, a indiferença, o imobilismo.

Poderá também o leitor perguntar como pode um homem que tanto preza a liberdade inclinar-se para o socialismo... Ora, é um erro imaginar que socialismo e Liberdade são termos ou ideias que se contradizem. Basta ler o que se escreve  hoje na Polônia, na Tchecoslováquia e na Iugoslávia, em suma, é suficiente inteirar-se a gente do pensamento dos neomarxistas para compreender que Stálin e em certos casos até mesmo Lênin deturparam as teorias de Karl Marx. Como resultado dessa deturpação, na Rússia soviética stalinista criou-se uma nova classe de privilegiados, uma burocracia desumana e inumana, e um novo tipo de alienação de massas, tudo isso em nome da ditadura do proletariado e do futuro do socialismo no mundo.

A dialética marxista é inseparável de seu humanismo. Segundo Marx, uma sociedade não pode ser livre se todos os indivíduos que a compõem não forem também livres. Quando o autor d'O capital falava em 'prática socialista', referia-se especificamente à liberdade. E essa noção de liberdade não foi apenas o ponto de partida de suas ideias, mas também o seu objetivo mais alto.

Karl Marx escreveu também que a teoria não deve separar-se da prática, nem o conhecimento divorciar-se da ação, e que o sistema social não pode ficar alienado dos objetivos espirituais. Segundo ele, só podem existir homens independentes dentro dum sistema social e econômico cujas abundância e racionalidade tenham conseguido liquidar a 'pré-história' e inaugurar a era da 'história humana' que há de redundar no peno desenvolvimento da sociedade.

Não sou sociólogo nem historiador e muito menos economista, mas, com um pouco de intuição  e uma certa dose de senso comum, cheguei cedo à conclusão de que seria absurdo aceitar qualquer sistema político-econômico que exige o sacrifício do homem de hoje em benefício dos chamados 'interesses mais altos do amanhã'.

Segundo o socialismo marxista, o homem como homem não deve ser imolado em benefício da humanidade do futuro. (Tenho escrito repetidamente que o homem é um ser real, a humanidade uma entidade abstrata, e a 'humanidade do futuro' - acrescento - é uma dupla abstração).

Marx, em seus escritos de que o stalinismo preferiu não tomar conhecimento, pois isso não convinha ao seu 'realismo político' - disse que o homem será sempre o objetivo derradeiro da tendência para uma sociedade verdadeiramente humana, tanto na teoria como na prática. E é por isso que os pensadores a que me referi se rebelam contra o pragmatismo burocrático e tecnológico e contra todas as formas de desumanização e alienação do povo.

Outra afirmação curiosa desses escritores neomarxistas é a de que o socialismo não é o objetivo final de Marx, mas uma aproximação. O seu alvo supremo, repita-se, é uma sociedade em que a desumanização cesse e o trabalho do homem se emancipe por completo, fornecendo-lhe todas as condições necessárias à sua autoafirmação.

O sociólogo e filósofo iugoslavo Mihailo Markovic define o humanismo como 'uma filosofia que procura resolver todos os problemas na perspectiva do homem, e que abrange não apenas questões antropológicas, como a da natureza humana, a alienação, a liberdade, mas também ontológicas, epistemológicas e axiológicas'.

Em conversa com amigos muitas vezes lhes disse que, a meu ver, o que faltava à análise marxista da sociedade era uma psicologia. Li com grande satisfação um ensaio em que Erich Fromm levanta essa ideia com sua autoridade e habitual lucidez. Escreveu ele textualmente: 'A teoria de Marx necessita de uma psicologia do homem'.

Acrescenta que os marxistas se convenceram finalmente do fato de que o socialismo tem de também satisfazer à necessidade que a criatura tem dum sistema de orientação e devoção, e que portanto o socialismo tem de tentar responder a perguntas como 'Quem é o homem? Qual o sentido e objetivo de sua vida?'. Acentua Fromm a importância das normas éticas e de desenvolvimento espiritual que ultrapassem frases vazias como 'É bom tudo quanto possa servir à revolução, ao estado proletário, à evolução histórica, etc...etc...etc...'.

Afirmou Marx que a raiz do homem é o próprio homem. Erich Fromm insiste em que uma teoria cujo centro seja o homem não pode continuar como teoria  sem uma psicologia, sob pena de perder contato com a realidade humana.

No mesmo ensaio Fromm refere-se também a um problema que muito me preocupa, principalmente quando me encontro nos Estados Unidos: o do caráter do Homo consumens criado pelas sociedades altamente industrializadas. O objetivo do consumidor não é o de possuir coisas, mas o de consumir cada vez mais e mais, a fim de com isso compensar seu vácuo interior, sua passividade, sua solidão, seu tédio e sua ansiedade. E aí estão as empresas de publicidade, que dispõem de meios cada vez mais insidiosos e engenhosos para criar nas massas necessidades artificiais que acabam por escravizá-las.

Ora, no Brasil o fenômeno apenas começa a esboçar-se. O que me preocupa por ora não é o ainda reduzido número de nossos consumidores, mas sim os muitos milhões de consumidores que nos cumpre libertar da miséria, da fome, da doença e do analfabetismo.

Este não me parece o lugar apropriado, nem eu sou o homem indicado, para propor e desenvolver um programa político econômico para resolver os problemas cruciais do Brasil, nem eu tenho a pretensão de ser portador da fórmula mágica para a nossa salvação.

Achei, isso sim, que devia fazer aqui mais uma vez uma declaração de princípios, e repetir que, se por um lado acredito na necessidade de todos os escritores e artistas terem uma consciência política e social de que não cabe ao romancista apresentar soluções para as crises econômicas, políticas e sociais em que nos debatemos.

E, para encerrar este capítulo, quero transcrever as palavras do professor H. Marcuse, com as quais me encontro de perfeito acordo: 'A realidade humana é um sistema 'aberto'. Nenhuma teoria, seja marxista ou outra qualquer, pode 'impor-lhe' uma solução'". Páginas 262-266.

Toda a obra de Veríssimo debate estas questões, através de seus personagens que encarnam as diferentes posições. Creio também que no Solo de clarineta, vol. 1, quando Érico relata suas viagens por Portugal, na época salazarista, essas suas posições estão afirmadas com muita clareza. Deixo a resenha:


Deixo ainda as resenhas de Solo de clarineta - memórias. vol. 2, do qual foi retirado este texto:


e dos sete volumes de O tempo e o vento: