domingo, 17 de março de 2024

A abolição. Pelos personagens de O Continente. Vol. 2. Érico Veríssimo.

Creio que uma das maiores virtudes de Érico Veríssimo como escritor, é o fato de dar voz aos seus personagens. E como os personagem sempre são vários, está garantida a pluralidade de vozes e de opiniões. Como o segundo volume de O Continente, da trilogia de O tempo e o vento se ocupa do final do Segundo Reinado, os temas da República e da abolição da escravidão estão onipresentes. Por isso, o post especial.

O tempo e o vento. (parte I). O Continente (Vol. 2). Companhia das Letras.

No ano de 1884, a localidade de Santa Fé é elevada a condição de cidade, sede de municipalidade. Os festejos serão enormes. Uma das solenidades ocorrerá no Sobrado da família Terra Cambará, agora sob a liderança de Licurgo, que dará manumissão aos seus escravos. A descrição que Érico Veríssimo faz é riquíssima em seus detalhes e me fez lembrar o grande abolicionista Joaquim Nabuco de que - não bastaria abolir a escravidão, seria também necessário abolir a sua obra -. A escravidão permanecerá entranhada na mente até dos próprios abolicionistas, mesmo daqueles que se anteciparam ao ato oficial do 13 de maio de 1888, como ocorreu na solenidade do Sobrado.

Como creio ser um tema candente, mesmo com tanto tempo após a abolição, tomo a liberdade de pedir licença ao Érico para uma pequena transcrição do momento em que se dá a solenidade no Sobrado, que bem mostra o indicativo de Joaquim Nabuco de que a obra da escravidão estaria ainda longe de ocorrer, ou melhor, ainda não ocorreu, mesmo nos dias de hoje. Existem, isso sim, inúmeros disfarces. Mas, vamos ao texto:

"A entrega dos títulos de manumissão foi feita no meio dum silêncio grave e comovido. Os escravos estavam no quintal, junto da porta da cozinha, e entravam à medida que seus nomes iam sendo chamados. Sob o espelho da sala de visitas, os títulos empilhavam-se em cima do consolo de mármore. Toríbio Rezende lia a lista de nomes: 'Antônio Tavares! Marcolino Almeida! Terêncio Rodrigues!', e muitas vezes Licurgo tinha que soprar-lhe ao ouvido o apelido do negro chamado, pois muitos daqueles homens já haviam esquecido os nomes de batismo. 'Maneco Torto'!, gritava Toríbio, 'Dente de Porco! Inácio Moçambique!' Por entre alas de convidados os pretos entravam na sala, piscando os olhos à luz forte, e acanhados, de cabeça baixa, sem ousarem olhar para os lados, aproximavam-se de Licurgo, recebiam o título e beijavam-lhe a mão; alguns ajoelhavam-se depois diante da cadeira em que Bibiana estava sentada e levavam aos lábios a fímbria de sua saia. Retiravam-se, estonteados, buscando aflitamente a porta da cozinha. Muitos dos escravos choraram ao receber a carta de alforria. Houve, porém, um deles que entrou de cabeça erguida, olhou arrogante para os lados, como num desafio, recebeu o título e, sem o menor gesto ou palavra de agradecimento, fez meia-volta e tornou a voltar para o quintal, impassível como um rei que acaba de receber a homenagem a que tem direito. Licurgo acompanhou-o com um olhar furibundo. Era o João Batista! Merecia uns bons chicotaços na cara. Sempre fora assim altivo e provocador. Era um bom peão, um bom domador, um trabalhador incansável, mas tinha um jeito tão atrevido, que por mais de uma vez Licurgo estivera prestes a 'ir-lhe ao lombo'.

A chamada continuava. Negros entravam e saíam. Havia entre eles homens e mulheres, moços e velhos. Licurgo começava a irritar-se. A cerimônia não só se estava prolongando demais, como também não oferecia metade da emoção que ele esperava: era uma coisa tão lenta e aborrecida como uma eleição. 'Bento Assis', gritou Toríbio. E, como o preto chamado não aparecesse, ele repetiu em voz mais alta: 'Bento Assis!'. O peão que estava à porta da cozinha gritou para fora: 'Bento Assis!'. Nenhuma resposta veio. Licurgo, que sacudia a perna nervosamente, bradou de repente: 'Bento Burro! Onde está esse animal?. 'Bento Burro', repetiu o peão. Então uma voz soturna saiu do meio dos escravos que esperavam, no sereno: 'Pronto, patrão!'. E entrou na casa.

E o desfile continuou. Licurgo mal podia conter sua impaciência. Não conseguia convencer-se a si mesmo de que aquela era uma grande hora - uma hora histórica. Não achava nada agradável ver aqueles negros molambentos e sujos, de olhos remelentos e carapinha encardida a exibir toda a sua fealdade e sua miséria naquela casa iluminada. E como eram estúpidos em sua maioria! Levavam a vida inteira para atravessar a sala e depois ficavam com o papel na mão, atarantados, sem saber que fazer nem para onde ir. Era preciso que ele gritasse: 'Agora vá embora. Não! Por ali. Volte pro quintal.

O pior era que o Sobrado já começava a cheirar a senzala.

Foi com um suspiro de alívio que entregou o último título.

E quando o último escravo desapareceu na cozinha, houve um momento de silêncio e imobilidade, como se os convidados esperassem de Licurgo algumas palavras. Mas quem falou primeiro foi a velha Bibiana:

- Agora abram as janelas para sair o bodum!

Licurgo mandou erguer as vidraças. Estava meio decepcionado. Esperava durante meses por aquele instante e no entanto ele não lhe trouxera a menor emoção. De repente viu-se cercado por amigos que lhe apertavam a mão e o abraçavam efusivamente. Um deles gritou: 'Viva o Clube Republicano! Viva o nosso correligionário Licurgo Cambará!'. Os outros gritaram em coro: 'Viva!' E começaram a bater palmas estrepitosamente. Os gaiteiros que estavam no vestíbulo romperam a tocar uma marcha. Licurgo, então, sentiu com tamanha força a beleza daquele instante, que esteve quase a rebentar em lágrimas. Foi com esforço que se conteve. Entregou-se passivamente àqueles abraços, alguns dos quais chegavam a cortar-lhe a respiração. Não ouvia as palavras que lhe diziam. Só sabia que aquele momento era glorioso, raro, grande. Com um gesto de suas mãos tinha dado liberdade a mais de trinta escravos! Lá fora estava acesa uma grande fogueira ao redor da qual os negros - agora homens livres, felizes e dignos - iam dançar, cantar, comer e beber!.

Uma preta de turbante vermelho, os dentes arreganhados, andava por entre os convidados com uma bandeja cheia de copos de cerveja. Alguém deu a Licurgo um copo, que ele apanhou e levou avidamente aos lábios, bebendo-lhe todo o conteúdo dum sorvo só, Ficou depois lambendo distraidamente os bigodes, a olhar em torno, meio zonzo, sentindo um calor e um tremor de febre, as ideias confusas e sempre aquela vontade absurda de chorar. Bibiana aproximou-se dele e abraçou-o e - pela primeira vez em muitos anos - seus lábios úmidos pousaram na face do neto num beijo chocho.

- Deus te abençoe, meu filho - balbuciou ela.

Licurgo inclinou-se, encostou uma das faces na cabeça da avó e rompeu a chorar como uma criança. Bibiana arrastou-o para o vestíbulo e depois para o escritório, cuja porta fechou apressadamente. Não queria que os convidados vissem aquele acesso de nervos de seu rapaz.

- Que é isso, Curgo? Vamos, enxugue as lágrimas. Ora, já se viu?

Licurgo passava o lenço nos olhos e nas faces e fungava, furioso consigo mesmo por ter fraquejado, e já com uma vaga vontade de brigar. Mas brigar com quem e por quê?

- Vamos botar essa gente na mesa! - exclamou de repente. - Devem estar morrendo de fome.

Puxou bruscamente a avó pelo braço, e sempre fungando, com vontade de dizer nomes feios a seus convidados e ao mesmo tempo de abraçá-los, voltou para a sala, exclamando:

- Vamos comer, minha gente! Vamos pra mesa! esta casa é de vassuncês!". Páginas 354-356.

Deixo também a resenha do vol. 2:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-parte-i-o-continente.html

 

quarta-feira, 13 de março de 2024

O tempo e o vento. (parte I). O CONTINENTE. Vol. 2. Érico Veríssimo.

Na contracapa do volume 2 de O continente, temos uma esclarecedora síntese desse segundo volume de O Continente, a primeira parte da trilogia de O tempo e o vento. Vejamos: "O Continente - vol. 2 conclui a primeira parte de O tempo e o vento. A trilogia - formada por O Continente, O retrato e O arquipélago - percorre um século e meio da história do Rio Grande do Sul e do Brasil acompanhando a formação da família Terra Cambará.

O tempo e o vento (parte I). O Continente (Vol. 2). Companhia das Letras.

Aqui, as lutas da Revolução Federalista e a guerra no casarão chegam a um desfecho dramático na fictícia Santa Fé. Numa guerra sem quartel, Bibiana confronta-se com a nora, a enigmática Luzia, pela posse do Sobrado e do menino Licurgo, herdeiro da família. Distanciado, meticuloso, o médico alemão Carl Winter a tudo observa, fascinado pela tenacidade daquela gente".

Por essa pequena síntese já se faz sentir que Bibiana, Carl Winter, Luzia e Licurgo serão os personagens que ocuparão as principais páginas desse segundo volume. Vejamos os seus títulos, ou capítulos: 1. A teiniaguá; 2. O Sobrado V; 3. A guerra; 4. O Sobrado VI; 5. Ismália Caré; 6. O Sobrado VII. Grande parte do livro é tomada pela história - ou lenda - da Teiniaguá, ou A Salamanca do Jarau, lenda sempre presente na obra de Veríssimo. Vou tentar contar, em poucas palavras, essa lenda, mas na página 236, temos uma definição muito apropriada, dada pela própria Luzia, a Teiniaguá: "As pessoas normais, são as mais sem graça do mundo". Luzia tinha muita graça. Ela simplesmente encantava a todos, mas também a todos enfeitiçava. Não foi diferente com Bolívar, embora toda a permanente vigilância de Bibiana, no zelo com o seu neto Licurgo, o filho de Bolívar e de Luzia. Era preciso afastar dele a sua influência.

Vamos a lenda da Teiniaguá - ou da Salamanca do Jarau. Vou recorrer à Wikipédia para contá-la. É uma lenda que conta a história de uma princesa moura, transformada em bruxa, vinda de Salamanca para o Cerro do Jarau (Quaraí). Na lenda gaúcha ela foi transformada em lagartixa, que tinha na cabeça uma pedra brilhante, que fascinava e atraía os homens. Era uma princesa afortunada, mas que na qualidade de bruxa, era meio endemoniada. Arruinava os homens que dela se aproximavam. Pois bem, agora vamos à história de Luzia.

Apareceu em Santa Fé um tal de Aguinaldo Silva, um homem com muito dinheiro e poucos escrúpulos para ganhá-lo. Diziam-no pernambucano e agiota. Para mostrar-se afortunado, mandou construir o maior sobrado de Santa Fé. Ele veio com a sua neta, Luzia, a famosa Teiniaguá. Para o médico alemão, Dr. Carl Winter, ela era Melpômone, uma das nove musas gregas, que representava a tragédia. Tudo está armado para o Érico deslanchar no seu enredo. A tragédia estava anunciada. Bolívar se encanta por Luzia, moça de fino trato, educada na corte no Rio de Janeiro. Bibiana se transformou em permanente vigilante para amenizar a tragédia que seria esse casamento, já que não conseguia diminuir em nada a paixão de Bolívar pela moça. É o primeiro capítulo.

No segundo capítulo (O Sobrado V), vamos encontrar Licurgo Cambará, o chefe dos legalistas, comandar a resistência contra o cerco dos federalistas, disposto aos maiores sacrifícios em nome da honra e de não se dar por vencido. Terá uma grave baixa.

O terceiro capítulo, menos longo apenas que o primeiro, se ocupa de contar as loucuras da Guerra do Paraguai (1864-1870). A família Terra Cambará terá uma vítima. Florêncio voltará mutilado. Este capítulo traz uma das grandes marcas presentes na obra: os diálogos. A discussão envolve juiz, padre, militar e médico. Assim está garantida a pluralidade de opiniões. Um major, que está de olho em Luzia, agora já viúva, apresenta Caxias como o Bismarck brasileiro. A vigilância de Bibiana não permite a aproximação entre Luzia e o major. Essa guerra entre as mulheres será vencida por Bibiana. A guerra no Sobrado se arrastava por mais tempo do que a própria Guerra do Paraguai. No itálico, que segue ao capítulo, Fandango (que personagem fantástico!), o capataz da fazenda do Angico, conta histórias de suas andanças pelo Rio Grande.

No quarto capítulo, de novo no Sobrado (Sobrado VI), a espera continua. O cerco dos maragatos continua, impondo aos moradores do Sobrado, fome, cansaço e espera. Para divertir e distrair as crianças, Fandango contará as lendas do folclore gaúcho.

O quinto capítulo é dedicado a Ismália Caré. É mais um sobrenome, o dos Caré, que se juntará aos Terra Cambará. São as aventuras amorosas de Licurgo Cambará, heranças do espírito aventureiro do Capitão Rodrigo. Essas aventuras são contadas em meio as festividades programadas na agora cidade de Santa Fé, elevada à condição de município. Grandes festejos não impedem as rivalidades entre os Amaral e os Terra Cambará. Fortes entreveros na luta entre cristãos e mouros. Nos festejos o abolicionista e republicano Licurgo Cambará libertará os seus escravos. Abolição e República serão os grandes temas em debate (A abolição merecerá um post especial). Isso ocorreu no ano de 1884. Em itálico, José Lírio exaltará o monarca D. Pedro II e o personagem gaúcho de Gaspar Silveira Martins, o grande personagem da Revolução Federalista (1893-1895).

O segundo volume da parte 1 da trilogia, termina no Sobrado (Sobrado VII). Licurgo está prestes a estender bandeira branca, mas não é necessário. A Revolução terminara, com a vitória dos legalistas e a consequente derrota dos federalistas. Restou, no entanto, muita tristeza e desolação e, mais uma grave baixa no Sobrado. Mas a mais sangrenta e vingativa das revoluções chegara ao seu final, "com perda de vidas, de tempo e de dinheiro".

Deixo também a resenha do vol. I.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-1-o-continente-vol-1.html

  



domingo, 10 de março de 2024

200 anos da imigração alemã. Érico Veríssimo conta como foi. O tempo e o vento.

O tempo e o vento é seguramente a maior epopeia da literatura brasileira. É o retrato perfeito de mais de duzentos anos de história, da colonização e povoação do Continente. "Veio gente de tudo que era lado", nos conta Érico Veríssimo, o seu autor. Entre as gentes que vieram estão os alemães. Por sinal, neste ano de 2024, faz duzentos anos que isso aconteceu. E Érico Veríssimo nos conta como foi. Entre os que chegaram, estão os meus antepassados. Estes chegaram um pouco mais tarde, em 1828 e fizeram - não de São Leopoldo, mas de São José do Hortêncio a sua querência. Mas, vejamos o Érico nos contando da chegada dos alemães:

O tempo e o vento (parte I). O Continente (Vol. I). Companhia das Letras.

"E as bandeiras e velas do bergantim Protetor, que está atracando no trapiche de Porto Alegre com imigrantes alemães a bordo.

S. Exa., o Presidente da Província, de chapéu alto e sobrecasaca, os espera no porto, no meio de autoridades.

Da amurada do navio, Willy olha a cidade que os casais açorianos fundaram.

Desembarca meio estonteado, de mãos dadas com a mulher: Hänsel e Gretel, coitados, perdidos na floresta.

Num batelão com outras famílias de imigrantes sobem o rio dos Sinos, de águas barrentas e margens baixas, rio sem história, sem castelos, sem ondinas nem Loreleis.

Tornam a pisar terra firme, entram num carro de bois.

Este é o lote que te toca, Willy. Agora não passarás mais fome como em tua terra natal.

Willy olha a mata. Verflucht! É preciso derrubar árvores, virar a terra e antes de mais nada fazer uma casa. Mas o alfaiate Willy não sabe construir casas. Senta-se numa pedra e fica olhando as nuvens e achando que Gott wird helfen.

Outras levas de imigrantes chegam. São da Renânia, do Palatinado, de Hesse, da Pomerânia, da Baixa Saxônia e da Vestfália.

O ar da antiga Feitoria do Linho-Cânhamo se enche do som de machados, martelos e vozes estrangeiras. Árvores tombam, picadas se abrem, e escondidos dentro do mato bugres e bugios espiam intrigados aqueles homens louros.

Heirich ficou debaixo dum cedro com o peito esmagado.

Kurt foi mordido por uma cobra.

Um índio furou o olho de Jacob com um frechaço.

Schadet nichts!

Dão à colônia o nome de São Leopoldo.

Ach mein Gott! Não gosto de charque nem de pão de milho nem de feijão com arroz. Quem me dera ter batatas, sauerkraut, pão de centeio e alguns litros de cerveja!

Willy experimenta o mate chimarrão, queima a língua, cospe longe a água verde e amarguenta. Mas Hans o ferreiro prova e gosta, veste chiripá, se amanceba com mulata e, vergonha da colônia, muda de nome: é João Ferreira.

Uma tarde em casa, nas faldas da serra Geral, Werner escreve ao seu Vetter Fritz, que ficou na Alemanha:

[...] o governo não nos deu tudo que prometeu, mas com o amor de Deus vamos vivendo.

Como não havia mais terras devolutas em São Leopoldo, nos mandaram aqui para a serra, onde existem índios ferozes.

Graças à divina Providência não passamos mais fome. Temos comida em abundância e nossa terra dá feijão branco e preto, milho, arroz e batata. Imagina, Fritz, batata! Também planto fumo, que é da melhor qualidade.

Deves vir também para cá. A viagem foi longa e dura, passei perigos e agruras, mas estou certo de que dentro de poucos anos serei um homem rico.

Olha, Fritz, tu que tanto gostas de frutas viverias aqui muito feliz, pois esta boa terra produz limas e limões, bananas, laranjas, ananases, figos, maças, melancias e melões. Agora vou plantar linho e algodão, e um dia talvez...

Werrner parou de escrever porque estava na hora de voltar para a lavoura. Nunca chegou a terminar a carta, pois naquele mesmo dia os índios atacaram a picada e mataram os colonos. Werner caiu de borco com uma frecha cravada nas costas. A última palavra que disse, babujando a terra de sangue, não foi o nome do Vaterland nem o de algum ente amado. Foi Scheisse!

Um dia um gaúcho andarengo e pobre passou a pé por São Leopoldo.

Olha a colônia que já tomava jeito de vila, viu homens trabalhando nas roças, ferreiros batendo bigorna, seleiros fazendo lombilhos, moleiros moendo trigo, padeiros fazendo pão, e como passasse por sua frente um filho de Willy, grandalhão, corado, feliz, bem montado num lindo alazão, o caboclo teve um súbito ímpeto de revolta e gritou:

Alamão batata!

E se foi, desagravado, erguendo poeira do chão com seus pés descalços.

Depois veio a guerra com os castelhanos. Formaram nas colônias uma Companhia de Voluntários alemães.

E de vários pontos da Província cinco Carés foram levados a maneador para as tropas nacionais como voluntários.

Nunca ficaram sabendo direito contra quem brigavam nem por quê.

Mas lutaram como homens, e nenhum deles desertou. Eram magros mas rijos.

Foi nessa mesma guerra que um tal Tenente Rodrigo Cambará um dia avançou a cavalo contra uma bateria castelhana e com um laço de onze braças laçou uma boca-de-fogo inimiga e se precipitou com ela, gritando e rindo a trancos e barrancos, para as linhas brasileiras.

Por essa e por outras ganhou uma medalha e foi promovido a capitão.

Pedro Caré nessa guerra teve um braço amputado. E nunca recebeu soldo.

Quando veio a paz voltou à vida antiga.

Onde foi que perdeu o braço?

Na guerra.

Não faz muita falta?

Nem tanto. Graças a Deus me cortaram só o braço.

E meio rindo ele mostrava sua china, que tinha um filho no colo e outro na barriga.

Por essa e por outras que a raça dos Carés continuou".

Creio que, também no Continente, junto com Jorge Amado, podemos dizer: "há de nascer, de crescer e de se misturar" e "Quanto mais misturado, melhor". De acordo com a narrativa de Érico, os alemães também chegaram a Santa Fé e, para o desespero do padre Lara, eram protestantes!. Deixo o link da resenha geral do livro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/erico-verissimo-descreve-as-missoes-o.html

Sobre a imigração alemã, também tenho alguns posts. Deixo aqui o link de dois deles. Os imigrantes do Hunsrück: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/10/os-imigrantes-do-hunsruck-haus-weber.html e sobre São José do Hortêncio: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/10/historia-de-sao-jose-do-hortencio.html



quinta-feira, 7 de março de 2024

Erico Veríssimo descreve AS MISSÕES. O tempo e o vento. O Continente. Vol. I

Tenho muitos orgulhos em minha vida. Um deles, e dos grandes, foi ter estudado e conhecido as terras missioneiras, uma das experiências mais fantásticas ao longo de toda a história. Li, do padre jesuíta suíço, Clóvis Lugon A República Comunista Cristã dos guaranis, um dos melhores livros que tenho em minha pequena, mas selecionada biblioteca. E de Umberto Eco trago a monumental frase de que o Papa Francisco é um jesuíta paraguaio, isto é, Francisco é um missioneiro, um herdeiro do espírito das missões. Tenho também músicas dos troncos missioneiros, músicos e payadores, da cidade de São Luiz Gonzaga, do coração da região missioneira do Rio Grande do Sul. Os padres jesuítas sempre admiraram a virtude musical dos guaranis. 

O tempo e o vento. (parte I). O Continente (Vol. I). Companhia das Letras.

Para situar e datar as Missões, algumas informações: As Missões ou Reduções, foram as experiências de colonização feitas pelos padres jesuítas alemães  em território paraguaio, isto é, reuniam os índios em aldeias (reduções) ou pequenas cidades, vivendo basicamente de forma coletiva. Tomo como datas referência, os anos de 1641, quando ocorreu a Batalha de M'bororé, em que os missioneiros rechaçaram os bandeirantes e 1750, quando ocorreu o Tratado de Madri, em que houve a troca entre os portugueses e espanhóis dos sete povos das Missões pela Colônia do Sacramento e o compromisso de - os dois povos - fazerem a limpeza da área, isto é, expulsar os indígenas dessas terras. Isso não ocorreu pacificamente. Ocorreram as chamadas guerras guaraníticas, das quais Sepé Tiaraju é o grande herói. Foram mais de cem anos de uma experiência apaixonante e muito bem sucedida. Hoje, sete das Reduções são Patrimônio da Humanidade. Duas no Paraguai, quatro na Argentina e São Miguel, no Rio Grande do Sul. Na época, tudo era Paraguai.

Érico Veríssimo, ao escrever sobre a formação de O Continente de São Pedro do Rio Grande, traz a sua história em retrospectiva e nos apresenta um de seus personagens, o fantástico índio Pedro Missioneiro, que com a sua relação com Ana Terra, dá origem aos Terra, da qual serão protagonistas Ana Terra, Pedro Terra e Bibiana Terra. Esta, ao se casar com Rodrigo Cambará, dará origem aos Terra-Cambará, personagens da épica formação do povo rio-grandense. Mas Érico também se entusiasmou com a experiência das Missões e assim as descreveu:

"Uma tarde, à hora do crepúsculo (foi no ano de 1750, por ocasião da Páscoa) Alonzo parou no centro da praça, contemplou a catedral e sonhou de olhos abertos com o Mundo Novo. Havia de ser algo tão belo e sublime que a mais rica das imaginações mal poderia conceber.

Os povos não mais seriam governados por senhores de terras e nobres corruptos. Seria a sociedade prometida nos Evangelhos, o mundo do Sermão da Montanha, um império teocrático que havia de erguer-se acima das nações, acima de todos os interesses materiais, da cobiça, das injustiças e das maquinações políticas. Um mundo de igualdade que teria como base a dignidade da pessoa humana e seu amor e obediência a Deus. Nesse regime mirífico o homem não mais seria escravizado pelo homem. Não haveria mais exaltados e humilhados, ricos e pobres, senhores e servos. Que direito tinha uma pessoa de se apossar de largas extensões de terra? A terra, Deus a fizera para todos os homens. O que era de um devia ser de todos, como nos Sete Povos. Todas as criaturas tinham direito a oportunidades iguais. Não era, então, maravilhoso transformar-se um índio pagão num cristão, num artista, num músico, num escultor, num ourives, num arquiteto? Quantos milhares de seres havia no globo que vegetavam na ignorância e na miséria por falta apenas de quem lhes iluminasse o entendimento, despertando-lhes o desejo de melhorar, de criar coisas úteis e belas com a mão e o espírito que Deus lhe dera!? Mas para conseguir esse mundo ideal era primeiro necessário combater todos aqueles que por indiferença ou egoísmo se negavam a baixar os olhos para os humildes. Alonzo, que fora sempre um estudioso da história, sabia que os homens em todos os tempos foram sempre levados ao pecado pelo diabo, e a arma de que o diabo mais se servia era o desejo de riqueza, poder e gozo. Para conseguir essa riqueza, essa força e esses prazeres, não hesitavam em escravizar as outras criaturas. E a melhor maneira de conservá-las em estado de escravidão era mantê-las na ignorância. Pagavam soldados não só para defender-lhes as vidas e os bens como também para alargar-lhes as conquistas. Mas esses senhores consistiam numa minoria. Ah! Um dia esses eternos humilhados, esses eternos escravos haveriam de tomar consciência de sua força e erguer-se! Mas era indispensável que tal levante se fizesse não em nome do ódio, da vingança e da destruição, mas sim em nome de Deus e da Suprema Justiça.

A missão da Igreja - e neste ideal extremado Alonzo sabia que estava só - devia ser a de promover essa revolução. O trabalho da Companhia de Jesus já havia começado na América. Era preciso primeiro conquistar o Novo Continente, livrar o índio da influência do homem branco, organizar uma grande república teocrática que depois, aos poucos, poderia estender a outras terras a sua influência e o seu exemplo. Ah! Mas para conseguir esse supremo bem os jesuítas seriam obrigados a usar meios aparentemente ignóbeis. Teriam de ser obstinados e implacáveis. No princípio seria necessário exercer uma ditadura justa mas inexorável. Não havia outra alternativa. Seriam os fiadores dessa Revolução em nome de Deus, pois o povo não estava ainda esclarecido, não sabia o que lhe convinha, e portanto podia ser facilmente ludibriado pelos poderosos. Era pois imprescindível que os sacerdotes exercessem na terra a ditadura em nome de Deus até que um dia (dali a quantos anos? cem? duzentos? mil? que importava o tempo?) fosse possível atingir aquele estado ideal, conseguir a igualdade entre as criaturas, a paz e a felicidade universal.

Agora, porém, era preciso lutar, pregar, instruir, influir no espírito das gentes, educar e disciplinar a juventude, exercer uma censura feroz em todos os setores da vida daqueles povos a fim de que eles se habituassem a pensar de acordo com a Ideia Nova. Um dia haveria sobre a face da Terra governos justos, e não mais instrumentos secretos e cruéis de satanás. Até lá, porém, era inevitável que os sacerdotes suassem sangue, não cedessem às fraquezas de seus corações, tivessem a coragem de parecer tirânicos. Seriam odiados, caluniados, perseguidos, apresentados como monstros. Os senhores do mundo haveriam de atirar contra eles expedições militares punitivas. Ah! Mas ele conhecia a história. A justiça de Deus estava visível nas entrelinhas dos fatos. Que significavam as guerras contínuas entre nações, ducados e principados senão que a humanidade vivia em desentendimento porque era corrupta e adorava o bezerro de ouro? Por que países como Portugal e Espanha vivam sempre em guerras? Era porque faltava entre os povos separados por línguas e costumes diferentes um elemento de unidade espiritual. Esse elemento de unidade, esse denominador comum das almas só poderia ser um: o temor e o amor a Deus. Era em nome de Deus que eles, soldados da Igreja, tinham de lutar. Não haviam de recuar diante de nenhum obstáculo. O fim era bom: todos os meios para chegar a ele seriam necessariamente lícitos". Páginas 64 a 66.

Deixo ainda dois posts sobre o tema das Missões: A resenha do livro do padre Clóvis Lugon: Mas antes a resenha do primeiro volume de O Continente.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-1-o-continente-vol-1.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/03/a-republica-comunista-crista-dos.html  E a afirmação de Umberto Eco, de que o Papa Francisco seria um jesuíta paraguaio.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/02/francisco-e-um-jesuita-paraguaio.html

segunda-feira, 4 de março de 2024

O tempo e o vento 1. O CONTINENTE. Vol. 1. Érico Veríssimo.

A julgar por mim, todo o velho é um saudosista. E desse saudosismo faz parte o desejo por releituras. Há um certo tempo tomei a decisão de reler Érico Veríssimo. Comecei com Incidente em Antares, livro com o qual introduzi a literatura em minhas aulas, mas o meu objetivo mesmo era reler O tempo e o vento. Depois de lido o primeiro volume de O continente tenho a dizer apenas - porque não fiz isso muito antes! O livro é um mergulho profundo no interior desse continente fantástico, na formação desse povo fabuloso, fruto da maior miscigenação de povos existente na história. Mostrar essa formação histórica, no garrão sul desse Continente, sempre foi o grande objetivo do escritor. 

O tempo e o vento [parte I]. O Continente. Vol. I. Érico Veríssimo.

Ao final do primeiro volume dessa fantástica e épica obra encontramos as suas origens, a gênese de sua concepção, ao final desse volume: "Quando publica O continente. em 1949, Érico Veríssimo já é um escritor consagrado. As primeiras notas do romance que se tornaria O tempo e o vento, datam de muito antes, de 1941, embora a ideia já lhe tivesse ocorrido em 1939.

Em O resto é silêncio, de 1943, sete personagens presenciam o suicídio de uma jovem em Porto Alegre. No final do romance, o escritor Tônio Santiago, está no Teatro São Pedro, ouvindo a Quinta Sinfonia de Beethoven, quando tem a visão da história do Rio Grande do Sul como uma sinfonia. Nessa imagem sucedem-se personagens e momentos desde a época das Missões, até os dias contemporâneos. O que deflagra o devaneio do escritor é uma associação vertiginosa de tempo e espaço: 'Quando o tema da Quinta Sinfonia preocupava o espírito do compositor, os antepassados da maioria das pessoas que enchiam o teatro andavam pelas campinas do Rio Grande do Sul a guerrear com os espanhóis na disputa das missões' (O resto é silêncio, capítulo 45, 'Sinfonia').

Érico tinha planejado escrever toda a ação de O tempo e o vento num único romance de oitocentas páginas, mas acabou por desdobrá-la em três: O Continente, cuja ação vai de 1745 a 1895, e O Retrato e O Arquipélago, que falam de fatos transcorridos entre 1895 e 1945". A história do Rio Grande do Sul concebida como uma sinfonia, uma sinfonia grandiosa, épica. Vamos a uma pequena resenha do primeiro volume, partindo da síntese da contracapa:

"O Continente abre a mais famosa saga da literatura brasileira, O tempo e o vento. A trilogia - formada por O Continente, O Retrato e O Arquipélago - percorre um século e meio da história do Rio Grande do Sul e do Brasil, acompanhando a formação da família Terra Cambará. Num constante ir e vir entre o passado - as Missões, a fundação do povoado de Santa Fé - e o tempo do Sobrado sitiado pelas forças federalistas, em 1895, desfilam personagens fascinantes, eternamente vivos na imaginação dos leitores de Érico Veríssimo: o enigmático Pedro Missioneiro, a corajosa Ana Terra, o intrépido e sedutor Capitão Rodrigo, a tenaz Bibiana". Reforçando, a origem da família Terra Cambará. O índio Terra e o paulista (tropeiro - mais guerreiro que tropeiro) Cambará. Que personagens!

A narrativa se apresenta em forma de retrospectiva. Ela começa no Sobrado, onde está entrincheirado Licurgo Cambará, chefe legalista, dos chamados republicanos. Os federalistas sitiaram o Sobrado. O clima é de total pavor. Os federalistas praticamente dominam o Rio Grande, embora o governador seja a favor do presidente, o marechal Floriano Peixoto. A partir daí é que começa a retrospectiva. Observem o sobrenome do homem do Sobrado, Licurgo Cambará. Para bem entender essa questão, trago algumas informações da Revolução Federalista. Ela ocorreu no Rio Grande do Sul, entre os anos de 1893 a 1895 e chegou ate as terras paranaenses. Tenho anotado as seguintes observações.

Revolução Federalista. 1893-1895. Uma divisão entre os republicanos, que defendiam a centralização em torno do sanguinário governo de Floriano Peixoto (Ah, os militares na política brasileira), do qual o governador Júlio de Castilhos era aliado. Usavam um lenço branco e eram chamados de pica-paus. Em Santa Fé, seu principal expoente era Licurgo Cambará. 

Do outro lado estavam os federalistas, que defendiam a descentralização, isto é, uma maior autonomia administrativa para as províncias, ideais que vem de longa data, e eram comandados por Gaspar Silveira Martins. Usavam lenço vermelho e eram chamados de maragatos. A vitória coube ao governo florianista, num dos episódios que mais ensanguentou este país. Foi a Revolução da chamada degola. Sempre afirmo que a nossa República conseguiu ser muito pior do que a nossa monarquia. Os militares tomaram gosto pela política e nela intervém, sempre que privilégios são ameaçados. Uma herança... (desculpem a digressão).

O livro tem sete títulos, que seriam os capítulos. Vejamos: O Sobrado I; A fonte; O Sobrado II; Ana Terra; O Sobrado III; Um certo capitão Rodrigo; O Sobrado IV. A primeira retrospectiva está em A fonte. Ela retrocede até o ano de 1745. Em 1750 ocorreria o Tratado de Madrid, que trocaria os sete povos das missões (possessão espanhola) com a Colônia do Sacramento (posse portuguesa). Os dois povos se comprometeram com a pacificação das áreas, isto é, acabar com os indígenas ou então fazê-los retornar às suas áreas de origem, em terras paraguaias. São as guerras guaraníticas, onde se destaca um grande personagem, Sepé Tiaraju, ou o São Sepé. São - de santo. Não canonizado pela Igreja, mas sim, pela concepção popular. Após o Tratado, Portugal deveria tomar conta das terras entre Laguna e a Colônia do Sacramento. Missão complicada. No interior do Continente praticamente existia apenas Rio Pardo.

Uma pacata família morava nas imediações de Rio Pardo e, de certa forma, até tiveram algum progresso. A família tinha dois filhos e uma filha, a  Ana Terra. Essa família acode a um ferido, de origem índia, que viera das terras missioneiras. Era Pedro Missioneiro. Ele engravidou Ana Terra. Seus irmãos, por ordem do pai, deram cabo dele. Desse relacionamento nasce Pedro Terra, pai de outro personagem central do livro, Bibiana. Mas aguardemos.

Esta família sofreu a invasão dos castelhanos e dela sobraram apenas as mulheres e crianças. Um dia aparece um carroceiro, a quem seguem para um novo povoado que se iria iniciar. Santa Fé, sob o comando dos Amaral. A narrativa volta ao Sobrado e a vila em guerra. Depois volta para Ana Terra, que se estabelece na cidade com o filho Pedro e os netos Juvenal e Bibiana. Ana será a parteira da cidade. A narrativa mais uma vez se volta ao Sobrado para retornar a Santa Fé, onde chega - possivelmente um dos mais fantásticos personagens da Literatura Brasileira. Rodrigo Cambará, ou - um certo capitão Rodrigo. Rodrigo não cabe no imaginário de ninguém. É muito diferente de todos. Bonachão, briguento e sedutor. Sedutor, inclusive de Bibiana. Ocorre então a mistura entre os Terra e os Cambará. Os Terra- Cambará. Bolívar e Leonor.

Com Rodrigo Cambará em cena, irrompe a Revolução Farroupilha (1835). Rodrigo era amigo de Bento Gonçalves. Os caciques de Santa Fé, os Amaral, ficam ao lado do governo, e Rodrigo, que partira para Rio Pardo, aderir a Revolução, volta a Santa Fé e toma a cidade. Apesar de todas as estripulias do capitão, os seus amores insaciáveis, Bibiana nunca se queixou e intimamente parecia ser feliz. Rodrigo era diferente e era o seu marido. A narrativa volta ao Sobrado.

Na narrativa, Érico introduz em itálico outros aspectos da história do Continente de São Pedro do Rio Grande: a povoação do continente, a chegada dos imigrantes alemães (1824) e a Revolução Farroupilha. São páginas notáveis. Vou fazer posts em separado. Quero destacar ainda, ou salientar os três personagens maiores desse primeiro volume de O Continente. Ana Terra, Bibiana Terra e Rodrigo Cambará.


 


quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Ânsia eterna. Contos. Júlia Lopes de Almeida.

Meu irmão, Hédio José, mora em Mondaí, no oeste catarinense. Ele é o mais velho entre cinco irmãos e já completou noventa anos de vida. Volta e meia ele me manda livros, especialmente os que tem como tema a colonização do oeste de Santa Catarina. Dessa vez ele me mandou um bem diferente: Ânsia eterna, um livro de contos de Júlia Lopes de Almeida. Esta escritora ganhou notoriedade, mais recentemente, quando os seus livros ganharam indicação para os vestibulares das mais prestigiadas universidades brasileiras. A escritora nasceu no Rio de Janeiro em 1862 e morreu na mesma cidade em 1934.

Ânsia eterna. Contos. Júlia Lopes de Almeida. Vermelho Marinho. 2023.

Ela, acima de tudo, foi uma cronista de seu tempo. Um tempo de profundas transformações. Em sua obra, de romances, crônicas e contos, essas transformações estão muito presentes. Ela esteve profundamente envolvida no ambiente econômico, político e cultural de sua época e a nada assistiu passivamente. Ela assistiu os movimentos abolicionistas, tomando partido, assistiu a proclamação da República e os incipientes movimentos de industrialização e urbanização do Brasil. Participou também ativamente da criação da Academia Brasileira de Letras, embora a proibição de dela participarem as mulheres. Ah, a sociedade patriarcal! Seu marido, o jornalista e poeta Filinto de Almeida, foi um de seus fundadores.

O seu livro de contos Ânsia eterna, teve a sua primeira publicação em 1903, e reúne trinta contos. Eles são expressão plena de seu tempo. Na apresentação da edição da Vermelho Marinho, Gabriela Simonetti Trevisan, autora de um livro sobre a escritora - A escrita feminista de Júlia Lopes de Almeida, assim descreve a sua biografada: "Tecendo críticas contundentes à cultura patriarcal de seu tempo, a autora ainda reflete em seu texto que, por mais que se tente aprisionar as mulheres na domesticidade, o pensamento não pode ser escravizado, e, dessa forma, aponta para a dimensão libertária do pensamento crítico feminino e feminista. [...] Dessa forma, a literata sustenta a defesa das múltiplas possibilidades para as vidas femininas, as quais não caberiam em categorias determinadas pela inferiorização sofrida pelas mulheres diante de seus pares masculinos, segundo ela". E ela prossegue:

"De fato, ao longo de sua vida, Júlia conformou seus posicionamentos feministas, que começam a se tornar mais explícitos em seus escritos a partir da virada para o século XX. Já na década de 1910, a autora passa a se posicionar nos jornais a favor do divórcio e, em 1919, como aponta Leonora de Luca, aparece como participante do grupo fundado por Bertha Lutz, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino".

Entre os contos que mereceu maior destaque está o - Os porcos. Nesse conto, a indignação da escritora, diante da situação de uma gravidez indesejada, é profunda. Vejamos a descrição da biógrafa: "Nesse conto, a autora narra sobre a cabocla Umbelina e sua gravidez indesejada, fruto de sua relação com o filho do patrão. Ameaçda pelo pai de ter seu filho jogado aos porcos - espécie de punição pelo fato de ter sido 'desonrada -, a jovem sai em trabalho de parto pela fazenda, com o objetivo de chegar à casa do homem que a enganou e matar a criança em sua porta. Assim, acompanhamos o sofrimento da personagem nas dores físicas e psíquicas, encarando solitária a renegação do pai, do amante e da sociedade". Um conto, acima de tudo, extremamente corajoso.

 Dores físicas e psíquicas! Vejamos o parágrafo final da apresentação: "Ânsia eterna, trazendo histórias de classes mais baixas e das elites, de trabalhadores e princesas, de mulheres desoladas e homens frustrados, apresenta a maestria literária de Júlia e chama atenção para um âmbito rico de sua escrita, capaz de ficcionalizar lados obscuros dos afetos humanos. Seus contos trazem à tona não só críticas ao seu tempo, mas a produção de espaços múltiplos de existência que fraturam a cultura patriarcal de seu tempo, expondo feridas que esbarram até hoje em nossos dilemas sociais e pessoais".

Vejamos ainda a contracapa dessa presente edição: "Considerado um dos melhores livros, sua reedição pela Editora Vermelho Marinho fez com que a autora voltasse a ser estudada nas escolas, se tornando leitura obrigatória em diversos vestibulares. Do conto título, que já conquista o leitor pelo impacto de seu final, vamos a textos já consagrados e publicados em outras línguas, como Os porcos, publicado em francês, e que narra a história da cabocla Umbelina e sua gravidez indesejada, fruto de sua relação com o filho do patrão. O lugar da mulher na sociedade é discutido no triste A caolha, onde uma mãe faz de tudo por seu filho, que a despreza por causa de seu defeito. Além da maternidade, outros temas importantes retratados no livro são a loucura e morte. No prefácio desta obra, a mestra e doutora Gabriela Trevisan ressalta que 'Ânsia eterna, trazendo histórias de classes mais baixas e das elites, de trabalhadores e princesas, de mulheres desoladas e homens frustrados, apresenta a maestria literária de Júlia e chama atenção para um âmbito rico de sua escrita, capaz de ficcionalizar lados obscuros dos afetos humanos"'. Ao meu irmão, meus melhores agradecimentos.

Da escritora eu já conhecia A falência, um romance de leitura obrigatória do vestibular da UFPR., um panorama da economia cafeeira, da sua decadência e de seus personagens. Vejamos a resenha:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/05/a-falencia-julia-lopes-de-almeida.html


segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A fundação dos "LEGIONÁRIOS DA CRUZ". Uma associação conservadora. INCIDENTE EM ANTARES.

Creio que a personagem maior do livro Incidente em Antares seja a senhora Dona Quitéria Campolargo, ou Dona Quita, simplesmente. Ela pertence a centenária família dos Campolargo, uma das famílias mais tradicionais e praticamente fundadoras da cidade das barrancas do rio Uruguai, na fronteira com a Argentina.  Ela é uma senhora que conhece as suas origens e que se empenha na conservação das tradições e dos bons costumes. Ela será fundamental na criação da Associação "LEGIONÁRIOS DA CRUZ". No Incidente, do qual se ocupa a segunda parte do livro, ela é a primeira a morrer e que, na volta ao coreto da praça, passa a denunciar suas filhas e seus genros. 

Incidente em Antares. Érico Veríssimo. Globo. Porto Alegre.

A parte do livro que selecionei para este post é uma entrevista, ou uma visita que o professor, sociólogo e pesquisador Martim Francisco Terra faz a ela, para coletar dados sobre a cidade de Antares e traçar o seu perfil econômico, social e moral. O professor Terra é o coordenador dessa pesquisa, financiada pela Fundação Ford. Depois de trocar as primeiras palavras, uma análise da conjuntura brasileira já estava delineada. (O Incidente em Antares teve a sua primeira edição no ano de 1970 e o Incidente ocorrera no dia 13 de dezembro de 1963). Profundas insatisfações com a política brasileira, agora sob o comando de Jango e Brizola, que para Dona Quita eram notórios comunistas. Era urgente a precaução e a defesa. No trecho (Capítulo LXXVIII, páginas 176 a 183) encontramos a conversa em que o pesquisador ouve de Dona Quitéria os passos para a fundação da Associação dos "Legionários da Cruz". Omiti as páginas referentes aos diálogos da conjuntura, interessantíssimos, por sinal. 

"O senhor não imagina as discussões que houve nessa primeira reunião - diz ela, sorrindo e deixando aparecer por entre os lábios arroxeados um dente pontudo e cor de marfim velho. - Sempre que o nosso juiz de Direito, o Dr. Quintiliano, e o prof. Libindo se encontram, acabam atracados numa discussão. Não se fumam. Um embirra com o outro e cada qual quer ser mais sabichão e levar sempre a melhor. Não estou aborrecendo o senhor com essas estórias?

- Mas qual, D. Quita! Ao contrário.

- Pois é. Depois que vi todos sentados expus a finalidade da nossa sociedade... clube, grupo ou coisa que o valha. Fui logo dizendo que não propunha a criação dum centro recreativo, mas duma frente ativa de luta, dum corpo militante para enfrentar não só os pelegos do Jango e do Brizola como também todos os tipos de esquerdismo, viessem de onde viessem...

- Compreendo.

- ... e que a nossa guerra não era só política como religiosa e moral. Precisávamos combater também a dissolução dos costumes.

- Como foi recebida a ideia?

- Ora, o senhor sabe como é cidade pequena. A coisa toda fica muito na conversa fiada. Perde-se tempo em detalhes sem importância. Todos aceitaram a minha sugestão para o nome do grupo: Legionários da Cruz. Nosso lema (segundo a proposta não me lembro de quem) devia ser Deus, Pátria e Família... o que não é nenhuma novidade. O Dr. Quintiliano então se levantou e pediu que acrescentássemos Lei e Ordem. O Cel. Tibério pulou e gritou: 'E propriedade!' (se Bolsonaro estivesse presente, ele certamente gritaria: 'E Liberdade!' Acréscimo meu, por óbvio). Vi que ia começar a inana. Ora, o Prof. Libindo, que estava esperando uma oportunidade para dar um guinau no juiz, disse com aquele jeitão suficiente dele: - Meu caro magistrado, quem defende a Pátria defende precipuamente a Lei e a Ordem, contidas ambas no vocábulo oceânico Pátria. (Me lembro direitinho das palavras que ele usou, tenho boa memória). O Dr. Quintiliano, vermelho como um camarão, não se entregou: 'Pois se a coisa é assim' - disse -'bastaria então que no lema dos Legionários da Cruz se falasse apenas em Deus, pois a ideia de Deus, na sua universalidade incomensurável, abrange tudo: ele próprio, as suas leis, a sua ordem cósmica e moral, a Pátria, a Família, a Humanidade'. E o Tibério gritou de novo: 'E a Propriedade!'

D. Quitéria soltou uma risadinha que lhe saiu da boca com um borrifo de broinha esfarinhada.

Depositei minha taça vazia em cima da mesinha, a meu lado.

- O senhor já ouviu dizer que daqui a três semanas o Leonel Brizola vai discursar num comício trabalhista e nacionalista aqui na Praça da República? Pois é. Vai. Mas tome nota das minhas palavras. Nesse dia todas as mulheres católicas de Antares, tendo à frente as Legionárias da Cruz, vão dissolver esse comício!

- Dissolver? - estranhei. - Mas a senhora já pensou no que pode acontecer? Estamos numa democracia..., defeituosa, reconheço, mas - que diabo! - democracia. Cada partido tem o direito de fazer propaganda de suas ideias.

 D. Quitéria empertigou-se na sua cadeira, como que procurando crescer em estatura física.

- Sim, mas o direito e a liberdade tem limites, moço. Um líder político pode fazer a sua propaganda mas não pregar abertamente a subversão da ordem, o fechamento do Congresso, o socialismo, a reforma agrária!

Percebi que tinha mexido num ninho de marimbondos.

- Mas que é que as Legionárias pretendem fazer de concreto se esse comício trabalhista se realizar?

- Sairemos da igreja para a praça cantando com toda a força de nossos pulmões o Queremos Deus. Vamos fazer tanto barulho, que ninguém poderá ouvir o Brizola e os outros oradores.

- Mas eles provavelmente falarão com o auxílio de microfones e amplificadores...

- Quebraremos o microfone e os alto-falantes. Mandaremos apagar as luzes da praça. A cidade ficará às escuras. Temos gente nossa na usina elétrica...

- Mas vai ser uma guerra, D. Quitéria! - disse eu, esforçando-me para ficar sério.

- Vai ser um combate, doutor. A guerra mesmo, essa começou no dia em que o Jango Goulart assumiu a presidência da República.

- Mas as senhoras estão preparadas para... digamos, para enfrentar a reação não só verbal como também física dos trabalhistas?

- Estamos para tudo. Se nos desacatarem, levam com rosários e cruzes e estandartes na cabeça... e em outras partes.

Dessa vez não pude evitar a risada. E a velha, as narinas palpitantes, a respiração acelerada, continuou:

- Nossos maridos, nossos filhos, nossos homens, enfim, estarão armados ao nosso lado, prontos para o entrevero. Tome nota do que estou lhe dizendo, É o que vai acontecer se o Brizola tiver o topete de fazer sua pregação comuno-nacionalista na frente da casa dos Campolargos e da Matriz.

Pôs a mão espalmada no peito arfante, depois abriu uma caixinha de metal dourado e pô-lo debaixo da língua.

- Não pense que sou uma reacionária, moço - disse, pouco depois, em voz mais baixa e serena. - Sei que os tempos mudaram e que vão mudar ainda mais. As contradições estão liquidando aos poucos a nossa classe. E a indústria, como bem disse o outro dia o Dr. Falkenburg, o meu médico, e a tal de tecnologia estão mudando a face da vida e até da moral. Dia virá em que teremos de dividir nossas terras, eu sei. Mas não há de ser a demagogia do Jango ou do Brizola que vai nos assustar. A coisa tem de ser feita direito, quando a sua hora for chegada. Não sou dessas que gostam do dinheiro pelo dinheiro. Resta-me pouco tempo de vida. Deus nunca me deu filho macho. Tenho quatro filhas. Sei  que os maridos delas estão esperando a minha morte para agarrarem a minha fortuna, e se soltarem no mundo, cada qual para o seu lado. Que me importa? Meu corpo estará então no mausoléu da família, minha alma com Deus.

Não resisti à tentação de fazer uma pergunta maliciosa.

É verdade que o coronel Tibério Vacariano é o presidente de honra dos legionários da Cruz?

É, mas foi eleito contra o meu voto. O Tibé e a pobre da Lanja, mulher dele, são meus velhos amigos, apesar de nossos antepassados terem sido inimigos de morte durante mais de sessenta anos. Olhe, moço, eu lhe proíbo de fazer uso  público do que eu lhe disse hoje nesta sala, ouviu? O Tibério é um velho chineiro e desfrutável. Viveu metido em negociatas durante o Estado Novo e os outros Estados que se seguiram. Tem duas mulheres, o salafrário, a legítima e a amante. No entanto aceitou cinicamente a presidência de honra dos Legionários.  É como eu lhe digo. Essas contradições vão acabar destruindo a nossa sociedade. Acendemos uma vela a Deus e outra ao diabo. Mas o senhor não acredita em Deus nem no diabo, não?

- Não, D. Quita, sinto muito, mas não acredito.

- Pois devia. Eles existem. E cá entre nós, que ninguém nos ouça, eles não residem, como se diz, Deus no céu e o Tinhoso no inferno. Eles estão também aqui embaixo junto com a gente, a todas as horas do dia e da noite. Tome nota do que estou lhe dizendo. 

(Diálogo transcrito de memória, mas creio que com passável exatidão)." Deixo também a resenha do livro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/02/incidente-em-antares-erico-verissimo.html

E também sobre o jornal da cidade - A Verdade.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/02/perfil-do-diretor-de-verdade-o-jornal.html



sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Perfil do diretor de A VERDADE. O jornal de Antares. Incidente em Antares. Érico Veríssimo.

Uma das passagens mais notáveis do livro Incidente em Antares (1970), de Érico Veríssimo, é a visita que o sociólogo e pesquisador Martim Francisco Terra faz a Lucas Faia, o diretor do jornal A Verdade, o jornal da cidade. O professor é o coordenador de uma pesquisa, financiada pela Fundação Ford, para traçar o perfil econômico e social de Antares. A cidade fictícia de Antares se localiza no interior do Rio Grande do Sul, junto às barrancas do rio Uruguai, na fronteira com a Argentina.

Incidente em Antares. Érico Veríssimo. Globo. Porto Alegre.

O jornal e o seu jornalista são um exemplo vivo da subserviência de um jornal aos notáveis, ou aos poderosos da cidade. Já antes de pensar em destacar esta passagem num post especial, eu destaquei esta frase que caracteriza o seu diretor. "Dá uma impressão de fluidez, é um homem que, como os líquidos, toma a forma do vaso que os contém, isto é, da pessoa com quem fala ou a quem serve". Um triste e impressionante quadro da imprensa brasileira. Subserviência e fofocas. Vamos a descrição:

"Visito com Xisto a redação e as oficinas de A Verdade. O diretor do jornal é um tipo curioso. DÁ UMA IMPRESSÃO DE FLUIDEZ, É UM HOMEM QUE, COMO OS LÍQUIDOS, TOMA A FORMA DO VASO QUE OS CONTÉM, ISTO É, DA PESSOA COM QUEM FALA OU A QUEM SERVE (destaque meu). Meia-idade, alto (em termos brasileiros) moreno, calvo, pele oleosa, vaselina na voz, nos gestos e nas ideias. Sua alcunha na cidade é Lucas Lesma porque - explicam - a lesma é um animal capaz de arrastar-se sobre o fio de uma navalha sem se cortar e sem cair para um lado nem para o outro. Conta-se que Lucas Faia tem passado a vida a rastejar incólume sobre o gume da espada afiadíssima da política e de mil outras contendas municipais. 'um molusco' - dizem os seus inimigos. 'Um espírito conciliador' - corrigem os seus amigos. 'Um pulha' - opina Barcelona, agudo como a sua sovela de sapateiro.

Lucas recebe-nos festivamente, com os maiores elogios à nossa equipe e ao 'trabalho de beneditinos' que estamos realizando, etc...etc...

Mostra-nos a sua linotipo nova, a sua impressora plana e apresenta-nos 'o seu braço direito e o seu braço esquerdo'. O direito é o Ferreirinha, 'pau para toda obra', e que exerce as funções de secretário-geral, redator, revisor e, quando necessário, paginador. É um homenzinho franzino, gris, anguloso e asmático que ganha um salário de miséria.

O braço 'sinistro' de Lucas é o 'príncipe' do jornal, um dos rapazes mais adulados da cidade. Chama-se Vitório Natal e é cronista social. Sua crônica diária, a Passarela, é geralmente muito lida e apreciada. As mulheres do café society local enchem o colunista de presentes e mimos: gravatas, perfumes franceses, abotoaduras de punho, pratos de doce, camisas, calças, sapatos... Seu telefone é o mais ativo da redação. Funciona o dia inteiro. 'Olha, Vitório, tu sabes que vamos a Buenos Aires este mês fazer compras? Pois é. Se quiseres dar uma noticiazinha...' - 'Voltei ontem do Rio e comprei dois modelos do Dener.' - 'Vamos receber amanhã para jantar aqui em casa o embaixador Gouvea. Conheces? Te esperamos às oito e meia. Trajo de passeio, mas escuro.' Vitório, que me parece um sujeito inteligente e malicioso, diverte-se com as damas locais. Todos os anos seleciona as Dez Mais Elegantes da sociedade antarense e organiza também um concurso para eleger 'o Brotinho do Ano.'

Tem gestos adamados e usa calças Lee apertadas que lhe modelam as nádegas redondas e inquietas. Conta-nos: 'Quando está se aproximando a data em que escolho as 'Dez Mais', começo a receber dessas grã-finas insinuações pelo telefone ou em bilhetinhos... e presentinhos, docinhos, o diabo! É uma graça! Quando o jornal publica a minha lista das 'Dez', só falta as escolhidas me botarem no colo e me beijocarem. Sou o maior! As não escolhidas me viram a cara na rua, me cortam o cumprimento, me mandam cartas anônimas, um inferno. Mas eu me divirto. Porque um dia elas voltam às boas e o carrossel continua a girar, porque elas precisam de mim. Umas ridículas!'

Pergunto-lhe que pensa de Antares e ele me responde com uma de suas rabanadas:

 - Olha, filho, isto aqui é pura várzea. Gente sem classe. Temos uns meninos que estudam em Porto Alegre ou São Paulo, bem uísque Chivas Regal, dizem que leem Proust e Kafka, tem carros ingleses ou alemães e vão de vez em quando a Buenos Aires. O resto (perdoem a minha cadelice), o resto é pecuário.

O colunista tem preso ao pescoço, por uma corrente dourada, uma medalha de metal com o seu símbolo astrológico, o escorpião. Percebendo a direção de meu olhar, ele pega a medalha e diz:

- É o meu signo. Assino a minha coluna com o pseudônimo de Scorpio. Dizem que sou venenoso.

Xisto se abre num sorriso moleque:

- E tu sabes onde o escorpião guarda o veneno? - pergunta.

O cronista responde rápido:

- No rabo. Tu  deves saber tão bem como eu porque também és escorpião.

- Mas macho - retruca o meu amigo.

Vitório solta uma risadinha musical:

- Nunca se sabe, meu querido, nunca se sabe. E sempre é tempo pra mudar cuando la dicha es buena.

O Ferreirinha lança um olhar enviesado para o cronista social, e julgo ver um ódio assassino em seus olhos levemente estrábicos.

 Quando saímos da redação, Scorpio de súbito me aperta o braço.

- Olhe só aquela morena...

Olho na direção que ele me indica. Uma vistosa fêmea está descendo de seu carro para a calçada. Pele creme, cabelos muito negros, e os olhos (percebo quando passa  a dois passos de mim) verdes. 'Que mulheraço!' - murmura Xisto. E ficamos os quatro ali parados para a morena que se afasta rebolando as ancas e - aposto! - consciente de que a estamos observando. 'Quem é?' - pergunto.

Essa mulata - diz Scorpio - não me dá confiança. Não lê a minha coluna. Também... não sabe português.

- Mas quem é?

- Chama-se Dominique, é haitiana, casada com M. Duplessis, gerente da Cia. Franco-brasileira de Lãs.

Penso no estudo que Moreau de St, Méry, escritor francês do século XVIII, fez da mistura de sangue europeu e africano no Haiti e concluo que acabo de ver o que ele chama de sang-mêlée, isto é, uma mulher com um oitavo de sangue negro.

-Sabe da melhor? - pergunta-me o cronista social. - Um dia essa senhora quis porque quis ver uma sessão de macumba aqui em Antares. O marido relutou mas acabou indo. Lá pelas tantas, excitada pelos cantos e pelo batuque, Mme Duplessis tirou os sapatos, soltou os cabelos, entrou na roda e, menino, foi um escândalo, o santo desceu sobre a haitiana e ela começou a tirar a roupa... Se o marido não interviesse a tempo e arrastasse a bichinha para fora, ela acabava nuinha no terreiro. Depois disso a 'melhor sociedade local' isolou a crioula.

- E você contou essa estória na sua coluna? - perguntou Xisto.

- Tentei, mas aqui o meu chefe não deixou sair a notinha.

Lucas resmungou:

- Pois sim que eu ia perder os anúncios da Franco-Brasileira!" Páginas 158- 161. Capítulo LXXIII. Deixo também a resenha do livro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/02/incidente-em-antares-erico-verissimo.html


terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

INCIDENTE EM ANTARES. Érico Veríssimo.

Se rememorar os fatos é um sinal de velhice, definitivamente, estou sendo atingido. Estou ficando velho. Me bate cada saudade! Decidi fazer uma série de releituras. Érico Veríssimo e José Saramago, para começar. Já comecei: Incidente em Antares foi o primeiro. Seguirei, depois, com os sete volumes de O tempo e o vento. Começar pelo Incidente em Antares, também tem o seu saudosismo. Por este livro iniciei a introdução da leitura de romances em minhas aulas, lá nos idos da década de 1970. A repercussão foi extraordinária. É evidente que a escolha do livro em muito ajudou. O livro foi lançado em 1970. O escritor nasceu em 1905 (Cruz Alta) e morreu em 1975 (Porto Alegre). O exemplar que eu tenho em mãos data de 1974, 11ª edição. A obra foi adquirida em 1975.

Incidente em Antares. Érico Veríssimo. Ed. Globo (Porto Alegre). 11ª edição. 1974.

Ao final do livro, com anotação a lápis, estão apontadas cinco questões, com as quais eu apontava os pontos a serem melhor observados: 1. As posições dos antarenses com relação à greve; 2. Principais momentos em que aparece a moral em seu tom marcadamente social; 3. Principais momentos de comportamentos autoritários; 4. Os dois padres - o seu pensamento; 5. Principais momentos no coreto. Era um "policiamento" da leitura.

Incidente em Antares (1970), está dividida em duas partes: Na primeira, aparece o histórico da cidade, desde as suas mais remotas origens, a escolha do nome, a sua localização geográfica (nas barrancas do rio Uruguai, na fronteira com a Argentina), e sobretudo, a descrição de suas tradições e costumes e a formação das famílias tradicionais, das quais emergem os notáveis da sociedade, que serão os protagonistas do Incidente, do qual se ocupa a segunda parte do romance.

O Incidente ocorre no dia 13 de dezembro do ano de 1963, dia em que eclode na cidade uma greve geral na "progressista" cidade, envolvendo os trabalhadores das primeiras indústrias (multinacionais) que se instalaram na cidade. No dia, estão para serem enterradas sete pessoas da sociedade local, com destaque para Dona Quitéria Campolargo, a matriarca de uma das grandes famílias tradicionais e, outrora rivais. Os demais mortos são o advogado (Dr. Cícero), um sapateiro anarquista, um operário morto sob tortura (suposto chefe do grupo dos 11), um pianista (Ah, as mãos!), uma prostituta, e um dos cachaceiros famosos, o pudim de cachaça. Acontece que os coveiros também participavam da greve. A greve é geral. Aí é que ocorre o Incidente.

Os mortos, sob a liderança do advogado, se levantam de seus caixões, se dirigem, primeiramente às suas casas, e, ao meio dia, ocupam o coreto da principal praça da cidade. Dá para imaginar o tamanho do entrevero. Primeiramente os flagras e depois as denúncias. Os notáveis da cidade se reúnem para tomarem decisões. Os notáveis não são necessariamente sábios ou corajosos. Uma ironia profunda. Os mortos não sofrem as consequências de suas falas. Como terminará este terrível Incidente. Os jornalistas de Porto Alegre chegam para a cobertura da insólita ocorrência. Para apagar os fatos da memória e apagar as "caluniosas" denúncias é lançada uma grande "Operação Borracha" e um glamoroso jantar festivo é realizado, em desagravo aos atingidos, facilmente imagináveis. Alguns dos fatos ou relatos merecerão posts especiais.

O livro é uma memória viva dos principais fatos políticos do entorno político de 1964, mas que retrocede aos fatos da escravidão e da República Velha e às tradicionais rivalidades políticas do Rio Grande do Sul. Antares, uma cidade fictícia, facilmente poderia ser nominada com as maiores cidades das barrancas do rio Uruguai, costeando a Argentina.  No livro aparece até um estudo, uma pesquisa universitária sobre o perfil da cidade. A ironia, ou a sátira, é a forma encontrada para desvelar todo um status quo das estruturas sociais, políticas, econômicas, religiosas e fundiárias da sociedade local. A figura da máscara e de seu uso cotidiano está onipresente. É um livro da fase final da vida do escritor. Ele morrerá, logo a seguir, em 1975. No romance estão também bem expressas as suas concepções ou visões de mundo. Sempre um humanista.

Nas orelhas do livro temos uma bela contextualização: "Quando pedimos a Érico Veríssimo que nos escrevesse um sinopse da história do Incidente em Antares, o romancista respondeu que preferia não correr o risco de imitar aquele tradutor que, segundo conhecida anedota, deu à versão portuguesa duma novela policial inglesa o título de Misterioso Crime Cujo Culpado Foi o Próprio Mordomo do Castelo. E acrescentou: 'Para falar a boa verdade, em todo romance ou novela, policial ou não, o verdadeiro criminoso é sempre o autor. O editor é cúmplice. O leitor, a vítima. O crítico, esse acumula as funções de detetive, juiz e, não raro, carrasco.

Abre o volume uma nota do autor: 'Neste romance as personagens e localidades imaginárias aparecem disfarçadas sob nomes fictícios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram são designados pelos seus nomes verdadeiros'.

Veríssimo começa a narrativa com referência à pré-História, ao Pleistoceno, com seus gliptodontes e megatérios. Depois, dando no tempo um salto de um milhão de anos, traz a ação a 1831, às origens mesmas da futura Antares. Durante toda a primeira parte do volume, o leitor fica conhecendo a história dessa localidade, bem como das duas oligarquias rivais de cem anos. Trata-se, em suma, duma espécie de apresentação do palco, do cenário, bem como das personagens principais e da numerosa comparsaria que, através de seus descendentes, serão envolvidos no dramático 'Incidente' de sexta-feira, 13 de dezembro de 1963.

A segunda parte, cuja duração é muito menor em tempo de calendário, embora ocupe mais espaço tipográfico, mostra o incidente propriamente dito e suas consequências. Trata-se dum romance 'desmobiliado', em que predominam a ação e o diálogo. Problemas políticos, econômicos e sociais são nele tratados com uma franqueza e uma objetividade jamais atingidas pelo autor em obras anteriores.

Érico Veríssimo considera Incidente em Antares  uma espécie de estuário em que desaguam rios e riachos de várias de suas tendências e características como escritor. A pitada de fantástico que dá ao livro um sabor exótico vem de alguns contos que ele escreveu entre 1929 e 1931, quando ainda vivia em Cruz Alta. O espírito desta narrativa é muito mais acentuadamente satírico do que em Caminhos Cruzados e O Senhor Embaixador. 'Desta vez' - confessa o autor - 'abri a veia da sátira e deixei seu sangue escorrer livre e abundantemente'.

Como tantos outros romances de Veríssimo, Incidente em Antares tem um caráter panorâmico, uma vasta galeria de personagens, entre os quais se conta também a própria cidade em que se passa a história. Muitos dos problemas humanos de nosso tempo encontram expressão nesse microcosmo criado com visível deleite pelo autor de O tempo e o vento".

Na pagina de abertura lemos uma importante caracterização da obra, sem assinatura: "Não é pequena (e é certo que não será sem proveito) a ironia deste livro contra 'a grandeza' de inúmeros fatos e homens do Brasil. Esta é uma obra escrita sem medo e contemplações, que rememora e adverte lucidamente. Jamais o romancista exprimiu com tal desafogo sua descrença em decantados 'heróis', aqui despojados do inútil brilho das comendas e reduzidos ao verdadeiro tamanho. Nunca tivemos um Érico Veríssimo assim político, o que vale dizer, em rigorosos termos brasileiros, assim apoderado de tão amargas razões, que ele ameniza com seu tom sempre jovial de escrever e com uma bem jogada configuração de sátira que impõe à narrativa".

O livro é longo e denso. A primeira parte vai até a página 188; elas são divididas em 79 pequenos capítulos. A segunda ocupa as páginas restantes, até a 485, divididas em mais 102 capítulos. É um daqueles livros que você não consegue parar de ler e que fica triste quando ele termina, porque você quer muito mais. Monumental Érico Veríssimo!


terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

A reforma empresarial da educação. Nova direita, velhas ideias. Luiz Carlos de Freitas.

Antes da resenha do livro A reforma empresarial da educação - Nova direita, velhas ideias, de Luiz Carlos de Freitas, algumas considerações gerais em torno da educação escolar. Ela é uma invenção da modernidade, como consequência do Esclarecimento pela razão, dos avanços científicos e da nova realidade provocada pelo processo de industrialização e de urbanização. Dois foram sempre as suas grandes finalidades: alfabetizar e socializar, somadas a formação profissional exigidas pelas novas estruturas da sociedade. Os estados assumiram estas funções, através dos chamados Sistemas Nacionais de Educação, que levaram a um sistema de ensino universal, público, gratuito e obrigatório.

A reforma empresarial da educação. Nova direita, velhas ideias. Luiz Carlos de Freitas. 2018. Expressão popular.

A educação escolar era apresentada como o grande elevador social, para aqueles que, nas revoluções burguesas, foram excluídos dessa ascensão pela via patrimonial. É óbvio que isso tudo gerou inúmeros debates e essa educação sempre foi motivo de preocupação sobre os controles desse fabuloso instrumento que é a educação pública. Vá que apareça algum Paulo Freire! Assim a educação escolar se transformou num grande campo de disputas, fortemente marcadas pela presença da ideologia. Deixo também uma recomendação de leitura dessa história. O livro de Lorenzo Luzuriaga: A história da educação pública, do qual tenho uma pequena resenha:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/06/a-historia-da-educacao-publica.html

Também deixo dois textos sobre o que ocorreu com o controle dos currículos, ou, em outras palavras, com a preocupação do que pode e não pode ser ensinado, a partir do ponto de vista das classes dominantes. O primeiro eu elaborei, mas o segundo é a íntegra do texto, a partir de muitos pedidos. Vamos a eles:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/11/qual-e-razao-para-se-controlar-tanto-os.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/05/esta-o-professorado-perdendo-o-controle.html

Antes ainda uma citação, retirada do livro O educador - um perfil de Paulo Freire, de autoria de Sérgio Haddad. Contextualizo antes. Era o dia 2 de abril de 1963, em Angicos (RN). Formatura da primeira turma do processo de alfabetização de Paulo, com muita solenidade, falas e presença de Jango, presidente da República. Havia também uma outra presença, o general Castello Branco, então comandante da quarta região militar, sediada no Recife, e primeiro dos ditadores do golpe de 1964. Vejamos: "Ao final da solenidade, o general Castello Branco comentou com Calazans Fernandes que o trabalho realizado em Angicos o preocupava, pois serviria 'para engordar cascavéis nesses sertões'. No jantar oferecido naquela noite de 1963, o general disse a Paulo que já havia sido alertado sobre o seu caráter subversivo - e que agora estava convencido disso por sua defesa de uma 'pedagogia sem hierarquia'". Creio que o problema está bem situado. Então vamos ao livro do Freitas.

Uma primeira observação: o subtítulo. Nova direita, velhas ideias. Um dos orgulhos de minha formação é a de ter passado dois anos dela na PUC/SP, no Programa de História e Filosofia da Educação. Foram os anos de meu maior aprendizado. E agora, lendo o livro, reencontrei o essencial dos projetos ali estudados, especialmente as ideias gerais do neoliberalismo de Hayek e o que fazer com as escolas, de Milton Friedman, este já da famosa Escola de Chicago. O que é novo é a Nova direita. Muito mais perversa e de profunda desfaçatez.

Confesso também, que demorei um pouco para entender a raiz dos projetos educacionais do governo do Paraná, especialmente no governo do Rato Júnior. Como sou um professor aposentado, não tenho acesso tão fácil a documentos oficiais e também concluí que as atuais políticas são muitos mais pontuais do que por projetos efetivamente estruturados. A ficha me caiu ao ouvir uma fala do secretário de educação Roni Miranda, que assumiu a secretaria da educação em substituição a Renato Feder, um bem sucedido comerciante. Dizia o secretário que conhecia Izolda Cela, atual número dois, do MEC. e ex secretária de educação do município de Sobral, no Ceará. A partir desse dado entendi muita coisa. Custei a acreditar!!!.

SOBRAL. Vamos ao livro: "No Brasil, a cidade de Sobral, no Ceará, tem sido o nosso 'milagre do Texas'. Não há estudos aprofundados sobre o caso, mas os indícios apontam que o alegado 'sucesso' de Sobral se deve a uma decisão de adotar políticas de responsabilização baseado em testes". Eis a essência das políticas preconizadas pela nova direita. Freitas continua falando de Sobral:

"Como disse o prefeito da cidade a uma reportagem da Folha de S.Paulo (Takahashi, 2015): 'A nossa preocupação é com o arroz com feijão bem feito, sem pedagogês que não dá resultado'. O 'arroz com feijão' curricular está alinhado às apostilas e aos exames:

os estudantes passam por uma bateria de avaliações. Além das provas aplicadas pelos próprios colégios, que são no mínimo mensais, são feitas semestralmente avaliações do município, com equipes de fora do colégio. Também há os exames dos governos estadual e federal.

Em relação ao material didático, ele afirma que: 'Parte do material pedagógico é feito pela rede, parte por empresa terceirizada. Em comum há a determinação do que deve ser ensinado a todos, diariamente'. Para garantir controle, os resultados nos testes dos alunos orientam a remuneração dos professores das escolas. Segundo um diretor de escola: 'A gratificação por desempenho é o que alimenta a vontade de continuar melhorando'.

No entanto, uma reportagem do Jornal GGN  feita por Villas-Boas (2017), que passou três meses investigando Sobral, mostra uma visão diferente:

Sobral se destaca por ter, de fato, realizado medidas administrativas boas, mas também por ter manipulado engenhosamente o Ideb, o que testemunham diversos educadores do próprio sistema público do município e ligado a eles.

No caso da aprovação, por exemplo, diferentes professores contam que alunos bons do mesmo ou de outros anos são postos para fazer provas de alunos ruins ou doentes ou detentos, por orientação de alguns professores, que recebam, como renda variável, em torno de 500 reais a mais no salário quando a nota do Ideb é boa. Casos em que alunos recebem notas maiores do que realmente tiraram, a título de 'motivação', também são corriqueiros, conforme reforçam alguns pais de alunos, que ouviram isso em reunião entre professores, pais e alunos.

Uns acham que a Secretaria Municipal de Educação não sabe, outros acham que ela finge que não sabe desses fatos. Se este autor os descobriu em apenas três meses de pesquisa, a prefeitura de Sobral, comandada pelo mesmo grupo há vinte anos, deveria ter conhecimento.

A reportagem ainda afirma que:

Quanto ao aprendizado, também há manipulações, segundo os educadores. Todo o programa é focado em Português e Matemática, disciplinas do Ideb, ficando as demais matérias em segundo plano ou em plano nenhum.

Um professor de História contou que recebe alunos de outra escola e pergunta quem era o professor deles antes, então eles frequentemente respondem que mal viam a disciplina, o que o deixa desacreditado e triste com o sistema. Páginas 135-137.

Creio que com este trecho sobre Sobral, praticamente todos os elementos da reforma empresarial da educação já estão presentes. Mas façamos um confronto com uma síntese dessas reformas: "Ao controle da gestão via privatização (por terceirização e/ou vauchers), complementado com o controle do processo pedagógico (por meio de uma base nacional comum curricular (BNCC) e sua irmã gêmea, a avaliação censitária (Saeb), inserida em políticas de responsabilização, somam-se: a) o controle das agências formadoras do magistério, via base nacional da formação de professores, e b) o controle da própria organização da instrução, por meio de materiais didáticos e plataformas de aprendizagem interativas. Ao redor da escola floresce um mercado de consultorias e assessorias destinadas a lidar com todas essas exigências". Página104.

O livro não é longo. Tem 160 páginas. Está estruturado em uma apresentação e 10 pequenos capítulos, que passo a apresentar: Introdução. (Apresentação do tema e um breve histórico - os anos 1990 até o golpe de 2016). 1. Origens e fundamentos da reforma: breve contextualização (teoria e história do neoliberalismo - liberalismo econômico e autoritarismo social - Friedman e os vouchers - um individualismo violento contra os direitos coletivos - golpes para assegurar a liberdade). 2. Os novos reformadores (Contra o Estado, mau gestor, a eficiência do mercado - controle empresarial da educação - vouchers - a moldagem da escola pelo mercado - destruição das redes públicas de ensino - Bush e o Texas - padronização curricular e aferição por avaliações - metas controles e remuneração por meritocracia - adaptar a educação ao 4.0). 

3. Privatização ou publicização? Existe "meia" privatização? (Organização empresarial - privatização via vouchers e terceirizações -  financiamento público e gestão privada - instituição de controles). 4. Evidência empírica, ética e privatização (o essencial é privatizar - A transformação de um direito em um serviço disponível no mercado - ética do êxito individual - educação sem a meta da igualdade - segregação) 5. Padronização, testes e accountability: a dinâmica da destruição. (Padronização via currículos e aplicação massiva de testes e responsabilização de escolas e professores - remuneração e punições de acordo com os resultados - Meritocracia). Um capítulo essencial. 6. Obstruindo a qualidade da escola pública: mais implicações éticas ( A padronização - os testes - BNCC - a responsabilização dos professores e das escolas - remuneração e punições). 7. Controlar o processo, precarizar o magistério (Controle ideológico - ódio contra os professores - plataformas online - trabalhador desqualificado e dependente da tecnologia - "o professor trabalhará mais se estiver com sua cabeça a prêmio todo dia" - fim da estabilidade - de salários iguais - da previdência e sindicalização - premiações por mérito)

8. Impactos nos estudantes: "toda a escola, seeentido"! (Novos padrões cognitivos e morais, contidos na avaliação padronizada - O sócio-emocional - competição em vez da solidariedade - Tolerância zero nas escolas - a militrização - A escola prisão - para "civilizar" as crianças - escolas e criminalização - supressão das artes e da música. 9. Um outro horizonte é possível. (Discutir para além dos currículos padronizados - as estruturas da sociedade - "Em educação não pode haver perdedores, só pode haver ganhadores). 10. Uma proposta para a resistência, com a apresentação de 20 tópicos. É nesse capítulo que o autor traz a escola SOBRAL. Há ainda uma rica indicação da bibliografia utilizada.

Apresento ainda a síntese das orelhas: "Este livro é escrito em um momento em que as ideias neoliberais retornam ao cenário brasileiro com força; ele procura caracterizar as origens das reformas empresariais da educação em curso no Brasil, aceleradas após 2016, mostrando que elas são dependentes de uma concepção de educação baseada na defesa do livre mercado (Hayek, Friedman e Buchanan).

Este conceito de sociedade entende que a qualidade da educação depende da inserção das escolas, professores e estudantes em um mercado concorrencial, do qual ela emergeria, então, sem interferência do Estado. Deriva daí o conjunto de recomendações que propõe privatizar a educação (por terceirização e/ou vouchers) e instalar processos de padronização da educação através da dinâmica entre bases nacionais comum curriculares, sistemas de avaliação baseados em testes censitários e responsabilização meritocrática como indutores da inserção da educação no mercado.

Depois de caracterizar o movimento da reforma empresarial, são apresentados dados evidenciando que os efeitos negativos destas políticas nas escolas, no magistério e nos estudantes não autorizam, do ponto de vista ético, sua aplicação nos sistemas de ensino, inclusive porque elas impedem o desenvolvimento de outras formas mais promissoras de se mudar a escola pública e favorecem a estagnação de sua qualidade. Finalmente, são apontados elementos para uma política alternativa e um programa para a resistência".

Duas observações finais: No Brasil as fundações educacionais são os novos Think tanks dessa concepção de educação e uma frase do nosso ex senador e governador Roberto Requião, numa manifestação pública. O nosso modelo de educação deve ser inspirado em Paulo Freire e não em Sobral. Devo ainda dizer que escrevi este post com profunda tristeza. Não é esta a educação que queremos! O livro é da Expressão popular, do ano de 2018.






segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

"Condenado à liberdade para sempre". IDADE DA RAZÃO. Jean-Paul Sartre.

"Estava só (Mathieu) em meio a um silêncio monstruoso, só e livre, sem auxílio nem desculpa, condenado a decidir-se sem apelo possível, condenado à liberdade para sempre". (Página 299 de Idade da razão). De tudo o que eu estudei de Sartre, ao longo de minha vida, esse conceito emerge espontaneamente. "O homem está condenado a ser livre". Trago comigo, inclusive, desde os idos de 1968, o ano de minha licenciatura, o livrinho O existencialismo é um humanismo, do qual emana esse conceito da condenação pela liberdade.

Idade da razão. Abril. 1972.

Agora, por ter em casa a coleção Os imortais da literatura universal, enveredei pela obra literária de Sartre, com a leitura de Idade da razão. Como de hábito, vamos às primeiras contextualizações da obra, dizendo antes, que deste livro, emana ou está condensado também todo o saber filosófico do autor. O livro, que faz parte de uma trilogia, teve a sua primeira publicação no enigmático ano de 1945, ano do término da Segunda Guerra Mundial, mas não das guerras, mundo afora. Tempo de profundas aflições e de interrogações em torno do significado do existir. Poucas respostas havia para um mundo de interrogações. Sartre nasceu no ano de 1905, em Paris, cidade na qual também morreu, em 1980. A Segunda Guerra Mundial foi precedida pelos regimes totalitários do nazismo, do fascismo, do franquismo e do stalinismo. 

Possivelmente Sartre tenha sido o último intelectual influente no mundo. Por influente, entendo ser ouvido. Sartre era um intelectual respeitado. E como tal, tomou partido e não se ausentou da militância política, tornando-se, por isso mesmo, muito polêmico. O livro de seu amigo Albert Camus, O homem revoltado, é, inclusive, considerado como o livro da Guerra Fria, no campo literário. Ainda não havia os influencers baratos do nosso tempo. Vou apresentar dados do livro de contextualizações e mini biografias que acompanha a coleção, para localizar as origens do pensamento do grande filósofo:

"Atraído pela fenomenologia, Sartre solicitou uma bolsa de estudos para passar um ano em Berlim (1933). Além da doutrina de Husserl, o jovem professor francês investigou as teorias existencialistas de Heidegger, Karl Jaspers e Max Scheler, que aprofundavam as ideias de Kirkegaard sobre a angústia da existência humana. No espírito de Sartre, começava a amadurecer uma nova filosofia, misto de existencialismo e fenomenologia". Sartre usou muito do teatro e da literatura para expor o seu pensamento. Vejamos isso expresso no nosso livro guia da coleção:

"Expresso no teatro e no ensaio, o problema da ação e da liberdade constitui o tema dos romances  que compõem a trilogia Os caminhos da liberdade.

Em A idade da razão (1945), primeira parte da obra, as questões individuais dominam; a história e a política aparecem como pano de fundo. Mathieu Delorme, jovem professor de filosofia, procura a liberdade "pura", sem compromissos de qualquer espécie, Brunet, ao contrário, personifica a renúncia da liberdade em favor do engajamento político. O ...................  Daniel (omiti um qualificativo para não roubar a expectativa do leitor) ilustra a tese, bastante difundida nos anos 30, de que o ato gratuito, sem qualquer motivo, é a única prova concreta da verdadeira liberdade. Na visão de Jacques, irmão de Mathieu, atingir a "idade da razão" significa abandonar os sonhos juvenis sobre a 'liberdade' e casar-se, ter um trabalho, uma vida regular (uma vida burguesa). Mas nem Mathieu, nem Brunet, nem Daniel podem aceitar tal perspectiva, que implica, para eles, uma 'morte interna'''. Embora a minha leitura tenha se atido ao primeiro volume da trilogia, para efeitos de contextualização maior, apresento também a essência dos outros dois:

"Em Sursis (1945), o segundo volume, os acontecimentos políticos são relatados paralelamente à vida íntima das personagens, de modo a revelar que os destinos individuais são, na verdade, determinados pela marcha da história, tornando-se assim ilusória a busca pessoal da liberdade. Apenas um compromisso com a história pode dar sentido à existência, conclui o escritor. As personagens, contudo, esperam ingenuamente que os Acordos de Munique evitem a guerra e a necessidade de um engajamento pessoal. É um período de sursis (espera), no qual a tempestade apenas aguarda a hora de desencadear-se.

Com a morte na alma (1949) é a terceira parte da obra. A ação transcorre em plena guerra, quando Mathieu é levado a engajar-se. Mas é um engajamento gratuito; ele arrisca a vida apenas para retardar de algumas horas a investida alemã. Brunet, aprisionado, procura organizar os companheiros para a revolta. Apesar dessa atitude corajosa, permanece escravo das ordens - mesmo absurdas - de seu partido. Daniel fica em Paris, colaborando com os ocupantes". São questões complicadas e existe muita literatura a respeito. No Brasil, é interessante ver a obra de Jorge Amado, de quem, por sinal, Sartre era amigo.

Bem, voltemos ao Idade da razão. Mathieu e Marcelle são os personagens centrais. Estão envolvidos em um caso de gravidez de Marcelle. A partir daí são discutidos o aborto, o casamento, o amor e as convicções das pessoas, bem como a firmeza em torno dessas mesmas convicções. Isso envolve os diferentes personagens e as diferentes convicções. E para realizar um aborto é necessário ter dinheiro. Teria que ser feito clandestinamente, ou por médico ou por charlatões. E como se faz para obter o dinheiro? Devo dizer ainda que o romance flui, a leitura te pede continuidade. Boates, dancings, noitadas de bebidas formam a ambientação do romance, do qual deixo as frases finais:

"Sentia ainda no fundo da garganta o calor adocicado do rum. Bocejou. O dia estava acabado e acabava sua mocidade. Morais comprovadas já lhe ofereciam seus serviços. O epicurismo desabusado, a indulgência sorridente, a resignação, a seriedade do espírito, o estoicismo, tudo isso que permite apreciar, minuto por minuto, como bom conhecedor, uma vida malograda. Tirou o paletó, pôs-se a desfazer o nó da gravata. Repetia bocejando - Não tem dúvida, não tem dúvida, estou na idade da razão". Deixo ainda a resenha de O homem revoltado de Albert Camus.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/07/o-homem-revoltado-albert-camus-nobel.html