sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

LARANJA MECÂNICA. Anthony Burgess. 1962.

Antes do término de 2024, mais uma releitura. Nem me lembrava de sua leitura. Isso tem uma explicação: a força das imagens do filme de Stanley Kubrick, de 1972. Elas se sobrepuseram às imagens do livro, que teve a sua primeira publicação no ano de 1962. Estou falando de Laranja mecânica, de Anthony Burgess. Adquiri o livro em 2007 e chamo atenção para uma parte que eu sublinhei. Ela está na terceira parte do livro, em seu capítulo 4, quando alguém acode Alex, o jovem submetido às experiências de regeneração:

Laranja mecânica. Anthony Burgess. Aleph - editora. 2006.

"Eles transformaram você em alguma coisa que não um ser humano. Você não tem mais o poder de decisão. Você está comprometido com atos socialmente aceitáveis, uma maquininha capaz de fazer somente o bem. E vejo isso claramente: essa questão sobre os condicionamentos de marginais. Música e o ato sexual, literatura e arte, tudo agora deve ser uma fonte não de prazer, mas de dor". E, Alex, o narrador, continua: "Eles sempre vão longe demais - ele disse, secando um prato meio distraído. - Mas a intenção essencial é o verdadeiro pecado. Um homem que não pode escolher deixa de ser um homem". (Página 158). É o livro.

Anthony Burgess, o autor, fora sentenciado à morte pelos médicos. Teria ainda, no máximo, um ano de vida. Aí desembestou a escrever. A sentença não se cumpriu e ele pode retomar, com todo o cuidado, a escrita de Laranja mecânica. O livro é narrado por Alex, um jovem londrino envolvido na violência urbana da cidade, no início da década de 1960. Ele é o chefe de uma quadrilha muito violenta. A polícia reage com ainda maior violência e busca, por meio de experiências da ciência, soluções para o problema. É o Método Ludovico, que consta do uso de drogas e condicionamentos pavlovianos para a recuperação dos jovens das gangues. Eles sentiriam repugnância diante de atos violentos. E assim estariam curados, podendo retornar à sociedade.

O livro tem uma particularidade. Ele usa a linguagem Nadsat, a linguagem das gangues londrinas. Ao final do livro, tem até um pequeno dicionário, apresentando o significado das palavras empregadas. Para apresentar a essência do livro, recorro primeiramente à orelha da capa do livro, para depois apresentar a sua estrutura: "Alex é o líder de uma gangue futurista. Junto com os amigos adolescentes Georgie, Pete e Tosko, pratica assaltos, espancamentos e estupros livremente pelas ruas de uma Londres decadente, cujos habitantes têm medo de sair à noite e preferem se distrair com programas de televisão.

Um dia Alex vai longe demais e, involuntariamente, comete um assassinato. Preso, sua única chance de sair da reclusão é participar como cobaia de uma experiência de engenharia social desenvolvida para eliminar tendências criminosas. Uma experiência extremamente dolorosa e tão desumana quanto a ultraviolência que o próprio Alex costumava praticar.

Narrada pelo personagem principal, esta brilhante e perturbadora história cria uma sociedade futurista em que a violência atinge proporções gigantescas e provoca uma resposta igualmente agressiva de um governo capitalista, porém totalitário. O clássico de Anthony Burgess frequentemente nos choca ao explorar o verdadeiro significado da liberdade e o conflito entre o bem e o mal. A estranha linguagem utilizada por Alex - soberbamente engendrada pelo autor - empresta uma dimensão quase lírica ao texto e é, talvez, seu maior atrativo.

Ao lado de 1984, de George Orwell, e Adorável mundo novo, de Aldous Huxley, Laranja mecânica é um dos ícones literários da alienação pós-industrial que caracterizou o século XX. Adaptado com maestria ao cinema em 1972 por Stanley Kubrick, é uma obra marcante: depois de sua leitura, você jamais será o mesmo".

O livro é dividido em três partes. Cada uma tem sete capítulos. Isso tem uma razão. Vejamos Fábio Fernandes no prefácio: "Burgess construiu cuidadosamente essa estrutura de 21 capítulos porque, na cultura anglo-americana, a idade adulta só é plenamente atingida aos 21 anos, e Laranja mecânica, antes de tudo, é o que os alemães chamam de bildungsroman: um romance de formação. A trajetória de Alex da adolescência nada inocente até a maturidade e o início de uma possível compreensão das responsabilidades adultas só se completa efetivamente no vigésimo primeiro capítulo. A divisão de cada parte em sete capítulos é baseada no monólogo clássico de Shakespeare sobre as sete idades do homem na peça As You Like It". As sete idades são as seguintes: idade infante, escolar, amante, soldado, juiz, pantalão e a velhice.

Confesso que o último capítulo me deixou um tanto confuso: Como é possível que uma distopia termine em regeneração. Nele, Alex se encontra com Pete, um dos companheiros de quadrilha da adolescência, casado e com filhos. Passara dos 21 anos. Seria isso uma regeneração natural alcançada pela idade?

Mas vamos às três partes: Na primeira são narrados os atos violentos da gangue, assaltos e estupros, até o ato extremo de uma morte, que leva Alex ao sistema prisional. A segunda parte é dedicada à descrição dos métodos de cura, os condicionamentos psíquicos de horror à violência. E na parte final, Alex, devidamente condicionado é devolvido à sociedade, perfeitamente adaptado à ela. Todos procuram tirar proveito da situação, exaltando as virtudes do método ou fazendo a sua crítica. Devo dizer que, no mínimo, o livro é extremamente instigante. Um libelo contra o autoritarismo e contra o  behaviorismo e uma afirmação pela autoafirmação e autodeterminação do ser humano. A liberdade. Marcou época.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

O ideal grego da educação individualista. Na ILÍADA de Homero.

Em meus já longos anos de estudos sempre busquei os fundamentos. Os fundamentos dominantes em nossa cultura. Nela estão assentados os princípios que norteiam a vida e afirmam os valores que dão sentido e significado à existência. São eles que nos conduzem a uma harmonização de vidas ou então o seu contrário. São eles que fundamentam o comportamento humano, contidos nos princípios morais e éticos da convivência humana. Para encontrá-los, nada melhor do que ler e estudar os clássicos.

Iliada. Homero.

Nesse sentido, estou numa releitura de clássicos: Ilíada, Odisseia e Eneida. Uma observação de Marcos Reis Pinheiro, contida no prefácio da Odisseia, da Editora Nova Fronteira, me chamou particular atenção. Ela diz assim: "Homero criou a Grécia histórica, tendo sido então de influência tão profunda e duradoura como a Bíblia, Dante e Shakespeare em fases subsequentes da cultura ocidental. O verso 208 do Canto VI da Ilíada, na fala de Glauco, resume o ideal grego da educação individualista, do agon, na luta, em que o preceptor desperta no aluno o espírito de competição levada ao extremo, educando-o.

para ser sempre o primeiro e de todos os mais distinguir-me". 

Já a definição de Agon, segundo a Wikipédia nos diz que era "era um daemon (espírito orientador) que personificava os concursos, desafios e disputas solenes nos jogos olímpicos, nas peças teatrais e também nos debates e discussões filosóficas". Quem teve a felicidade de conhecer a cidade de Olímpia teve a oportunidade de conhecer esse espírito. Lutar ao lado de vencedores, muitas vezes elevados à condição de semideuses. Portanto, um direcionamento do imaginário, tão presente nos cursos motivacionais de nossos tempos. Seja sempre o primeiro e nada te impede que você o seja!. O problema, na modernidade, são as tais das condições materiais.

A minha grande referência para os estudos da educação grega sempre foi o livro Paideia, a formação do homem grego, do alemão Werner Jaeger. Já no primeiro capítulo, lugar dos gregos na história da educação, depois de falar desses fundamentos da civilização grega, ele faz a sua aplicação aos princípios educacionais. Vejamos uma parte dessa apresentação: "Colocar esses conhecimentos como força formativa a serviço da educação e formar por meio deles verdadeiros homens, como o oleiro modela a sua argila e o escultor as suas pedras, é uma ideia ousada e criadora que só podia amadurecer no espírito daquele povo de artista e pensador. A mais alta obra de arte que seu anelo se propôs foi a criação do Homem vivo. Os gregos viram pela primeira vez que a educação tem de ser também um processo de construção consciente. 'Construído de modo correto e sem falha, nas mãos, nos pés e no espírito', tais são as palavras pelas quais um poeta grego dos tempos de Maratona e Salamina descreve a essência da virtude humana mais difícil de adquirir. Só a este tipo de educação se pode aplicar a palavra formação, tal como a usou Platão pela primeira vez em sentido metafórico, aplicando-a à ação educadora".(Página 13). O alemão chama a isso de Bildung e a diferencia de Erziehung, a educação escolar formal.

Jaeger, já antes, fala da inspiração grega na formação do mundo moderno e lhe aponta estas características de formação individual: "O mundo grego não é só o espelho onde se reflete o mundo moderno na sua dimensão cultural e histórica ou um símbolo da sua autoconsciência racional. O mistério e deslumbramento originário cerca a primeira criação de seduções e estímulos em eterna renovação". Um pouco mais adiante ele reafirma e reforça esse princípio: "Dissemos que a importância universal dos gregos como educadores deriva da sua nova concepção do lugar do indivíduo na sociedade. E, com efeito, se contemplamos o povo grego sobre o fundo histórico do antigo Oriente, a diferença é tão profunda que os Gregos parecem fundir-se numa unidade com o mundo europeu dos tempos modernos. E isto chega ao ponto de podermos sem dificuldade interpretá-los na linha da liberdade do individualismo moderno" (Página 9).

Paideia. A formação do homem grego. Werner Jaeger. Martins Fontes.

A educação está umbilicalmente ligada à palavra caminho, meios, processos. Isto é, a promoção da inserção do indivíduo na sociedade. Inserção do indivíduo na sociedade. Ela é dinâmica e está em constante processo de transformação. O mesmo ocorre com as estruturas da sociedade. E é esta a razão de sua complexidade e de suas polêmicas. Outras palavras entram na análise. O coletivo, o comum, o conviver, modelos de sociedade. Hoje ela é um renhido campo de disputas. Isso a leva a controles, que chegam ao grau de insensatez. Seus objetivos muitas vezes são reduzidos a treinamentos utilitários, as avaliações são massivamente padronizadas e a atuação docente é limitada ao uso de plataformas, eliminando a práxis do trabalho docente. E onde fica a formação do indivíduo?

Tenho recomendações a fazer, de dois grandes educadores brasileiros. De Dermeval Saviani Escola e democracia e de Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade, Pedagogia do Oprimido e Pedagogia da autonomia - saberes necessário à prática pedagógica. Entre esses dois autores, compreendo as diferenças, mas neles vejo mais aproximações do que distanciamentos. Uma educação voltada para a formação da consciência, consciência de classe. 

Também tenho comigo um texto do memorável Milton Santos. Um texto do qual eu não desgrudo. Os deficientes cívicos, publicado na Folha de S.Paulo de 19 de janeiro de 1999. Eu o considero como um testamento seu, que ele nos legou. Ele nos fala da redução da educação nos tempos da globalização, termo pelo qual, na época, era denominado o neoliberalismo. Ele afirma e reafirma que a educação, entendida como formação, como Bildung, nunca pode dissociar-se da formação filosófica e da formação profissional. Nunca o pêndulo pode pender mais fortemente, apenas para um dos lados sob a pena de formar deficientes cívicos. A sua tese principal é a de formar indivíduos fortes e cidadãos íntegros. 

Este texto é um texto para blog, chamativo para o debate. Isso implica em limites de todos os tamanhos. Mas com certeza, serve para a reflexão e o debate, com algumas linhas necessariamente presentes, sempre quando se debate a educação. Pena que hoje se debata tão pouco e se imponha tanto. Tempo de governos neoliberais. Tempos em que o neoliberalismo deixou de ser mera doutrina econômica para ser uma visão de mundo, que enxerga tudo sob uma ótica de unidimensionalidade. A ótica da mercadoria, do lucro e da acumulação. O ser humano é plural e complexo, fruto da relacionalidade e da riqueza da pluralidade, das trocas. Jamais um pensamento uniforme, padronizado e imposto.

Que a educação tenha sempre a perspectiva da expansão e não da contenção. Termino com uma frase em que é definida a criança, no seu sentido mais pleno. Ela se encontra no livro A resistência, de Ernesto Sábato. Diz assim: "Toda a criança é um artista que canta, dança, pinta, conta histórias e constrói castelos". É tarefa da educação ajudar a expandir este artista e, pela Bildung, formar um ser humano "construído de modo correto e sem falha nas mãos, nos pés (mundo trabalho) e no espírito (o mundo da filosofia, da política, da cidadania). Ajudar a criança na inserção no mundo e não na adaptação ao mundo. Hoje, creio também, que em função do hiperindividualismo, a palavra emulação é melhor do que a palavra competição.

Deixo o texto do Milton Santos. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/03/os-deficientes-civicos-milton-santos.html e também um texto sobre a fundação do pensamento humanista, contido na Ilíada.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/01/iliada-homero-uma-definicao-do-humano.html


quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

ILÍADA. Homero. Uma definição do humano.

Ilíada é uma obra que retrata a cultura grega, atribuída a Homero e que, junto com a Teogonia (Hesíodo) e a Odisseia (também de Homero), é peça fundante da literatura e da cultura universal. Ela é uma compilação da tradição oral, datada do século IX ou VIII a. C.. Ela retrata o último ano da Guerra de Troia, ocorrida no século XII a. C.. Alguns até lhe fixam os dez anos de duração com os anos de 1194 a 1184 a. C.. Homens valorosos, super-homens e deuses se envolveram nessa guerra, motivada por elementos profundamente humanos. Ela envolveu as cidade gregas contra a poderosa Troia, situada na Ásia Menor. Ambas as cidades tiveram os seus heróis. Os heróis troianos foram exaltados mil anos após, por Virgílio em Eneida, dedicada a Eneias. Uma exaltação ao fundador de Roma e do Império Romano.

Ilíada. Homero. Nova Fronteira.

Bem, a finalidade deste post é mostrar a presença do humano, os valores que o constituem e exaltados por Homero, especialmente, ao final da obra. Vamos, por isso retomar esta parte da obra, para nos fixarmos no canto XXIV, o canto final. Ele trata do resgate do cadáver de Heitor, para lhe oferecer as devidas honras fúnebres. Na Eneida encontramos uma descrição precisa sobre a importância do funeral nessas culturas fundantes. Sibila, a guia de Eneias no mundo das sombras, assim fala ao herói troiano: "Toda essa multidão aqui é constituída de pobres que ficaram sem sepultura. Não lhes será permitido atravessar o rio antes que seus restos repousem nas tumbas ou seus corpos sejam cremados nas piras. Se tal não acontecer, aqui ficarão vagando cem anos e até duas vezes cem anos, antes que deles se condoa o triste Caronte".

Afirmada esta importância, voltamos à Ilíada. O troiano Heitor é morto por Aquiles, que assim vinga a morte de seu grande amigo Pátroclo, morto por Heitor. Aquiles, tomado de ódio, não se satisfaz apenas com a morte de seu inimigo. Também lhe profana o corpo, mantendo-o insepulto. Príamo, o rei de Troia e pai de Heitor, procura meios, grandes e simbólicas riquezas, para resgatar o filho junto a Aquiles, e lhe prestar as honras funerais. É nesse momento que os ódios que envolvem os personagens são superados pelos valores. Cenas comovedoras são apresentadas. Demos atenção a elas: Príamo fala a Aquiles:

"Sem pelos outros ser visto, entra o grande monarca, e de Aquiles // aproximando-se, abraça-lhe os joelhos e beija as terríveis // mãos homicidas, que muitos dos filhos lhe haviam matado.

Como se dá quando algum criminoso exilado da pátria // busca, vencido da angústia, refúgio em mansão opulenta // de potentado estrangeiro, deixando os presentes atônitos: // do mesmo modo o terrível Pélida se assombra ao ver Príamo. 

Todos os mais se entreolharam, tomados de pasmo como ele. // Súplice, Príamo, então, começou de falar, e lhe disse: // "lembra-te, Aquiles, igual a um dos deuses, teu pai venerável é // da mesma idade que a minha e, portanto, como eu, assim velho. //É bem possível que esteja cercado por fortes vizinhos, // cheio de angústia, sem ter quem lhes sirva  de amparo e defesa; // mas, só de ouvir que estás vivo, alegria indizível lhe invade // o coração, dia a dia esperando poder ante os olhos ter a figura do filho glorioso, de volta de Troia.

Muito mais triste é o meu fado, que, após tantos filhos ter tido, // de comprovado valor, nem um só na velhice me resta. // Vivos, cinquenta floriam no tempo em que os Dânaos chegaram; // da mesma mãe, dezenove guerreiros me foram brindados; // os outros todos diversas mulheres nos paços tiveram. // De muitos dele as forças dos joelhos tirou Ares forte; // e o único herói que restava, dos muros amparo e de todos, // a combater pela pátria, não há muito tempo mataste, // o meu Heitor, cujo corpo aqui venho insistente pedir-te, // às naus aquivas trazendo resgate de preço infinito.

Sê reverente aos eternos, Aquiles; de mim tem piedade; // pensa em teu pai, também velho, bem mais infeliz sou do que ele, // pois chego agora a fazer o que nunca mortal fez na terra: // beijo-te as mãos, estas mãos que a meus filhos a Morte levaram".

Grande saudade do pai no Pelida o discurso desperta; // toma das mãos do monarca, afastando-o de si com brandura. //Ambos choravam; o velho, lembrando de Heitor valoroso, // num soluçar convulsivo, de Aquiles aos pés enrolado, // que, ora o pai velho chorava, ora a perda do amigo dileto, // Pátroclo; o choro dos dois pela tenda bem-feita ressoava.

Logo que Aquiles divino saciado ficou de gemidos // e os membros todos e o peito sentiu libertados da angústia, //do belo trono se ergueu, pela mão toma o velho monarca, // de branca barba condoído, condoído da nívea cabeça, // e, começando a falar, lhe dirige as palavras aladas:

"Quanta amargura, infeliz, não suportas ao peito sofrido! // Como pudeste vir só aos navios dos fortes Aquivos // e apresentar-te entre os olhos de quem foi a causa da perda // de tantos filhos valentes? Tens férreas entranhas, decerto. // Vamos, assenta-te agora no trono; apesar de angustiados, // é conveniente deixar as tristezas no peito se aplaquem.

Nada o homem lucra em deixar-se invadir pelo gélido pranto. // Sempre viver em tristeza, eis a sorte que os deuses eternos // de descuidada existência aos mortais infelizes dotaram. // Sobre os umbrais do palácio de Zeus dois tonéis se acham postos, // de suas dádivas; um só de males; de bens outro cheio. // Se, misturando-as, Zeus grande, senhor dos trovões, as derrama, // quem as recebe ora goza, ora males por sorte lhe tocam; // mas o que dele recolhe somente infortúnios, escárnio // vivo se torna; em extrema miséria, na terra divina, // é condenado a vagar, desprezado por homens e deuses. //

Ao nascimento, também, de Peleu os eternos lhe deram // dons inefáveis; riquezas sem conta, dos homens a estima, // e o incontestado governo dos fortes guerreiros Mirmídones. // Mais: apesar de mortal, como esposa uma deusa lhe cedem. // Grande infortúnio, porém, concederam-lhe os deuses, negando-lhe // filhos que o mando pudessem herdar-lhe no belo palácio; // a mim somente gerou, destinado a morrer muito cedo. // Longe a pátria, não posso cercar de cuidados o velho, // pois me acho em Troia, causando-te, e aos filhos, desditas sem conta.

Tu, também, velho, já foste feliz, pelo que me contaram. // Quantos guerreiro existem de Lesbo, na sede de Mácar, // té para o norte da Frígia, nos lindes do vasto Helesponto, // já dominaste, abençoado com filhos e bens infindáveis. // Mas, desde o instante em que os deuses celestes tal praga te enviaram, // guerra, somente, e homicídios em torno dos muros te soam.

Vamos, suporta! Não deves à dor excruciante entregar-te. // Nada consegues chorando teu filho com tantos encômios; // não ressuscita, e, além disso, outro mal poderias causar-te" (Versos 476-549).

Vamos retomar a fala de Aquiles, quando fala dos dois tonéis. O que não está dito?  Vamos dar voz a Carlos Alberto Nunes, responsável pela introdução, apresentada à editora Nova Fronteira. A mesma também pode ser encontrada na edição da Melhoramentos: 

"Na resposta de Aquiles é que vamos encontrar a muito famosa e para sempre célebre imagem dos dois tonéis do limiar no Olimpo, de males e de bens, as dádivas de Zeus. Se, ao nascimento, alguém recebe uma mistura desses dons, atravessa, de acordo, a existência: ora a sofrer, ora com fases de relativa felicidade. Mas, se recebe apenas males, torna-se desprezado por todos e ludíbrio permanente dos homens e dos deuses. É de notar que Aquiles não menciona a terceira possibilidade: de receber algum mortal, ao nascimento, apenas dádivas do tonel de bens, pois a condição humana é incompatível com essa disposição".

Eis revelada a condição humana. Os dois reis, valorosos guerreiros, viveram momentos profundamente humanos, valores humanos, que se impuseram ao desumano das guerras. Literatura e cultura fundante.

  


quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Sibila conduz Eneias ao mundo das sombras. 2. Aos Campos Elísios. O prêmio dos bons.

Como este post é o segundo da visita de Eneias ao mundo das sombras, deixo inicialmente o post da primeira viagem. A viagem ao tártaro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/12/sibila-conduz-eneias-ao-mundo-das.html

Retomo aqui o momento em que Eneias, já no mundo das sombras e guiado por Sibila, chega ao local da bifurcação do caminho: "Aqui há uma bifurcação: o caminho à direita vai dar às muralhas do grande Plutão e aos Campos Elísios, mas o da esquerda conduz ao horrível Tártaro, onde são punidos os maus". Vejamos agora o mundo dos Campos Elísios:

A Eneida. Virgílio.

"Ali é maior a claridade do sol e mais bonito o brilho das estrelas - astros todos próprios do lugar e diferentes dos da terra - e ali as almas afortunadas têm o rosto iluminado de alegria, divertindo-se nos jogos, nas danças ou com versos poéticos. Ali estava Orfeu, o sacerdote trácio, com suas vestes compridas, afinando nas harmoniosas cordas da cítara sete diferentes tons, ora fazendo-as soar com os dedos, ora com a palheta de marfim. Também lá viram os antigos pais da dinastia troiana, Teucro e Dárdano, fundadores da raça. De longe Eneias admira-lhes os carros de guerra, as armas reluzentes e os cavalos soltos que pastavam por toda a parte, tudo sob a forma de sombras. Tão forte era o gosto dos antigos por aquelas coisas que até ali as tinham levado. Através da floresta, serpenteia o Erídano, que, vindo do mundo superior, ali faz pequeno percurso, para em seguida subir de novo na direção do mar.

Pouco adiante, chegaram a um riacho murmurejante que deslizava entre loureiros fragrantes. Outras sombras ali estavam. Eram as dos homens muito virtuosos e a quem muito amavam os deuses; os que tinham perecido defendendo a pátria; os que tinham dedicado sua vida terrena à procura da verdade - sacerdotes, filósofos e poetas  cujos cânticos haviam inspirado pensamentos nobres nos corações dos homens; e também aqueles que haviam conquistado a estima do povo por seu altruísmo. Todos eles, de fita branca amarrada à cabeça, reuniram-se em torno dos viajantes, quando lhes perguntou  a Sibila:

- Onde podemos encontrar Anquises? Por causa dele viemos e atravessamos o Érebo. 

Uma das sombras, a mais destacada entre as outras, pertencentes ao poeta Museu, assim falou:

- Nenhum de nós aqui tem morada fixa. Habitamos os bosques espessos, os leitos das ribeiras e os prados frescos dos rios. Mas vós, se a vossa vontade assim o quer, subi a esse cabeço e logo vos porei no caminho certo.

 Então seguiram o poeta, que se adiantou e apontou-lhes a encosta arborizada. Desceram e encontraram Anquises lá embaixo, no vale. Ali o ancião olhava pensativamente as almas que estavam por nascer. Ao ver o filho, estendeu-lhe os braços e com os olhos em lágrimas exclamou:

- Ó filho querido, por fim vieste. É verdadeiro o grande amor que tens por teu pai e só ele te poderia trazer incólume através de perigos tão grandes. É-me permitido assim ver teu rosto, ó filho, e ouvir e fazer ouvir palavras conhecidas. Na verdade, contei dia a dia, hora a hora, o tempo que levarias para aqui chegar. Dize-me, agora, por que terras e mares andaste no teu caminho árduo! Que grandes perigos e dificuldades enfrentastes? Quanto temi pela tua estada em Cartago!

- Ó pai, foi tua imagem, aparecendo-me muitas vezes em sonhos, que me obrigou a vir aqui. A armada troiana está segura no mar Tirreno. Permite, permite, ó pai, que eu aperte a tua mão direita e que não te afastes do meu abraço.

A recordar tantas coisas, as lágrimas enchiam-lhe o rosto. Tentou três vezes abraçar a sombra do pai, mas a imagem fugidia lhe escapava das mãos, qual leves ventos, à semelhança do que acontecia nos sonhos. Nesse momento, Eneias viu, num vale, bosque isolado, cujas árvores murmuravam à brisa, diante do qual, na pradaria, corria o rio Letes. As margens do curso dágua agitava-se multidão de sombras, indo e vindo, atarefadíssimas como abelhas num campo cheio de flores. Todo o local ressoava com o azáfama, e Eneias, sem saber o que era aquilo, olhava espantado para o grande ajuntamento. Eis que disse Anquises:

- Esses são espíritos, filho, destinados a subir novamente à terra para serem reencarnados. Bebem a água do Letes e assim fazendo esquecem totalmente sua vida anterior. São almas que algum dia habitarão os corpos de teus netos. Chamei-te aqui para mostrar-te estas coisas, a fim de que então continues a caminho da Itália, com maior vigor, para lançares lá as raízes de nova raça.

- Ó pai, devo crer que daqui sairão as almas outra vez para a luz, e dar vida nova aos corpos humanos? E por que tanto desejam eles voltar a respirar o ar da terra?

- Na verdade eu te direi, ó filho, o segredo desses mistérios divinos, pois o véu que cobre os olhos de todos os mortais foi agora retirado da minha vista. Em primeiro lugar, saiba que o céu e a terra, os mares e a lua, o sol, as estrelas brilhantes são todos sustentados por grande espírito flamejante, grande mente onisciente, de onde provém todas as coisas vivas - as raças dos homens, os animais das florestas, as criaturas aladas e todas as formas estranhas que habitam as águas dos oceanos. Cada forma mortal toma dentro de si uma porção maior ou menor desse espírito universal, embora grande parte de seu fogo divino esteja sufocado e tolhido pelo cárcere da carne. É dessas centelhas inestinguíveis que emana todo o temor e desejo, todo o sofrimento e alegria, todo o amor e esperança. Quando vem a morte e o espírito é libertado da prisão corpórea, alguns dos defeitos que manchavam a forma terrena ainda se apegam a ele, em razão de sua longa permanência na terra, e os carrega para o Mundo das Sombras. Esses espíritos que vês amontoados às margens do Letes já sofreram punição e as manchas de culpa lhe foram levadas pelas torrentes espumantes ou queimadas pelos fogos purificadores. Depois disso, então, vieram por estes Campos Elísios e aqui estão morando até que a última mancha seja totalmente apagada, nada restando senão o espírito imaculado. Não se passarão menos de mil anos, antes que um espírito, inocente agora de qualquer pecado, esteja pronto para ser reencarnado. Então, a chamado divino, as almas purificadas vêm para as margens do Letes e, bebendo de suas águas, perdem toda a lembrança de sua vida anterior na terra e retornam à luz superior.

Acabando de falar, Anquises levou Eneias para o meio do grande ajuntamento fantasmagórico. Juntamente com Sibila subiram a um outeiro de onde pudessem melhor ver e conhecer os que ali se reuniam.

- Vem - disse Anquises - e mostrar-te-ei, dentro do que posso, algo das glórias que daqui em diante acompanharão a descendência dardânia, que netos terás na Itália, que almas ilustres hão de herdar teu nome. Vem e te revelarei os teus destinos. Aquele jovem que se encosta numa lança inofensiva, o primeiro da linha que se prepara para respirar os ares do Céu, é teu filho, Eneias, o mais moço de todos que te dará Lavínia, tua esposa, em idade avançada. Seu nome será Sílvio e ele, misturando seu sangue ao que corre nas veias italianas, fundará nova dinastia. Aquele próximo a ele é o espírito de Procas, que será um dos maiores heróis da nação troiana e um dos primeiros daquela descendência e sentar-se no trono da nação que erguerás, meu filho. Logo em seguida, estão as almas de Cápis, Numitor e Sílvio Eneias, que te fará reviver o nome, também notável pela piedade e pelo valor nas armas. Os dois primeiros fundarão as cidades de Nomento Gábios e de Fidena, respectivamente, e muitas outras serão também erigidas em campos que agora nem nome tem. A suma sacerdotisa Ília dará à luz um filho, Rômulo, cujo pai será o deus da guerra, Marte. Como este, o filho usará capacete com duas plumas e a ele Marte destinou grandes feitos guerreiros na terra. Reinará sobre a ínclita Roma, cidade de varões ilustres e cujas torres se elevarão de sete colinas dentro dos muros protetores. Sob seus auspícios a nação romana estenderá pelas terras seu poder e igualará seu merecimento ao próprio Olimpo. Volta agora teus olhos para mais adiante e vê César, chamado Júlio, segundo teu próprio filho Iulo - agora chamado Ascânio - e lá Augusto César, filho de Júlio, que trará a Idade do Ouro a Lácio. Governará seu povo com mão bondosa, procurará a paz abençoada e fará leis que levarão a justiça até o mais humilde de seus súditos. Seus domínios se estenderão por toda a África e Ásia, até as terras bárbaras do norte, que também se curvarão a seu jugo. Nem mesmo Hércules jamais reinou sobre tão grande extensão de terras.

E Anquises apontou muitos outros que no devido tempo subiriam à terra e tomariam parte em importantes acontecimentos.

- Ali estão os reis Tarquínios e Bruto vingador, e Paulo Emílio, que destruirá Argos, e Micenas de Agamenão, vencendo Perseu da Macedônia, assim vingando seus antepassados de Troia e os templos de Minerva profanados. O grande Catão, a geração dos Gracos e os dois Cipiões, flagelos da guerra da Líbia. Outros povos terão sem dúvida melhores escultores, melhores advogados, melhores astrônomos e melhores matemáticos, mas ao povo romano caberá a tarefa de impor as leis, governar os povos, propor as condições de paz, poupar os submissos e subjugar os soberbos. Vês que vem entrando Cláudio Marcelo, armado de ricos despojos. Será o maior de todos os heróis, sustentando a república romana, destruindo os cartagineses e subjugando o rebelde gaulês.

Assim iam Eneias, Anquises e a Sibila percorrendo a região e vendo todas aquelas coisas. O coração de Eneias rejubilava-se e seu ânimo exaltava-se ao sentir o destino glorioso que os deuses tinham reservado à sua descendência. Anquises instruía-o sobre o caráter e modos dos povos do Lácio, para onde logo iria. Disse-lhe das guerras que iria enfrentar, dos trabalhos por que passaria e da maneira que melhor se poderia sair das dificuldades.

Há dois portões que dão saída ao Mundo das Sombras. Um é escuro e feito de chifre e é por este que os espíritos sobem ao mundo superior para se reencarnarem. O outro é de branco brilhante, de marfim polido, mas é falso. Apenas os sonhos enviados pelas almas e os visitantes do Inferno a atravessam. Anquises levou seu filho e a Sibila pela porta de marfim e dali passaram rapidamente à terra.

Indo direto à frota, Eneias fez-se ao mar e, navegando para o norte, ao longo da costa italiana, lançou ferros num plácido ancoradouro" (Páginas 158 a 163).

O vislumbrar dessa realidade e o conforto trazido pelo encontro com o seu pai e as profecias que ele lhe fez, deram ânimo suficiente para Eneias continuar a sua missão. Ainda restavam outros seis capítulos de dificuldades para superar, pois estamos apenas no sexto capítulo, de um total de doze. Segue ainda a resenha de A Eneida. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/12/a-eneida-virgilio-19-c-o-grande-livro.html


segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Sibila conduz Eneias ao mundo das sombras. 1. Ao Tártaro. A punição dos maus.

A Eneida é o poema da cidade de Roma. Ele foi escrito no ano 19 a. C. por Virgílio. O herói do poema é Eneias, sobrevivente da Guerra de Troia. Ele é filho de Anquises e da deusa Vênus. Após a Guerra de Troia, vencida pelos gregos, com o recurso de um traiçoeiro estratagema, Eneias recebe dos deuses a missão maior de fundar, para os sobreviventes troianos, uma nova cidade e um novo reino. Os deuses haviam reservado para os troianos um destino maior. Eneias, não sem dificuldades, cumpre o seu glorioso destino, lançando-se aos mares.

A Eneida. Virgílio.

Antes de cumprir sua missão, Eneias empreende uma viagem ao mundo das sombras, ao mundo dos mortos. Será guiado por Sibila, que possuía dons divinatórios. Eneias quer ter um encontro com Anquises, seu pai, para dele receber conselhos e, ao visitar o mundo dos mortos, ver as qualidades humanas que foram premiadas e as que foram punidas. Ele quer fundar a cidade e o império que praticassem as boas qualidades e em que as más fossem evitadas. Os valores seriam assim revestidos de uma força sobrenatural. Esta visita ao mundo dos mortos está inserida no sexto capítulo do poema, sem dúvida, o grande cerne dessa obra monumental.

Já no mundo dos ínferos, depois de muitas admoestações de Sibila, sua guia, ela o alerta: " - Ó Eneias, a tarde vai avançando e estamos a chorar. Aqui há uma bifurcação: o caminho à direita vai dar às muralhas do grande Plutão e aos Campos Elísios, mas o da esquerda conduz ao horrível Tártaro, onde são punidos os maus". E, diante do inferno, já ouvindo gritos e terríveis gemidos, Eneias assim se dirige à profetiza que o acompanha:

" - Dize-me, ó profetiza, de que espécie de crimes são culpados aqueles e a que penas foram condenados? Por que tão grande gemer se eleva?" E segue uma viva descrição de horrores.

" - Ó rei ilustre dos troianos, a nenhum mortal piedoso é permitida a entrada naquela porta, mas quando Prosérpina me colocou como guardiã dos bosques de Averno, ela mesma me ensinou os castigos dos deuses e tudo mostrou-me. Rodamonte de Creta governa essas paragens más, ouve os condenados e as culpas, castiga as fraudes, obriga sob tortura a confessar os pecados contra os mortais - pecados deixados sem confissão até a hora da morte, alegrando-se seus detentores com uma falta vã. Imediatamente Tisífone, vingadora, armada de azorrague, olhos cruéis acendidos de alegria ao levantar e baixar o chicote, açoita os culpados. Na outra mão agita suas hórridas serpentes e lança suas Fúrias irmãs, tão selvagens quanto ela mesma.

Abriram-se as portas da morada infernal e a Sibila gritou a Eneias:

- Vês Tisífone sentada em guarda permanente ao portão? Lá dentro, naquele vestíbulo, tem assento uma hidra cruel, mais cruel que as cem Fúrias, com suas cinquenta bocas negras. Mais adiante está o Tártaro propriamente dito, abismo escancarado que alcança com sua profundidade duas vezes a altura do Olimpo à terra. Naquele poço de dor e tristeza, os filhos de Tita, os primeiros filhos da antiga Terra, foram lançados pelo raio relampejante de Júpiter e lá agora se revolvem em agonia. Lá também estão os enormes folhos gêmeos de Alódio, que tentaram com as mãos rasgar o céu e arrancar o onipotente Júpiter de seu trono dourado. Também vi Slamoneu, condenado por tentar imitar os sons do Olimpo e os raios de Júpiter. Galopando arrogantemente seu carro de quatro cavalos pela Grécia, agitava um archote flamejante e batia os bronzes - pobre imitação dos barulhos do Olimpo - exigindo divindade para si mesmo. Louco! Julgou poder imitar  com o bronze e o tropel dos cavalos o trovão e o raio! No entanto, o Todo-Poderoso lançou-lhe seu raio por entre as nuvens espessas - não archotes ou nós de pinheiro soltando fumaça negra, desta vez - arremessando o ímpio às profundezas do Inferno, entre imenso turbilhão de chamas. Também lá estava Títio, filho da Terra, mãe de todas as coisas. Seu corpo se estende por muitos hectares e um abutre cruel come-lhe eternamente, com o bico adunco, o fígado, abrindo-lhe dia e noite o peito cujas fibras renascem para que o castigo se prolongue sempre e sempre. E também Ixião e Piritoo, sobre os quais se alteia sobranceiro um penhasco gigantesco, sempre a ponto de desabar-lhes em cima. A sua vista está disposto suntuoso banquete preparado com magnificência real, mas ao lado senta-se uma Fúria, que, a cada movimento dos dois para alcançar as iguarias, ergue-se brandindo um archote e soltando trovões pela boca. Ali estavam encarcerados os muitos que haviam matado pai e irmão, ou feito grande mal a um vizinho, ou que amontoaram riquezas sem fim, nada repartindo com suas famílias - e eram os em maior número -, ou então era um traidor que vendera sua pátria ao inimigo, alguém que roubara a noiva ou forçara sua filha a casar contra a vontade. Todos são culpados de crimes horrendos e não me indagues que castigos lhes foram inventados pelos deuses. Uns são condenados a levar grande pedra ao cimo da encosta. Ao chegarem próximo ao topo, ela lhes escapa das mãos e rola de novo para baixo e eles de novo têm de buscá-la, assim fazendo eternamente. Outros giram sem cessar, membros atados aos raios de uma roda. Entre eles está Flégias, que com outros companheiros infiéis ateou fogo ao templo de Apolo em Delfos, profanando o santuário sagrado. Ele chama incessantemente, em altas vozes, da escuridão: "Tende cuidado. Aprendei a justiça e não ofendais os deuses". Mas por que te relato todas as histórias desses pobres miseráveis? Devemos apressar-nos, pois já vejo adiante as paredes e os portões no interior dos quais devemos depositar nossas oferendas.

Então, dirigindo-se naquela direção, Eneias borrifou o corpo com água fresca e colocou o ramo dourado no limiar dos portões. Portanto, tendo levado à deusa o presente desejado, chegaram eles aos campos alegres, aos vergéis frescos, às árvores deliciosas e às habitações abençoadas que são os Campos Elísios" (Páginas 154-158).

Na literatura, não são muitas as incursões ao mundo dos mortos. Mil anos antes de Virgílio, já Homero imaginara viagem semelhante. E no século XIV, teremos aquela que certamente é a mais famosa de todas, a de Dante Alighieri, à qual Virgílio serviu de inspiração e guia. Segue uma resenha de A Eneida.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/12/a-eneida-virgilio-19-c-o-grande-livro.html


quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

A ENEIDA. Virgílio. 19 a. C.. O grande livro de Roma.

O livro - A Eneida -, do poeta latino Virgílio, é um velho conhecido meu. Na década de 1960 eu frequentava o seminário, na cidade de Gravataí (RS). Recebíamos uma formação clássica. Isso incluía, entre outras obras, a sua leitura em latim e escandindo seus versos. Isso exigia muito esforço e disciplina. Até hoje guardo na memória um de seus versos, logo do início do famoso poema, em que é relatada a Guerra de Troia. Timeo danaos et dona ferentes. Uma referência ao famoso cavalo de Troia.

A Eneida. Virgílio.

Depois o li, mais sistematicamente, por várias razões. Trabalhei A divina comédia, em que Dante, ao visitar o inferno, toma Virgílio como seu guia e, precisei lê-lo. Também fui professor no curso de Publicidade da Universidade Positivo e mais uma vez precisei lê-lo, pois se trata de uma obra que tornou públicos (publicizou) os feitos do povo de Troia, do qual Eneias é notável descendente e que, após a famosa guerra, terá a missão de fundar Roma e o mais consagrado império da antiguidade. E mais recentemente recebi como incumbência a escrita de um texto sobre valores perenes e, mais uma vez, recorri à beleza e à força desse grandioso livro. A obra tem a ver com o sentimento romano de patriotismo. Um conceito tão profanado nesse Brasil dos tempos mais recentes de nossa história. Patriotismo remete à ancestralidade e valores. Eneias irá buscá-los numa ida ao outro mundo. Isso merecerá dois posts especiais.

Bem, aí já entramos no teor da obra. E, antes de mais nada, quero aqui registrar a importância desse conceito de patriotismo, um conjunto de valores comuns a um povo, que Eneias, depois de receber a missão de fundar uma nova cidade e um novo reino, foi buscar no mundo dos mortos, junto a seu pai Anquises. Esses valores comuns é que deveriam nortear o bem viver em comum na cidade que ira fundar. Assim conferiu a esses valores o tom do sobrenatural. Nesse mundo dos ínferos, guiado por Sibila, encontra o tártaro e o elísio (o inferno e o paraíso cristãos). Exatamente por ter feito essa viagem ao mundo dos mortos é que Dante escolheu Virgílio como guia na sua incursão pelo inferno, onde estão as pessoas que tiveram uma vida nada exemplar, vida que deveria ser evitada.

Vamos então a uma visão mais sistemática da obra. Para isso, recorro primeiramente à introdução da edição do livro que eu li. Ela é de autoria de Matos Peixoto, que é também o editor da obra (Rio de Janeiro, 1964). Matos Peixoto fala da obra e de seu autor.

Quanto a obra, ele nos fala que ela apareceu praticamente mil anos depois da Ilíada, de Homero. Ela começa com a narrativa do fim da Guerra de Troia, vencida por ato de traiçoeira astúcia dos gregos, a do cavalo de Troia. Eneias será o herói de Virgílio. Ele é filho de Anquises e da deusa Vênus. Será ele que recebe a missão da fundação de uma nova cidade e de um novo reino. Roma e o Império Romano. Vejamos a narrativa da nota de introdução: "Poder-se-ia dizer que A Eneida é o poema de Roma, porque, através de sua admirável estrutura poética, canta a história épica da fundação da cidade e o advento da raça latina, consolidada depois de luta demorada e cruenta, da união de Eneias e de Lavínia". Vejamos mais um parágrafo:

"E tal drama de amor (Eneias e Dido, a rainha de Cartago) entrosa-se com a obcecada perseguição da deusa Juno, cujo ódio aos troianos, não só porque patrocinara a guerra junto aos gregos como porque não perdoava Páris, que dera a Helena a prevalência da beleza, jamais deu tréguas a Eneias e levou-o à terrível guerra com os habitantes da Itália, que, afinal, dominou. Dentro dessa luta terrível, refulge a imagem da lealdade e da amizade, nas lágrimas de Eneias por seu amigo e companheiro sacrificado e que culmina no episódio final, quando o troiano, entre a piedade que lhe inspira a súplica de Turno, inimigo vencido, e a lembrança do companheiro Palante (Palas), opta por esta e mergulha a espada na garganta de seu matador"  (Páginas 9-10). Após essa morte do inimigo se consolida o casamento do troiano Eneias com a latina Lavínia e se dará a origem de Roma e do povo romano.

O livro, de 301 páginas, está divido em doze capítulos, devidamente intitulados. A saber: 1. A queda de Troia (a narrativa de sua parte final e a partida de Eneias no intento de cumprir com a sua missão). 2. Os troianos partem (Eneias reúne o que sobrara de seu povo e se lança ao mar. No mar passa a enfrentar os perigos que lhe são preparados por Juno). 3. Eneias chega a Cartago (É recebido com toda a boa hospitalidade e recebe ajudas de sua boa rainha). 4. Eneias e Dido (Dido, a rainha de Cartago, cai de amores por Eneias, que, no entanto, seguirá seu destino para cumprir sua missão. Dido não suporta as dores do amor não correspondido e se suicida). 5. Os jogos fúnebres (a celebração dos funerais do primeiro ano da morte do pai Anquises. As privações pelas quais tem que passar os guerreiros valentes, bons servidores da pátria).

6. Eneias no mundo das sombras (Eneias, acompanhado de Sibila, visita o mundo dos mortos. Lá, junto a seu pai Anquises, visita o mundo dos elísios e o tártaro. Ali encontra  a recompensa dos virtuosos e o castigo dos maus. Buscou assim os princípios do bem viver em comum, do conviver. Sem dúvida, o capítulo fundante do livro. Em outros posts, darei a visão que Eneias teve desses dois mundos). 7. Os troianos desembarcam na Itália (Chegam a foz do rio Tibre e são bem recebidos, mas Juno trama contra. A esposa do rei e Turno, seu filho, se lançam contra Eneias). 8. Eneias em apuros (As alianças de Turno, contra Eneias). 9. Os troianos são cercados (Tudo indica que Turno derrotará Eneias). 10. A assembleia dos Deuses (Júpiter pede que, tanto Juno, quanto Vênus, parem de interferir na guerra, mas novos exércitos são organizados e as lutas continuam). 11. O rei Latino pede a paz (Turno não a aceita e as lutas continuam). 11. O combate final (Um duelo entre Turno e Eneias. Eneias vence e casa-se com Lavínia). Sua missão está cumprida.

Com toda certeza, uma das mais importantes obras da literatura universal. Os fundamentos do patriotismo e da cultura clássica. E, apenas para lembrar: patriotismo não tem nada a ver com o se enrolar numa bandeira ou vestir a camiseta da seleção do país. Patriotismo tem a ver com pátria, eu até preferiria mátria (Pater - mater), um pai, ou mãe comum a um povo, assim como o foi Anquises, para Roma. E... valores do conviver.


terça-feira, 17 de dezembro de 2024

O emblemático ano de 1968. Chicago. Um manifesto de reivindicações.

O livro do jornalismo literário O super-homem vai ao supermercado, de Norman Mailer pode até ser considerado um super-livro. Ele tem um subtítulo bem ilustrativo: De Kennedy ao cerco de Chicago, reportagens clássicas sobre convenções presidenciais nos Estados Unidos. Quanto ao título, eu explico: O super-homem é uma referência ao líder John Kennedy, candidato dos democratas (aos 43), escolhido na convenção de Los Angeles (1960) e o supermercado é a própria convenção da escolha dos candidatos. Elas sofreram grandes transformações, tornando-se verdadeiros supermercados. Creio não precisar definir o que são os supermercados.

O super-homem vai ao supermercado. De Kennedy ao cerco de Chicago, reportagens clássicas sobre convenções presidenciais nos Estados Unidos. Norman Mailer. Companhia das Letras. 2006.

O livro é uma coletânea de reportagens e é por isso que Chicago aparece apenas no subtítulo, mas que bem poderia figurar como o título principal. Creio que a maioria dos meus leitores tem uma dimensão do que foi e o que representou o ano de 1968. Em Paris, estudantes e operários se uniram e o poder foi ameaçado. O poder também sofreu grandes ameaças nos Estados Unidos. A guerra do Vietnã abalou profundamente todas as estruturas de poder nesse império, imperialista, se me permitirem a repetição, pleonasmo, não é assim que chama? E no Brasil foram abolidas, em nome do combate ao comunismo, todas as instituições democráticas, permitindo-se até a tortura, o maior dos suplícios. Era preciso manter a ordem. Tempos da Ideologia da Segurança Nacional.

Bem, o objetivo deste post é dar uma ideia das rebeliões, especialmente dos setores jovens da sociedade e que provocaram tão violentas repressões. O mundo estava em transformação. Depois do ano de 1968, seguramente o mundo não seria mais o mesmo. Este desejo de transformações está contido em um manifesto que foi lançado na cidade de Chicago, durante a convenção do Partido Democrata. Como eu já fiz a resenha do livro, eu a apresento. Ela vai falar sobre essa convenção. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/12/o-super-homem-vai-ao-supermercado.html

Agora, o manifesto, datado de 25 de agosto: 

YIPPIE!  - LINCOLN PARK - VOTE PORCO EM 68 - MOTEL GRATIS - "VENHA DORMIR COM A GENTE". - REVOLUÇÃO POR UMA SOCIEDADE LIVRE: YIPPIE! POR A. YIPPIE.

1. Fim imediato da guerra do Vietnã [...].

2. Liberdade imediata para Huey Newton, dos Panteras Negras, e todos os outros negros. Adoção do conceito de controle comunitário nas áreas de gueto [...].

3. Legalização da maconha e de todas as outras drogas psicodélicas [...].

4. Um sistema de prisões baseado no conceito de reabilitação, e não na ideia de castigo.

5. [...] abolição de todas as leis relativas a crimes sem vítimas. Ou seja, manutenção apenas das leis que dizem respeito a crimes em que haja uma parte atingida contra a vontade, i, é, assassinato, estupro, agressão.

6. Desarmamento total de todas as pessoas, a começar pela polícia. O que inclui não apenas as armas de fogo, mas outros artefatos brutais tais como gás lacrimogênio, spray de pimenta, aguilhões elétricos, cassetetes curtos e compridos e assemelhados.

7. Abolição do Dinheiro, Abolição de pagamento por habitação, meios de informação, transporte, comida, educação, roupas, assistência médica e banheiros públicos.

8. Uma sociedade que promova e vise ativamente o conceito de "pleno emprego". Uma sociedade em que as pessoas se vejam livres do aborrecimento do trabalho. Adoção do conceito "Que as máquinas façam tudo".

9. [...] eliminação da poluição de nosso ar e de nossa água.

10. [...] incentivos para a descentralização de nossas cidades superpovoadas [...] estímulo à vida rural.

11. [...] informações gratuitas sobre o controle de natalidade [...] abortos quando desejados.

12. Reestruturação do sistema educacional, dando ao estudante o poder de determinar o rumo de seus estudos e permitindo sua participação no planejamento geral de ensino [...].

13. Uso aberto e gratuito dos meios  de comunicação [...] a TV a cabo como método de aumentar a seleção de canais disponíveis para o espectador.

14. Fim de toda censura. Estamos fartos de uma sociedade que não hesita em mostrar as pessoas cometendo violências, mas se recusa a mostrar um casal trepando.

15. Acreditamos que as pessoas deviam trepar o tempo todo, a qualquer momento, com quem quisessem, Isto não é um programa de reivindicação, mas um simples reconhecimento da realidade à nossa volta.

16. [...] um sistema nacional de referendo conduzido através da televisão ou de um sistema de votação por telefone [...] descentralização do poder e da autoridade com a formação de muitos e variados grupos tribais. Grupos em que as pessoas existam num estado de confiança básica, livres para escolher sua tribo.

17. Um programa que estimule e promova as artes.  No entanto, achamos que se a Sociedade Livre que imaginamos pudesse ser atingida por nossa luta, todos nós poderíamos concretizar a criatividade que temos em nós. Num sentido muito concreto, teríamos uma sociedade em que todo homem seria um artista.

[...] Porcos políticos, seus dias estão contados. Somos a Segunda Revolução Americana. E venceremos. Yippie!  Mas vamos ao Lincoln Park naquela tarde de domingo. Páginas 323-325.

Apenas lembrando, a manifestação foi proibida e duramente reprimida. E, um personagem desse período: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/10/malcolm-x-uma-vida-de-reivindicacoes.html


sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

O Super-homem vai ao supermercado. Norman Mailer.

Ao fazer uma revista em minha biblioteca de livros ainda não lidos, deparei com o interessante título O super-homem vai ao supermercado. O subtítulo esclarece o tema: De Kennedy ao cerco de Chicago, reportagens clássicas sobre convenções presidenciais nos Estados Unidos. O autor é o famoso jornalista Norman Mailer. A edição brasileira data do ano de 2006, que foi também o ano em que adquiri esta obra. O subtítulo também nos fornece o tempo do livro. Kennedy recebeu a sua indicação presidencial pelo Partido Democrata em 1960 e o cerco de Chicago ocorreu no terrível e temível ano de 1968.

O super-homem vai ao supermercado. Norman Mailer. Tradução: José Geraldo Couto e Sérgio Flaksman.

O livro é uma coletânea de artigos do jornalista-escritor, de suas coberturas das convenções partidárias do Partido Democrata, de 1960, do Partido Republicanos de 1964 e a dos dois partidos, em 1968.  A convenção dos democratas de 1960 ocorreu na cidade de Los Angeles, a dos republicanos, de 1964, em São Francisco. Já convenção dos republicanos, em 1968 ocorreu em Miami, enquanto a dos democratas, em Chicago, onde ocorreu o famoso cerco à cidade. O título do livro é uma referência à primeira convenção descrita, a de Los Angeles. O super-homem é uma referência a John Kennedy, enquanto a convenção se transformara num verdadeiro supermercado. Kennedy chegara à convenção com apenas 43 anos de idade.

O livro brasileiro é editado pela Companhia das Letras. Junto a indicação existe um pequeno detalhe que merece uma observação: jornalismo literário. Este novo jornalismo tem a marca do aprofundamento das análises da cobertura e é nisso que está a beleza e a grandiosidade desse livro. Nele encontramos a descrição da cidade, o perfil dos convencionais, dos candidatos, a análise de discursos, a conjuntura em que são pronunciados esses discursos, quer de ordem nacional, quanto da internacional, as revelações dos bastidores, os comportamentos e comprometimentos das pessoas, as traições, as explosões de ódio e, sobretudo, os ambientes festivos.

Com a leitura eu fiz uma verdadeira viagem às cidades de Los Angeles, de São Francisco, de Miami, ah Miami (a capital materialista do mundo)! e Chicago. Entrei em contato com as realidades regionais dos Estados Unidos e conheci mais de perto a raiz histórica de suas principais características, bem como os perfis psicológicos de seus protagonistas. E, acima de tudo, me deparei com a famosa década de 1960. Que década enigmática. Os super-homens e os supermercados. Tudo fluido.

A década de 1960. Como os Estados Unidos lidaram com as questões raciais, com a luta e a resistência em torno dos Direitos Civis, a brutalidade das marcas da escravidão, da segregação, da afirmação da superioridade europeia e branca, os WASP - White - Anglo - Saxon - Protestant, as disputas regionais entre o Leste e o Oeste e o Meio. Ah, as marcas do colonialismo, do racismo e do supremacismo! E um fantasma onipresente a rondar permanentemente, o fantasma do comunismo e a paranoia por ele provocada. Às favas, as liberdades! E o mal-estar ante esse processo civilizatório todo e as insatisfações do mundo jovem e a suas rebeliões. E as guerras, em particular a do Vietnã (São sempre os velhos que nos levam para a guerra; são sempre os jovens que tombam), as brigas pelo poder entre as máfias e o complexo industrial militar. Os Estados Unidos no divã. Os hippies, os yippies e os panteras negras. E a revolução dos costumes... O cerco de Chicago. 

O livro brasileiro tem um posfácio muito esclarecedor, tanto sobre o livro, quanto do escritor, assinado por Sérgio Dávila. Dele foi extraído a contracapa: "As convenções dos grandes partidos políticos norte-americanos nunca seriam vistas da mesma forma depois dos artigos que compõem este livro. Neles, Norman Mailer lança mão de toda a sua verve e todo o seu talento literário para expor as entranhas dos Estados Unidos numa década de profundas transformações.

As convenções democráticas e republicanas de 1960, 1964 e 1968 são perpassadas, aos olhos de Mailer, pelos grandes dilemas americanos da época: guerra ou paz, segregação ou integração racial, amor livre ou american way of life, Numa prosa densa, pontuada por alusões literárias e referências a fatos da cultura de massas, o autor examina de modo implacável os sonhos e traumas da América naquele momento crucial de sua história.

Subvertendo os limites entre a reportagem e a ficção, o escritor não hesita em colocar-se como personagem no próprio texto, ao lado de figuras como John F. Kennedy, Richard Nixon, Adlai Stevenson e Lyndon Johnson, retratados ao mesmo tempo com realismo crítico e sensibilidade literária".

Deixo aqui os resultados das eleições dos anos das convenções analisadas. Lembrando que em 1960, o Partido Republicano estava no poder, já há oito anos, com o presidente Dwight Eisenhower.

1960. Democratas: John Kennedy e Lyndon B. Johnson. 303 delegados. 34.220.984 votos - 49,7%.

           Republicanos: Richard Nixon e H. Loodge. 219 delegados. 34.108.157 votos - 49,6%.

1964. Democratas: Lyndon Johnson e H. Humphrey. 486 delegados. 43.127.040 votos - 61,4%.

           Republicanos: Barry Goldwater e W. Miller. 52 delegados. 27.175.754 votos - 38,5%.

1968. Democratas: Hubert Humphrey e E. Muskie. 191 delegados. 31.271.839 votos. 42,7%.

           Republicanos: Richard Nixon e Spiro Agnew. 301 delegados. 31.783.783 votos. 43,4%.

           Independente: George Wallace e Curtis Le May. 46 delegados. 9.901.118 votos 13,5%.

Em 1972, Nixon foi reeleito mas não terminou o seu mandato. Renunciou em função do escândalo de espionagem - Watergate (1974). Os democratas só voltariam à presidência em 1976, quando Jimmy Carter venceu Gerald Ford. A derrota democrata de 1968 teve muito a ver com as conturbações sociais do Cerco de Chicago, que tiveram como principal motivo a Guerra do Vietnã. A rebelião jovem. Se negavam ao recrutamento.

O escritor também mereceria uma especial atenção. Sua biografia também daria um belo e longo romance. Os jovens do cerco de Chicago merecerão um post especial.

Deixo também a resenha do livro biográfico de um dos mais famosos personagens desse período: Malcom X.

 http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/10/malcolm-x-uma-vida-de-reivindicacoes.html 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

A RESISTÊNCIA. Ernesto Sábato. Cinco cartas.

Em 2008 eu comprei o livro A resistência, do escritor argentino Ernesto Sábato. A edição argentina foi lançada no ano de 2000 e a edição brasileira apenas em 2008. O livro está escrito sob a forma de cartas, cinco no total, e são um lancinante grito contra a avassaladora desumanização, que a sensibilidade do escritor constatou já na fase final de sua centenária existência (1911-2011). Vejam o seu estado de espírito, refletido já no primeiro parágrafo de sua primeira carta:

A resistência. Ernesto Sabato. Companhia das Letras. 2008. Tradução Sérgio Molina.

"Há certos dias em que acordo com uma esperança demencial, momentos em que sinto que as possibilidades de uma vida mais humana estão ao alcance de nossas mãos. Hoje é um desses dias.

E então me ponho a escrever quase às apalpadelas na madrugada, com urgência, como alguém que saísse para a rua pedindo ajuda diante de uma ameaça de incêndio, ou como um navio que, a ponto de afundar, mandasse um último e fervoroso sinal para um porto que sabe próximo mas ensurdecido pelo barulho da cidade e pela infinidade de letreiros que confundem o olhar".

Vejamos a apresentação do livro nas suas orelhas: "Ao se aproximar dos cem anos de idade, Ernesto Sábato concebeu este livro como uma espécie de mensagem na garrafa, destinada a encontrar outros seres tão perplexos quanto ele diante da desumanização do homem em nosso tempo.

Na forma de seis cartas ao leitor, o escritor passa em revista as transformações operadas nas últimas décadas no cotidiano, nos valores e na sensibilidade dos indivíduos e dos povos. A solidão nas grandes cidades; o medo da violência; a apatia e o isolamento suscitados por meios como a televisão, a internet e os telefones celulares; a destruição da natureza; a mercantilização da arte; as novas formas de opressão social - tudo isso é abordado com lúcido desespero por alguém que se recusa a aceitar passivamente a degradação da espécie humana.

O olhar de Sábato é isento de nostalgia, mas sua lucidez está solidamente ancorada na tradição humanista e no estudo crítico da história. Como defesa contra a barbárie ameaçadora, o escritor resgata velhos e infalíveis antídotos: o afeto interpessoal, o respeito à diferença, a solidariedade com aquele que sofre, o aperfeiçoamento pessoal por meio da arte e da liberdade de pensamento.

Nessas reflexões está presente, de modo explícito ou implícito, a múltipla formação de um intelectual permanentemente inquieto e inconformado. Cientista que questiona a frieza asséptica da ciência moderna, comunista e companheiro de viagem dos surrealistas na juventude, escritor outsider  que criou alguns dos romances mais perturbadores de nossa época, ativo militante contra a tortura em seu país e no mundo, Sabato plasma toda a sua existência nestas 'cartas' muito pessoais aos leitores".

As seis cartas, na verdade cinco, mais o epílogo, são mais ou menos temáticas. Elas tem os seguintes títulos: Primeira carta. O pequeno e o grande: os valores do espírito, a necessidade do diálogo e a sua atrofia pelo mundo virtual, a necessidade do silêncio ante as conversas aos gritos, a ida a feiras, a busca do outro, a vida de abertura para o outro como uma inclinação natural. E uma frase fantástica: "Com a idade que tenho hoje, posso dizer, dolorosamente, que toda vez que perdemos um encontro humano uma coisa se atrofiou em nós, ou se quebrou" (Página 19). 

Segunda carta. Os antigos valores: Os valores transcendentais e comunitários, não avaliáveis em dinheiro, as antigas festas comemorativas, o tempo utilitário e o "matar o tempo", a perda da vergonha, a corrupção que já não envergonha mais. E - uma frase: "Nas brincadeiras das crianças às vezes percebo os vestígios de rituais e valores que parecem perdidos para sempre, mas que tantas vezes reencontro em cidadezinhas remotas e inóspitas: a dignidade, o desinteresse, a grandeza diante da adversidade, as alegrias simples, a coragem física e a integridade moral" (Página 34).

Terceira carta. Entre o bem e o mal: reminiscências familiares e da infância, o contar de histórias, a convivência com os idosos e o deixar de lado quem já não produz, os alicerces de uma educação, a busca da verdadeira satisfação, os significados da arte. E a frase: "É urgente encararmos uma educação diferente, ensinarmos que vivemos numa terra da qual devemos cuidar, que dependemos da água, do ar, das árvores, dos pássaros e de todos os seres vivos, e que qualquer dano que causemos a este universo grandioso prejudicará a vida futura e pode destruí-la. Que coisa ótima poderia ser o ensino, se, em vez de despejar uma imensidão de informações que ninguém nunca conseguiu reter, fosse vinculado à luta das espécies, à necessidade urgente de preservar os mares e oceanos" (Páginas 55-6). E a fantástica ideia de que só o encontro humano é um luxo verdadeiro.

Quarta carta. Os valores comunitários: Não estamos assistindo apenas a uma crise do capitalismo, mas sim, a falência de toda a cultura ocidental. A globalização e a concentração de poder. Sobre a competição, a corrupção e o individualismo. E a notável frase: "Esta crise não é a crise do sistema capitalista, como muitos imaginam: é a crise de toda uma concepção de mundo e da vida baseada na idolatria da técnica e na exploração do homem. para acumular dinheiro, todos os meios foram válidos. Essa busca da riqueza  não foi levada adiante em benefício de todos, como país, como comunidade; não se trabalhou com um sentimento histórico e de fidelidade à terra. Não, infelizmente isto mais parece o atropelo que se segue a um terremoto, quando, em meio ao caos, cada um tenta saquear tudo o que pode. É inegável que esta sociedade cresceu tendo como meta a conquista, em que ter poder significa apropriar-se do alheio, e a exploração se estendeu a todas as regiões do mundo" (Página 71). E a memorável ideia de que "é na mulher que se encontra o desejo de proteger, absolutamente".

Quinta carta. A resistência: duas frases curtas: "Os homens encontram nas próprias crises a força para sua superação" (Página 90). E "O mundo nada pode contra um homem que canta na miséria" (Página 91).

Epílogo. A decisão e a morte: Dois parágrafos: "Assim como a vida dos homens, as culturas atravessam períodos fecundos em que as horas de dor e de alegria se alternam sob o mesmo céu; os povos seguem o curso da vida com um olhar legado por gerações e incorporam as mudanças a um sentido que os transcende.

Este não é um desses momentos. Pelo contrário, é um tempo angustiante e decisivo, como foi a passagem dos dias imperiais de Roma ao feudalismo, ou da Idade Média ao capitalismo. Mas eu ousaria dizer que é mais grave porque absoluto, pois está em jogo a própria vida do planeta". Página 99).

O livro, muito para além das cartas, é uma poesia anunciadora e benfazeja. Termino com a visão que Sabato tem da criança: "Toda a criança é um artista que canta, dança, pinta, conta histórias e constrói castelos". Página 78.

domingo, 1 de dezembro de 2024

O ÚLTIMO LEITOR. Ricardo Piglia.

Retomando livros para a releitura deparei com O último leitor, livro do escritor argentino Ricardo Piglia. Seu livro é datado 2006 e eu o adquiri, por indicação de alguém, certamente do círculo de leituras informal que mantínhamos na sala de professores do curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Positivo. Era comum trocarmos informações sobre o que estávamos lendo e assim nos enriquecíamos coletivamente. Este livro se destina para leitores, leitores não amadores, mas para leitores extremamente atentos, leitores - como se cada um fosse realmente o último leitor.

O último leitor. Ricardo Piglia. Companhia das Letras. 2006.

O livro se constitui de ensaios do escritor, em que ele narra experiências suas com a leitura, nos deixando assim experiências muito ricas de sua visão sobre obras, entre as mais importantes da literatura universal. Na contracapa do livro, há dicas sobre leitores que, segundo critérios do escritor, poderiam ser considerados como esses últimos leitores. Vejamos:

"Escritor máximo, Borges dizia orgulhar-se sobretudo dos livros que lera; Cervantes, auto-retratado nos primeiros capítulos do Quixote, lia tudo, até os papéis jogados pela rua; Anna Kariênina aproveitou a viagem de trem de Moscou a Petersburgo para ler comodamente 'um romance inglês', ao passo que Che Guevara fez uma pausa na guerrilha boliviana para subir numa árvore e ler em paz. Personagens assim, reais e imaginários, povoam as páginas de O último leitor, de Ricardo Piglia. Na sequência dos ensaios brilhantes de Formas breves, o escritor argentino agora se interessa pela figura do leitor que vai atrás do sentido da própria vida nas páginas de um livro - não o leitor casual e distraído criado pela cultura de massas, mas o 'último leitor', aquele leitor essencial que personifica a própria literatura".

O livro de Piglia é formado por Prólogo e epílogo e seis ensaios, ocupando um total de 186 páginas. Os capítulos tem os seguintes títulos: 1. O que é um leitor (aquele que efetivamente busca sentido e interpreta o lido); 2. Uma narrativa sobre Kafka (suas cartas para Felice Bauer); 3. Leitores imaginários (as origens dos romances policiais modernos); 4. Ernesto Guevara, rastros de leitura (a leitura e as transformações provocadas. Suas sete vidas: o viajante, o escritor, o médico, o aventureiro, o testemunha, o crítico social e o guerrilheiro), 5. O lampião de Anna Kariênina (as mulheres como protagonistas: Anna, Madame Bovary, Molly Bloom), 6. De que é feito o Ulisses (metempsicose e carregar uma batata no bolso).

Pelo visto, podem constatar a riqueza dos ensaios. Uma vagarosa caminhada pela literatura, com paradas em seus momentos mais marcantes. Com certeza, passei a compreender melhor as dúvidas de Hamlet, a conhecer melhor Gramsci e Trotski, as raízes do romance policial e os seus componentes, os sonhos provocados pelas leituras e a façanha de querer vivenciá-las, e a entender bem a relação e a soma entre a leitura e as vivências que provocaram as transformações de vida no Che e por aí vai. A dificuldade principal na leitura foi a de não conhecer todas as obras analisadas, especialmente as ligadas aos romances policiais.

Vejamos a frase final de seu epílogo, onde relata a experiência da escrita desse livro: "Claro que este livro não pretende ser exaustivo. Não reconstrói todas as cenas possíveis de leitura; digamos que acompanha uma série privada; é um percurso arbitrário por algumas maneiras de ler que estão em minha lembrança. Minha própria vida de leitor está presente, e por isso este livro talvez seja o mais pessoal e mais íntimo dos que já escrevi".

O livro termina com indicações bibliográficas, com um esclarecimento do editor: "Este livro é feito de muitos livros. Nesta lista indicamos algumas edições brasileiras das obras citadas mais longamente". Vou dar aqui, apenas os autores. São eles: Edgar Allan Poe, Walter Benjamin, Jorge Luís Borges, Elias Canetti, Miguel de Cervantes, Raymond Chandler, Júlio Cortazar, Daniel Defoe, Isaac Deutscher, Fiodor Dostoévski, T.S. Eliot, Gustave Flaubert, Ernesto Che Guevara, José Fernandez, Homero, James Joyce, Franz Kafka, Karl Marx, Herman Melville, Marcel Proust, Jean Jacques Rousseau, Domingo Faustino Sarmiento, William Shakespeare, Liev Tolstói.

Chama a atenção a capa do livro. No capítulo 4, consta que Che Guevara, na Bolívia, já em seus dias finais, sobe a uma árvore para aí encontrar a solidão e o isolamento necessário para ser um bom "último leitor". Na capa é mostrada a foto que retrata essa situação. A foto é do Centro de Estudios Che Guevara y Aleida March. A edição é da Companhia das Letras, 2006. A tradução é de Heloisa Jahn.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Juventude sem Deus. 1938. Ödön von Horváth. Prefácio. Uma contextualização.

Este post tem por objetivo apresentar o prefácio da edição brasileira do livro Juventude sem Deus, do escritor croata (Na época a Croácia pertencia ao Império austro-húngaro), Ödön von Horváth. A sua publicação original data do ano de 1938. O livro apresenta os dramas de consciência de um jovem professor alemão diante da imposição de valores apregoados pelo Terceiro Reich e os valores humanos dos quais ele era portador. Apesar dos êxitos imediatos do livro, ele, na época, não teve uma tradução para a língua portuguesa. O livro tem agora, em 2024 a sua primeira publicação no Brasil. As razões para isso parecem óbvias: a virulência com que os ideais fascistas estão ressurgindo. Deixo a resenha do livro:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/11/juventude-sem-deus-odon-von-horwath-1938.html

O prefácio da edição brasileira, escrito pela professora Michele Gialdroni, graduada em literatura alemã e com especial foco na literatura do entre guerras, é algo precioso. Uma contextualização da época, fato que nos permite estabelecer paralelos. 

Juventude sem Deus. Ödön von Horwáth. Todavia. 2024. Tradução: Sérgio Tellaroli.

A professora retrata o jovem dramaturgo aos 36 anos, agora radicado na Alemanha nazista. É bem sucedido em sua carreira mas sofre os seus próprios dramas de consciência. O regime não permite o exercício da liberdade em expressar a sua arte e também sente que não tem mais público que aprecie as suas manifestações. Radicaliza em não condescender com o sistema. Os seus próprios dramas, vividos entre a adesão e o manifestar seus conflitos interiores, seus dramas de consciência o levaram ao livro Juventude sem Deus. Sobre o livro, assim se expressa a um amigo afirmando que "a grande novidade da obra era esta: ter dado voz ao ser humano fascista, ou melhor, se corrige, 'ao ser humano na época do fascismo"'(página 10). Aderir ao sistema seria ajudar a criar monstros. 

Qual seria então a missão do professor diante dessa realidade? A mesma que o escritor dá à sua literatura: "O sofrimento do narrador, o professor, que, embora movido por uma incontestável moralidade e por sentimentos de solidariedade humana, não consegue tomar posição, não consegue mudar, é também o sofrimento de Horváth. Quando o professor conseguir sair do isolamento de sua condição de espectador, será outro vivisseccionador da realidade a morrer: o estudante insuspeito, aquele com olhos de peixe, o garoto que, como o próprio professor, quer ver a realidade até o momento derradeiro, que transforma a curiosidade e o desejo de conhecimento em desprezo e sadismo. Essa dicotomia entre realidade e verdade é bem presente nas obras  de Horváth. Os fanáticos do realismo são os carrascos, os algozes, aqueles que afirmam que nada pode ser feito, porque as coisas são como são" (páginas 10-11). Semear a utopia. Um não ao conformismo.

O Juventude sem Deus começa altamente provocativo. Já no primeiro capítulo, sob o título Os negros, encontramos o professor a corrigir redações. O aluno N escrevera: "Todos os negros são traiçoeiros, covardes e vagabundos". "Generalização absurda" corrige o professor. Foi o suficiente para lhe causar problemas. Mas ele se afirma diante dessa realidade. A sua consciência triunfa sobre a adesão.

A prefaciadora em sua análise da obra vê no livro um manifesto contra todas as sociedade "liberticidas e militarizadas" que tiveram ampla adesão "pelo oportunismo das velhas gerações de diretores de escola, grandes industriais e pequenos comerciantes, mas também o entusiasmo das novas gerações"(página 11). E num passo magnífico ela apresenta as denúncias contra uma escola autoritária, que aparecem na literatura, já antes das grandes guerras. Me permitam uma transcrição um pouco mais longa. São indicações preciosas e necessárias:

"Na literatura alemã das primeiras décadas do século XX, iniciando-se com O anjo azul, de Heinrich Mann, de 1905, o professor tinha sido representado por antonomásia - pensemos também no oprimente convento de Maulbronn em Unterm Rad  [Debaixo de rodas], de Hermann Hesse, ou no claustrofóbico colégio militar de O jovem Törless, de Robert Musil, ambos publicados em 1906" (Páginas 11-12). E agora as reflexões e as decisões a serem tomadas 

"Aquele que era o opressor, o representante do sistema que deve educar  seus alunos à obediência, torna-se agora nas mãos de Horváth, com todas as incertezas, o alter ego do escritor (e figura de identificação do leitor), que se depara com uma geração de jovens cegados pela fúria coletivista. Uma sociedade que exclui definitivamente aqueles que não são considerados parte integrante do corpo compacto da nação, por nascimento, por escolha, às vezes por necessidade. Ou seja, não só judeus, negros e ciganos, não só comunistas e sindicalistas, mas também pessoas com deficiência e doentes, também os míseros trabalhadores que em Juventude sem Deus vivem nos velhos casebres acinzentados do povoado, os moleques inconformados que se escondem nos bosques e roubam para sobreviver. Enfim, uma sociedade que não tolera os professores que se rebelam contra o regime e têm de escolher a via do exílio para poder viver uma vida digna, para redimir-se das maldades justo ali onde mais cruelmente foram cometidas, no contexto colonial" (Página 12).

Depois a prefaciadora se detém em dados mais pessoais da biografia do escritor, um permanente exilado em seus países de origem. Teve uma morte prematura trágica, quando tencionava vir morar na Califórnia, para se aproximar de Hollywood. Do trágico acidente que ceifara a sua vida (a queda do galho de uma árvore em um temporal, na proximidade dos Champs Élysée) sobraram duas estrofes de um poema seu:

"E as pessoas dirão // Em longínquos dias azuis // Quando finalmente se distinguirá // O falso do verdadeiro // Que aquilo que é falso ruirá // Embora hoje reine // E o verdadeiro triunfará // Embora hoje deva morrer" (Página 15).

Uma bela oportunidade para profundas e reflexões e atitudes a tomar frente a nova onda autoritária, fascista que nos assola. E, para aprofundar as reflexões sobre um fascismo latente e iminente, vejamos algumas constatações de Humberto Eco, uma radiografia:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/03/fascismo-eterno-umberto-eco.html

E a terrível e marcante frase: "Aderir ao sistema seria ajudar a criar monstros". Também estamos permanentemente diante de escolhas.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

JUVENTUDE SEM DEUS. Ödön von Horwáth. 1938.

Antes de mais nada, devo dizer que o romance Juventude sem Deus, do croata (então Império Austro-Húngaro) Ödön von Horwáth (1901-1938), reflete os dramas de consciência de um professor alemão, diante da ascensão do regime nazifascista na Alemanha de então. Sob este regime, o professor perde completamente a autonomia em sala de aula e passa a ser uma engrenagem da máquina publicitária na transmissão dos valores pregados pelo sistema. É a chamada "Guerra Total" em que todos os instrumentos culturais são colocados a serviço do regime. Ao professor caberia a adaptação, ou a resistência. Um horror!

Juventude sem Deus. Ödön von Horwath. Todavia 2024. Tradução: Sérgio Tellaroli.

Horwáth é um jovem escritor, também envolvido com teatro e cinema, morto precocemente em Paris, nas proximidades da Champs-Élysées, atingido pelo galho de uma árvore, caído numa tempestade. Ele encontrou enormes dificuldades em viver livremente na conturbada Europa desse período. Sendo filho de diplomatas, acompanhou os pais por vários países, encontrando dificuldades de se estabelecer em todos eles. A sua morte ocorreu quando, em Paris, estava negociando os direitos autorais de Juventude sem Deus para o cinema.  Mas vamos ao livro.

Juventude sem Deus, por óbvio, não pode ser publicado na Alemanha, sob o Terceiro Reich. Foi então publicado na Holanda em 1938 e imediatamente foi traduzido para várias línguas. Mas não para o português. Assim o livro ficou praticamente desconhecido no Brasil. O personagem do romance é um professor e o tema é a relação desse professor com os valores que a escola deveria transmitir aos alunos, como engrenagem da máquina publicitária formadora de consciências sob o domínio do Reich. Como esses valores se contrapõem aos seus, eles geram os dramas de consciência. Mas, vamos a orelha do livro para uma contextualização:

"Todos os negros são traiçoeiros, covardes e vagabundos." Ao ler essa frase na redação de um aluno, o professor reage: "Os negros também são seres humanos." É esse o ponto de partida desta pequena joia da literatura em língua alemã, escrita em 1937, em plena vigência do Terceiro Reich.

O livro acompanha a crise de consciência desse professor, em meio ao ambiente sufocante do regime racista e colonialista imposto pelo governo de Hitler. A atitude do professor em defesa dos negros soa revoltante para a casta que apoia o regime: burocratas acomodados, como o diretor da escola, ou industriais e comerciantes, como os pais de alguns alunos. Sem falar nos próprios adolescentes, entusiasmados com o patriotismo que a política oficial lhes impinge e cegos para a desumanização a que são submetidos diariamente (O mal se banaliza).

Mais adiante, o professor vai com a turma para um acampamento destinado à realização de treinos militares. E ali se envolve num episódio trágico que lhe custará o emprego, já em risco depois que ousara confrontar as afirmações racistas de seu aluno.

A "Guerra total", o rádio e o cinema como instrumentos de propaganda, os livros proibidos, a moralidade pública, a educação para a guerra e a 'regeneração' da juventude - todos esses elementos mobilizados na obra reconstroem o clima político do nacional-socialismo, cristalizado na impotência de um protagonista em crise e numa linguagem de simplicidade desconcertante.

Proibido na Alemanha, Juventude sem Deus foi publicado na Holanda, em 1938, ano da morte precoce do autor - Horwáth morreu após a queda de um galho em sua cabeça, em Paris, em plena ascensão como escritor e dramaturgo.

Recebido com entusiasmo por Hermann Hesse, Thomas Mann e Joseph Roth, admirado por Natalia Ginsburg e Peter Handke, adaptado para o teatro e o cinema, Juventude sem Deus é um clássico ainda pouco conhecido no Brasil - e sua publicação se torna mais premente numa época em que os fascismos insistem em mostrar que não morreram".

Este último parágrafo nos leva à atualidade do livro. Nos leva a uma análise do quadro educacional do Brasil, neste momento tão delicado da vida nacional. A serpente do fascismo está mais do que visível em seu ovo. E este ovo está sendo cuidadosamente chocado. Os controles sobre a escola praticamente não tem precedentes (até o macarthismo foi fichinha), especialmente após o golpe de 2016. Temos os movimentos do Escola sem Partido, do Novo Ensino Médio (escola dual), da censura a livros (O avesso da pele, de Jeferson Tenório), do reforçar dos elementos de vigilância sobre os professores, da militarização e privatização das escolas, da negação da diversidade cultural e da uniformização dos conteúdos, dos controles desses conteúdos pela avaliação padronizada e pelo massivo uso de plataformas de aulas prontas, sem a autoria (donde deriva autoridade) do professor e, acima de tudo, pela sua desvalorização como um profissional, reduzindo-o a um burocrata que meramente aplica aulas. E ai dele se não o fizer! Os meios de controle hoje estão muito mais sofisticados, praticamente ocorrem em tempo real.

Daí a atualidade do livro e a premência de sua publicação, mesmo que, mais de oitenta anos após a sua publicação original. A história se repete, agora como farsa. Além desse drama de consciência do professor, o romance também possui um valor literário extraordinário, especialmente pela sua força narrativa e linguagem envolvente e precisa. Tudo é narrado em pequenos capítulos de duas a três páginas (44 no total, abrangendo 173 paginas).

Um suspense acompanha a narrativa, especialmente após o acampamento para a realização de treinamentos militares. Vejam bem, treinamentos militares. Creio que a militarização de nossas escolas ainda não chegou a tanto. E, algo fantástico e maravilhoso. A dialética (A denúncia precede o anúncio - nos lembra Paulo Freire). Alguns alunos, motivados pelo exemplo do professor e inconformados com os valores desumanizadores, formam um clube de leituras onde se examina, não o real, pregado pelo sistema, mas o como este real deveria ser, para não ser o elemento desumanizador da sociedade. Também vale muito o precioso prefácio de contextualização da época, escrito pela professora Michele Gialdroni, especialista em literatura alemã e com foco voltado para o período entre guerras. Este prefácio merecerá um post especial. A tradução é de Sérgio Tellaroli e a editora é a Todavia. A publicação é do ano de 2024.

E ainda, um ponto alto do livro a destacar: A ligação existente entre o colonialismo e o racismo. A justificativa da existência de colônias necessariamente leva ao racismo. É uma cultura superior dominando uma inferior. Daí a hierarquia das raças e a ideologia que justifica o colonialismo. Levar o progresso aos continentes, povos e raças atrasados. Observem a linguagem. Para este tema é fundamental o livro de Frantz Fanon, Os condenados da terra. Deixo a resenha:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/03/os-condenados-da-terra-frantz-fanon.html