Antes da resenha do livro A reforma empresarial da educação - Nova direita, velhas ideias, de Luiz Carlos de Freitas, algumas considerações gerais em torno da educação escolar. Ela é uma invenção da modernidade, como consequência do Esclarecimento pela razão, dos avanços científicos e da nova realidade provocada pelo processo de industrialização e de urbanização. Dois foram sempre as suas grandes finalidades: alfabetizar e socializar, somadas a formação profissional exigidas pelas novas estruturas da sociedade. Os estados assumiram estas funções, através dos chamados Sistemas Nacionais de Educação, que levaram a um sistema de ensino universal, público, gratuito e obrigatório.
A reforma empresarial da educação. Nova direita, velhas ideias. Luiz Carlos de Freitas. 2018. Expressão popular.
A educação escolar era apresentada como o grande elevador social, para aqueles que, nas revoluções burguesas, foram excluídos dessa ascensão pela via patrimonial. É óbvio que isso tudo gerou inúmeros debates e essa educação sempre foi motivo de preocupação sobre os controles desse fabuloso instrumento que é a educação pública. Vá que apareça algum Paulo Freire! Assim a educação escolar se transformou num grande campo de disputas, fortemente marcadas pela presença da ideologia. Deixo também uma recomendação de leitura dessa história. O livro de Lorenzo Luzuriaga: A história da educação pública, do qual tenho uma pequena resenha:
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/06/a-historia-da-educacao-publica.html
Também deixo dois textos sobre o que ocorreu com o controle dos currículos, ou, em outras palavras, com a preocupação do que pode e não pode ser ensinado, a partir do ponto de vista das classes dominantes. O primeiro eu elaborei, mas o segundo é a íntegra do texto, a partir de muitos pedidos. Vamos a eles:
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/11/qual-e-razao-para-se-controlar-tanto-os.html
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/05/esta-o-professorado-perdendo-o-controle.html
Antes ainda uma citação, retirada do livro O educador - um perfil de Paulo Freire, de autoria de Sérgio Haddad. Contextualizo antes. Era o dia 2 de abril de 1963, em Angicos (RN). Formatura da primeira turma do processo de alfabetização de Paulo, com muita solenidade, falas e presença de Jango, presidente da República. Havia também uma outra presença, o general Castello Branco, então comandante da quarta região militar, sediada no Recife, e primeiro dos ditadores do golpe de 1964. Vejamos: "Ao final da solenidade, o general Castello Branco comentou com Calazans Fernandes que o trabalho realizado em Angicos o preocupava, pois serviria 'para engordar cascavéis nesses sertões'. No jantar oferecido naquela noite de 1963, o general disse a Paulo que já havia sido alertado sobre o seu caráter subversivo - e que agora estava convencido disso por sua defesa de uma 'pedagogia sem hierarquia'". Creio que o problema está bem situado. Então vamos ao livro do Freitas.
Uma primeira observação: o subtítulo. Nova direita, velhas ideias. Um dos orgulhos de minha formação é a de ter passado dois anos dela na PUC/SP, no Programa de História e Filosofia da Educação. Foram os anos de meu maior aprendizado. E agora, lendo o livro, reencontrei o essencial dos projetos ali estudados, especialmente as ideias gerais do neoliberalismo de Hayek e o que fazer com as escolas, de Milton Friedman, este já da famosa Escola de Chicago. O que é novo é a Nova direita. Muito mais perversa e de profunda desfaçatez.
Confesso também, que demorei um pouco para entender a raiz dos projetos educacionais do governo do Paraná, especialmente no governo do Rato Júnior. Como sou um professor aposentado, não tenho acesso tão fácil a documentos oficiais e também concluí que as atuais políticas são muitos mais pontuais do que por projetos efetivamente estruturados. A ficha me caiu ao ouvir uma fala do secretário de educação Roni Miranda, que assumiu a secretaria da educação em substituição a Renato Feder, um bem sucedido comerciante. Dizia o secretário que conhecia Izolda Cela, atual número dois, do MEC. e ex secretária de educação do município de Sobral, no Ceará. A partir desse dado entendi muita coisa. Custei a acreditar!!!.
SOBRAL. Vamos ao livro: "No Brasil, a cidade de Sobral, no Ceará, tem sido o nosso 'milagre do Texas'. Não há estudos aprofundados sobre o caso, mas os indícios apontam que o alegado 'sucesso' de Sobral se deve a uma decisão de adotar políticas de responsabilização baseado em testes". Eis a essência das políticas preconizadas pela nova direita. Freitas continua falando de Sobral:
"Como disse o prefeito da cidade a uma reportagem da Folha de S.Paulo (Takahashi, 2015): 'A nossa preocupação é com o arroz com feijão bem feito, sem pedagogês que não dá resultado'. O 'arroz com feijão' curricular está alinhado às apostilas e aos exames:
os estudantes passam por uma bateria de avaliações. Além das provas aplicadas pelos próprios colégios, que são no mínimo mensais, são feitas semestralmente avaliações do município, com equipes de fora do colégio. Também há os exames dos governos estadual e federal.
Em relação ao material didático, ele afirma que: 'Parte do material pedagógico é feito pela rede, parte por empresa terceirizada. Em comum há a determinação do que deve ser ensinado a todos, diariamente'. Para garantir controle, os resultados nos testes dos alunos orientam a remuneração dos professores das escolas. Segundo um diretor de escola: 'A gratificação por desempenho é o que alimenta a vontade de continuar melhorando'.
No entanto, uma reportagem do Jornal GGN feita por Villas-Boas (2017), que passou três meses investigando Sobral, mostra uma visão diferente:
Sobral se destaca por ter, de fato, realizado medidas administrativas boas, mas também por ter manipulado engenhosamente o Ideb, o que testemunham diversos educadores do próprio sistema público do município e ligado a eles.
No caso da aprovação, por exemplo, diferentes professores contam que alunos bons do mesmo ou de outros anos são postos para fazer provas de alunos ruins ou doentes ou detentos, por orientação de alguns professores, que recebam, como renda variável, em torno de 500 reais a mais no salário quando a nota do Ideb é boa. Casos em que alunos recebem notas maiores do que realmente tiraram, a título de 'motivação', também são corriqueiros, conforme reforçam alguns pais de alunos, que ouviram isso em reunião entre professores, pais e alunos.
Uns acham que a Secretaria Municipal de Educação não sabe, outros acham que ela finge que não sabe desses fatos. Se este autor os descobriu em apenas três meses de pesquisa, a prefeitura de Sobral, comandada pelo mesmo grupo há vinte anos, deveria ter conhecimento.
A reportagem ainda afirma que:
Quanto ao aprendizado, também há manipulações, segundo os educadores. Todo o programa é focado em Português e Matemática, disciplinas do Ideb, ficando as demais matérias em segundo plano ou em plano nenhum.
Um professor de História contou que recebe alunos de outra escola e pergunta quem era o professor deles antes, então eles frequentemente respondem que mal viam a disciplina, o que o deixa desacreditado e triste com o sistema. Páginas 135-137.
Creio que com este trecho sobre Sobral, praticamente todos os elementos da reforma empresarial da educação já estão presentes. Mas façamos um confronto com uma síntese dessas reformas: "Ao controle da gestão via privatização (por terceirização e/ou vauchers), complementado com o controle do processo pedagógico (por meio de uma base nacional comum curricular (BNCC) e sua irmã gêmea, a avaliação censitária (Saeb), inserida em políticas de responsabilização, somam-se: a) o controle das agências formadoras do magistério, via base nacional da formação de professores, e b) o controle da própria organização da instrução, por meio de materiais didáticos e plataformas de aprendizagem interativas. Ao redor da escola floresce um mercado de consultorias e assessorias destinadas a lidar com todas essas exigências". Página104.
O livro não é longo. Tem 160 páginas. Está estruturado em uma apresentação e 10 pequenos capítulos, que passo a apresentar: Introdução. (Apresentação do tema e um breve histórico - os anos 1990 até o golpe de 2016). 1. Origens e fundamentos da reforma: breve contextualização (teoria e história do neoliberalismo - liberalismo econômico e autoritarismo social - Friedman e os vouchers - um individualismo violento contra os direitos coletivos - golpes para assegurar a liberdade). 2. Os novos reformadores (Contra o Estado, mau gestor, a eficiência do mercado - controle empresarial da educação - vouchers - a moldagem da escola pelo mercado - destruição das redes públicas de ensino - Bush e o Texas - padronização curricular e aferição por avaliações - metas controles e remuneração por meritocracia - adaptar a educação ao 4.0).
3. Privatização ou publicização? Existe "meia" privatização? (Organização empresarial - privatização via vouchers e terceirizações - financiamento público e gestão privada - instituição de controles). 4. Evidência empírica, ética e privatização (o essencial é privatizar - A transformação de um direito em um serviço disponível no mercado - ética do êxito individual - educação sem a meta da igualdade - segregação) 5. Padronização, testes e accountability: a dinâmica da destruição. (Padronização via currículos e aplicação massiva de testes e responsabilização de escolas e professores - remuneração e punições de acordo com os resultados - Meritocracia). Um capítulo essencial. 6. Obstruindo a qualidade da escola pública: mais implicações éticas ( A padronização - os testes - BNCC - a responsabilização dos professores e das escolas - remuneração e punições). 7. Controlar o processo, precarizar o magistério (Controle ideológico - ódio contra os professores - plataformas online - trabalhador desqualificado e dependente da tecnologia - "o professor trabalhará mais se estiver com sua cabeça a prêmio todo dia" - fim da estabilidade - de salários iguais - da previdência e sindicalização - premiações por mérito)
8. Impactos nos estudantes: "toda a escola, seeentido"! (Novos padrões cognitivos e morais, contidos na avaliação padronizada - O sócio-emocional - competição em vez da solidariedade - Tolerância zero nas escolas - a militrização - A escola prisão - para "civilizar" as crianças - escolas e criminalização - supressão das artes e da música. 9. Um outro horizonte é possível. (Discutir para além dos currículos padronizados - as estruturas da sociedade - "Em educação não pode haver perdedores, só pode haver ganhadores). 10. Uma proposta para a resistência, com a apresentação de 20 tópicos. É nesse capítulo que o autor traz a escola SOBRAL. Há ainda uma rica indicação da bibliografia utilizada.
Apresento ainda a síntese das orelhas: "Este livro é escrito em um momento em que as ideias neoliberais retornam ao cenário brasileiro com força; ele procura caracterizar as origens das reformas empresariais da educação em curso no Brasil, aceleradas após 2016, mostrando que elas são dependentes de uma concepção de educação baseada na defesa do livre mercado (Hayek, Friedman e Buchanan).
Este conceito de sociedade entende que a qualidade da educação depende da inserção das escolas, professores e estudantes em um mercado concorrencial, do qual ela emergeria, então, sem interferência do Estado. Deriva daí o conjunto de recomendações que propõe privatizar a educação (por terceirização e/ou vouchers) e instalar processos de padronização da educação através da dinâmica entre bases nacionais comum curriculares, sistemas de avaliação baseados em testes censitários e responsabilização meritocrática como indutores da inserção da educação no mercado.
Depois de caracterizar o movimento da reforma empresarial, são apresentados dados evidenciando que os efeitos negativos destas políticas nas escolas, no magistério e nos estudantes não autorizam, do ponto de vista ético, sua aplicação nos sistemas de ensino, inclusive porque elas impedem o desenvolvimento de outras formas mais promissoras de se mudar a escola pública e favorecem a estagnação de sua qualidade. Finalmente, são apontados elementos para uma política alternativa e um programa para a resistência".
Duas observações finais: No Brasil as fundações educacionais são os novos Think tanks dessa concepção de educação e uma frase do nosso ex senador e governador Roberto Requião, numa manifestação pública. O nosso modelo de educação deve ser inspirado em Paulo Freire e não em Sobral. Devo ainda dizer que escrevi este post com profunda tristeza. Não é esta a educação que queremos! O livro é da Expressão popular, do ano de 2018.