segunda-feira, 27 de abril de 2020

Drácula. Bram Stoker.

Tempos de pandemia. Pensei em ler algo sobre esses tempos em que todas as crenças afloram. Tempos em que a economia fala mais alto que a própria vida e, em que, imbecis absolutos passam a ser o norte a orientar as pessoas, ou "nortear" as pessoas. Esses dias li uma contestação a esse nortear. As ideologias do sul é que precisariam ser afirmadas. Estive entre reler Decamerão, de Boccaccio, que tem a peste negra (1348- 1353) como seu tema, ou então, enveredar pela literatura de terror, para mim completamente desconhecida. Optei pela segunda e o livro escolhido foi uma verdadeira obra prima.
Drácula. Da coleção clássicos Zahar.

A escolha recaiu sobre Drácula, do escritor inglês Bram Stoker (1847-1912). A obra em questão foi escrita no ano de 1897. Quase cem anos depois ela foi levada ao cinema pelo diretor Francis Ford Coppola. Existem versões anteriores e posteriores. A leitura foi extremamente agradável e a forma da narrativa não possibilita qualquer dificuldade em sua leitura. O narrador sempre está identificado. Tudo está escrito em cartas, diários ou memorandos.

Procurei caprichar na compra. Minha opção recaiu sobre o da coleção Clássicos Zahar, em edição comentada por Alexandre Barbosa de Souza. Ele também é o responsável pela apresentação. A Zahar tem alta credibilidade comigo. A escolha foi certeira. Durante a leitura, a primeira pessoa que me veio à mente foi Freud. A razão não é absoluta. Ela é insuficiente para explicar a totalidade do fenômeno humano. Mas na resenha vou me ater, praticamente, à apresentação do livro. Apenas lembrando que a obra é de 1897 e que o conde Drácula tem o seu castelo na Transilvânia, Romênia, entre os Cárpatos. A minha leitura foi acompanhada com a consulta constante dos mapas da região, tão fortemente disputada ao longo de toda a história.

Começo pela narrativa, em que os personagens são arrolados: "Além de Jonathan, Mina e Van Helsing, também fazem parte da perseguição frenética ao velho aristocrata romeno, ou húngaro, o lorde inglês Arthur Holmwood, cuja noiva Lucy tivera relações íntimas, e fatais, com o conde, o psiquiatra John Seward e o playboy texano Quincey Morris. Mina também mantivera relações com o conde, apenas quase fatais, embora tenha passado por um "batismo", no qual foi obrigada a beber o sangue do tétrico vampiro: 'Com a [mão] direita, agarrava-a pela nuca, forçando o rosto para baixo sobre o peito dele. A camisola branca estava suja de sangue, e um fio escorria pelo peito nu do conde, exposto por suas roupas abertas. A posição dos dois lembrava terrivelmente uma criança forçando um gatinho a enfiar o focinho no pires de leite, para obrigá-lo a beber'. A luta deles todos para pôr fim ao mal encarnado é, de início, narrada por Mina, a partir dos diários do marido, mas completa com a transcrição das gravações do psiquiatra (em cilindros fonográficos), além de cartas pessoais e comerciais, telegramas, notícias de jornais, incluindo parte de um diário de bordo de um navio russo (encontrado em uma garrafa) naufragado na Inglaterra".

A narrativa começa quando Jonathan vai ao castelo do conde para com ele fechar uma transação imobiliária em Londres e termina numa perseguição ao mesmo em seu castelo. Esta narrativa consome, na edição da Zahar, 468 páginas, divididas ao longo de 27 capítulos.

Mas o que envolve o romance, volto a repetir, escrito em 1897? Alexandre Barbosa de Souza na apresentação nos chama atenção para sete fenômenos que ocorrem nessa transição de século, empregados em sua narrativa: 

"1) o magnetismo animal do médico Franz Anton Mesmer (1734-1815); 2) as experiências de hipnose e indução ao sonambulismo para o tratamento da histeria de Jean-Martin Charcot (1825-93), citado no romance; 3) as crenças espiritualistas na transferência corporal, segundo as quais o espírito de uma pessoa pode se transferir para outro corpo (algo semelhante ao que acontecerá entre Mina e o conde); 4) a teoria da materialização, isto é, a aparição de objetos aparentemente sólidos onde não havia nada, como nas sessões espíritas da era vitoriana; 5) o conceito de corpo astral, adotado pela teosofia e pelos videntes, e compreendido como um vaso ou recipiente para o espírito, emoções, desejos e paixões, invisível aos não iniciados, mas capaz de migrar quando a pessoa dorme, durante a chamada 'projeção astral'; 6) a neurologia e a psiquiatria da época (Stoker consultou Principles of Mental Physiology (1874), do fisiologista W. B. Carpenter, criador do conceito de 'un-conscious cerebration'); 7) a discutível ciência de Max Nordau (1848-1932) e Cesare Lombroso (1835-1909), também citados no romance". As pessoas eram acometidas por uma "febre cerebral". Como percebem, uma obra extremamente erudita.

Ao final do livro tem uma nota, escrita sete anos após os episódios finais ou fatais. Jonathan e Mina tiveram um filho e este recebeu o nome de Quincey Morris. O último parágrafo relembra a terrível e necessária empreitada, ou missão. Quem fala é o Dr. Van Helsing: "-Não precisamos de provas. Não estamos pedindo que ninguém acredite! Este menino um dia vai saber a mulher corajosa e galante que é sua mãe. Agora já conhece sua meiguice e seus cuidados amorosos. Mais tarde, ele entenderá como alguns homens a amaram de tal modo que arriscaram muito pelo seu bem".

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Pedagogia da esperança - um reencontro com a pedagogia do oprimido. Paulo Freire.

Assim que terminei de ler Cartas a Cristina - reflexões sobre minha vida e minha práxis, de Paulo Freire, iniciei outro livro seu, em que ele também re-memoriza grandes fatos de sua vida. Se em Cartas a Cristina ele o faz até o seu período do exílio, na Pedagogia da Esperança - um reencontro com a Pedagogia do oprimido, ele, além de retomar a sua vivência na cidade de Recife, onde efetivamente gestou o Pedagogia do oprimido, ele vai além, vai para Santiago do Chile, onde o livro foi escrito. Depois segue toda a trajetória sua e a do livro, pelo mundo afora.
Em 1992 Paulo Freire escreve Pedagogia da esperança, Nele tem um reencontro com a Pedagogia do oprimido.

Além da memória da gênese e escrita do livro, creio que o grande objetivo dele é o de fazer uma análise das críticas feitas, que vieram tanto da direita, quanto da esquerda. As da direita, geralmente infundadas, ele simplesmente perguntava sobre o teor da discordância e a que livros, especificamente, ele se referia. Normalmente o debate se encerrava aí. Quanto à esquerda, as críticas, de maneira geral, se referiam a três elementos da obra. Que ela teria um caráter idealista, que desconsideravam um quadro mecanicista da história e que ele falava de oprimidos e opressores e não de luta de classes. Questão de dogmatismos e ortodoxias. E a eterna questão: Para os oprimidos ou junto com os oprimidos.

Em torno do teor do livro e também dessas questões acima se deram muitas das andanças de Paulo Freire, mundo afora, em seus longos quinze anos de exílio, como também, depois de sua volta ao Brasil. Essas andanças lhe renderam inúmeros títulos de Doutor Honoris Causa (35 no total, segundo a Wikipédia), debates nas universidades e elaboração de projetos em torno de políticas educacionais populares e de alfabetização de adultos. Merece destaque especial o trabalho feito junto às ex colônias portuguesas da África, recém independentes do jugo colonial. No exílio Paulo teve uma rápida passagem pela Bolívia, em torno de quatro anos no Chile, uma rápida passagem por Harvard, para depois fixar sede na cidade de Genebra, junto ao Conselho Mundial de Igrejas.

Pedagogia do oprimido foi escrita no Chile, ao longo dos anos 1967 e 1968. Sua gênese remonta às observações feitas junto ao povo pobre de Recife e do interior pernambucano, junto aos camponeses chilenos envolvidos em projetos de reforma agrária e junto a negros e porto-riquenhos da cidade de Nova York. O próprio Paulo Freire sofreu a violência da fome e experimentou uma mudança de endereço do Recife para a então periférica Jaboatão, onde, confessa, beirou à indigência e lhe brotou a sua radicalidade. Reencontrou-se depois com os pobres, com seus trabalhos junto aos filhos de trabalhadores, trabalhando no SESI. Quando Paulo partiu para o exílio já era um intelectual formado, com o curso de direito, professor universitário e os títulos de doutor e pós-doutor.

A saída de Jaboatão se tornou possível graças a uma bolsa de estudos no Colégio Oswaldo Cruz, um colégio da elite pernambucana, tendo como contrapartida ser um aplicado aluno. Em sua biblioteca, nessa época, já se catalogavam 600 livros estrangeiros, fora os da literatura brasileira e de interpretações de Brasil. Por eles lia o Brasil e o mundo. Dialogou intensamente com os pensadores do ISEB. Não é estranho portanto, que escrevesse livros de tamanha profundidade como Educação como prática da liberdade e Pedagogia do oprimido. Na saída para o exílio, Paulo já estava com seus 43 anos de idade.

Pedagogia do oprimido foi escrito de um fôlego só, dentro de uns quinze dias de férias. Tinha originalmente três capítulos. Por sugestões, o livro ficou descansando por mais de dois meses. Quando retomado, ganhou um quarto capítulo. O livro foi dado como concluído em 1968, quando Paulo dele tirou várias cópias. A primeira publicação é do ano de 1970, nos Estados Unidos, com publicação da Penguin Books. Antes de sua publicação no Brasil, em 1974, o livro já havia sido traduzido, além do inglês da primeira edição, para o espanhol, francês, italiano e alemão. O diplomata e político suíço Jean Ziegler fizera chegar uma cópia ao editor brasileiro Fernando Gasparian. A edição que tenho em mãos é de 1979.

O livro tem a seguinte dedicatória: "Aos esfarrapados do mundo e aos que nele se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam. É a Pedagogia do oprimido. O livro tem um prefácio singular e único, de autoria do professor Ernani Maria Fiori. Ele termina assim: "Em regime de dominação de consciências, em que os que mais trabalham menos podem dizer a sua palavra e em que multidões imensas nem sequer tem condições para trabalhar, os dominadores mantém o monopólio da palavra, com que mistificam, massificam e dominam. Nessa situação, os dominados, para dizerem a sua palavra, tem que lutar para tomá-la. Aprender a tomá-la dos que a detém e a recusam aos demais, é um difícil, mas imprescindível aprendizado - é a 'pedagogia do oprimido'". Também li que o livro está inspirado na dialética do escravo de Hegel.
O meu exemplar da Pedagogia do oprimido data do ano de 1979. 11ª edição.

Como vimos, o livro tem quatro capítulos: 1.Justificativa da pedagogia do oprimido; 2. A concepção bancária da educação como instrumento da opressão. Seus pressupostos. Sua crítica; 3. A dialogicidade - essência da educação como prática da liberdade; 4. a antidialogicidade e a dialogicidade como matrizes de teorias de ação cultural antagônicas: a primeira, que serve à opressão; a segunda, à libertação. A libertação e a esperança a que ela conduz é a tônica que perpassa todo o livro. Deixo o último parágrafo: "Se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar".

Da Pedagogia da esperança selecionei um parágrafo, um tanto longo, que, creio, sintetiza bem a defesa que ele fez do livro. O transcrevo:

"Na Austrália, sobretudo, tive a oportunidade de conviver com intelectuais que, no lado certo de Marx, alcançando por isso mesmo, corretamente, a relação dialética mundo-consciência, perceberam as teses defendidas na Pedagogia do oprimido e não o consideraram um livro idealista. Mas dialoguei também com quem, preso ao dogmatismo igualmente de origem marxista, mais do que minimizava a consciência, a reduzia a pura sombra da materialidade. Para quem pensava assim, mecanicamente, a Pedagogia do oprimido era um livro idealista burguês. Possivelmente, ao contrário, uma das razões que continuam a fazer este livro tão procurado hoje quanto há 22 anos é exatamente o que nele então levava certos críticos a considerá-lo idealista burguês. É a importância, nele reconhecida, da consciência, que, porém, não é vista nele como fazedora arbitrária do mundo; é a importância manifesta no indivíduo, sem que se lhe atribua a força que não tem; é o peso, igualmente reconhecido, em nossa vida, individual e social, dos sentimentos, da paixão, dos desejos, do medo, da adivinhação, da coragem de amar, de ter raiva. É a defesa veemente de posições humanistas que jamais resvalam em pieguismos. É a compreensão da história em cujas tramas o livro procura entender o de que fala, é a recusa a posições dogmáticas sectárias, é o gosto da luta permanente, gerando esperança, sem a qual a luta fenece. É a oposição já nele embutida contra os neoliberalismos que temem o sonho, não o impossível, pois que esse não deve sequer ser sonhado, mas o sonho que se faz possível, em nome das adaptações fáceis às ruindades do mundo capitalista". Páginas 244-5.

Neoliberalismo e pós modernidade são temas muito presentes em Paulo Freire ao longo dos anos 1990. Ele não tolera os fatalismos do anunciado fim da história, do fim da luta de classes e do fim das ideologias. Ele não aceita fatalismos e determinismos. Entre as críticas que Paulo reconhece é a linguagem machista contida no livro e a corrige - usando depois - sempre o masculino e o feminino em sua escrita. O livro é escrito num fôlego só, sem a divisão de capítulos. Tem notas explicativas de Ana Maria Araújo Freire e prefácio de Leonardo Boff. O livro é de 1992 e tem 333 páginas.   


domingo, 19 de abril de 2020

Não é possível ser cristão e neoliberal. Dom Miguel Esteban Hesayne.

Hoje (16.04.2020), remexendo em papéis antigos, encontrei um documento de uma atualidade impressionante. Pelos meus cálculos, o guardo desde o final dos anos 1990. O documento, na verdade, é um manifesto, assinado pelo bispo emérito da cidade de Viedma, e que tem o sugestivo título de Não é possível ser cristão e neoliberal. Como nesses tempos de Coronavírus, discutir o papel ou as funções do Estado na organização da sociedade se constitui num tema muito atual, não hesitei em publicá-lo. É nos estados que professam esta ideologia que mais gente está  morrendo. É que eles sobrepõem o econômico à própria vida humana, sendo que a vida, para os cristãos, é absolutamente primordial. E, ressalte-se, vida em abundância.


Vi algo sobre a cidade e sobre o seu bispo. Viedma está a quase mil quilômetros de distância, ao sul de Buenos Aires, na província e às margens do Rio Negro. Possui em torno de 50.000 habitantes. É a capital da província. Já sobre o seu bispo, vi a manchete do Clarin, anunciando o seu falecimento: "Murió el obispo Miguel Esteban Hesayne, un defensor de los derechos humanos que enfrentó a la dictadura". Altamente elogioso. O falecimento ocorreu no primeiro dia de dezembro de 2019, aos 96 anos de idade. Morte recente, portanto. Vida longa, a deste bravo argentino.

O documento é uma resposta à afirmação/provocação feita no título: Não é possível ser cristão e neoliberal. Vejamos então às incompatibilidades:

...Porque um cristão é discípulo de Jesus, cuja doutrina tem o amor solidário como mandamento central. E foi expresso pela boca do próprio Mestre: 'a felicidade está mais em dar do que receber' (Atos 20,35).

Porque o perfil do cristão é definido pela participação equitativa. Não há vida cristã sem comunidade de bens e pessoas. A igreja é comunhão de pessoas, cujo signo é a convivência fraterna, demonstrada no paradigma da comunidade cristã das origens cristãs, nas quais se revela textualmente: 'repartiam o dinheiro de acordo com as necessidades de cada um' (Atos 2, 45).

Não se pode ser cristão e neoliberal, porque o neoliberalismo é na história real, o capitalismo. A doutrina neoliberal, como demonstrado pelas consequências mais dramáticas de sua prática, situa-se no extremo oposto do Evangelho do Senhor Jesus.

Por outro lado, Jesus Cristo foi, em sua vida histórica, o homem no qual Deus se encarnou para mostrar a conduta de todo Homem que vem a este mundo. Por isso houve escritores sagrados que ensinaram a bela utopia de que a tarefa cristã é adquirir 'os costumes de Deus'. Não fizeram nada além de se basear nas palavras que lemos no Evangelho de Mateus 5,48: 'sejam bons como o Pai Celeste é bom' ou nestas palavras de João 15,22: 'Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado". E comenta o apóstolo, na sua primeira carta: 'Nisto conhecemos o Amor que ele deu a sua vida por nós. E nós também devemos dar a nossa vida pelos irmãos. Se alguém vive na abundância dos bens deste mundo, vê o seu irmão na necessidade e lhe fecha o coração, como permanecerá nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos de palavras nem de língua, mas por ações e em verdade' João 3, 16-18).

O cristão é o imitador de Jesus Cristo. E Jesus Cristo é o homem para os demais... A personalidade cristã consiste em doar-se e o Espírito que a anima é o que a impulsiona a fazer, de toda a humanidade, uma comunidade, uma comunidade fraterna, justa e solidária, com possibilidades iguais para todos. É a nova civilização do Amor, é a alternativa de convivência cidadã a partir  dos valores de Jesus Cristo, o Senhor da História. Ser cristão consiste em deixar-se animar pelo Espírito do Ressuscitado que recria o mundo dos homens num mundo novo e habitável para a família dos filhos de Deus. O neoliberal, ao contrário, basicamente orientado pela mentalidade capitalista cuja dinâmica interna leva à acumulação de bens, nutre-se em sua atividade econômica do:

- espírito do lucro, isto é, do desejo de obter ganhos cada vez maiores.

- espírito de competição, exacerbado por um forte individualismo. Isto provoca a rivalidade ou luta entre os indivíduos para conseguir os maiores ganhos possíveis e faz sempre tender para o monopólio, que representa o máximo de liberdade própria e o máximo de limitação alheia.

- espírito de racionalização, isto é, avaliar todas as coisas com base em cálculos de custo e lucro.

O espírito do NEOLIBERALISMO é diametralmente oposto ao Espírito dos Cristãos.

- porque no país onde se implanta, engendra morte, pela marginalização fria da maioria restante, criando a classe dos excluídos;

- porque desumaniza a técnica e esvazia de conteúdos humanos os progressos econômicos, que no projeto cristão devem servir para uma distribuição equitativa;

- porque altera e corrompe a liberdade e a democracia, pois não as faz acompanhar dos valores da justiça, da verdade e do amor solidário;

- porque seu dogmatismo e inflexibilidade na imposição da lei de mercado negam e impedem toda possibilidade de alternativa deixando de existir de fato uma convivência comunitária devido aos interesses privados absolutos de uma minoria poderosa;

- porque são violados de fato os direitos humanos elementares, necessários para que se alcance a dignidade humana tanto pessoal quanto comunitária.

Enfim, não se pode ser cristão e neoliberal porque a fé cristã promove a cultura da vida e a ideologia neoliberal, em sua realização histórica é a ante-sala da morte para a maioria excluída. Isto significa que o cristão se define pela construção da PAZ que Jesus Cristo conquistou com sua morte e ressurreição e dá a todo homem e mulher de boa vontade".

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Dois adendos, a partir de minhas leituras mais recentes. O primeiro é de Paulo Freire, retirado de seu livro Cartas a Cristina - Reflexões sobre minha vida e minha práxis, em que condena a dissociação entre os valores e a prática cristã. No caso, as práticas racistas. Vejamos:


"o processo discriminatório gera em quem discrimina um mecanismo de defesa que quase os petrifica ou os "impermeabiliza". Às vezes, até parece que se convencem mas não se convertem. Intelectualmente, aceitam que se contradizem, mas visceralmente, não se sentem em contradição. Não há para eles, inconciliação entre o discurso cristão do "ama a teu próximo como a ti mesmo" e a prática racista. O discriminado ou a discriminada, para o racista, não é 'outro', é 'isto'. É como se a prática de discriminar emburrecesse as pessoas além de embrutecê-las" Página 235.


O segundo, o retiro do belo livro de Eça de Queirós, O crime do padre Amaro. Nele o padre Amaro, discutindo com o cônego Dias, afirma que a moral existe apenas para ser pregada na escola e nos púlpitos da igreja. Na prática, outros valores imperam.



sexta-feira, 17 de abril de 2020

A difícil democracia. No Paraná, as escolas reagem ao projeto de educação à distância.


Não bastassem as dificuldades que a população brasileira e paranaense está vivenciando em função da pandemia do coronavírus, a Secretaria de Estado da Educação está implantando o terrorismo real e simbólico em nossas escolas, atingindo, simultaneamente, toda a comunidade escolar: alunos, pais e educadores.

Este terrorismo advém da implantação de um projeto de educação à distância, em substituição ao sistema presencial, único sistema viável, quando se trata da educação infantil e da educação básica. Até no nível superior ela sempre deverá ter um caráter de complementação. Existem até discussões pedagógicas que duvidam da possibilidade, ou não, de alunos do ensino fundamental estarem aptos para a realização de pesquisas, o que se dirá então, da educação à distância? Em suma, o que comanda o processo educacional nesta fase da vida é o rico mundo de relações pessoais que se estabelece no espaço físico da escola. Além do mais, o processo educativo vai para muito além da mera preocupação com a transmissão de conteúdos, que deve ser o motivo do projeto. Ah, o CREP! Ah, a Prova Paraná! Quanto pensar pequeno! Quanto apequenamento do grandioso conceito de - a partir de um ser inacabado - transitar no rumo de um "SER MAIS!

A implementação de um novo projeto sempre deve ser precedida de muito cuidado. O novo sempre assusta. Experiências no setor devem ser consultadas, teóricos são chamados a opinar e, normalmente, se realizam experiências piloto para a avaliação de seus resultados. Estas são as condições, sem as quais, pessoas sérias não se aventurariam.

Assim no Paraná, durante o período do isolamento social causado pela pandemia, a comunidade escolar paranaense foi surpreendida com a imposição vertical de um projeto de educação à distância, com a pronta aquiescência do Conselho Estadual de Educação. E as perguntas surgem. Quais são os fundamentos teóricos e empíricos deste projeto? A única hipótese possível é a de que eles saíram da mente "empreendedora” do senhor secretário de educação do estado do Paraná, o empresário Renato Feder.

Renato Feder merece uma palavra toda especial, sob a forma de uma nova pergunta. A curiosidade epistemológica me obriga a perguntar. Quem é ele e quais são as suas credenciais para ter sido indicado a tão elevado cargo? Quais são as suas experiências teórico/práticas no campo da educação que o elevaram à condição para o exercício do cargo?

Diante disso, as perguntas continuam. Quem o nomeou? É óbvio que quem o nomeou foi o governador do Paraná, o senhor Ratinho Júnior. Quais as referências que ele dele teve, para referendá-lo a tão alto cargo? Sei que em alguns setores da administração estadual os quadros dirigentes foram escolhidos entre os profissionais das próprias entidades ou instituições, e a partir daí, surge uma nova interrogação. Por que este critério não foi também estabelecido na educação? Não há nela quadros competentes para tal? Por que trazer um triplo alienígena para o seu comando? Triplo sim. De fora dos quadros da educação, alheio às questões educacionais e de fora do próprio estado do Paraná? 

Todos estes são componentes para a democracia não dar certo. Para ela ser uma prática difícil. Na democracia, o principal ingrediente para que ela efetivamente funcione é a busca da adesão, do convencimento e o instrumento para tal é o diálogo. O diálogo entre este governo e o setor da educação ainda não ocorreu. A violência, esta sim, já. Questões de herança truculenta. 30 de agosto, 29 de abril. 

Mas voltemos ao ato da educação à distância. O improviso está acontecendo. Nada funciona corretamente. Por relatos sei que existe um despejar de conteúdos que são pessimamente trabalhados. Setenta reais seduziram inescrupulosos que desfilaram incompetências. Contratos milionários foram assinados. Não houve nenhum treinamento para a assimilação das tecnologias inerentes ao processo. A situação real da comunidade foi simplesmente ignorada. Foi ignorado, inclusive, o estado de carência de grande parte, senão da maioria dos alunos da escola pública, carentes dos meios para que uma educação à distância possa ser viável do ponto de vista técnico, que é a sua razão de ser.

O que sobrou, no entanto, nesse processo? Ameaças e mais ameaças. Reposição em período de férias, quebras à hierarquia a serem julgadas e punidas, faltas, licenças obrigatórias, retirada dessas licenças, protagonismo subserviente, indisposições com a comunidade, ruptura de contratos precários. E o próprio futuro profissional. Não será um abrir de porteiras para um futuro não distante?

Além das preocupações psicológicas com a pandemia se somam agora as ameaças reais e simbólicas da vontade autoritária do sorridente secretário. Vejo postagens de professores que afirmam não dormir, que entram nos sistemas de manhã, voltam à tarde e à noite e não conseguem conexões. E as ameaças pairam no ar. Circulam as imagens grotescas de uma senhora chefe de núcleo com ameaças vexatórias, que deveriam envergonhar qualquer currículo.

E o pior. Muitos estão tomados pelo medo. Sabemos que os dois mais importantes afetos humanos são o medo e a esperança. O medo faz mal e a esperança faz bem. Mas os professores estão com medo, com medo até de perder a esperança. E perder a esperança implica na própria condição do humano. A democracia é um difícil exercício entre pessoas que se consideram iguais e que se respeitam e que aprendem com a riqueza do encontro das alteridades. A democracia é um difícil exercício entre a liberdade, o exercício da autoridade e a responsabilidade. O exercício da democracia não suporta mandonismos, tutores, supressão de eleições e imposição de medos. Tomara que os superiores hierárquicos abram pequenas fendas para que ar puro possa penetrar.

Para terminar. Existem protagonismos. Hoje (17.04.2020) fiquei sabendo do protagonismo da Colégio Edith, de Campo Largo. Usaram de um expediente do Conselho Estadual de Educação e convocaram o Conselho Escolar para deliberarem sobre a aceitação ou não da dita imposição. Optaram pelo não. Mas não um não absoluto e definitivo. Sobrou espaço para redefinir. Daqui a uma semana voltarão a se reunir para democrática e coletivamente deliberarem os próximos passos. Os protagonistas fazem história. Os autoritários também. Porém todos serão julgados e, como estamos nos aproximando do 21 de abril, uns serão lembrados como Tiradentes, como protagonistas de tempos de libertação e outros como Joaquins Silvérios. A obediência cega levou aos piores julgamentos da história. Que Adorno, Hannah Arendt, Primo Levi, entre outros, não permitam que percamos nossa condição e capacidade de refletir.






quinta-feira, 16 de abril de 2020

Cartas a Cristina. Reflexões sobre minha vida e minha práxis. Paulo Freire.

A leitura é um mover-se constante. Uma vez iniciado o processo, ele não terá mais fim. A leitura puxa, necessariamente, por mais leituras. Assim, terminando de ler uma biografia de Paulo Freire, a de Sérgio Haddad, O educador - um perfil de Paulo Freire, fui levado a ler o seu livro de memórias Cartas a Cristina - reflexões sobre minha vida e minha práxis. Os livros de memórias exercem sobre mim um enorme fascínio. Elas são a reconstituição de uma vida, a busca pelos espaços, pelas fendas, por onde a possibilidade de constituição de um sujeito se tornaram possíveis. Deixo aqui o belo perfil traçado por Sérgio Haddad. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/03/o-educador-um-perfil-de-paulo-freire.html
O livro de memórias de Paulo Freire. A primeira edição é do ano de 1994.

Especialmente, a partir das curiosidades sobre a minha própria formação é que eu sou instigado a ler sobre os passos seguidos na formação dos outros, o que eles leram e quem os influenciou. Imagina então, quando este outro é simplesmente o "Patrono da Educação Brasileira" e um dos maiores intelectuais do mundo. Com relação a mim, sempre busco onde se localizaram os pequenos espaços, fendas, como referi acima, que permitiram não seguir uma vida pré determinada, uma vida quase que espontânea e naturalmente dada, sem a possibilidade da interferência de tomada consciente de posições. Pensar sobre essas questões, para mim é fascinante. A vida não pode ser um dado já dado.

Mas não me vejo só nas curiosidades relativas a Paulo Freire. Cristina, uma sobrinha sua, também as teve. Quando Paulo ainda se encontrava em Genebra, ela lhe escreve uma carta, solicitando ao tio que escrevesse sobre a trajetória percorrida, pela qual ele se tornou o grande educador que foi e é. A partir dessa provocação é que nasceu este belo livro. Provocação é uma palavra muito ao gosto de Paulo Freire. Ela vem de pro e vocare, isto é, chamar para. Foi o desafio lançado. A resposta veio por este livro de 415 páginas, escrito com o auxílio de Ana Maria Araújo Freire, na organização do livro e por  uma série de notas explicativas.

Embora eu não conheça bem a cidade de Recife, com Paulo andarilhei por suas ruas em busca das livrarias e me banhei no rio Duas Unas, em Jaboatão, espiando meninas a se banharem. Acompanhei a mudança da primeira para a segunda, num percurso traçado pela pobreza que quase beirou a indigência, não fosse a tenacidade de seu pai e a obstinação de sua mãe e a preservação de alguns símbolos de bem-estar. Com o pai, um policial militar, recebeu suas primeiras aulas de política, numa época propícia para o debate: a crise de 1929 e a Revolução de 1930. A situação se agravou com a doença e a morte do pai e a transformação de um salário em simples pensão.

O tempo foi resolvendo os problemas. Os irmãos mais velhos começaram a trabalhar e Paulo pode iniciar os seus estudos, que naquele tempo terminavam com o curso primário para a maioria do povo brasileiro. Na época, Jaboatão nem sequer escola secundária tinha. Sua mãe, em troca de muita aplicação do filho, consegue uma bolsa em um dos colégios da mais alta elite do Recife. O Colégio Oswaldo Cruz. A partir daí, o menino deslanchou. De aluno passou a professor do mesmo colégio, professor de português, donde lhe veio o gosto pelos estudos de linguística. Veio a Faculdade de Direito, o emprego no SESI, os círculos de cultura, a carreira universitária e uma vida de muitos estudos, de muita curiosidade epistemológica. Nesses anos de formação, em sua biblioteca, já catalogara mais de 600 livros estrangeiros. Paulo já lia o mundo. Entre seus estudos, sempre houve a predileção pela linguística, estudos que o levaram ao seu método de alfabetização. 

Já na qualidade de professor universitário veio a famosa experiência de Angicos. Ela é fruto de um convênio firmado entre o governo do Rio Grande do Norte e a Universidade do Recife. Um trabalho de extensão universitária, financiado, vejam a ironia, com o dinheiro da "Aliança para o Progresso". É desse tempo o seu trabalho de doutoramento envolvendo a questão da educação e da democracia. Esta tese está mais ou menos contida em seu primeiro livro Educação como prática da liberdade. É o tempo em que Paulo se aproximou dos pensadores do ISEB e, de uma maneira muito especial com um de seus pensadores, Álvaro Vieira Pinto.

A partir daí Paulo entra na segunda parte do livro, quando elenca os principais temas que o acompanharam em sua trajetória de educador. São reflexões bem aprofundadas que marcam a essência do grande e renomado educador. Paulo, ao longo do livro, procura dar destaque para a coerência entre a prática e a teoria, sempre mediada pela reflexão. É o subtítulo do livro: reflexões sobre minha vida e minha práxis. Num dos encontros sobre Paulo Freire dos quais eu participei, eu ganhei uma camiseta. Nela se lê: "É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática". Esta é a grande síntese do livro e também o seu objetivo fundamental. Outra síntese também poderia ser a ideia da infinita vocação e possibilidade do ser humano para o SER MAIS. No SESI Paulo exerceu também funções administrativas.

O livro se divide em duas partes e mais de cem páginas de notas de Ana Maria Araújo Freire, a Nita. Ao todo são 18 cartas. Na primeira parte Paulo segue mais ou menos uma linha do tempo. São 13 cartas. Os títulos são elucidativos: 1ª carta: A fome na minha infância. Em tenra idade já pensava que o mundo teria de ser mudado; 2ª carta: A gravata de meu pai e o piano alemão de tia Lourdes; 3ª carta: As almas penadas falando manhosamente e o relógio grande da sala da casa na qual nasci; 4ª carta: A triste e traumática mudança para Jaboatão; 5ª carta: A malvadez da pobreza; 6ª carta: Meus estudos no Colégio Oswaldo Cruz, do Recife. Meus professores e meus amigos mais queridos; 7ª carta: Jaboatão: "aí se encontram as mais remotas razões de minha radicalidade; 8ª carta: O sonho rompido; 9ª carta: A morte de meu pai: a dor e o vazio por sua perda; 10ª carta: De volta ao Recife: "enfeitiçado pela docência no Colégio Oswaldo Cruz" e andarilhando pelas livrarias de minha cidade; 11ª carta: "Sesi: a prática de pensar teoricamente a prática para trabalhar melhor"; 12ª carta: Minhas experiências no MCP, no SEC e em Angicos; 13ª carta: Uma carta de transição.

Na segunda parte encontramos os outros cinco capítulos ou cartas: 14ª carta: Educação e democracia; 15ª carta: O processo de libertação: a luta dos seres humanos para a realização do Ser mais; 16ª carta: O papel do orientador de trabalhos acadêmicos numa perspectiva democrática; 17ª carta: o sonho da libertação e a luta contra a dominação; 18ª carta: A problematicidade de algumas questões do fim do século XX. Tem ainda a carta de Cristina, uma pequena nota sobre o livro que resultou do seu pedido e uma bela nota de introdução de seu amigo e uma espécie de filho dileto, Adriano Nogueira.

Ao terminar esta leitura, sinto ainda a falta da continuidade deste relato de memórias, abrangendo o tempo do exílio, especialmente, o seu trabalho em Genebra junto ao Conselho Mundial de Igrejas e a sua volta ao seu tão querido chão brasileiro e outro livro seu, também de memórias, da escrita de seu grande livro Pedagogia do oprimido. O livro é Pedagogia da esperança - um reencontro com a pedagogia do oprimido. 



domingo, 12 de abril de 2020

O crime do padre Amaro. Cenas da vida devota. Eça de Queirós. Vestibular UERJ.

Mais uma vez chego a um livro pelas indicações ao vestibular. Desta vez foi a indicação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a UERJ. O livro, O crime do padre Amaro, que segundo uma observação ao final do livro, num apêndice, afirma que teve um subtítulo - Cenas da vida devota. Nada mais apropriado. A vida devota da cidade de Leiria. O autor, Eça de Queirós. Os personagens? O padre Amaro, Amélia, a mais bela moça da cidade, os acontecimentos na casa da S. Joaneira e o clero, ah, o clero! Além de outros.
O livro da Martin Claret. A primeira edição é de 1876 e teve uma recepção ruidosa.

Um livro ácido, um livro dentro do realismo/naturalismo que tomou conta do mundo literário a partir da segunda metade do século XIX. Este dado é fundamental para a compreensão e o entendimento da obre e de todo um movimento histórico e literário que insiste em ser novo e que, no entanto, em Portugal, insiste em ser velho. Eça pregava a crença de que a literatura deveria ser um instrumento da mudança social. Cedo participou da Questão Coimbrã. Realizou uma das famosas palestras realizadas em 1871. Nela afirmou: "O romantismo era a apoteose do sentimento; o realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos - para conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenarmos o que houve de mau na sociedade".

No último capítulo do livro, o de número vinte e cinco, o cenário não é mais a interiorana Leiria, mas Lisboa. Lá, uma multidão se concentra em torno das novidades de Paris, onde, segundo o conde de Ribamar, meia dúzia de bandidos estavam a destruir a cidade. Era a Comuna, o primeiro comando da cidade, na mão de trabalhadores. Os interlocutores eram o conde de Ribamar, o padre Amaro, seu protegido desde a infância e o cônego Dias, o mestre do padre Amaro. 

Por falar no cônego Dias, ele é um dos três padres de Leiria, que formam, o que eu chamaria, o trio da perversão, ou o retrato do clero português da época: o padre Amaro, o cônego Dias e o padre Natário. Cada um deles assume momentos de protagonismo. Ora será Natário, ora o mestre cônego Dias e ao final o grande protagonista será mesmo o personagem do título, o padre Amaro, a consumar o seu horrível crime. Eça chegou a morar na cidade para melhor investigar a realidade dos fatos. Não é, portanto, obra de ficção.

Entre todas as suas perversidades, eu anotei aquela, que segundo a minha percepção, é a maior de todas. Está no capítulo XX, à página 326, numa discussão entre o padre Amaro e o cônego Dias, cada um com as suas imoralidades. Amaro responde ao cônego, após ser chamado de traste: "Traste por quê? Diga-me lá! Traste por quê. Temos ambos culpa no cartório, eis aí está. E olhe que eu não fui perguntar, nem peitar a Totó... Foi muito naturalmente ao entrar em casa. E se me vem agora com coisas de moral, isso faz-me rir. A moral é para a escola e para o sermão. Cá na vida eu faço isto, o senhor faz aquilo, os outros fazem o que podem. O padre-mestre que já tem idade agarra-se à velha, eu que sou novo arranjo-me com a pequena. É triste mas que quer? É a natureza que manda. Somos homens. E como sacerdotes, para a honra da classe, o que temos é que fazer costas!".

Ah, Nietzsche! A moral dos fortes e a moral dos fracos! A moral dos senhores e a moral dos escravos! Mas não pensem que o amor com a pequena foi o crime do padre Amaro. Isto era do consuetudinário dos padres. Quem usa a moral apenas para a escola e para os sermões é capaz de fazer qualquer coisa, até a praticar "o crime do padre Amaro". Outra coisa, já naquele tempo, igual ao tempos de hoje, eles se confessavam e se auto denominavam como "as pessoas de bem". A diferença é a de que isso hoje está na boca dos políticos corruptos (Me permitam uma perguntinha regional,  incômoda aqui do Paraná: Não é mesmo, governador Beto Richa?). Mas a história também tem outros personagens como João Eduardo, as velhas beatas, o tio Esguelhas, a entravada Totó. Tem até um padre bom, que age segundo os ditames do Concílio de Trento, o abade Ferrão.

Um pouco sobre Amaro. Desde criança é prometido à vida eclesiástica. Terá na pessoa do conde de Ribamar o seu protetor. Usará de sua influência para conseguir uma boa paróquia, a de Leiria e lá chegando "é hospedado na casa de S. Joaneira, mãe de Amélia, e esta é a mais bela jovem da cidade. É destinado a ele o quarto localizado exatamente abaixo dos cômodos da garota: à noite, ouvi-la se despindo ou arrastando as saias de um lado para o outro é um convite a toda forma de pensamento obsceno. Além disso, todas as noites, as beatas e os párocos se reúnem em tal residência para jantares fartos, jogos de cartas e mexericos a respeito da vizinhança - assim, Amaro familiariza-se tanto com o cenário que o ronda como com Amélia.

O noivo dela não é obstáculo para o padre, que arde em desejo pela garota...." É o que lemos no apêndice, em comentário sobre o livro. Não costumo opinar sobre a indicação dos livros. Faço uma exceção a este. Uma grande escolha. Uma escolha que vai para muito além do livro. Que entra em todos os meandros da literatura, em suas escolas, confrontando romantismo, realismo e naturalismo. Que entra profundamente na história e na sociologia, nas grandes transformações do mundo a partir das grandes revoluções como a Francesa e a Industrial e para os fenômenos decorrentes da urbanização. Um mundo em ebulição, do qual Eça será um ativo e engajado participante. Para ele a literatura deve exercer um importante papel social. E... Portugal em meio a todas essas transformações. É o retrato que nos mostra o maior nome da literatura portuguesa, antes, ressalve-se, de José Saramago. Dele, ainda me falta ler - A ilustre casa de Ramires, e uma boa biografia sua.


segunda-feira, 6 de abril de 2020

O Seminarista. Bernardo Guimarães.

"Já que assim o consideram os homens - murmurava consigo -, já que assim o ordena a sanha irresistível do destino, assim seja; serei um padre sacrílego, um padre infame, como tantos outros, que todos os dias profanam com mãos impuras os vasos do altar e a hóstia sacrossanta. Era essa a sina fatal que desde o começo estava fadada... Margarida não morre... O que a atormenta não é mais do que uma deplorável apreensão... O céu não quis que eu fosse seu esposo, o inferno me fez seu... que horror, meu Deus! que abominável sacrilégio! mas... já agora que hei eu de fazer... caí até o fundo do abismo, donde nunca mais poderei levantar-me. Ah, celibato!... terrível celibato!... ninguém espere afrontar impunemente as leis da natureza! tarde ou cedo elas tem seu complemento indeclinável, e vingam-se cruelmente dos que pretendem subtrair-se ao seu império fatal!..."
A primeira edição de O seminarista apareceu no ano de 1872.

Essa assertiva faz parte do capítulo XXIV, o capítulo final do livro O seminarista, do consagrado escritor do romantismo brasileiro, Bernardo Guimarães. Sem querer dar as pistas dos meandros do romance, cito essa parte final para dar as razões, as finalidades da escrita desse romance. A luta contra o celibato, o impedimento canônico que separa o amor da devoção sacerdotal.

Creio ser interessante começar a resenha mostrando um pouco do seu autor, situando-o no tempo e no espaço. Bernardo Guimarães é mineiro de Ouro Preto, nascido nos idos de 1825. Formou-se em Direito na cidade de São Paulo. Percorreu várias cidades do interior mineiro e goiano. Morou também no Rio de Janeiro, vindo a falecer em Ouro Preto, em 1884. A primeira impressão de O Seminarista é do ano de 1872. São os tempos da "Questão religiosa". Teria esta questão influenciado a sua obra?

Vamos ao romance. No interior de Minas, na pequena Tamanduá, morava seu Antunes, sua senhora e o menino Eugênio. Entre os agregados, Umbelina e a filha Margarida. As relações entre eles eram ótimas e, entre Eugênio e Margarida nasceu uma grande afeição. As crianças cresceram como se fossem irmãos. Eugênio fora prometido pelos pais à vida sacerdotal. A amizade entre as crianças, dia a dia, se tornava maior. Eis os personagens ou a matéria prima do romance.

Eu vivi o drama da promessa da vida sacerdotal. "Família que não tem um filho padre, dificilmente os pais irão para o céu", dizia o padre vigário. Não haviam rezado o suficiente. Eu era o mais novo entre cinco irmãos. A mim cabia, portanto, a salvação de meus pais, já que nenhum dos meus irmãos se dispôs para essa tarefa. Não tive amores de infância como teve o Eugênio. Mas não fiquei imune às milhares de contradições da vida no seminário. Eu e as minhas dúvidas fomos longe. A falta de coragem era grande e eu empurrava a tomada de decisão. Esta veio com o término do curso de filosofia e o início da teologia. Meus pais quase infartaram. O que mais me apavorava era a falta de autonomia. Um dos padres superiores nos alertava: "Vocês pertencem a maior instituição do mundo e é ela que pensa por vocês". Depois a vida, ou o tempo, foi ajeitando as coisas.

Bem, voltamos ao romance. Uma obra do romantismo. Que força de descrição. O regionalismo aparece forte. Há uma bela narrativa do que se chama de "mutirão". Trabalho de auxílio mútuo e, depois do trabalho, festa. Grande destaque também merece a imaginação e a condução do enredo. O óbvio nem sempre se dá. Você fica preso à leitura. Margarida, como costuma acontecer com as figuras femininas do romantismo, é uma menina linda, singela, cativante e sedutora. Fica fácil de imaginar o enlevo. Eugênio é mais vacilão. Não querendo contrariar ninguém, nem padres, pais e muito menos Margarida, vai empurrando decisões. Gostaria de chamar atenção para um detalhe que permeia todo o romance: uma serpente que enleia Margarida, quando ela ainda era bebê. A serpente tem muita força no imaginário cristão.

O imaginário dos padres também é muito forte quando se trata de argumentação. Haja inventividade e haja distorções. Os mais nobres dos sentimentos humanos são facilmente transformados em ardis de Satanás. Haja também espaço para o ascetismo, para jejuns, penitências e alucinações. E haja  também perversidade. A mentira é uma onipresença no romance. E esta, faz tomar decisões que alteram destinos. Li, num comentário, que no romantismo sempre tem um personagem do mal. No caso, seria Luciano, um pretendente abusado de Margarida. Mas ele é fichinha perto do seu Antunes e das tramas e ardis dos padres para manter Eugênio no seminário. Ah, o demônio é poderoso. Ao final, um conselho. Leiam, o desfecho é dramático.

O exemplar de O Seminarista que eu li é da Martin Claret. Integra a coleção "A obra-prima de cada autor". Não sei se esta é realmente a obra prima do autor. Sei que A escrava Isaura é a mais conhecida e é posterior a O Seminarista. No romance, os destinos de Eugênio estão em aberto, mas com certeza, o seminário deve ter deixado reflexos profundos ao longo de sua, certamente, desventurada vida. Devo ainda dizer que este romance é mais condizente com a realidade do que O seminarista idealizado por Rubem Fonseca.



sexta-feira, 3 de abril de 2020

A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. Davi Kopenawa e Bruce Albert.

Ainda impactado com a leitura de O fim do império cognitivo - A afirmação das epistemologias do sul, de Boaventura de Sousa Santos, acabo de ler A queda do céu - Palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. O lançamento brasileiro da edição, da Companhia das Letras, é de 2019 e já está em sétima reimpressão. A edição original francesa é de 2010. Sem dúvida, um livro impactante.
O impactante livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert.

O livro de Boaventura procura fazer uma constatação da insuficiência do paradigma da racionalidade ocidental como condutora de um processo civilizatório, em virtude da transformação da racionalidade em uma racionalidade puramente científica e instrumental, que cada vez mais se distanciou do humano. Não precisamos entrar em evidências dessa constatação. Em virtude disso, Boaventura busca novas afirmações epistemológicas que ordenem o mundo. Estas, viriam do sul, afirma.

O livro de Kopenawa e Albert tem o sugestivo título de A queda do céu. Literalmente, trata-se da queda do céu, mesmo. "Mas se não houver mais xamãs na floresta, ele vai queimar aos poucos até ficar cego. Vai acabar sufocando e, reduzido tudo ao estado de fantasma, vai despencar de repente na terra. Aí seremos todos arrastados para a escuridão do mundo subterrâneo, os brancos tanto quanto nós". Trata-se, portanto de uma visão xamânica de mundo, construída a partir de um saber ancestral, longe das tiras da escrita das peles retiradas de nossas florestas.

Trata-se de um livro extremamente complexo, já a partir de sua escrita. De um lado, um xamã, um intelectual yanomami. Do outro, Bruce Albert, um antropólogo francês, amigo dos povos da floresta, embora originário dos "povos da mercadoria". Vários encontros selam destinos, cumplicidade e o projeto de escrever. Este sai a partir da gravação de longas conversas em língua yanomami. A passagem da oralidade para a escrita se dá numa bela passagem de uma narrativa única, em primeira pessoa em que as alteridades se fundem. Albert assume a autoria da narrativa de Davi. Isso está maravilhosamente descrito no Postscriptum do livro: Quando eu é um outro (e vice-versa).

Já afirmei que o livro é impactante. Sim, é uma outra visão de mundo. Trata-se do encontro ou do desencontro de dois mundos. O mundo dos povos da floresta e o mundo dos povos da mercadoria. Uns cultivam a floresta como a grande Omama, de quem buscam os sinais para a orientação de suas vidas. Esta busca se dá pelos xamãs, com o potente auxílio da Yãnkoana, o pó alucinógeno retirado das árvores da floresta, que os põem em contato com os xapiri, os espíritos. Omama é o próprio sistema da floresta (os brancos chamam de ecologia), incluindo a fertilidade da terra, as árvores, rios, animais, insetos e, sobretudo os espíritos. Já os povos da mercadoria se guiam por um livro, que dizem escrito por Deus. Mas na visão dos povos da floresta, pela prática dos homens brancos, este livro foi escrito não por Teosi (Deus), mas por Yoasi, o espírito do mal.

O livro está dividido em três partes, a saber: 1. A visão de mundo dos yanomami e a penetração neste seu mundo, lido apenas pelos xamãs, que entram em contato com os espíritos, pela mediação de poderosos alucinógenos extraídos da floresta, a Yãncoana, extremamente poderosa. Conta da iniciação de Davi como Xamã pelo seu sogro. 2. Narra o encontro com os brancos e com as suas terríveis doenças, trazidas pelo projeto da Perimetral Norte, pelos garimpeiros e pelos missionários. É incrível o confronto entre estes dois mundos. 3. As denúncias de Davi Kopenawa pelo mundo (Londres, Paris, Nova York), sobre os projetos de extermínio dos povos da floresta.

O livro tem prefácio de Viveiros de Castro, sob o título de O recado da mata, prefácio e postscriptum de Bruce Albert, explicando a construção do livro, mapas, álbum de fotografias, anexos sobre os yanomami, além de páginas e páginas de notas. Tem, ao todo, 729 páginas, incluindo algumas ilustrações.

As três partes do livro levam os seguintes títulos: Devir outro; a fumaça do metal e a queda do céu. Essas partes estão divididas em 24 capítulos. Vou apenas nominá-los. I. Devir outro: 1. Desenhos de escrita; 2. O primeiro xamã; 3. O olhar dos xapiri; 4. Os ancestrais animais; 5. A iniciação; 6. Casas de espíritos; 7. A imagem e a pele; 8. O céu e a floresta. II. A fumaça de metal: 9. Imagens de forasteiros; 10. Primeiros contatos; 11. A missão; 12. Virar branco?; 13. O tempo da estrada; 14. Sonhar a floresta; 15. Comedores de terra; 16. Ouro canibal. III. A queda do céu: 17. Falar aos brancos; 18. Casas de pedra; 19. Paixão pela mercadoria; 20. Na cidade; 21. De uma guerra a outra; 22. As flores do sonho; 23. O espírito da floresta; 24. A morte dos xamãs.

Na orelha da capa lemos, como apresentação do livro: "A vocação de xamã desde a primeira infância, fruto de um saber cosmológico adquirido graças ao uso de potentes alucinógenos, é o primeiro dos três pilares que estruturam o livro. O segundo é o relato do avanço dos brancos pela floresta e seu cortejo de epidemias, violência e destruição. Por fim, os autores trazem a odisseia do líder indígena para denunciar a destruição de seu povo".

No início do livro, numa espécie de epígrafe, lemos a séria advertência de Kopenawa: "A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar".

Em suma, duas cosmovisões distantes ao infinito. Uma que tem o prazer máximo na acumulação de mercadorias e a outra, em oferecer a fartura em suas festas reahu. Destacaria ainda o difícil e marcante trabalho de tradução feita por Beatriz Perrone-Moisés. Boaventura de Sousa Santos tem razão. Um outro mundo nascerá das epistemologias do sul.