sexta-feira, 3 de abril de 2020

A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. Davi Kopenawa e Bruce Albert.

Ainda impactado com a leitura de O fim do império cognitivo - A afirmação das epistemologias do sul, de Boaventura de Sousa Santos, acabo de ler A queda do céu - Palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. O lançamento brasileiro da edição, da Companhia das Letras, é de 2019 e já está em sétima reimpressão. A edição original francesa é de 2010. Sem dúvida, um livro impactante.
O impactante livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert.

O livro de Boaventura procura fazer uma constatação da insuficiência do paradigma da racionalidade ocidental como condutora de um processo civilizatório, em virtude da transformação da racionalidade em uma racionalidade puramente científica e instrumental, que cada vez mais se distanciou do humano. Não precisamos entrar em evidências dessa constatação. Em virtude disso, Boaventura busca novas afirmações epistemológicas que ordenem o mundo. Estas, viriam do sul, afirma.

O livro de Kopenawa e Albert tem o sugestivo título de A queda do céu. Literalmente, trata-se da queda do céu, mesmo. "Mas se não houver mais xamãs na floresta, ele vai queimar aos poucos até ficar cego. Vai acabar sufocando e, reduzido tudo ao estado de fantasma, vai despencar de repente na terra. Aí seremos todos arrastados para a escuridão do mundo subterrâneo, os brancos tanto quanto nós". Trata-se, portanto de uma visão xamânica de mundo, construída a partir de um saber ancestral, longe das tiras da escrita das peles retiradas de nossas florestas.

Trata-se de um livro extremamente complexo, já a partir de sua escrita. De um lado, um xamã, um intelectual yanomami. Do outro, Bruce Albert, um antropólogo francês, amigo dos povos da floresta, embora originário dos "povos da mercadoria". Vários encontros selam destinos, cumplicidade e o projeto de escrever. Este sai a partir da gravação de longas conversas em língua yanomami. A passagem da oralidade para a escrita se dá numa bela passagem de uma narrativa única, em primeira pessoa em que as alteridades se fundem. Albert assume a autoria da narrativa de Davi. Isso está maravilhosamente descrito no Postscriptum do livro: Quando eu é um outro (e vice-versa).

Já afirmei que o livro é impactante. Sim, é uma outra visão de mundo. Trata-se do encontro ou do desencontro de dois mundos. O mundo dos povos da floresta e o mundo dos povos da mercadoria. Uns cultivam a floresta como a grande Omama, de quem buscam os sinais para a orientação de suas vidas. Esta busca se dá pelos xamãs, com o potente auxílio da Yãnkoana, o pó alucinógeno retirado das árvores da floresta, que os põem em contato com os xapiri, os espíritos. Omama é o próprio sistema da floresta (os brancos chamam de ecologia), incluindo a fertilidade da terra, as árvores, rios, animais, insetos e, sobretudo os espíritos. Já os povos da mercadoria se guiam por um livro, que dizem escrito por Deus. Mas na visão dos povos da floresta, pela prática dos homens brancos, este livro foi escrito não por Teosi (Deus), mas por Yoasi, o espírito do mal.

O livro está dividido em três partes, a saber: 1. A visão de mundo dos yanomami e a penetração neste seu mundo, lido apenas pelos xamãs, que entram em contato com os espíritos, pela mediação de poderosos alucinógenos extraídos da floresta, a Yãncoana, extremamente poderosa. Conta da iniciação de Davi como Xamã pelo seu sogro. 2. Narra o encontro com os brancos e com as suas terríveis doenças, trazidas pelo projeto da Perimetral Norte, pelos garimpeiros e pelos missionários. É incrível o confronto entre estes dois mundos. 3. As denúncias de Davi Kopenawa pelo mundo (Londres, Paris, Nova York), sobre os projetos de extermínio dos povos da floresta.

O livro tem prefácio de Viveiros de Castro, sob o título de O recado da mata, prefácio e postscriptum de Bruce Albert, explicando a construção do livro, mapas, álbum de fotografias, anexos sobre os yanomami, além de páginas e páginas de notas. Tem, ao todo, 729 páginas, incluindo algumas ilustrações.

As três partes do livro levam os seguintes títulos: Devir outro; a fumaça do metal e a queda do céu. Essas partes estão divididas em 24 capítulos. Vou apenas nominá-los. I. Devir outro: 1. Desenhos de escrita; 2. O primeiro xamã; 3. O olhar dos xapiri; 4. Os ancestrais animais; 5. A iniciação; 6. Casas de espíritos; 7. A imagem e a pele; 8. O céu e a floresta. II. A fumaça de metal: 9. Imagens de forasteiros; 10. Primeiros contatos; 11. A missão; 12. Virar branco?; 13. O tempo da estrada; 14. Sonhar a floresta; 15. Comedores de terra; 16. Ouro canibal. III. A queda do céu: 17. Falar aos brancos; 18. Casas de pedra; 19. Paixão pela mercadoria; 20. Na cidade; 21. De uma guerra a outra; 22. As flores do sonho; 23. O espírito da floresta; 24. A morte dos xamãs.

Na orelha da capa lemos, como apresentação do livro: "A vocação de xamã desde a primeira infância, fruto de um saber cosmológico adquirido graças ao uso de potentes alucinógenos, é o primeiro dos três pilares que estruturam o livro. O segundo é o relato do avanço dos brancos pela floresta e seu cortejo de epidemias, violência e destruição. Por fim, os autores trazem a odisseia do líder indígena para denunciar a destruição de seu povo".

No início do livro, numa espécie de epígrafe, lemos a séria advertência de Kopenawa: "A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar".

Em suma, duas cosmovisões distantes ao infinito. Uma que tem o prazer máximo na acumulação de mercadorias e a outra, em oferecer a fartura em suas festas reahu. Destacaria ainda o difícil e marcante trabalho de tradução feita por Beatriz Perrone-Moisés. Boaventura de Sousa Santos tem razão. Um outro mundo nascerá das epistemologias do sul.




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.