quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Um trem para Leontina. Romeu Gomes de Miranda.

Gostaria de ter a leveza e a poesia da escrita do professor Romeu Gomes de Miranda para lhe fazer justiça na resenha deste seu belo romance de estreia. Fui ao lançamento do seu livro, no dia 23 de novembro de 2018, na sede da APP-Sindicato, um lugar que lhe é bem familiar, uma vez que já presidiu esta entidade e, diga-se de passagem, com raro brilhantismo. O romance de estreia do Romeu tem por título Um trem para Leontina. Um título bem significativo, uma vez que o tema do romance se passa na guerra do Contestado, guerra esta, causada pela estrada de ferro, ou mais precisamente, as terras às suas margens.
O exemplar de Um trem para Leontina.

A guerra do Contestado ocorreu entre os anos de 1912 e 1916, por uma disputa de fronteiras entre os estados de Santa Catarina e do Paraná e pela abertura de uma estrada de ferro, ligando a região ao Rio Grande do Sul. As terras às suas margens eram tomadas por pinheiros, o que atraiu a cobiça das madeireiras estrangeiras, associadas aos interesses dos proprietários da ferrovia, na exploração das ricas e valiosas florestas, com o sacrifício das populações ali estabelecidas e que teimavam simplesmente em sobreviver, fato que a modernização lhes impedia.

É sabido que a história do Brasil sempre foi acompanhada de muita violência. Dizimamos as nossas populações indígenas e não soubemos lidar com a abolição da escravidão, ao não integrar os negros libertos à nossa economia. Terra e escola sempre lhes foram negados. A monarquia foi trocado pela República, mas, por uma República nada republicana, ou caracterizando melhor, por uma República oligárquica e positivista. A República recém instaurada não titubeou em matar os seus filhos em favor dos interesses do capital estrangeiro, que aqui se estabelecia para nos fazer sonhar com o progresso. A região já conhecia a violência pela Revolução Federalista, ocorrida alguns anos antes e que instaurara na região o sistema da degola.

O desespero dos pelados, designação pela qual era chamada a população cabocla, passou a ser canalizada pela presença de monges, única voz que lhes dava alento, esperança e organização para a resistência. É o fenômeno do misticismo religioso. Nas cidades atuavam os padres, ou freis, alinhados ao poder oficial dos estados e da União. O termo pelados veio em oposição aos peludos, os detentores do prestígio, das armas e dos poderes. A defesa pela vida traçara assim o cenário para o romance. Romeu passou grande parte de sua infância e juventude em sua cidade natal, Mafra SC. e na vizinha Rio Negro PR. O seu primeiro emprego foi na Rede Ferroviária. Estava, portanto, devidamente ambientado e dotado da grande virtude da indignação.
Um autógrafo, com enorme afeto.

Rio Negro, Joaçaba e outra cidades sublevadas formam o cenário de seu romance. Leontina é uma pobre menina, como inúmeras outras, filha de um pai sem os polimentos da humanização e de uma mãe extremamente zelosa. Por esforços inauditos consegue o seu ingresso na escola, onde se destaca, positivamente, pelos seus resultados e, negativamente, como vítima de preconceito e arrogância. A menina, em sua transformação para mulher desperta a atenção dos poderosos e Teodomiro se apodera dela em cenas de estupro. Leontina posteriormente irá trabalhar em Joaçaba, na estação de trem. Ela é sensível demais com as injustiças para não se envolver na guerra. Ali ocorre uma cena extraordinária de solidariedade e humanidade.

O enredo passa pelos amores de Leontina, pelo seu enorme senso prático e de organização da luta e pela sua coragem e destemor. Estas qualidades lhe dão liderança e a amizade e o amor de Alemãozinho, e depois, de Adeodato, o último dos chefes caboclos. Mas não existe muito espaço para romantismo em meio a este cenário de horrores. Os sussurros de amor são abafados pelos tiros. Mas sobram também espaços, embora reduzidos, para a cantoria e louvores. Ah sim, a trama não seria completa se não existisse a vingança, pelo estupro consumado no início da história. Cena para filme. Romeu concedeu a Leontina a imagem  de uma heroína do Contestado. As liberdades da ficção e da poética a fizeram grande. É fácil se encantar por Leontina.

Transcrevo ainda três parágrafos da orelha do livro, em que o mesmo é apresentado: "Este Um trem para Leontina irá levar o leitor ao passado, e também ao futuro.. A partir de uma costura literária, o autor Romeu Gomes de Miranda nos leva até a estação do Contestado, no início do século passado. Lá conhecemos personagens que tiveram suas vidas mudadas por um dos episódios mais violentos da história do Brasil.

Entre 1912 e 1916, um conflito armado entre a população cabocla e os representantes dos poderes estadual e federal causou a morte de mais de 8 mil pessoas, além de outros mil soldados do exército. Os motivos: a fissura entre a posse e o uso da terra; a intolerância de um estado autoritário; a fé messiânica de um povo na criação de uma nova sociedade: e, principalmente, as contradições de um regime republicano que almejava um futuro moderno para o Brasil, mas mantinha convicções representantes do mais puro atraso.

O Contestado, dizem, é o Canudos do Sul. Mas teria lhe faltado um Euclides da Cunha para narrar todo o horror que sangrou aquela terra limítrofe entre Paraná e Santa Catarina. Através dos personagens deste romance, poderemos viajar pelos trilhos da história e tentar criar laços com aquele povo condenado por tentar viver conforme um sonho".
Romeu Gomes de Miranda, um valoroso herdeiro do Contestado.


E, finalmente, o último parágrafo da contracapa: "Escrito por um filho tardio daquela terra, Um trem para Leontina espera ser também um alerta para o futuro. Pois uma nação que não sutura as feridas de sua história jamais será capaz de se desenvolver, garantindo que o futuro não seja apenas uma repetição do passado". Romeu é um filho tardio desta região, que cedo se integrou nas lutas para combater as injustiças que provocaram e provocam a enorme desigualdade social brasileira. Esta sua indignação, que o levou para a luta por esperança, faz com ele seja um dos mais dignos herdeiros do Contestado. Romeu sempre encontrou as suas trincheiras de luta.

O promissor romance do Romeu, Um trem para Leontina, é uma publicação da editora curitibana Com Pactos. O livro poderá ser adquirido junto ao livreiro Maurício, pelo fone 41 99931 8944.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

"O Idiota" e uma receita de felicidade. Dostoiévski.

O Idiota é um monumental livro de Dostoiéski. O personagem paira, praticamente sobre todas as obras deste que é, seguramente, um dos candidatos a maior escritor do mundo. O idiota é um personagem bondoso, generoso, democrata e nada bélico. O romance foi escrito entre os anos de 1867 e 1869. Dostoiévski era um eslavófilo e profundamente cristão. Em 1849 teve a sua pena de morte comutada pela prisão perpétua na Sibéria. Leva para a prisão, um único livro - O Evangelho. mas tinha lido muitos outros. E como tinha lido!
Uma edição primorosa, com uma bela e necessária apresentação. Esta fala está já quase ao final do livro (Páginas 748-750.


Míchkin - o idiota é um misto de Quixote - Pickwick e Pangloss. É um desambientado, diferente das pessoas comuns, tomadas pelo niilismo ocidental. O idiota é uma alma pura e generosa. O auge deste personagem, o encontramos no capítulo 7 do quarto e último volume de seu livro, no qual se daria a participação do noivado do príncipe com Agláia. Neste capítulo está a eslavofilia do escritor, da qual pretendo fazer um pequeno extrato, para concluir com o seu discurso sobre a felicidade, encontrando-a em meio as coisas mais simples. Creio que esta transcrição nos dá uma ideia do que seja o conceito de idiotia. Apenas lembrando que a cena se passa naquilo que era para ser uma festa de noivado.

Depois de já ter falado bastante ele continua: "Ontem Agláia Ivánovana me pediu que eu permanecesse aqui hoje muito calado. Ou melhor, chegou a me dizer quais os assuntos que eu não deveria falar em hipótese alguma. (Ela sabe em que espécie de assuntos digo incoerências.) Tenho 26 anos, mas não ignoro que sou uma criança. Já muitas vezes me admoestei a mim próprio pois acho que não tenho o direito de exprimir uma opinião já que o faço sempre errado. Foi somente com um tal de Rogójin que uma vez me abri francamente. Líamos Púschkin inteiro, juntos, do qual ele ignorava até o nome. Sempre temi que este meu modo absurdo pudesse desacreditar o pensamento, a ideia dominante. Não tenho gesticulação adequada, causo risos nos outros, enfim... degrado as minhas ideias. Não tenho o senso de proporção, muito menos! E isso é que é pior. Sei que me é muito mais vantajoso ficar sentado, quieto. Mas quando persisto em ficar quieto me torno muito sensível e, o que é mais, me ponho a pensar numa porção de coisas. E então sinto que o melhor é falar. Falando me sinto magnificamente. Todos estão com expressão tão inefável. Prometi ontem a Agláia Ivánovna que ficaria calado hoje toda a noite!

- Vraiment? sorriu o velho dignitário.

- Mas pensando bem vi que não tenho razão em pensar assim. A sinceridade não é declamação, mesmo que pareça ser só isso e nada mais. Não é verdade mesmo?

Às vezes.

Quero explicar tudo, tudo, tudo! Sim, cuidam que sou utópico? Teórico? Pelo amor de Deus! Mas as minhas ideias são o que há de mais simples! Não acreditam? Riem? Digo-lhes, sou às vezes desprezível exatamente por não manter sempre acesa essa minha fé, por vacilar às vezes. Quando entrei aqui neste salão, ainda há pouco, perguntava a mim mesmo: 'Como me devo dirigir a eles? Com quais palavras devo começar a fim de que me compreendam ao menos um pouco?' Como entrei amedrontado! E mais amedrontado estava por todos aqui. Foi terrível, terrível! E, afinal, por que esse medo? Não é vergonhoso ter medo? Por que há um espírito avançado recear diante duma tal ou qual massa de retrógrados e maus?  Devia entrar de fronte erguida! E eis o que me tornou assim tão feliz! É que minutos depois já havia eu me convencido que não existe absolutamente essa tal ou qual massa retrógrada e má, mas que todos são, todos somos substância viva!  Assim, por que continuar eu preocupado, arredio, temendo já agora apenas o meu feitio absurdo? Meu? Só meu? Estamos todos fartos de saber que somos absurdos, superficiais, que temos maus hábitos, que somos maçantes, que não sabemos encarar as coisas, que não compreendemos coisíssima nenhuma! Somos todos assim, nós, eu, eles, aqueles, estes, todos! E não ficam ofendidos por lhes estar eu dizendo no rosto, que são, que somos absurdos? Estão? Mas é que também assevero que somos substância esplêndida! Querem que eu lhes diga uma coisa? A meu ver às vezes ser absurdo não deixa de ser bom. Com efeito, é melhor até. Torna mais fácil nos perdoarmos uns aos outros, é mais fácil do que ser humilde. Não é possível a humanidade compreender tudo, imediatamente, não é possível começar logo com a perfeição! Para atingirmos a perfeição, devemos começar por uma grande ignorância bem difusa! Tudo que é compreendido depressa carece de compreensão eficiente. Digo-lhes isto porque por mais que se haja entendido e compreendido muita coisa, muitíssima mais ainda há a ser compreendida com eficiência essencial! Mas agora caio em mim: não se teriam molestado por um criançola como eu lhes dizer tais coisas? Claro que não! Bem sabem todos aqui de que forma revelar e perdoar os que os ofendem e os que não os ofendem. Sim, sempre é mais difícil perdoar quem não nos ofende, pois tal perdão tem que ser duplo, para a  inocência alheia e para a injustiça de nosso equívoco, já que erradamente supusemos nos ter advindo dano. Eis o que eu esperava de gente sã, eis o que eu ansiava por declarar quando comecei a me exprimir, não sabendo ser claro... O senhor está rindo, Iván Petróvitch? Cuida que ao entrar aqui eu estava com prevenção por causa deles, de quem passo por paladino, tido como sou por um democrata, um advogado da igualdade? (Riu de forma crispada. Já vinha entrecortando os períodos com acento de riso prazeroso). Não, não era isso. Meu medo era por todos nós aqui juntos. Pois se eu próprio sou um príncipe, de antiga família! Se me vejo sentado entre príncipes! Falo, para salvar a todos nós, para que a nossa classe não pereça em vão nas trevas, sem realizar nada, tendo recebido tudo e tudo tendo perdido! Por que hei de eu desaparecer e dar passagem a outros, quando posso permanecer na vanguarda e ser dos principais? Já que estamos na frente, urge sejamos os chefes! Tornemo-nos servos para sermos condutores!

Fez menção de se levantar da poltrona mas o velho dignitário o conteve de novo embora o olhasse com uma inquietação constante".

 O príncipe, ou o idiota continua então, com a sua receita de felicidade.

" - Tenham paciência, ouçam! Sei que não está direito que eu esteja falando. Melhor dar um exemplo, fica mais claro!... Melhor começar... e já comecei... e... e... pode alguém ser deveras infeliz?  Posso eu por exemplo, me considerar infeliz só porque sou doente, só por causa do meu caso tão triste? Mas se posso ser feliz! Palavra que não entendo como é que existe gente que ao passar por uma árvore não se sinta feliz em vê-la! Como pode uma pessoa conversar com outra e não sentir felicidade em amar esta outra pessoa? Estão entendendo? O que digo é certo, exato, nítido! Só que não consigo me expressar certo... E que de coisas inefáveis deparamos a cada instante, a cada passo, tantas e tais que mesmo o homem mais desesperançado tem que se sentir feliz, pelo menos ao dar com uma delas! Que nossos olhos batam no rosto de uma criança, que nossos olhos se deslumbrem diante do nascer do sol, que se abaixem para ver como a erva cresce! Isso não chega para dar felicidade? E se nossos olhos dão de chofre com uns olhos que nos amam?!...

Ergueu-se por um instante, enquanto falava. De repente o ancião o olhou estupefato, sendo Lizavéta Prokófievna, erguendo s braços, aturdida, exclamou: 'Deus do Céu!', pois fora a primeira a perceber a terrível surpresa.

Nisto, Agláia se precipitou donde estava para ele e ainda chegou a tempo de tomá-lo nos braços, ouvindo com terror, a face repuxada pela angústia, aquele uivo selvagem do 'espírito que dilacera e rasga um desgraçado'.

O doente jazia agora sobre o tapete e alguém se apressou em lhe colocar uma almofada sob a cabeça

Quem poderia esperar uma coisa destas?"

Dostoiévski sofria de ataques epiléticos. Estes ataques, conforme ele mesmo nos conta, sempre eram antecedidos de momentos de extrema lucidez. Coisa de instantes.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

O Idiota. Fiódor Dostoiévski.

Por uma série de razões, decidi e termino de ler a monumental obra O Idiota, de Dostoiévski. Não é uma tarefa fácil. Na versão lida, uma bela edição da Nova Fronteira, são 829 páginas, incluindo entre elas o fantástico prefácio, escrito em 1949, por Brito Broca. Vou recorrer bastante a ele nesta resenha. Não é o meu primeiro contato com o escritor. Em tempos remotos eu li Crime e castigo e em tempos um pouco menos remotos Os Irmãos Karamazóv. Mas li, sem uma maior contextualização, o que praticamente equivale a não ler. Irei retomá-los.

Recentemente li Almas Mortas (1842), de Gógol. Foi importante. Por ele entrei em contato com a eslavofilia, conceito importante para entender os escritores russos, de Puschkin a Dostoiévski, passando, obviamente, por Gógol. É impossível ler e compreender Dostoiévski e, especialmente, a O Idiota, sem levar este dado em consideração. Nesta resenha, vou levar menos em conta a trama condutora do enredo, para privilegiar a sua contextualização e a descrição da criação e do significado de uma apologia a um "idiota".
A edição da Nova Fronteira vem num box, acompanhado de outro livro, Memórias da casa dos mortos.


Primeiramente vamos ao autor, a Dostoiévski. Nasce em 1821 e morre em 1881. Pertence a uma família de nobres lituanos, decadentes. O avô fora sacerdote e o pai, um médico que trabalhou em um sanatório para pobres, em Moscou. Com o pai teve uma "relação freudiana", desejando inclusive, ardentemente, a sua morte. Mas quem haverá de morrer será a sua mãe. Essa orfandade o levará a um colégio militar, em regime de internato, em Petersburgo. Lá lê Byron, Vitor Hugo, Shakespeare, Cervantes e Homero. O desejo de morte do pai se efetiva por meio de um assassinato. A culpa o perseguirá e o atormentará. A sensibilidade dos românticos o levará a abraçar causas humanitárias e a envolvimentos políticos.

Em 1849 se vê diante de uma execução por condenação à pena de morte. Um clarim interrompe o cerimonial, para anunciar a comutação da pena, por um degredo perpétuo na Sibéria, onde permanecerá por longos dez anos. A pena de morte e, estar às vésperas da morte, serão temas que o acompanharão em sua literatura. Abandonará a escola do romantismo para abraçar "os grandes mistérios da existência; a investigação das mais complexas regiões da alma humana, sobretudo daqueles recantos sombrios e tortuosos por onde ronda ameaçador, o espectro da loucura; e o refortalecimento das qualidades essenciais de sua gente. Dostoiévski está à procura do homem bom - do Dom Quixote russo", lemos na página 160 do livro I, de biografias que acompanha a coleção Os Imortais da Literatura Universal. E é essa a essência de todo o grande escritor.

Doenças, dívidas e uma vida até, sob certo ponto de vista pregressa, acompanhará o escritor. Dívidas de jogo, cobranças de credores o levarão ao exterior, em fuga. Levará junto uma jovem, Polina Súslova, que será imortalizada como "a protagonista de O Jogador, a Agláia de O Idiota, a Lisa de Os Possessos e Catarina Ivânovna de Os Irmãos Karamázov", lemos no mesmo livro de biografias. Certamente que uma grande paixão acompanha o ser humano por uma vida inteira. Numa segunda espécie de fuga para a Europa, ele levará agora a estenógrafa, menina jovem, que o compreende e diante da qual constantemente se prostrará, em atitudes de arrependimento, para o qual nunca faltarão motivos. Creio ser também de extrema importância considerar que o escritor levou para a prisão, na Sibéria, um único livro, onipresente em sua literatura. O Evangelho. Outro dado biográfico significativo é o de sua doença. Constantemente era acometido de ataques epiléticos, sempre antecedidos de momentos de extrema lucidez, como ele mesmo nos conta ao longo de O Idiota.

Para melhor situar, especificamente O Idiota, vamos recorrer ao prefácio de Brito Broca. Dele elenquei cinco pontos de análise: o contexto histórico e pessoal da escrita da obra; a sua concepção, a concepção do personagem; o caráter autobiográfico e as pretensões e repercussões.

Vamos ao primeiro ponto. Em 1866 o autor termina de escrever Crime e Castigo. A sua saúde está precária, os ataques epiléticos se repetem e são, cada vez mais, mais intensos. Sofre de irritabilidade e hiperestesia (paroxismo da sensibilidade, tendente a transformar as sensações ordinárias em sensações dolorosas; acuidade anormal da sensibilidade a estímulos); credores à porta e intrigas familiares em função do seu segundo casamento. Se refugia na Europa, onde desperdiça todas as parcas economias no jogo. Recebe um adiantamento de Katkóv, o seu confiante editor. Inútil. O jogo consome também estes cem rublos. Tem também uma grande alegria, logo seguida de profunda tristeza. Nasce e morre Sônia. A memória de Sônia humanizará, até mesmo os seus piores personagens. Em 1867 inicia a obra. Em 1869 ela estará concluída.

Lamenta as condições sob as quais a escreveu e a sua satisfação/insatisfação com o resultado: "Pedem-me acabamento artístico, uma genuína expressão poética, sem o esforço tornar-se visível; lembram-me o exemplo de Tolstói e Gontchárov, mas não sabem as condições em que estou trabalhando" e "Apesar de tudo, gosto da minha ideia, mesmo tendo ficado aquém dela, na realização, lemos no prefácio.

Premido por dívidas e adiantamentos do editor ele precisa escrever. Precisa de público. Este é atraído pela complexidade do enredo e pelas particularidades do romance de folhetim. Petersburgo e a Rússia não lhe saem da cabeça. Em busca de um personagem, idealiza um jovem bom, idealista e totalmente voltado ao bem, o oposto de um idiota. O romance está sendo gestado. Lendo sobre a Rússia, especialmente, acompanhando as questões do judiciário, começa a idealizar famílias. A primeira é a de um militar decaído, um general, Ívolguin, afogado no álcool. Em seu entorno se forma um grupo de personagens. Outro general, casado com uma generala, as três filhas e os agregados formarão outro núcleo. Outros personagens fortes serão envolvidos. Nastássia Fillíppovna, e Rogójin, que formam o par, digamos, do mal, da degradação, da nova Rússia e de sua ocidentalização. E o príncipe, tão bom, que passa a ser tido como idiota.

O príncipe é idealizado, e estamos entrando no terceiro aspecto, como um Quixote - cristão e russo. A ele se acrescenta um Quixote inglês, o Pickwick de Charles Dickens. A estes, se somaria, ainda, Pangloss, o personagem do Cândido, de Voltaire. O príncipe seria então um "Quixote-Pickwick-Pangloss". O Idiota traduz a filiação de Dostoiévski ao eslavismo, ao eslavismo cristão: "O escritor meditava nessa época na corrupção política e espiritual do ocidente. Bem sabemos haver sido ele um dos mais altos representantes  da corrente eslavófila, formada pelos intelectuais que viam na Rússia uma predestinação especial e repeliam as influências europeias e ocidentais como desnaturadora da cultura que os russos deviam preservar para realizar no mundo o grande papel a que estavam votados", escreve Brito Broca, em seu prefácio. A este eslavismo se somaria o cristianismo, preservado em sua primitiva essência. O príncipe seria então uma espécie de mensageiro da função redentora, que os escritores russos deveriam portar. Este espírito de O Idiota perpassa praticamente toda a sua obra.

Outro elemento, o quarto, é a incorporação de sua biografia ao livro. O romance seria então um auto retrato idealizado do romancista. Um doente que busca a cura na Suíça e não a obtém. Preserva, no entanto, momentos de profunda lucidez e de absoluta pureza espiritual. Será um desambientado, motivo até de chacota das pessoas que o cercam. Os seus erros, assim como os do escritor, o fazem prostrar-se, expressando humildade e arrependimento. Por fim, o príncipe é uma espécie de São Francisco, retratando ainda a presença do Evangelho, com a presença, nos discursos e nos gestos, dos "pobres de espírito". Este "pobre de espírito", Míchkin. desfaz inúmeros liames do mal, mas que termina tombado ao lado de Rogójin, em sua morbidez doentia. Em suma, O príncipe remete o seu personagem ao próprio Jesus Cristo.

Quanto ao enredo, o jovem príncipe volta para a Rússia, depois de buscar a cura na Suíça. Se envolve com as famílias Ívolguin e Epantchin e com os amores de Nastássia Filíppovna e Agláia, a filha mais nova e mais bonita do general e da generala Epantchin. As duas mulheres são de um gênio! Grandes debates, ou seriam embates, entre os personagens são a grande força do romance. Mais as falas do príncipe, um idiota, mas príncipe. Ele tem poder de fala.

Destaquei muitas coisas. Da primeira parte anotei o capítulo 6 (112-124). Liév Nicolaévitch Míchkin, este é o nome completo do príncipe, está em tratamento na Suíça, se encanta e encontra momentos felizes, perdido entre as crianças de uma escola, que passam a amá-lo, enquanto devotam ódio ao professor. Neste mesmo capítulo insere uma história triste, de Marie, pela qual retrata a enorme maldade do mundo. É acusado de ser criança e é incompreendido por ser generoso e cortês. Está já delineada figura do idiota. Do capítulo 4, da segunda parte, destaquei a concepção religiosa do príncipe. Ele troca a sua cruz de estanho com Rogójin, que lhe dá a sua, de ouro. Na terceira parte, no capítulo 4, encontramos o tuberculoso Ippolít, se despedindo do mundo, em uma "explicação Indispensável". São reflexões diante da morte.

No capítulo 3 da quarta parte é mostrada a degradação do general Ívolguin e dos seus, quando pinça uma frase marcada pela generosidade e alta sensibilidade. "Para entender, urge ter coração". Mas o auge do livro está no capítulo 7 da quarta e última parte (731-752). Aí acontece o que era para ser o anúncio do noivado de Míchkin com Agláia. Acontece aí o discurso do príncipe apresentando as marcas da sua idiotia. Ele pronuncia o discurso da eslavofilia. Um "idiota", 26 anos, ingênuo e democrata. Dá uma extraordinária receita de felicidade. Derruba um precioso vaso chinês, da rica decoração da sala da generala, e é acometido de um ataque de epilepsia. Lembrando que estes momentos de lucidez que cega, sempre antecedia os seus ataques. Dou partes deste discurso e esta receita de felicidade, em post especial.

Por fim, apresento o link de um post de um amigo meu, que em artigo sob o título, de Petista Doente, faz uma aplicação genial do príncipe bondoso, generoso, democrata, doentio e idiota, ao atual momento trágico da brasileira. Este artigo também me impulsionou a ler, entender  e compreender a mensagem contida em O Idiota. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/04/petista-doente-sebastiao-donizete.html










segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Almas mortas. Nicolai Vassílievitch Gógol.

A leitura deste romance nos dá a certeza de que, atrás de cada página virada, existe um escritor com  uma vida profundamente perturbada e conturbada. A cada página virada, você sente a necessidade de conhecer dados biográficos do narrador. Então, nada melhor, como de hábito, situar Gógol, no seu devido tempo e espaço. Ele teve uma vida breve, entre 1809 e 1852, mas a morte sempre o rondava e parecia ser desejada. Era meio ucraniano, pelo local de nascimento, mas como escritor, como ninguém, decifrou a alma do povo russo.
 A descrição de hábitos, costumes e crenças de um povo.

Gógol recebeu fortes influências de Púchkin e legou influências para toda uma geração de escritores da refinada literatura russa. Vejamos esta afirmação de Dostoiéski: "Descendemos, todos nós, de 'O Capote' ", uma obra sua. De certa forma, conseguiu manter-se, basicamente, com os seus escritos. O humor presente em sua obra o tornava um escritor bastante popular. Até os funcionários das gráficas se divertiam, ao comporem os seus livros.Tornou-se grande amigo de Púchkin, que logo "percebeu-lhe a inexperiência, o espírito conturbado, a cultura deficiente. Mas também descobriu a maior característica literária de Gógol: "sabe mostrar como ninguém a superficialidade do homem vulgar", diz o livro de biografias e comentários, que acompanha os volumes da coleção Os Imortais da Literatura Universal, da qual ocupa o volume de número 42.

As suas principais obras são O Inspetor Geral (1836) e Almas mortas (1842). Sobre O Inspetor Geral, ele mesmo comenta: "É a primeira obra concebida com o propósito de corrigir nossa sociedade, e não creio havê-lo conseguido; só viram na minha comédia, uma tendência partidária a ridicularizar nossas leis e a ordem estabelecida, quando só pretendi estigmatizar certos abusos e certos atos ilegais". O tema me interessou e é fácil imaginar a situação. A chegada de um inspetor geral é anunciada em uma cidade. Mas um espertalhão chega antes e recebe todas as honrarias. A crítica à obra o deixa em depressão e viaja o mundo.

Passa pela Alemanha, França e Suíça e chega em Roma, já com os primeiros capítulos de sua principal obra devidamente traçados. Trata-se de Almas mortas.  Neste seu volumoso livro, Tchítchicov, viaja pela Rússia, depois de ser flagrado em desonestidades no serviço público, em busca de um enriquecimento fácil. São tempos de revoluções, de Napoleão, de grandes generais e homens destinados a aventuras e de ascensão social. Homens afáveis e de fino trato nos relacionamentos. Observem a data da publicação da obra, 1842. Eram tempos de servidão. Os servos eram chamados de "almas". Pelo número de almas é que se media a riqueza dos proprietários rurais. Tchítchicov resolveu ser um grande proprietário, mesmo sem terras e sem almas vivas. A respeito, lemos o seguinte no livro de biografias que acompanha a obra:

"Almas mortas é um retrato fiel da Rússia da época, quando ainda reinava o regime de servidão. Os bens de um proprietário eram avaliados pela quantidade de 'almas' (servos) que ele possuía, e pelas quais pagava um imposto.Temporariamente eram feitas revisões para a contagem dos servos ainda vivos. Todavia algumas 'almas' já mortas continuavam figurando na lista dos impostos. O poeta Púchkin sugeriu ao escritor a seguinte situação: um esperto proprietário compra as 'almas' mortas por um preço baixo e hipoteca-as como vivas, com grande lucro. Gógol aproveitou a ideia e, através de Tchítchicov, leva o leitor numa viagem por toda a Rússia, descrevendo as condições do povo".

Na viagem que Tchítchicov empreende são conhecidos os mais diferentes personagens da Rússia rural e das capitais de províncias. Todos estão ávidos por ganhar dinheiro, sem grandes esforços. Entre os personagens que mais me chamaram a atenção está Nozdriov, de quem tudo de ruim se podia esperar e a figura de Sobankêvitch, a descrição viva de um homem corroído pela sovinice e pela desconfiança. Era odiado por todos.

Tchítchicov era um homem singular. Um granfino refinado, galanteador e extremamente educado, logo granjeava a simpatia de quase todos. Até as desconfianças com relação a seus negócios quase sempre desapareciam. O capítulo VI, do primeiro volume é quase todo dedicado a Pliushkin, um "mendigo proprietário". Por onde passava não era nem mesmo necessário varrer a rua, pois ele levava tudo. Uma narrativa viva do processo, da dinâmica da avareza. O homem terminou isolado de todos. Também destaquei o capítulo VIII. A ele, por conta própria dei o seguinte título: Impactos da palavra milionário sobre a moral e os costumes, especialmente, sobre as senhoras. Que descrição!

Já que falamos de partes e capítulos, o livro se divide em duas partes. A primeira tem 11 capítulos e a segunda quatro e mais um, sob o título de "um dos últimos capítulos. A segunda parte ganha um tom vivamente moral, com muitos discursos contra a corrupção e de busca da salvação da própria alma em vez da compra de almas. Vejamos: "Pense, não nas almas mortas, mas na sua própria alma viva, e siga com Deus, por outro caminho"! Isso tem explicações. Em sua época, os escritores e intelectuais russos estavam cindidos em dois grupos: os ocidentalistas, que defendiam a modernização russa vinda dos países da Europa ocidental e os eslavófinos, empenhados em manter as tradições culturais do povo russo. Gógol se alinhava a este segundo grupo, grupo ao qual também, mais tarde, Dostoiévski se filiaria. Isto é importante para compreender a literatura dos dois.  Sua obra está repleta destas posições, com conotações altamente moralistas. Toda a segunda parte é praticamente um libelo contra a corrupção, ou sobre a impossibilidade de erradicá-la. O funcionalismo público e as propinas estão em constante ataque. Muitos lamentos pela presença da ocidentalização. A obra está inconclusa, mas isso não prejudica a sua leitura.

Seus últimos anos de vida foram um tormento, vividos entre a fé e o misticismo. Tornou-se amigo de um padre e chegou a ir à terra santa. Queimou, neste período final, praticamente tudo o que escrevera e que ainda não fora ainda publicado. O livro de biografias que acompanha a edição lhe dedica uma espécie de frase em epígrafe final: "E, ficou claro que espécie de criatura é o ser humano: é sábio, inteligente e sensato em tudo o que se refere aos outros, mas não a ele próprio". Ah! A literatura russa!.




sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Temas em debate. V. O neoliberalismo e o futuro da democracia.

Originalmente este texto é um trabalho acadêmico que escrevi em 1998, no mestrado em educação - História e Filosofia da Educação, na PUC/SP. Depois foi publicado no Caderno Pedagógico nº 2, da APP-Sindicato, em março de 1999. Não irei modificá-lo. Vou apenas desmembrá-lo em suas cinco partes, a saber: I. O liberalismo: uma contextualização e afirmação de princípios; II. A social democracia; III. O neoliberalismo; IV. As políticas educacionais do neoliberalismo; V. O neoliberalismo e o futuro da democracia, junto com as considerações finais. O texto ganha relevância pelo tempo sombrio que já estamos vivendo e que tende a se agravar. Deixo as epígrafes.

O NEOLIBERALISMO E O FUTURO DA DEMOCRACIA

O mercado produz desigualdade tão naturalmente como os combustíveis fósseis produzem a poluição do ar. Eric Hobsbawn.

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e passagens de grande importância na história do mundo, ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Marx (18 Brumário).



Quero nesta última parte, fazer quatro considerações:a primeira já está feita, e só vamos retomar o questionamento de Macpherson, feito na primeira parte deste trabalho (liberalismo: uma contextualização e afirmação de princípios). Sob qual dos dois liberalismos estamos vivendo hoje? Ficamos com a resposta do próprio Macpherson.
Uma afirmação dos direitos da cidadania e do Estado Democrático de Direito.


A segunda consideração, a tomo a partir das considerações de Atílio Boron, de seu livro Estado, capitalismo e democracia na América latina. O alvo preferido de Boron é Friedman, a quem considera inconsistente, tanto pelo seu aspecto teórico, quanto pelo metodológico. Também apresenta a evidência de se tratar de uma obra doutrinária. A principal crítica que ele lhe faz e, por extensão a todos os neoliberais - além de apontar os vícios de origem da teoria de mercado - é o fato de desconsiderar a sua evolução. Repetir, quase duzentos anos depois, as mesmas coisas ditas por Adam Smith é, no mínimo, um acinte. Se Marx já considerava a economia política clássica vulgar, o que dizer de Friedman a repetir as mesmas coisas, sob outros condicionantes históricos. O capitalismo ultrapassou rapidamente a sua fase concorrencial para chegar à sua fase monopolista e, no entanto, neste mesmo mercado encontram-se homens livres para realizarem a troca, trazendo um, o capital e o outro, o trabalho. Acrescente-se que esta passagem para o capitalismo monopolista foi feita com muita violência e com muito sangue.

Depois de descrever os avanços democráticos advindos da social democracia, vista por ele como uma recomposição capitalista - que se caracterizou, essencialmente, por uma avanço nas demandas sociais, possíveis pela extensão da democracia, pela via da sociedade civil - considera os discursos de Friedman e dos monetaristas, ou o neoliberalismo, como o desenlace reacionário que culmina no binômio liberalismo econômico/despotismo político, apontando para este, como o reverso da medalha daquele. Afirma que, o que a burguesia realmente não suporta, não é a questão do Estado, mas a do Estado democrático. O que havia avançado na social democracia era o Estado democrático e muitas decisões saíam da esfera do privado para o público, ou pior, o público invadira o espaço privado de muitas deliberações, como já verificamos. O que o neoliberalismo realmente quer é a volta das deliberações para o domínio do privado, reduzindo o tamanho do Estado a tal ponto de confundi-lo com o aparelho burocrático da burguesia, ou seja, o governo. Seguramente que, retirar a esfera de decisões do Estado e transferi-las para o mercado, ou seja, do público para o privado, não é possível sob um sistema democrático. Por isso a obsessão neoliberal da alternativa única da sociedade de mercado.

A terceira consideração, em parte já esboçada na segunda, a tomo a partir de Adam Przeworski, retirada do seu livro Capitalismo e social democracia (Companhia das Letras, 1995). Para ser mais preciso, da parte final do capítulo "O capitalismo na encruzilhada", onde o autor faz uma análise da economia de mercado, apontando para o fato de ser este o projeto político do neoliberalismo. Aponta que, mais do que um projeto político, é um projeto revolucionário, a conclusão da revolução burguesa, que em sua primeira parte se libertara da ordem feudal e que agora busca a liberação dos compromissos gerados pelo sufrágio. Vamos a um esforço de raciocínio e de síntese de seu pensar.
Um clássico sobre o tema da social democracia.



Em todas as sociedades existem decisões tomadas na esfera pública e na esfera privada e estas decisões causam, ou um impacto público, ou um efeito privado. Nenhuma decisão causa tantos impactos públicos quanto as decisões sobre investimentos econômicos. Estes, no capitalismo, pela instituição da propriedade privada, são tomados no espaço privado, embora os seus impactos sejam, de todos, os mais públicos. Todo o projeto político do neoliberalismo é o de deixar para o mercado a determinação sobre os investimentos. Portanto, decisões tomadas na esfera do privado, onde se encontrarão indivíduos - uns investidores - tendendo para a maximização dos lucros e outros - consumidores - tendendo para a satisfação máxima de suas preferências. Esta é a lógica do mercado que, segundo os neoliberais, não pode sofrer interferências. No sistema político democrático, no entanto, não prevalece esta lógica. Na democracia - mais do que um indivíduo - o ser humano é considerado um cidadão, isto é, seres  marcados pela igualdade e, nestas condições, as decisões sobre o investimento e sobre a distribuição passam a ser responsabilidade das instituições políticas (da esfera do público) e não do mercado (da esfera do privado).

Isso foi o compromisso de classes da social democracia. Esse compromisso contemplou estes dois aspectos: o da distribuição de renda e o da alocação de investimentos. O que é o neoliberalismo? Uma brutal rejeição para que se decida na esfera do público sobre os investimentos e sobre a distribuição de renda. E isso pode ser feito sob o império da democracia? A resposta parece óbvia. O que o neoliberalismo quer, é se livrar de qualquer compromisso que retire a lógica da acumulação e dos investimentos da exclusividade dos agentes privados. Este projeto passa pelo desmantelamento de toda a organização das classes trabalhadoras e da sociedade civil.

Só para concluir, no espaço público, afloram as contradições de classe, enquanto que no privado, aflora a ideologia das liberdades de mercado, do proprietário do capital e do proprietário do trabalho.

Przeworski conclui que esta sociedade é possível, como o foi no Chile, sob o regime da sangrenta ditadura militar, e faz conjecturas sobre o futuro dos pobres, de viverem em áreas isoladas ou confinadas.

A quarta e última consideração a tomo de Bobbio, de seu O futuro da democracia, onde faz  uma constatação histórica. Inclusive pergunta se trata-se de uma progressão ou de uma regressão. Afirma que, primeiramente, a ofensiva dos neoliberais foi o socialismo, depois o Estado de bem-estar, da social democracia, e que agora se volta simplesmente contra a democracia.

Quatro considerações com a mesma conclusão. A incompatibilidade da convivência entre o neoliberalismo e a democracia.

ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES.

Creio não ser necessário fazer uma longa conclusão. Apenas ressaltar a importância do estudo teórico destas questões e retirá-las  do campo do senso comum. Aliás, é grande o esforço liberal em transformar as suas verdades no senso comum das massas.  Creio que as mais importantes questões a destacar são as finais. Houve um avanço na democratização da sociedade, mas na primeira oportunidade que a burguesia teve, liquidou estes avanços.  É lamentável que, ao final do século XX, tenhamos uma regressão tão grande no que se refere aos avanços da democracia e das conquistas, no campo dos direitos da cidadania.

Concluo, com a certeza de que só a democracia permite avanços coletivos para a humanidade e que a tentativa mais próxima de ampliar os espaços públicos, sob o sistema capitalista, foi tolhida pelo neoliberalismo/neoconservadorismo, exatamente na retomada dos princípios de origem deste sistema: a sociedade de mercado e a de tomadas de decisões que dizem respeito ao público, no âmbito do privado.

Resta reafirmar, diante do exposto, a fé nos princípios que combinem o socialismo com a democracia. Caminhos?  Por onde andar?

Termino citando o poeta espanhol Antonio Machado: Caminante, no hay camino. Se hace camino al andar.


quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Temas em debate. IV. As políticas educacionais do neoliberalismo.

Estes temas em debate são o desmembramento de um trabalho acadêmico que apresentei na PUC/SP, no mestrado em Educação  - História e Filosofia da Educação, em 1998. Depois o artigo foi publicado no Caderno Pedagógico da APP-Sindicato, nº 2, em março de 1999. São cinco temas, a saber: I. O liberalismo: uma contextualização e afirmação de princípios; II. A social democracia; III. O neoliberalismo; IV. As políticas educacionais do neoliberalismo; V. O neoliberalismo e o futuro da democracia , junto com as considerações finais. O tema de hoje é: As políticas educacionais do neoliberalismo.   Mantenho as frases em epígrafe.

AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS DO NEOLIBERALISMO

O mercado produz desigualdade tão naturalmente como os combustíveis fósseis produzem a poluição do ar. Eric Hobsbawn.

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e passagens de grande importância na história do mundo, ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Marx (18 Brumário).



Estamos trabalhando com a ideia de que, fundamentalmente, o neoliberalismo é uma retomada dos princípios do liberalismo clássico, tendo em Adam Smith e nos utilitaristas, a sua principal fonte. Isto se faz verdade se tomarmos a questão da educação. Algumas das ideias hoje em voga, foram detalhadas no já referido I, do volume II, de A Riqueza das Nações. Vejamos estas ideias. Adam Smith é um pensador coerente e, neste sentido, subordina todas as suas concepções, na centralidade da ideia da excelência do mercado e da liberdade. Assim, também a educação ficaria subordinada a este princípio, começando com um ensino que se regeria pelo princípio da utilidade.
Esta sua obra já contém receitas para a educação, sob a ótica do mercado.

Adam Smith parecia antever a criação dos sistemas nacionais de educação, que se fundariam nos princípios da educação como direito do cidadão e um dever do Estado, cabendo a este, instituir redes de ensino e assumindo o salário dos professores. Isto geraria, na sua visão, a ineficiência do sistema, por uma tendência à acomodação e a inúmeros vícios corporativos dos professores - que não movidos pela competição e pela premiação do mérito - não se dedicariam à causa. Porém, como a educação é útil para toda a sociedade, o Estado pode conceder ajudas, especialmente através das comunidades locais ou através de bolsas de estudo.

O tema é retomado em Friedman  quando ele fala do "papel do governo na educação"(Liberdade de escolher). Friedman retoma a questão, quando bem ou mal, os sistemas nacionais de educaçãoo já estavam instituídos, há quase cem anos, nos países desenvolvidos e contabilizando resultados (já familiarizando com a linguagem), como por exemplo o fato de eliminar o analfabetismo, de ter dado uma enorme contribuição para a formação técnico profissional e de conseguir alcançar significativos avanços na oferta progressiva de mais educação, para mais pessoas. A educação - pela via dos sistemas nacionais - havia se transformado num bem social eminentemente público.


As ideias de Friedman não são nada originais, uma vez que se constituem numa retomada das ideias de Adam Smith. Suas críticas aos sistemas educacionais ocorrem exatamente em virtude de haver sistemas educacionais e, principalmente, pelo fato de que estes sejam públicos, fugindo da ótica do mercado e do privado. Critica os professores, especialmente a sua estabilidade, que considerava como o gerador do corporativismo, da acomodação e do descompromisso. As soluções apontadas estão voltadas para o mercado, na aplicação dos princípios da competição; na liberdade de os alunos escolherem as escolas - as melhores obviamente - e por isso elas precisariam ser classificadas, através de um ranking; no ensino pago por todos, podendo ser subsidiado para os pobres através de vales (os vauchers) e, na remuneração dos professores, determinada pelas demandas do mercado e por seus méritos.

Ancorados nestas ideias e no princípio da redução dos gastos com o bem-estar é que se iniciou a aplicação de políticas educacionais neoliberais para a educação. Aí entra em cena um outro importante dado para o qual ainda não havíamos chamado atenção: o enfraquecimento do poder nacional e a sua concentração em agências internacionais. Outro detalhe também importante é que sob o neoliberalismo agências internacionais que antes se dedicavam à educação, como a UNICEF e a UNESCO, também tiveram o seu poder reduzido e transferido para as agências de financiamento, sendo hoje o Banco Mundial, o que melhor expressa este fenômeno. Hoje, ele se constitui, simultaneamente, no maior financiador e no maior órgão de assessoria de projetos educacionais do mundo inteiro. Constitui-se no grande "intelectual coletivo" - se é que podemos usar a expressão - a pensar e orientar as políticas educacionais.

O Banco atua em projetos sociais e, mais especificamente educacionais, a partir da década de 1970. Inicialmente, atuou na qualificação de recursos humanos, ancorado na pedagogia do capital humano, investindo prioritariamente no ensino técnico-profissional do ensino médio. Já na década de 1990, as suas políticas integram as de alívio e contenção da pobreza, optando como prioritário, o investimento na educação básica.

O Banco trata a educação por um reducionismo economicista, querendo aplicar às escolas uma linguagem transportada do econômico para o educacional.  Suas políticas também são marcadas pelo afastamento dos pedagogos da concepção da educação, passando este espaço a ser ocupado pelos economistas. A escola passa a ser vista como uma empresa, o diretor como um gerente, os alunos como clientes, os resultados escolares como produtos, os agentes educativos como insumos (inclusive os professores) e o principal parâmetro para todas as ações educativas passa a ser a relação custo - benefício e as taxas de retorno. Isso permite políticas como a superlotação das salas de aula, correção das distorções idade/série, eliminação da reprovação, tendo sempre - para tais ações - parâmetros econômicos e não pedagógicos. O Banco é também o grande responsável pela visão eminentemente quantitativa e não qualitativa da educação. O mercado também determina os fins da educação e por isso já se fala em cidadãos competitivos. Já houve tempos em que os fins da educação eram determinados pela filosofia. Esta dimensão só é compreensível com a fixação de toda a centralidade da vida humana no mercado.

O Banco parte do pressuposto liberal clássico, neoclássico ou neoliberal, da existência e da superioridade do mercado, de seus mecanismos de competição e das pseudo-liberdades a ele inerentes. A falácia da liberdade de escolher a escola através dos bônus, parte da premissa de que o dinheiro é o único agente a determinar o ingresso dos alunos em alguma escola. Esta suposta liberdade de escolha tem gerado situações, preconceitos e exclusões, que já se imaginavam, de há muito superadas. Afinal de contas, o ranking , ou o número de estrelas da escola, precisa ser mantido.

Mas a mais perniciosa de todas as práticas educacionais é uma política geral do neoliberalismo, que é a redução dos espaços públicos, pela inibição e desmantelamento da participação organizada da sociedade civil, procurando restringir tudo aos espaços limitados do privado. Usando a linguagem de Gramsci e aplicando-a ao presente momento, poderíamos dizer que o grande esforço neoliberal, em reduzir o tamanho do Estado, até o Estado mínimo, é essencialmente a redução do estado, ampliado pelos espaços públicos conquistados pela sociedade civil, reduzindo tudo aos limites do âmbito privado, onde os clamores do público não fazem eco. Neste sentido, o neoliberalismo é - acima de tudo - um atentado à democracia e é o tema que nos provoca para o último questionamento deste trabalho: é possível a convivência entre o neoliberalismo e os princípios da democracia? 

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Temas em debate. III. O neoliberalismo.

Estes temas em debate são o desmembramento de um trabalho acadêmico que apresentei na PUC/SP, no mestrado em Educação  - História e Filosofia da Educação, em 1998. Depois o artigo foi publicado no Caderno Pedagógico da APP-Sindicato, nº 2, em março de 1999. São cinco temas, a saber: I. O liberalismo: uma contextualização e afirmação de princípios; II. A social democracia; III. O neoliberalismo; IV. As políticas educacionais do neoliberalismo; V. O neoliberalismo e o futuro da democracia e as considerações finais. O tema de hoje é o neoliberalismo. Mantenho as frases em epígrafe.

O NEOLIBERALISMO 


O mercado produz desigualdade tão naturalmente como os combustíveis fósseis produzem a poluição do ar. Eric Hobsbawn.

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e passagens de grande importância na história do mundo, ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Marx (18 Brumário).



O primeiro capítulo do livro de Hayek O Caminho da Servidão, se intitula: "O Caminho abandonado". Já Friedman, na introdução do seu Capitalismo e Liberdade, lamenta as distorções sofridas pelo termo liberalismo ao longo da história, alertando que sempre que usar o termo está se referindo ao seu significado original, como as doutrinas que dizem respeito ao homem livre.
1944. Inglaterra. O fundamento dos princípios do neoliberalismo.

Com efeito, estes dois teóricos do neoliberalismo, não nos apresentam um novo liberalismo, com inovações, como o nome poderia sugerir, mas sim, uma retomada dos princípios do liberalismo clássico, como o conceberam os seus teóricos, de uma sociedade livre, estruturada a partir dos princípios do mercado, em que os indivíduos agem, expressando a sua liberdade, sob a dinâmica do princípio da competição, tal como acontecia nos séculos XVIII e XIX.

Os teóricos do neoliberalismo têm unidade e organicidade a partir da formação da Mont  Pèlerin Society. Este nome deriva do encontro convocado por Hayek, e que reuniu nomes como Friedman, Karl Popper, Von Mises, entre outros, em Mont Pèlerin, na Suíça, em 1947. A unidade e organicidade do grupo e de suas ideias seria garantida com a realização de reuniões internacionais a cada dois anos.

O seu ponto de partida está na publicação do livro de Hayek O Caminho da Servidão, na Inglaterra, em 1944. Já no prefácio ele indica, não só o seu alvo de ataque direto, o nazi-fascismo alemão, mas também o seu alvo indireto e preferido, que é o socialismo, ou todas as tendências interferidoras na liberdade, contidas no socialismo. Aponta para estas tendências como as responsáveis pela implantação do nazi-fascismo na Alemanha. Faz ainda admoestações no sentido de que, se a Inglaterra continuasse trilhando caminhos socializantes, também rumaria para o regime fascista. O alvo agora era o partido trabalhista inglês.

Esta introdução nos aponta o campo das ideias pelas quais Hayek irá trabalhar. Mas isto ficará mais claro na leitura do "Caminho Abandonado". Nele alega que o caminho do progresso europeu, aberto nos séculos XVIII e XIX, fora interrompido. Atribui todo o progresso que houve no campo das ciências e da tecnologia, ao exercício das liberdades individuais e ao livre uso dos conhecimentos. A liberdade libera o gênio humano que existe em cada indivíduo, movido pelo natural direito à ambição. Foi na Inglaterra, assinala, que se permitiu a liberação do uso das forças espontâneas e que este reino se irradiou pela Europa até a década de de 1870, quando então começa o retrocesso, com as ideias de substituir as forças espontâneas da sociedade, por ideias de organização e de planejamento, retiradas do socialismo. Vemos assim um profundo lamento pelo abandono do caminho, que terá que ser retomado, caso se queira um mundo de homens livres. Afirma ainda, que estes princípios são hoje tão verdadeiros, quanto o foram nos séculos XVIII e XIX.


Outro referencial fundamental é Milton Friedman com o livro Capitalismo e Liberdade, originariamente escrito em 1962 e praticamente reescrito trinta anos depois, sob o título Liberdade de escolher. O livro inicia por um reforço em condicionar as liberdades econômicas, afirmando que qualquer limitação a esta, refletiria também sobre aquela. Em consequência, só haverá liberdade política sob os princípios do capitalismo competitivo. Friedman dedica também um capítulo ao papel do governo numa sociedade livre, que já determinara quando subordinava a liberdade política à liberdade econômica. Ao Estado atribui praticamente a função única que é a de impor as regras do jogo, entendendo-se por regras do jogo, as do mercado. Quanto mais problemas, afirma, estiverem sob o âmbito das ações espontâneas do mercado, menos se precisará recorrer à coerção.

Atribui ao Estado as funções de legislador e árbitro, de agir frente aos monopólios técnicos e seus efeitos (existem monopólios técnicos necessários, que sempre devem ser privados) e, como as ações livres só se dão entre pessoas responsáveis, é lícito ao Estado desenvolver ações com relação às crianças e aos insanos.

O capítulo de Friedman sobre educação trataremos em separado. O livro também contém um capítulo sobre a pobreza, em que afirma que ela será tratada da melhor forma, se for delegada à esfera da caridade privada. Quando o Estado se dedica à pobreza ele passa a inibir as iniciativas desta caridade. Neste mesmo capítulo, como contrapartida à pobreza, apresenta o programa de renda mínima. Termina o capítulo afirmando a incompatibilidade entre ser liberal e lutar pela igualdade, se esta tiver que ser atingida por medidas interferidoras no mercado.

Voltemos à história. Perry Anderson, no livro Pós neoliberalismo - As políticas sociais e o Estado democrático (organizado por Emir Sader e Pablo Gentili Paz e Terra, 1995), nos faz um balanço deste movimento, apresentando também os seus princípios. Como já vimos, o ataque de Haiek era frontal ao nazi-fascismo alemão, mas o seu alvo preferido era o socialismo, e via princípios deste em toda a ação interferidora do Estado na economia, atingindo também a social democracia e as políticas do New Deal americano.
Críticas e alternativas ao neoliberalismo.


Já vimos também que o período de ouro da social democracia ocorreu entre 1948 e 1973, período em que poucos davam ouvidos aos integrantes do grupo de Mont Pèlerin que, no entanto, com persistência, se reuniam, procurando manter as suas ideias, aguardando um momento mais favorável, para que elas se expressassem como receituário político. Este momento apareceu em 1973, com a crise generalizada que se abate sobre o mundo, tendo como consequência uma longa e profunda recessão, combinando baixo crescimento econômico com elevadas taxas de inflação.

Era o que o neoliberalismo precisava para se afirmar. Os neoliberais consideravam que o Estado social democrata conferia muitos poderes aos sindicatos, que as medidas distributivas e a política fiscal corroeram as bases de acumulação, impedindo assim novos investimentos, ao mesmo tempo em que o Estado continuava aumentando os seus gastos, gerando inflação. As alternativas que apresentavam seriam a recomposição das taxas de lucro para permitir a acumulação e conter os gastos do Estado com o bem-estar. Para que estes objetivos fossem alcançados, duas medidas seriam de fundamental importância. Criar  elevadas taxas de desemprego e promover a estabilidade monetária. As altas taxas de desemprego enfraqueceriam o poder reivindicatório dos sindicatos e a estabilidade monetária reduziria as ações de bem-estar do Estado. Outras medidas, como uma reforma tributária que desonerasse o capital, complementariam as ações neoliberais.

No final da década de 1970 e início da de 1980, políticos se confessavam adeptos destas teorias, como Tatcher,  Reagan e Khol, ganham eleições. No decorrer da década de 1980, o neoliberalismo se afirma em outros países europeus e, na passagem da década de 1980 para 1990, transforma as suas verdades em dogmas universais com a queda dos símbolos do socialismo, como o muro de Berlim e o esfacelamento da União Soviética. Na década de 1990 ele chega à América Latina, mesmo que aqui a social democracia nunca houvesse chegado.

O neoliberalismo se propõe como alternativa única a todos os modelos que se estabeleceram ao longo do século XX, com forte presença do Estado, como o socialismo, a social democracia e o nosso modelo de substituição de importações. A derrocada do socialismo teria ocorrido pela estagnação; a social democracia, pela sua crise fiscal e o modelo de substituição de importações, pelo endividamento externo.

A sua mais recente formatação se assenta nos princípios da desestatização - desnacionalização, da desregulamentação- desconstitucionalização e da desuniversalização-desproteção, no que se refere aos direitos da cidadania. Perry Anderson conclui o seu balanço afirmando que, economicamente o neoliberalismo fracassou, pois não houve nenhuma revitalização econômica sob seus princípios; socialmente - se pretendeu aumentar o número de desigualdades - foi um sucesso; mas aponta para o campo ideológico o seu maior êxito, infundindo a crença de que não existem alternativas e que é preciso a adaptação de todos, aos seus princípios.



terça-feira, 6 de novembro de 2018

Temas em debate. II. A social democracia.

Estes temas em debate são o desmembramento de um trabalho acadêmico que apresentei na PUC/SP, no mestrado em Educação  - História e Filosofia da Educação em 1998. Depois o artigo foi publicado no Caderno Pedagógico da APP-Sindicato, nº 2, em março de 1999. São cinco temas, a saber: I. O liberalismo: uma contextualização e afirmação de princípios; II. A social democracia; III. O neoliberalismo; IV. As políticas educacionais do neoliberalismo; V. O neoliberalismo e o futuro da democracia, junto com as considerações finais. O tema de hoje é a social democracia. Mantenho as frases em epígrafe.

A SOCIAL DEMOCRACIA

O mercado produz desigualdade tão naturalmente como os combustíveis fósseis produzem a poluição do ar. Eric Hobsbawn.

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e passagens de grande importância na história do mundo, ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Marx (18 Brumário).



O liberalismo continua a sua trajetória de articulações e rearticulações, ora se firmando em torno da ortodoxia da sociedade de mercado, ora propondo reformulações que sempre têm o caráter de interferência na livre formação da sociedade de mercado. No decorrer do século XIX e no início do século XX irão ocorrer importantes transformações que obviamente precisam ser observadas. Citaríamos o avanço na organização dos trabalhadores; o referencial teórico político que adquirem com as doutrinas de Marx e Engels; a superação da fase concorrencial do capitalismo, atingindo a sua fase monopolista; a guerra e a revolução socialista na Rússia; as crises econômicas do final da década de 1920 e no decorrer da 1930 e a crise generalizada da convivência entre a democracia e o sistema de mercado capitalista. Este agitar de problemas gerará uma nova e significativa articulação no interior do sistema. Este, que em suas posições ortodoxas separa a política da economia, agora irá consagrar a política como instrumento de articulação entre as crises econômicas e os conflitos sociais. O grande reformulador do capitalismo deste período será John Maynard Keynes (Tratado geral sobre a ocupação - o interesse e o dinheiro) que proporá uma grande rearticulação entre o Estado e a sociedade civil, passando por uma grande redefinição entre o Estado e o capital.


Ao contrário de Marx, que oferecia uma ótima teorização político revolucionária sobre o sistema capitalista - visando a sua destruição - por estar baseado em princípios incompatíveis com a maioria dos seres humanos, como a exploração, a propriedade privada (fonte da injustiça e irracionalidade do sistema) e a taxa descendente de lucro (fonte de permanente crise), Keynes visava a preservação do sistema. Inspirado no liberalismo de Stuart Mill, buscava dar formas concretas às preocupações por ele levantadas, de conciliar a democracia com o liberalismo, através do estabelecimento de um compromisso de classes, com a criação de mecanismos interferidores na economia de mercado, visando a sua racionalização. Este mecanismo seria o Estado, agora com novas funções, especialmente, a de articular o compromisso de classes. Keynes conferia à sua teoria econômica um caráter eminentemente técnico, e à política, a articulação entre as classes. Assim se manteria o modo de produção capitalista e por mecanismos políticos se atenderiam as reivindicações distributivistas dos trabalhadores. Contra as crises - que a ortodoxia liberal previa como inevitáveis, porém sempre transitórias - ele propunha a intervenção e não a contemplação.

O cenário das crises que Keynes presenciava era o da década de 1930, em que havia recursos humanos e técnicos ociosos e a produção era destruída para proporcionar o reequilíbrio das forças do mercado. A isto Keynes  considerava como uma crise de demanda e previa uma saída natural para esta situação, uma solução técnica, matemática, aumentando as condições para o consumo. O compromisso Keynesiano tinha dois pilares de sustentação: o pleno emprego e a igualdade. O pleno emprego seria conquistado pela regulação da demanda, possível através dos gastos e investimentos estatais, e a igualdade seria assegurada pela enorme ampliação dos serviços sociais oferecidos pelo Estado, transformando-o no chamado Estado de bem-estar. Estes serviços sociais passam a ser vistos como direitos inerentes à cidadania, sendo em contrapartida, vistos como deveres do Estado. Assim, o Estado passa a ter um papel duplamente ativo, como fornecedor de serviços sociais e como regulador do mercado. Contra o homo economicus da sociedade de mercado e do Estado, apenas com funções negativas, e visto como um mal necessário, o Estado passa a ser agora o grande "organizador coletivo" e estruturador da sociedade. Pela absorção do desemprego faria a correção dos grandes desequilíbrios sociais e pelo estímulo à demanda promoveria novos investimentos e novas acumulações.

Na social democracia, programas de geração de empregos, políticas de assistência familiar, projetos habitacionais, sistemas de auxílio financeiro, programas de saúde, investimentos infra estruturais passaram a integrar as ações governamentais. O Estado passa a ter funções de inversão econômica, planejador das atividades econômicas, de empresário, de arrecadador e de distribuidor de riquezas. Ao Estado caberia fazer a ponte entre o capital e as demandas, cada vez mais massivas da cidadania. Além disso, a social democracia trouxe uma outra consequência de fundamental importância. A sociedade passou a ser cada vez mais organizada e assim conseguia ter melhor atendimento às suas demandas. Sindicatos, associações, estruturação corporativa do operariado cresciam junto com as liberdades políticas de organização partidária. O dissenso não era só permitido, mas até cultivado.

A social democracia  atendia especialmente a duas lógicas: a primeira era a de manter a acumulação capitalista e a segunda era a de manter a paz social, diante das ameaças revolucionárias como a da Rússia e dos regimes autoritários como o nazismo e o fascismo. Também se constituiria em remédio, diante dos temores e incertezas das crises recessivas do sistema capitalista. Era um sistema de inclusão social e a cidadania - que sob a sociedade de mercado era formal e abstrata - passaria agora a ser concreta e tangível.
Um livro maravilhoso. Uma análise de Estado de bem-estar.


Os espaços de democracia foram se alargando cada vez mais, até chegarem, na expressão de Atílio Boron (Estado, capitalismo e democracia na América Latina, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1994), ao "santuário da burguesia": a fábrica. O Estado, através da sociedade civil, invade áreas sagradas do que até então estava absolutamente restrito ao privado. Assim, a democracia, além de chegar às fábricas (conselhos de empresa - o Betriebsrat da Alemanha) chega também às escolas, às universidades, aos meios de comunicação, à família e passa a integrar os padrões culturais e comportamentais da sociedade. A economia keynesiana ou a social democracia, que teve o seu período de maior êxito entre 1948 e 1973, se constituiu na chamada época de ouro do capitalismo em que a produção cresceu sem precedentes, em que o desemprego era pequeno e coberto por mecanismos assistenciais dos governos e em que houve uma enorme expansão dos serviços sociais públicos, gerando inclusão e considerável avanço nos direitos da cidadania.

O Estado keynesiano, ao mesmo tempo em que era sacralizado por uns, de há muito era também satanizado por outros. Os argumentos utilizados pelos que o veem na figura satânica, recorrem aos velhos argumentos do liberalismo clássico, da sociedade regulada pelo mercado e da atribuição de funções mínimas ao Estado.

Uma interrogação antes de partirmos ao ponto seguinte: se no período histórico delimitado, a social democracia se constituiu num grande êxito, pode este ser atingido por um longo prazo e atingir um maior espaço geográfico? Pode ele ser proposto como um sistema universal ou se delimitar às regiões economicamente desenvolvidas, como ocorreu neste período que vimos? Ou então ficamos com Marx, que não vê nenhuma possibilidade para uma sociedade ser justa e democrática, de conciliação ou de compromisso de classes.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Temas em debate. I. O liberalismo: uma contextualização e afirmação de princípios.

Originalmente este texto é um trabalho acadêmico que escrevi em 1998, no mestrado em educação - História e Filosofia da Educação, na PUC/SP. Depois foi publicado no Caderno Pedagógico nº 2, da APP-Sindicato, em março de 1999. Não irei modificá-lo. Vou apenas desmembrá-lo em suas cinco partes, a saber: I. O liberalismo: uma contextualização e afirmação de princípios; II. A social democracia; III. O neoliberalismo; IV. As políticas educacionais do neoliberalismo; V. O neoliberalismo e o futuro da democracia, junto com as considerações finais. O texto ganha relevância pelo tempo sombrio que já estamos vivendo e que tende a se agravar. Deixo as epígrafes e retiro a apresentação que versava sobre a proposta de trabalho, uma apresentação dos temas acima referidos.


O Liberalismo: uma contextualização histórica e afirmação de princípios.

O mercado produz desigualdade tão naturalmente como os combustíveis fósseis produzem a poluição do ar. Eric Hobsbawn.

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e passagens de grande importância na história do mundo, ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Marx (18 Brumário).



Macpherson inicia o seu livro A democracia Liberal - Origens e Evolução com um interessante questionamento: "Devemos pois considerar a democracia liberal tão perto do fim a ponto de esboçarmos desde já suas origens e evolução? A breve resposta - prejulgando as razões que apresentaremos é "sim", se tomarmos a democracia liberal como significando, o que de um modo geral ainda significa, a democracia de uma sociedade de mercado capitalista (não obstante as modificações que essa sociedade apresenta com o advento do estado de bem-estar); mas a resposta é "não necessariamente", se por democracia liberal entendermos, como John Stuart Mill e os liberais democratas éticos que o acompanharam em fins do século XIX e inícios do século XX, uma sociedade empenhada em garantir que todos os seus membros sejam igualmente livres para concretizar suas capacidades. Infelizmente, a democracia liberal pode significar ambas as coisas" (Macpherson, 1978, p. 9).

Tomamos esta citação para iniciar o nosso trabalho para dizer que não existe uma única forma de interpretar o pensamento liberal e também para situar duas importantes matrizes teóricas, na expressão concreta e expansão deste pensamento. Esta observação inicial é fundamental, tendo em vista que uma das nossas hipóteses de trabalho pretende situar as concepções do neoliberalismo como uma retomada do significado de uma sociedade de mercado capitalista, após o mundo ter enveredado pelos caminhos do estado de bem-estar, concepção esta fundada no pensamento de John Stuart Mill. Só para contrapor, poderíamos fazer uma afirmação, também inicial, de que a sociedade de mercado capitalista encontraria a sua raiz no pensamento de Adam Smith.
1776. O marco teórico legitimador do capitalismo


Por esta exposição inicial, já sabemos que o liberalismo não é uma expressão em torno da qual haja consenso e nem é o mesmo em seu processo de estruturação e muito menos em sua expansão. Podemos contudo afirmar que o liberalismo nasceu junto com o modo de produção capitalista, sendo o liberalismo a sua expressão teórica, um esforço de legitimação de seus princípios e uma tentativa de sua universalização.

Historicamente, está vinculado à transição entre o decadente modo de produção feudal e a constituição e consolidação do modo de produção capitalista. No esforço legitimador da nova ordem burguesa, o liberalismo será mostrado como uma ordem natural e necessária, em cima da qual se construiu um mundo de progresso, de liberdade e de grande desenvolvimento para a humanidade. Assim, o liberalismo se constitui em uma visão de mundo em que o indivíduo é visto como um portador de direitos, naturais e inerentes à sua condição humana, e que só podem ser expressos, ou só se manifestam em estado de absoluta liberdade.

Estes direitos naturais e inerentes ao indivíduo são independentes e anteriores a qualquer organização social. Com esta afirmativa partem da precedência do direito natural sobre o direito positivo e em consequência, do primado do indivíduo sobre o Estado, subordinando a organização deste aos interesses dos indivíduos e na salvaguarda absoluta da individualidade. Nesta concepção, os interesses políticos são submetidos e subordinados à ordem econômica.

No livro de Dewey (1970) Capitalismo, liberdade e cultura, em seu capítulo primeiro - A história do liberalismo, aparece uma interessante síntese do pensamento liberal em que vou me pautar para trazer ao presente o pensamento de Adam Smith, principal articulador da sociedade de mercado.

Smith sustenta que a atividade dos indivíduos, libertos das restrições políticas, se constituem na principal fonte de bem estar social e a fonte única do progresso. Sustenta a ideia de que cada indivíduo busca melhorar a sua própria condição e o consegue através de seu próprio esforço. Assim, sem nenhum plano ou propósito previamente estabelecido, o bem estar coletivo seria atingido pela soma dos esforços individuais convergentes. A dinâmica do mercado, com a liberação das forças produtivas, aumentaria a produção e passaria a ocorrer uma espiral sem fim, de mudanças que permitiriam um avanço social e um ganho pessoal, sob guia da "mão invisível" e que resultaria em grandes benefícios para toda a sociedade.

Dewey faz um importante alerta para as condições históricas presentes na formulação do pensamento de Smith, como a inexistência de condições de exercício de liberdade, tanto no campo econômico quanto no campo político. No campo econômico em virtude do mercantilismo e no político, em virtude do absolutismo. Por outro lado ainda, tem que se ter presente que estamos no início do primeiro grande avanço industrial, o que confere ao mercado características bem específicas, dentro do estágio do capitalismo concorrencial.

Smith dá para as leis econômicas uma configuração, não de natureza física mas de natureza humana, conferindo-lhes assim também, um caráter moral. É da natureza humana, é do próprio instinto humano, lutar para melhorar a sua condição de vida pelos impulsos naturais da troca. Assim se estabeleceriam relações mútuas que regeriam a estruturação da sociedade. Estas relações se constituiriam numa interação positiva entre os indivíduos. Por que então a existência do Estado? Smith defende a sua existência, exatamente para que a economia de mercado pudesse ser implementada, sendo necessário para isto a destruição do estado feudal, tarefa que caberia ao Estado.

O Estado preconizado por Adam Smith seria aquele que garantiria o exercício da liberdade e que criaria a estrutura legal dos princípios de mercado e da garantia da propriedade privada. A preocupação com o Estado, no entanto, é grande. O seu tamanho e as suas funções precisariam ser bem delimitadas. Em seu livro A Riqueza das Nações, publicado em 1776, no volume II, capítulo I, encontramos praticamente a delimitação destas funções, quando fala sobre "Os gastos do soberano ou do Estado". Este capítulo se divide em quatro partes: Os gastos com a defesa; os gastos com a justiça; os gastos com as obras e as instituições públicas e as despesas com o sustento da dignidade do soberano. Na parte dedicada aos gastos com as obras e com as instituições públicas, ele abre três artigos, dos quais o primeiro se ocupa com a questão de facilitar as relações comerciais; o segundo é dedicado aos gastos das instituições para a educação da juventude e o terceiro sobre os gastos das instituições destinadas  à instrução das pessoas de todas as idades.

No artigo sobre os gastos das instituições para a educação da juventude, aparecem princípios importantes de serem observados, como os de que os indivíduos devem cobrir os próprios gastos, remunerando seus mestres; que quando isto não ocorre, a oneração não deve cair sobre a receita geral do país, mas sobre algum rendimento local ou provincial; que o empenho do professor é proporcional à necessidade e que este empenho desaparece quando a sua remuneração provém totalmente de dotações; que os professores formam corporações, julgando-se a si próprios, a liberdade de escolha do colégio em que o aluno queira estudar, entre outros.

Adam Smith fornece as bases para o chamado pensamento utilitarista, ou o pensamento liberal do século XIX, em que o conflito de classes já irá estar presente. James Mill e Bentham estruturam o Estado burguês diante do conflito de classes, embora a doutrina liberal negue a sua existência, aceitando contudo, a naturalidade da desigualdade. Este Estado burguês seria necessário, segundo os utilitaristas para proporcionar igualdade e segurança; igualdade de oportunidades no mercado e segurança para a propriedade. Especialmente Bentham teve tudo a ver com as mudanças na lei e na administração pública.

Depois da análise da sociedade de mercado, sobre cujo fim próximo Macpherson diria "sim", vamos ao seu "não necessariamente", passando a ver o liberalismo que tem a sua vertente em John Stuart Mill. Macpherson apresenta o homem do utilitarismo benthamista como um apropriador e consumidor e o preconizado por Stuart Mill, como alguém que tenha possibilidades de desenvolver, exercer e desfrutar de suas capacidades. Enquanto a vertente utilitarista aceitava uma sociedade de mercado capitalista sem reservas, Stuart Mill lhe faz inúmeras.  Considerava a teoria utilitarista desprovida de espiritualidade e de ausência de humano e as suas proposições não tão "evidentes". Bentham confundia prazer e utilidade com riqueza material e, portanto, uma maior felicidade seria adquirida com a maximização da produtividade. Stuart Mill inseria diferenças qualitativas nos prazeres materiais para atingir os prazeres superiores. Assim o máximo de prazer não estaria no máximo de produtividade, mas no propiciar meios para que os indivíduos se desenvolvessem e considerava que a distribuição da riqueza existente em sua época, não permitia que a maioria dos membros da classe trabalhadora pudessem desenvolver as suas capacidades. Não negava os princípios fundamentais do liberalismo - como a propriedade, por exemplo - que considerava como uma recompensa ao esforço, vendo nela restrições e propondo limitações, pelos seus vícios de origem, geralmente a violência em sua conquista. Acreditava também nos "contratos" como regulação no conflito capital x trabalho e via ainda a situação de inferioridade da classe trabalhadora nesta relação.

Outra questão fortemente presente em Stuart Mill é a questão da democracia e a importância do voto. Não defendia o voto universal por temer um governo de classe e, por isso, tanto limitava o direito ao voto como lhe atribuía proporcionalidade, com pesos diferentes. Certamente aparece aqui a ideia tão fortemente presente na constituição da democracia liberal que é a da presença de uma elite desinteressada e bem intencionada à frente dos governos, para que estes não sucumbissem frente a apelos demagógicos das maiorias, que cada vez mais começavam a se organizar. Considerava que a sociedade moldada pelos princípios absolutos da sociedade de mercado jamais viria a produzir cidadãos livres, pois o espírito que anima esta sociedade é o de construir a fortuna material de cada um, e que o governo seria um mero comitê executivo de uma sociedade sedenta de riquezas, o que barraria, por completo, o bem-estar comum entre a humanidade.  Via uma clara incompatibilidade entre a economia de mercado e o igual desenvolvimento dos indivíduos.

Stuart Mill lança no liberalismo o dissenso e o conflito. Outros agentes devem ser intervenientes na estruturação da sociedade humana, mais visíveis do que a "mão invisível" do mercado. Em sua expressa vontade de que todos desenvolvessem suas capacidades, defendeu a implantação de uma educação livre e não dogmática para todos. É ele hoje, especialmente após a queda do socialismo real, um autor retomado inclusive pelas esquerdas, o que é visto por Bobbio com muita alegria: "Que dois intelectuais de esquerda (os editores italianos de Sobre a liberdade) tenham relido com adesão um dos clássicos do liberalismo e aconselham esta leitura a seus companheiros de estrada, é um fato com o qual posso apenas me alegrar. Sinal de que a desconfiança (e a ignorância) recíproca entre as duas culturas (a liberal e a socialista) está para terminar" (Bobbio, 1997, p.109).
Os fundamentos éticos e democráticos do liberalismo.


Sei que nem Bobbio e nem esta sua afirmação se constituem em unanimidade, assim como o próprio Stuart Mill é apontado por uns como um elitista e conservador e por outros, como um grande liberal de vocação democrática.

Para preparar o passo seguinte deste trabalho, lanço uma pergunta sobre os desdobramentos de seu pensamento, de que se ele não influenciou na formação econômica, social e política, preocupada com o equilíbrio das forças sociais que geraram o Estado mediador de compromissos de classe.

Para ver mais sobre Stuart Mill. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/08/os-fundadores-do-pensamento-liberal-4.html
 

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Cine Debate. Itaú Viver Mais e Portal do Envelhecimento. Nasce uma estrela.

A vida é uma grande soma de experiências. Recebi um honroso convite de um ex aluno meu, o Rudolfo Auffinger, para ser o debatedor neste projeto de cine debate, promovido pela parceria entre o Itaú Viver Mais e o Portal do Envelhecimento. O projeto visa pessoas com mais de 55 anos, com o objetivo de mantê-las envolvidas em atividade, também no campo cultural. O Itaú, que mantém o Espaço Itaú de cinema, fornece o ingresso gratuito e o Portal do Envelhecimento é o responsável pela escolha dos filmes. O portal surgiu na PUC/SP, no curso de gerontologia. O Cine Debate ocorre sempre na última terça feira do mês, entre as 14h00 e 17h00. Um debatedor é convidado para cada evento. Monique Betenheuser estabeleceu os contatos.


Mas vamos ao filme. Nasce uma estrela, direção e roteiro de Bradley Cooper. O tema do filme é muito simples. Um cantor consagrado Jackson Maine (Bradley Cooper) encontra casualmente a menina Ally (Lady Gaga), cantando num barzinho, se apaixonam e vivem uma grande história de amor. Jackson alavanca a carreira de Ally, tanto como cantora quanto como compositora. Jackson é alcoólatra e em decadência. Tanto ajuda quanto prejudica a carreira de Ally. Vivem densamente. Esta história está sendo levada aos cinemas pela quarta vez e a Netflix já está preparando uma série com o mesmo tema. Um tema universal.

A primeira vez que a história foi levada ao cinema foi em 1937. O contexto da época era marcado pela euforia da recuperação econômica da crise de 1929 e a grande ascensão da indústria cinematográfica. Era um momento de reacender esperanças. Janet Gaynor e Frederic March formavam o par. Em 1954 ela voltou às telas, estrelada por Judy Garland e James Mason. Ganhou mais música, no tempo dos grandes musicais. A terceira filmagem ocorreu em 1976, em tempos de feminismo e de rock and roll. Foi retratado um mundo pós guerra do Vietnã, de desenvolvimento econômico e das grandes estrelas do rock. O par romântico foi formado por Bárbara Streisand e Kris Kristofferson.

E o quarto remake, se assim o podemos chamar, é a sua versão 2018. Na preparação para debater o filme me chamou particular atenção o nome de Bradley Cooper. Diretor, roteirista e principal ator. É um filme de autor, um filme cabeça, com pretensões para além do entretenimento ou de um simples musical. Foi a primeira questão debatida. Houve a concordância geral de que foi para muito além de um simples musical. Propositalmente não assisti o filme antes, para sentir as emoções junto com os participantes e não ter uma visão pré elaborada. A forma como a história foi encenada me emocionou várias vezes. Confesso que me lembrei da belíssima história de amor entre Heloísa e Abelardo, que separados pelas intolerâncias da época, se comunicavam por cartas e destas cartas surgiram muitos dos fundamentos do humanismo no mundo da modernidade (Heloísa e Abelardo - Etiene Gilson - 1938). De grandes amores sempre emergem generosidades e bondades. Do grande amor entre Ally e e Jack surgiram, no mínimo, belíssimas canções.

Outra questão que emergiu nos diálogos foi a questão do ser humano. Quem é ele afinal de contas? O que pode levar alguém a não dominar a doença do álcool? O que é o sucesso, o êxito profissional e a felicidade? Existe compatibilidade entre a felicidade e o rigor moralista em que a nossa geração (o público acima de 55 anos) foi educada? Os silêncios se fizeram sentir, frutos da agitação interior. Um grande momento. O que significa "andar nos trilhos"?
Antes da despedida, um registro.

Fiz alguns apontamentos. A beleza da canção La Vie en Rose, a brincadeira com o nariz de Ally, o retorno de Jack à sua infância, sua relação com o pai e a mãe, ou a sua ausência, seus problemas de audição (Beethoven foi lembrado), as relações com o irmão. O encontro e o nascer da afeição e, para mim, o que mais me tocou, foi a parceria na composição das letras das músicas e o cantar juntos. Outra questão forte. A presença da indústria cultural. Anulação da singularidade em favor do espetáculo. A indústria cultural. Tudo ritmado, bailarinas contando passos e movimentos matematicamente calculados. Ally sucumbe. Ally, cabelos pintados, é produzida para o espetáculo. A cena de ciúme é belíssima. Grande encaminhamento para as cenas finais. A canção tema. Oscars à vista.

O filme é uma produção dos Estados Unidos, do ano de 2018. Bradley Cooper atua pela primeira como diretor, sendo também responsável pelo roteiro. No elenco, o próprio Bradley interpreta Jack e Lady Gaga interpreta a cantora Ally. Embora toda a centralidade seja ocupada pelo par romântico, existe também espaço para Sam Elliot no papel de Bobby, o irmão de Jack e para Andrew Dice Clay, o pai de Ally. A música tema é uma composição de Lady Gaga. O filme é um sucesso de público e da crítica. Da crítica, algumas restrições à atuação de Lady Gaga como atriz. Não percebi isso. Ela atua com espontaneidade.
Junto com os participantes.
 
No encerramento da atividade, sobrou também tempo para a poesia de Manoel de Barros: "Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras - liberdade caça jeito". Momentos de elevação.

PS. Na premiação do OSCAR, apenas o prêmio de melhor canção original - Shallow