terça-feira, 28 de maio de 2013

Mar Morto - Jorge Amado.

Olhem a beleza de promessa da história que Jorge Amado promete contar. "Agora eu quero contar as histórias da Beira do cais da Bahia. Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados, os malandros sabem essas histórias e essas canções. Eu as ouvi nas noites de lua no cais do mercado, nas feiras, nos pequenos portos do recôncavo, junto aos enormes navios suecos nas pontes de Ilhéus. O povo de Iemanjá tem muito que contar.

Vinde ouvir essas histórias e essas canções. Vinde ouvir a história de Guma e de Lívia que é a história da vida e do amor no mar. E se ela não vos parecer bela, a culpa não é dos homens rudes que a narram. É que a ouvistes da boca de um homem da terra, e, dificilmente, um homem da terra entende o coração dos marinheiros. Mesmo quando esse homem ama essas histórias e essas canções e vai às festas de dona Janaína, mesmo assim ele não conhece todos os segredos do mar. Pois o mar é mistério que nem os velhos marinheiros entendem".
Um dos mais populares romances de Jorge Amado e o primeiro lido por Zélia. Mar Morto.

Pode ficar sossegado Jorge, que a história foi muito bem contada. Ela foi contada com muito lirismo, mas também com uma tristeza profunda. É impressionante o destino dos homens do mar.É doce morrer no mar, diz a canção. Mas a canção também diz que mulher de marinheiro não deve casar, sofre demais. Todos os marinheiros tem coisas no mar. Todos sabem que vão morrer no mar, mas ninguém deixa de ser marinheiro. Vão repousar nas profundezas das águas da princesa de Aiocá. Aiocá é apenas um dos cinco nomes de Iemanjá. Além de princesa de Aiocá e de Iemenjá, também a chamam de Janaína, de Inaê, ou simplesmente  Maria, também. Todos são devotos de Iemanjá.

Todo o medo das mulheres em perderem os seus maridos no mar, em noites de terríveis temporais é vivenciado por Lívia, que não é do mar, mas que do mar foi salva por um valente mestre de Saveiro, o melhor de todos e com quem vai se casar. Guma é seu nome. A história da sua valentia é contada de porto em porto, de cais em cais, de bar em bar. Ele enfrenta sozinho o mar, para salvar navio grande. Não sabia que neste navio estava Lívia. Mas quando a viu, com ela se casou, mesmo tendo que a roubar.

As advertências foram muitas. Marinheiro não deve casar. A mulher sofre demais, e se tiver filhos, então. Traíra tinha três: Marta, Margarida e Rachel. Qual será o destino da mulher de marinheiro que morreu no mar. Marinheiro não deve casar, mas Lívia será do mar. Saberá todas as histórias dos marinheiros, todos os casos de valentia, como a de Rosa Palmeirão, sempre com navalha na saia e punhal no peito. Como a de Besouro, que enfrentou viscondes, condes e marqueses, que contra os barões lutou para ser herói do povo, mas que nunca casou, para nunca desgraçar ninguém. Mas Lívia será do mar.

Lívia será do mar. Casará com Guma. Doce é morrer no mar. Será marítima também. Doce é morrer no mar. Guma se enreda com Esmeralda, mulher do amigo Rufino. A consciência lhe pesa. Traíra amigo e mulher. Rufino mata Esmeralda e se mata. A consciência pode aliviar, mas não alivia não. Um castigo será muito merecido. Mais um temporal. Morrem sete, cinco meninos. Lívia se amedronta cada vez mais. Está grávida. O pavor do mar aumenta ainda mais. Guma abandonará o mar. Trabalhará com os parentes de Lívia, será quitandeiro. Mas não será para já. Perde o seu saveiro Valente, num temporal. Compra outro, Paquete Voador, mas compra fiado e tem que pagar. A paga demora, não pode abandonar o mar.

O filho nasce e cresce no cais. Lívia agora tem duas preocupações, com ela e com o filho. Mulher de marinheiro não deve casar. O menino brinca de mar. Afoga navios no seu mar de bacia. Conhece os horrores do mar. É só terminar de pagar o saveiro e Guma abandonará o mar, não morrerá no mar. Transporta até contrabando, para mais rápido pagar. Em breve não andará mais no mar, porque marinheiro morre no mar e é doce morrer no mar. Lívia fica sossegada e feliz. Guma não morrerá no mar. Mas a notícia fatal chega. Marinheiro morre no mar. O corpo não é achado. Foi parar nas profundezas onde habita a princesa de Aiocá. É doce morrer no mar.

Marinheiro não sai do mar. O Paquete Voador continua no mar. No cais todo mundo comenta. A professora Dulce vê milagre. Quem dirige o saveiro é Lívia junto com Rosa Palmeirão. O mar é destino, marinheiro não abandona o mar. O mar é doce amigo. Vender o Paquete Voador é como vender Guma. O destino é ficar no mar, no mar de Janaína, com todos os seus cinco nomes. O mar é doce amigo, doce é morrer no mar.
Com os amigos Niemeyer e Dorival Caymmi. Jorge e Caymmi cantam os mares da Bahia. É doce morrer no mar.

Mar morto é uma tragédia, uma tragédia anunciada. O livro foi escrito em 1936. Jorge Amado tinha apenas 24 anos. Já era militante do Partido Comunista, do Partidão. Neste livro, a sua militância pouco aparece. Neste ano também ocorre a sua primeira prisão. O será de novo, no ano seguinte, quando também seus livros serão queimados. Deste período é a tríade de seus primeiros livros mais significativos: Jubiabá (1935), Mar Morto (1936) e Capitães da areia (1937). Zélia Gattai, em nota, ao final do livro diz que foi o primeiro livro de Jorge Amado que ela leu. Assim se refere a ele. "Li e adorei a história de amor passada no mar da Bahia, um romance de fazer sonhar, cheio de poesia".

E continua: "Eu estava longe de imaginar, que por ele me apaixonaria, que seria por ele amada e que, juntos, viveríamos 56 anos de puro e verdadeiro amor. Eu, Lívia, nos braços de meu Guma, Jorge, com direito a brisa do mar e moqueca de siri mole". Que lindo! Jorge e Zélia se conheceram em São Paulo, em 1945. Mas Zélia ainda fala de Mar morto: "Mar morto foi o abre-alas, assim que terminei de ler fui em busca dos outros. A leitura de cada novo livro me emocionava, mas este, o primeiro, nunca perdeu o seu lugar de preferido".

Mar morto é um dos romances mais populares de Jorge Amado e foi neste livro que o inseparável amigo Dorival Caymmi se inspirou para compor "É doce morrer no mar".

segunda-feira, 27 de maio de 2013

O poder da oração. Acreditar ou não acreditar? DEPENDE...

Esta história é muito boa. Já ouvi falar de muitos castigos divinos. Cidades inteiras foram destruídas pelo ódio  divino. Não gosto, em absoluto, desta imagem. Me lembro de Pompeia. Uma cidade em pecado. Era uma cidade muito rica. Luxo e luxúria andavam soltas. A ira divina não tardou. O Vesúvio a destruiu. A ira divina é terrível, nos falavam os padres, no seminário. No ano passado conheci os lupanários de Pompeia. As farras deviam ser grandes e, eles atendiam apenas a população mais pobre.
Aquiraz, de nome completo, São José do Ribamar de Aquiraz. Cidade litorânea do Ceará, fundada em 1699.

Agora deparei com esta história de Aquiraz, uma cidade do Ceará, da qual, ignorância minha, nunca tinha ouvido falar. Dizem que é muito bonita. Lá dona Tarcília Bezerra fez um puxadinho no seu cabaré e introduziu várias melhorias, pois, afinal de contas, as coisas estavam melhorando. Os pescadores ganham dinheiro, mesmo quando parados nos períodos da piracema. Outras bolsas são distribuídas. Esta pequena história, nas mãos de Jorge Amado, viraria um grande romance.
Dona Tarcília provocou o ódio de castos, pudicos e estoicos membros de uma igreja evangélica local. Redobraram suas orações, pela manhã, tarde e noite, pedindo a Deus para conter os avanços da dona Tarcília. A imoralidade precisaria ser contida. A castidade, virtude suprema, precisava ser cultivada.
Uma tempestade se anuncia. Nunca se viram tantos raios e ouvido tantos trovões. Valei-nos Santa Bárbara, a do trovão. E veio um raio fulminante, que acertou o cabaré em cheio.Pontaria, assim tão certeira, só mesmo a divina. Em poucos minutos só sobravam cinzas. Cinzas para a penitência de quarta feira santa. Pastores e fiéis passaram a se vangloriar do poder da oração, dos pedidos feitos para Deus. Pelos pedidos da oração, o tremendo Deus, restaurara a decência em Aquiraz. Os fiéis e os pastores só não imaginaram a ação de Dona Tarcília. Ela devia ter astuciado com o terrível demônio.
Ela processou a Igreja sob o argumento de que "foram os responsáveis pelo fim de seu prédio e de seu negócio, utilizando-se da intervenção divina, direta ou indireta e das ações ou meios". Enfim, com toda a simplicidade, o poder da oração.
A igreja, em sua defesa, contratara astuto causídico, que apresentou veemente contestação de fria e arguta racionalidade, negando toda e qualquer responsabilidade ou vínculo com a destruição do edifício. O juiz zeloso, não tardou em seu veredito e, assim se pronunciou:
"Eu não sei como decidir este caso, mas uma coisa está patente nos autos. Temos aqui uma proprietária de cabaré que firmemente acredita no poder das orações e uma igreja inteira declarando que as orações não valem nada". Digamos, uma inversão fabulosa.
Eu já tinha ouvido uma história semelhante. Num sermão o padre clamava contra a indecência de um circo. Trapezistas faziam acrobacias semi-nuas. O padre vociferava. Deu um incêndio no circo. Na semana seguinte o padre triunfante festejava o castigo divino. Na semana seguinte pegou fogo na igreja. Na semana seguinte o sermão versava sobre a misericórdia divina.


quarta-feira, 22 de maio de 2013

Liberdade - Algumas reflexões.


Qual será afinal de contas o significado da palavra liberdade ou de sua congênere livre arbítrio? Sem entrar em detalhes, vamos apenas afirmá-la como um dos pilares da cultura ocidental, cultura esta, profundamente capitalista e superficialmente cristã, especialmente se formos falar do cristianismo contido no sermão da montanha, cuja publicação chegou a ser censurada no Estado Novo, não sei bem, talvez, - em nome da preservação da liberdade de imprensa. Também os jornais brasileiros não tiveram a liberdade de publicar a declaração da independência dos Estados Unidos, pela ditadura militar brasileira, na comemoração de seus 200 anos, embora, sendo o país tido como modelo de liberdade. Está tudo muito confuso, não está? O que vem a ser afinal a liberdade?

Recentemente li o livro de Jonathan Franzen, cujo título é simplesmente - Liberdade. Me confundiu ainda mais. Nele tem uma discussão que me intrigou. A discussão é entre dois irmãos, um bem sucedido, no significado estadounidense do termo, e o outro é um bêbado inveterado e alcoólatra reconhecido, não anônimo. O bem sucedido se chama Walter e o mal sucedido, também no sentido estadounidense, é Mitch. Vejam o diálogo entre eles ocorrido e a sua contextualização:
O diálogo entre os irmãos Walter e Mitch e a conclusão de que Mitch é um homem livre, no livro de Jonathan Franzen. "Liberdade".

"O dia estava ensolarado e ele só estava fazendo o de sempre. Bebia o tempo todo, mas sem pressa; a tarde ia ser longa.
De onde você está tirando dinheiro? quis saber Walter. Está trabalhando?
Mitch debruçou-se um pouco vacilante e abriu uma caixa de apetrechos de pesca que continha uma pequena pilha de notas e talvez uns cinquenta dólares em moedas. Meu banco, disse ele. E isso aí deve durar até o tempo esfriar de novo. Trabalhei de vigia noturno em Aitkim no inverno passado.
E o que você vai fazer quando esse dinheiro acabar?
Encontro alguma coisa. Eu sei tomar conta de mim.
Você não se preocupa com os seus filhos?
É, às vezes me preocupo. Mas eles têm boas mães que sabem cuidar deles, e eu não presto para isso. Acabei entendendo que só assim sei tomar conta de mim mesmo.
Um homem livre.
É o que sou.
E se calaram.

Não entendi. Então a liberdade é a vida que Mitch está levando e não a de Walter? O que fez Walter para ser bem sucedido?  Enredou-se?

Fiquei ainda mais confuso com uma personagem de Jorge Amado no seu São Jorge dos Ilhéus. Rita é o seu nome. Ela é absolutamente pobre. Não tem mesmo nada. Jorge a descreve, em meio a todas as doiduras dos coronéis e agora, mais ainda, dos exportadores, que tudo tem, inclusive o medo de perderem o que tem, como sendo feliz, mesmo sem nada ter. Ela vive da entrega de seu corpo e o faz tão bem, que meia Ilhéus por ela se apaixona, mas especialmente o negro Florindo. No tempo da baixa do cacau, no tempo em que todos estão presos à maior miséria, todos buscam abrigo em Rita, que nada tem, inclusive o negro Florindo. Vejam a felicidade dos dois, quando Florindo já desesperado, apenas sonha em encontrá-la, mas o encontro é real:
Rosa e Florindo, em "São Jorge dos Ilhéus", sem terem nada, mas felizes e livres?

"Florindo comprou um pente, leva no bolso, um pente bonito, como pedra de vidro, como brilhante. É para Rosa, pentear os cabelos, para ela sorrir. 'toma teu pente, Rosa, vem te pentear. Te dou um colar, compro num sírio, a prestação. É falso, já sei, quem é que não sabe? Mas é bonito que nem verdadeiro, é pra te dar. Te dou perfume, falso Houbigant. O Varapau, tu sabe, voltou pra roça, já te esqueceu, Capi embarcou, vai ser Herodes num terno de reis. Eu fiquei só. Tem a lua, Rosa, pra nela te mirar. Se tu não vem, Rosa, vou me afogar.
Negro Florindo, não sabe mais rir, se vai afogar. Rosa fugiu, no cais não está, negro Florindo vai se afogar.
Rosa chegou, veio por detrás, o negro se volta, de onde ela veio. Rosa maluca, bonita de ver.
Onde tu tava?
Tu quer saber?
Rosa está rindo, o negro está rindo, rir é tão bom!
Tu quer saber? Melhor não saber...
Rosa que quer? A boca de Rosa, oh! a boca de Rosa, o corpo de Rosa se encostando. Rosa, toma teu pente, não queira colar, não queira perfume, não queira luar. Só queira canoa.
Tu teve pena?
Me ia afogar...
No corpo de Rosa, negro Florindo já se afogou, no escuro do cais. Rir é tão bom.

Os demais estavam enredados, ou na sua riqueza ou na sua pobreza. O que será a liberdade?

Lembro ainda do filme "Advogado do Diabo". Nele o personagem de Al Pacino faz um discurso sobre o livre arbítrio, mas este vamos deixar de lado, para uma outra oportunidade. Se não a confusão aumenta demais. Melhor é não saber. 







terça-feira, 21 de maio de 2013

Comissão da verdade. O depoimento do coronel Ustra.

Muitas coisas me passaram pela cabeça ao ler as declarações do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, no depoimento de ontem (10 de maio de 2013), perante a Comissão da Verdade. Seguramente este coronel, pelo que é acusado, é uma das figuras mais inomináveis deste mundo. Ele presidiu o DOI CODI, o grande centro de torturas do Brasil, de 1970 a 1974, nos chamados anos de chumbo da ditadura militar. Pesa sobre ele a acusação de mais de cinquenta mortes. Mortes, que na maioria dos casos, teriam sido consequência das torturas que ali eram aplicadas sistematicamente.

Vejamos as frases mais marcantes de seu depoimento: "Com muito orgulho cumpri minha missão. Portanto, quem é que deve estar aqui não é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. É o exército brasileiro, que assumiu, por ordem do presidente da República, a ordem de combater o terrorismo e sob os quais eu cumpri todas as ordens, ordens legais, nenhuma ordem ilegal". Afirmou ainda: "Todas as organizações terroristas, e mais de quarenta eram elas, em todos os seus programas, está lá escrito claramente: - o objetivo final é a instalação de uma ditadura do proletariado, do comunismo [...] Nunca cometi assassinatos, nunca ocultei cadáveres, sempre agi segundo a lei e a ordem. Não vou me entregar, lutei, lutei, lutei". Sobre corrupção e estupros no DOI CODI foi categórico: "Isso nunca aconteceu. Digo em nome de Deus". Quantas certezas!
Um relato para a história. Só o cultivo da verdade e da memória podem ajudar para que fatos jamais se repitam.

Que cada um tire as suas conclusões. Pensamento ou ideia que parte de um pressuposto errado, estará sempre errado. E o golpe militar foi uma vil agressão à lei e a ordem estabelecida. Mas vai muito além. Nada justifica a tortura. Quando o mundo, minimamente, fez por merecer o nome de mundo civilizado, o primeiro direito afirmado foi o da manutenção da integridade física das pessoas. Atentar contra isso é cometer a mais vil de todas as ignomínias. A Comissão da Verdade tem muito a dizer sobre estes sinistros anos de "luta pela legalidade e da ordem constituída". Ordem e legalidade instituída por quem e para quem? Esta pergunta sempre terá que estar presente.

Terminei de ler "Os subterrâneos da liberdade", de Jorge Amado. É sobre o Estado Novo. As torturas eram sistematicamente aplicadas como método dos interrogatórios. Até crianças eram torturadas na frente de seus pais. Em nome da liberdade se combatiam as liberdades contrárias a liberdade oficial. Na história romanceada de Jorge Amado, o torturador famoso de então era o Dr. Barros e o médico legista, o Dr. Pontes. Este, não suportando ver as atrocidades cometidas se cocainizava para suportar ver a bestialização humana e, acabou por se suicidar. Diante desta leitura eu me apavorei. Getúlio, pelas outras ações de seu governo, foi absolvido e está caracterizado como um grande presidente. A história apaga os fatos. Mas o que mais me apavorou foi ver a distância dos fatos. Os jovens de hoje estão tão distantes da ditadura militar de 1964 a 1985, como eu estou distante do Estado Novo. O fato que eu não vejo, que eu não presencio, não me apavora, ou pior, eu chego a duvidar de que ele de fato existiu.

Num magnífico texto sobre educação, Educação após Auschwtiz, Theodor Adorno nos faz perguntas extremamente intrigantes: as causas que produziram Auschwitz foram erradicadas, ou não, da humanidade? Haverá ainda carrascos dispostos a cumprirem ordens atrozes? As vítimas futuras serão apenas os judeus? As vítimas, não seriam todas pessoas que estão sobrando no mundo? E por mundo, entenda-se, mercado.
As respostas de Adorno são óbvias. Ninguém mais se apavora diante destes questionamentos. São fatos do passado, mas as causas que os provocaram ainda estão todas presentes. Portanto, podem se repetir.
A que situações o ser humano pode chegar sob os efeitos da tortura, a tal ponto de perguntar: É isto um homem?

Dos livros mais impressionantes que eu li estão dois de Primo Levi. É isto um Homem? e Os afogados e os sobreviventes. Primo Levi é um dos raros sobreviventes de Auschwitz.O primeiro foi escrito logo após a saída deste inferno e o segundo, uns dez anos depois. Reflexões mais do que amadurecidas. Me lembro dele falando do tribunal de Nurenberg. Lá todos se diziam inocentes. Todos diziam as mesmas palavras do coronel Ustra: "sempre agi segundo a lei e a ordem", ou então, "eu apenas obedeci". Devemos, contra todos os cânones da nossa cultura, aprender a desobedecer, quando a lei e a ordem são a própria desordem. Desobedecer, será então, o mais imperativo dever ético, se a pessoa não quiser ser julgada perante a história e perante a humanidade como um monstro humano.

Outra passagem, que nunca consegui esquecer, é aquela em que Primo Levi aventa a possibilidade do suicídio. A sua resposta para esta questão é a de que isso era impossível, pelo fato de ser o suicídio um ato humano e, a degradação era tamanha, que esta possibilidade não existia, pois viviam num estado animalesco: "Nossos dias tinham sido assolados, desde a madrugada até a noite, pela fome, pelo cansaço, pelo frio, pelo medo, e o espaço para pensar, para raciocinar, para ter afeto tinha sido anulado" [...] "Esquecêramos não só nosso país e nossa cultura, mas a família, o passado, o futuro que nos havíamos proposto, porque, como animais, estávamos restritos ao momento presente". É - o suicídio é um ato possível, somente para os humanos.
Muitos foram os afogados e poucos os sobreviventes. Relatos dramáticos de um sobrevivente.

Para todos os que tem dúvidas sobre o ocorrido, especialmente para aqueles que querem passar uma imagem de que a ditadura militar no Brasil não foi tudo isso, que foi até necessária, que foi uma ditabranda, deixo algumas linhas do prefácio do livro, que Levi busca em um outro sobrevivente, Simon Wiesenthal, que ouvia as cínicas afirmativas dos SS. "Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos; ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape, o mundo não lhe dará crédito. Talvez haja suspeitas, discussões, investigações de historiadores, mas não haverá certezas, porque destruiremos as provas junto com vocês. E ainda que fiquem algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão monstruosos que não merecem confiança: dirão que são exageros da propaganda aliada e acreditarão em nós, que negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos a história dos lager" - dos campos de concentração.

Para a Comissão da Verdade fica a incumbência de estabelecer a Verdade e que esta nos aponte para a direção do Nunca Mais - que nunca mais se repitam estes fatos e não para a versão da ditabranda, que tenta esconder a verdade, apenas com um único propósito, - o de que, pela ausência da memória, estes fatos se repitam mais facilmente.Alguém, evidentemente, tem interesse nisso.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Somos Tão Jovens. Renato Russo no Cinema.


O primeiro interesse que eu tive em assistir o filme Somos tão Jovens, sobre a vida de Renato Russo, foi ao ouvir uma entrevista, nas rádios que eu escuto (CBN- Band-News), em que o entrevistado falava do sobrenome, ou nome artístico que Renato Manfredini Jr. adotou, Renato Russo. Aí eu me liguei e, atentamente, ouvi a explicação. O Russo era uma homenagem a dois filósofos: Bertrand Russel e Jean Jacques Rousseau. Aí eu decidi ver o filme. No entanto, entretido com a leitura dos livros de Jorge Amado, me esqueci. Aí recebo a minha assinatura da revista CULT, com matéria a respeito. Aí resolvi de vez. Na primeira tarde já me mandei para o cinema. O rapaz jovem que homenageia Russel e Rousseau merece o maior respeito
Somos Tão Jovens
O cartaz promocional de Somos tão Jovens.

O flime foi bem recebido recebido pelo crítica. A interpretação de Thiago Mendonça no papel de Renato Russo e de Laila Zaid, como Ana Cláudia, receberam elogios quase unânimes. A crítica mais negativa recaiu sobre os diálogos. O filme é biográfico, com foco no jovem Renato Russo e a sua formação musical.O filme termina quando Legião Urbana se apresenta no Circo Voador, no Rio de Janeiro e a banda é alçada ao maior sucesso.

Renato Manfredini Jr é filho de uma família de classe média, diríamos, alta. O seu pai é economista no Banco do Brasil, transferido para Brasília, em meados dos anos 80. Renato é portador de uma doença óssea congênita -epifiólise- e sofre de uma intervenção cirúrgica de recuperação lenta. Já antes da cirurgia a sua locomoção era difícil. Estas dificuldades o tornam um menino, praticamente recluso em sua casa. Isto tem tudo a ver com a sua formação, especialmente, a musical. Ouve música o dia inteiro, quando não está lendo. Neste clima incita os seus sonhos. Será um músico famoso, projeta em sua imaginação. Os amigos o levam para a música no cenário de Brasília.

O filme não mostra apenas as alegrias musicais do jovem. Contextualiza toda a época, época de muita tristeza, de uma ditadura militar que vai se extenuando e roubando as perspectivas de futuro da juventude. Este clima terá forte influência nas letras de sua música. A primeira banda que se forma em torno dele será o Aborto Elétrico, uma banda punk, depois vira um trovador solitário, para, finalmente, formar a Legião Urbana. O seu gênio complexo e a convivência difícil, dificultaram a formação consistente das bandas.

O filme é extremamente atraente e agradável de se assistir. Tem muita música. É um belo show. Eu gostaria de destacar alguns pontos altos, evidentemente, a partir do meu olhar. Tem uma cena, em que os pais o flagram ouvindo música punk, se lamentam, "logo nós, que só o fazíamos ouvir Bach e Bethoven". Aliás a relação com a família, embora não seja das piores, também não pode ser considerada boa. Nada tem de pancadaria. Outra cena memorável é também na relação com a família. O pai o admoesta pelo abandono de sua primeira profissão, a de professor de inglês, afirmando ser impossível viver de música. Então ele, apenas para agradar, afirma que seguirá carreira diplomática. O rosto do pai se ilumina nesta cena. Cena típica da pequena burguesia em sua ânsia de profissões estáveis e rentáveis.
Olha aí o DVD que eu comprei Concerto Sinfônico Legião Urbana. Ao fundo matéria da revista CULT. 

Tem outra cena que vale a pena ver, por causa da cara de espanto da mãe, quando Renato lhe fala, ainda que de leve, de suas preferências sexuais. A cena do guitarrista que afirma que permanecerá por pouco tempo na banda, é boa pela contextualização da época. Irá embora para Paris, por não ver perspectivas de futuro no Brasil. Mas a cena em que eu não contive uma boa risada, foi quando eles fizeram uma apresentação em Minas Gerais e os militares fizeram cara feia e de muito espanto, diante da apresentação do grupo. Soube depois, que eles chegaram a ser detidos nesta oportunidade.

Goste muito de ver o filme. Para me enredar mais com seu clima, fui logo após o filme ver o que tinha de CD ou DVD da Legião Urbana para comprar. Achei um que eu acho que vou gostar. Vou vê-lo logo após a conclusão deste post. Ele tem músicas famosas. É um concerto sinfônico, apresentado no Rock in Rio, homenageando o Legião Urbana. 

Na próxima semana tem mais. Será a estreia de Faroeste Caboclo.

  

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Sobre a Queima de Livros. Capitães da areia. Jorge Amado.

O Jornal do Estado da Bahia, de 17 de dezembro de 1937, contem matéria sobre a queima de livros, com a seguinte manchete: Incinerados vários livros considerados propagandistas do credo vermelho. Em grifos menores segue: Os livros de Jorge Amado e José Lins do Rego foram os mais atingidos. No corpo da matéria traz o nome da comissão dos responsáveis pelo ato, sob o comando do interventor da Bahia, sob o governo do Estado Novo. Cita o nome das livrarias, das quais os livros foram apreendidos e passa a relação completa deles, bem como  número de exemplares. Também fornece os motivos da apreensão e queima: são simpatizantes do credo comunista.
Notícia de O Jornal do Estado da Bahia, anunciando a queima de livros pelo Estado Novo, em 1937. Capitães da areia, de Jorge Amado foi o mais atingido.

Visivelmente o autor mais atingido foi Jorge Amado. Vejamos a relação dos mais apreendidos: 808 exemplares de Capitães da areia, 223 de Mar Morto, 89 de Cacau, 93 de Suor, 267 de Jubiabá, 214 de País do Carnaval, entre outros. Aparecem ainda 14 exemplares de Menino de Engenho, de José Lins do Rego, além de vários outros, de autores menos conhecidos. Aparecem ainda 23 exemplares do livro Educação para a democracia, que suponho, sejam do educador, muito em moda na época e ainda não superado, o norte americano John  Dewey.

Entre os livros de jorge Amado o mais queimado foi Capitães da areia. Por que exatamente este livro teria atraído tanto a ira dos autoritários censores? É que o livro é dedicado aos meninos abandonados de Salvador, que se reuniam em torno de um trapiche abandonado, na região do cais de Salvador. Os meninos eram o terror da cidade. Jorge os descreve, mostrando profunda simpatia por eles, mostrando que, se assim agiam, era exclusivamente porque a sociedade lhes negava todos os meios de sobrevivência. O livro é também uma descrição de toda a violência que contra os meninos é empregada pela polícia e pelo reformatório dos meninos, onde eram trancados, quando flagrados.
História Universal da Destruição de Livros -Das Tábuas sumérias à guerra do Iraque. A ilusão do poder de destruir ideias. 

Mas não pensem que a queima de livros foi uma invenção do Estado Novo. Eles não tinham nem inteligência e nem criatividade para isso. Em São Paulo chegaram a censurar o Sermão da Montanha, do Evangelho de Mateus, confundindo-o com um panfleto de comunistas. A queima de livros é coisa muito antiga. O temor causado por ideias sempre apavorou os detentores do poder. Quem quiser um relato completo sobre a queima de livros, tenho uma indicação a fazer. Trata-se do livro de Fernando Báez, História universal da destruição dos livros - Das tábuas sumérias à guerra do Iraque. Não vou fazer um relatório do livro, não. Outro dia posso até tentar.

O belíssimo livro de Alberto Manguel - Uma história da leitura, tem um capítulo sobre leituras proibidas. Neste capítulo é relatado o episódio de 10 de maio de 1933, ocorrido na cidade de Berlim (Eu não falei que a queima de livros não foi uma invenção do Estado Novo). Nesta ocasião, diante das câmaras, o ministro da propaganda de Hitler, Paul Joseph Goebbels, discursou para mais de cem mil pessoas, durante a queima de mais de 20.000 livros. Vejam um trecho do seu discurso: "Esta noite vocês fazem bem em jogar no fogo essas obscenidades do passado. Este é um ato poderoso, imenso e simbólico, que dirá ao mundo inteiro que o espírito velho está morto. Destas cinzas irá se erguer a fênix do espírito novo".
Leituras proibidas é um dos mais impressionantes capítulos deste extraordinário livro.

"Contra a exacerbação dos impulsos inconscientes na análise destrutiva da psique, pela nobreza da alma humana, entrego às chamas as obras de Sigmund Freud", teria declamado um censor antes de jogar na fogueira as obras de Freud, Steinbeck, Marx, Hemingwuay, Einstein, Proust, H.G. Wells, Heirich Mann, Jack London, Bertold Brecht e inúmeros outros. Eis uma bela lista de livros que valem a pena de serem lidos. Balzac, Rabelais, Walt Whitman, Bernard Shaw e Tolstoi complementam esta lista.

Em 1872, nos Estados Unidos houve a criação, em Nova York, de uma sociedade para a Extinção dos Vícios, fundada por um tal de Anthony Comstock, que investiu furiosamente contra os livros. Admitia a leitura de um único livro: A Bíblia. Mas a história dele eu também deixo para outro dia. Também é muito conhecido o filme Fahrenheit 451, de François Truffaut, baseado no livro homônimo de Ray Bradbury. O livro é de 1953 e o filme de 1966. No livro e no filme os bombeiros, em virtude de todas as casas serem feitas com material não incendiável, são refuncionalizados. Sua nova tarefa será a de queimar livros, que segundo o comandante dos bombeiros não servem para nada, porque não há unanimidade entre eles. Porque não há unanimidade eles servem apenas para confundir. Em torno da Televisão é que será construída a unanimidade de pensamento.Pensamento único e utilitário; eis a nova ordem. As pessoas, para preservarem a diversidade, decoram, cada uma, um livro, para mantê-los vivos. Uma das minhas aulas sempre foi reservada para Ray Bradbury

Em suma, por que esta fúria contra os livros? Não esqueçam que não vai longe o tempo em que os autores também eram queimados junto com os seus livros. Os livros nos trazem o plural, o múltiplo e o diverso. O poder autoritário jamais suportará isso. No caso de Jorge Amado fica também evidente que se quer ocultar a existência de problemas. Para resolver os problemas dos meninos abandonados teria que se mexer nas estruturas da sociedade e isto implicaria em eliminar privilégios, implicaria na construção de uma sociedade justa. Mas isto, diziam e dizem muitos representantes de Deus, vai contra os desígnios do próprio Deus e que a pregação das coisas deste mundo é feita apenas por pessoas de pouca inteligência e, que por isso não conseguem interpretar os sagrados desígnios deste mesmo Deus, como é acusado o pobre padre José Pedro por seus superiores hierárquicos.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Capitães da areia. - Jorge Amado.

A cada livro de Jorge Amado que leio, mais me impressiono com ele. Seus livros são um relato dramático dos problemas sociais que este país viveu e que continua vivendo. E Jorge Amado, como fervoroso militante comunista, toma posição. O seu olhar sempre está voltado para os mais fracos e desvalidos. Seus livros são ao mesmo tempo denúncia e anúncio. Denúncia da realidade social indescritível e anúncio de novos tempos, tempos construídos a partir de uma fé inabalável, pela tomada de consciência, pela organização coletiva e por lutas que revolucionem as estruturas da sociedade, que de injustas, passem a ser, apenas e simplesmente justas, humanas. Capitães da areia deve ser o mais dramático dos relatos sociais de Jorge. Pode até não figurar entre os seus grandes livros, mas o tema abordado é o mais atual possível. Trata das crianças abandonadas que teimam em sobreviver.
Os meninos abandonados de Salvador e a sua dramática história. Os Capitães da areia, de 1937. Por que será que este livro é tão atual?

Teimar em sobreviver. Este é o único drama destas crianças. Se a vida já é difícil para crianças que vivem a normalidade da vida de criança, com as suas dependências de cuidados materiais e afetivos atendidos em um lar, imaginem as condições em que tudo isso é negado. Sobreviver exige astúcia destes meninos. Para atender a mais primária das necessidades humanas, que é a de comer, eles precisam encontrar formas para tornar isto possível. A forma se dará pela convivência e pelo estabelecimento de regras de convivência, numa ética própria, fora das convenções da ordem estabelecida. Zélia Gattai dá uma pequena nota ao final do livro, falando da convivência de Jorge estes capitães da areia: "A temática das crianças que vivem nas ruas continua bastante atual. Para escrever Capitães da areia, Jorge Amado foi dormir no trapiche com os meninos. Isso ajuda a explicar a riqueza dos detalhes, o olhar de dentro e a empatia que estão presentes na história".

A história dos capitães começa com notas de jornal sobre crianças ladronas e cartas de leitores sobre a nota do jornal. As cartas são do chefe da polícia, do juiz de menores, que se culpam mutuamente por não poderem dar solução ao problema, por uma mãe de um menor e pelo padre José Pedro, que acusam o reformatório (olhem o nome) e o seu diretor. O diretor responde com um auto-elogio ao seu trabalho e com acusações contra o padre. O padre é uma das figuras mais humanas do livro.
Capa da primeira edição de "Capitães da areia", editado pela José Olympio Editora, com ilustrações de Poty.

Os capitães da areia vivem num trapiche abandonado nas proximidades do cais. A história destes capitães se repete em cada uma das crianças que se juntaram em torno deste trapiche abandonado. Não tem pai, não tem mãe, não tem afeto, não tem carinho, não vislumbram um futuro e vivem escorraçados pelas ruas de Salvador, pelas pessoas da "ordem".  Pedro Bala é o seu líder. Outros personagens, são João Grande, Sem-Pernas, Gato, o Professor, Volta-Seca, entre outros. Tem entre oito e dezesseis anos e sobrevivem de pequenos furtos, cometidos nas casas  ou contra pessoas desatentas nas ruas. Possuem um mundo com leis próprias. Os sentimentos coletivos prevalecem na sua organização. Furtos entre companheiros não são tolerados e os "lucros" obtidos são repartidos, assim como também as diferentes tarefas. Uma única menina fará parte, a menina Dora. O ódio também é comum a todos e se volta contra todos aqueles que provocam a sua situação.
Ordem policial de apreensão do livro. Tempos do Estado Novo. Em vez de resolver o problema, queimaram o livro.

Algumas pessoas formam o entorno de sua convivência. Querido-de-Deus é dono de um saveiro, capoeirista e amigo. Padre José Pedro se faz amigo para aproximá-las de Deus. Assume posições que não condizem com as da Igreja, tão zelosa no cumprimento da ordem. Don'Aninha é uma mãe de santo a quem constantemente recorrem. São as poucas pessoas de quem recebem um pouco daquilo que a sociedade lhes nega e por não as terem, são por ela condenados. O padre José Pedro merece algumas palavras especiais. Ele é um prenúncio da teologia da libertação. O seu trabalho recebe a repreensão de seus superiores hierárquicos que o punem, lembrando-lhe a sua pouca inteligência para entender os mistérios e os desígnios divinos e não lhe dando uma paróquia para cuidar. Desvia dinheiro doado por beatas, para a compra de velas, para comprar comida e remédio para as crianças. Consegue um grande feito. Um menino, o Pirulito, reza e quer ser padre.

Mas a força do livro reside em dois personagens centrais, em torno dos quais se constrói uma história de amor.  Pedro Bala e Dora. Pedro Bala ouve contar a história de seu pai. Ele foi morto no cais, numa greve, lutando por direitos. Esta história o acompanha e o move. Dora tem sua mãe vitimada pelo alastrim, uma bexiga branda. Quem era acometido pela doença era levado para o lazareto, lugar de morte certa. Dora fica  sozinha no mundo, com o irmãozinho, Zé Fuinha. É acolhida pelos capitães. Primeiro querem dividi-la em seus prazeres, depois tomam as suas dores. Ela permanece no grupo. Passa a ser um deles. Num assalto são presos Pedro Bala e Dora. Pedro Bala é mandado para o reformatório. Este será descrito em 20 páginas de terror. Os capitães o libertam. Dora é conduzida ao orfanato. Lá lhe fazem o que os capitães não lhe fizeram. Também é resgatada pelos meninos do grupo, mas arde e se consome em febre. Antes de morrer entrega o corpo a Pedro Bala, numa simbologia de casamento.

Dora é o toque de carinho que o grupo recebe. Ela é a irmã, ela é a mãe, ela é a esposa. Ela é o que mais lhes faltava, um pouco de cuidado e de carinho. Ela afaga, ela limpa ferimentos, ela faz curativos, ela costura roupas. Ela é irmã, ela é mãe, ela é esposa. Após a sua morte, o Querido-de-Deus a leva para o mar, junto de Iemanjá e se transformará numa estrela.
Os livros de Jorge Amado são queimados. Motivo. São considerados propagandistas do credo vermelho.

Os principais personagens vão seguindo o seu destino. O professor será pintor, no Rio de Janeiro. Gato leva Dalva para Ilhéus. Lá aplicarão golpes nos coronéis. Volta Seca integrará o grupo de Lampião e Pirulito fica padre. Sem-Pernas morre numa fuga, mas livrando os companheiros da prisão. Boa-Vida vira artista popular. E Pedro Bala? 

A última ação praticada pelos capitães é uma intervenção deles numa greve dos bondes em Salvador. São convocados para impedir que contratados de última hora substituam os trabalhadores em greve. Sua ação seria a de impedir os fura-greves de substituírem os grevistas. Pedra Bala comandará a ação. A partir dessa ação Pedro Bala, relembrando a história da morte de seu pai, encontrará o seu destino. Organizará trabalhadores, greves e lutas, acreditando que nem o ódio, nem a bondade mas somente a luta poderá mudar os destinos e abolir as injustiças no mundo.

Tem mais uma coisa, uma das coisas mais lindas do mundo. O livro é dedicado a Anísio Teixeira, amigo das crianças.






terça-feira, 14 de maio de 2013

São Jorge dos Ilhéus. Jorge Amado.

A primeira coisa a dizer é que São Jorge dos Ilhéus é rigorosamente uma continuação de Terras do sem-fim. Enquanto este trata da luta pela posse da terra, com guerras entre os coronéis e os famosos caxixes pela posse das terras, o São Jorge dos Ilhéus é uma luta posterior, pela posse definitiva destas mesmas terras, até que um dia elas sejam posse coletiva, conforme a vontade de Jorge e de seu Partido. O livro terminou de ser escrito em 1944. Já em 1945 Jorge Amado seria eleito deputado constituinte pelo Partido Comunista do Brasil, pelo estado de São Paulo. Trata-se, portanto, de literatura absolutamente engajada, cheia de fervor comunista.
O cacau passa da mão dos coronéis para a mão dos exportadores, em aliança com o capital internacional. Isto é São Jorge dos Ilhéus.

Se Jorge ameniza  relativamente com relação aos coronéis na briga pela posse da terra, ele não poupa, de maneira alguma, os vorazes exportadores, que não se contentam com o menos. Simplesmente Ilhéus inteira deve lhes pertencer, aliás, não só Ilhéus, mas toda a zona cacaueira. Precisam criar raízes na terra, como afirmam e, isso só poderá ocorrer, se amealharem para si todas as terras. Para isso terão que ser muito mais astutos que os velhos coronéis e também muito mais violentos, embora com outros métodos. O livro passa por diferentes etapas.

O livro é estruturado em duas grandes partes. Na primeira a terra dá frutos de ouro e na segunda, a terra muda de dono. A terra dando frutos de ouro ocupa quatro capítulos, enquanto que, já com os donos trocados, apenas um capítulo segue. 

Na primeira parte é mostrada a rainha do sul, a terra do ouro do cacau e de todo o movimento em torno dele. Creio que a transposição de Gabriela para a televisão, dá uma boa mostra dos prodígios causados pelo cacau, em seus tempos de alto preço. Do quanto ele revolucionou esta sua terra, adubada com tanto sangue. Na segunda, são apresentados os lavradores, que estarão presentes no decorrer de toda a obra. Quase todos eles são remanescentes de Terras do sem-fim. A beleza das roças é contrastada com a dureza do trabalho, especialmente aquele realizado nas estufas, onde os trabalhadores morrem estuporados.Também é mostrada a ilha das cobras, onde o progresso não chega. É o bairro onde moram os trabalhadores e os demais desvalidos da sorte.
Capa da primeira edição de São Jorge dos Ilhéus. O livro foi lançado em 1944, pela Livraria Martins Editora.

Na terceira parte todas as conversas giram em torno das previsões de tempo. Anuncia-se uma chuva benfazeja para o cacau. Todo o povo sabe ler os seus sinais, tanto no céu, quanto nos ventos e, ainda, no comportamento dos animais. Jamais erram como as previsões científicas dos dias de hoje. E todos também já antecipam gastos por causa da chuva e da boa safra que virá em consequência. Na catedral e no candomblé se realizam agradecimentos pela chuva. Um novo tema toma conta de toda a cidade: a alta do cacau. Os preços sobem rapidamente dos vinte  para os cinquenta contos por arroba. É a quarta parte do livro. A cidade se engalana em um burburinho só. Luxo e luxúria não tem limites. Apenas os volantes, distribuídos clandestinamente, alertam para um perigoso jogo, no qual exportadores  se associam com o imperialismo internacional. Os liberais se associam aos americanos e os integralistas com os alemães. Os coronéis desprezam os volantes, coisas de comunistas, e começam o seu endividamento. Vidas antes austeras, voltadas para o futuro se dissolvem nos gozos do presente. Todos os desejos passam a ser financiados pelos exportadores. Não há porque, para adiar prazeres. 

A alta para ter a aparência irreversível, precisaria durar. E assim foi por quatro anos. Quando todos os exageros e irresponsabilidades estavam no auge vem, sem explicações, a baixa. É a segunda parte do livro e o seu quinto capítulo. A baixa vem arrasadora e inacreditável. Sucessivamente cai de 50 para 47, para 30, para 25, para 15, para 11 e até para 8. Os coronéis, que antes eram vistos como tímidas crianças se transforaram agora em crianças aterradoras. Não há explicações. Alguns poucos lembram dos volantes distribuídos pelos comunistas, alertando para o jogo. Milionários são transformados em mendigos. Os trabalhadores são dispensados. A cidade volta ao estoicismo e para a castidade, embora a oferta de prostitutas fosse muito maior.
Jorge recebe ilustres visitas na região cacaueira. Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir. 

Os exportadores, antes tão amáveis, se transformam agora em comerciantes racionais e "responsáveis". Querem reaver o dinheiro emprestado e, com rapidez. O seu objetivo são as terras. Afinal, na terra precisavam plantar raízes. Se tornam também senhores da política e da justiça. Apenas o coronel Horácio Silveira ainda consegue fazer caxixe, mesmo sendo Silveirinha, o seu filho, sua vítima. Os trabalhadores só não vão todos para o cangaço pela ação aglutinadora de Joaquim, o trabalhador que há muito, já se suspeitava ser o autor dos volantes clandestinos distribuídos pela cidade. Apenas um casal, o capitão João Magalhães e Dona Ana Badaró, não entregam as terras e são mortos por jagunços, agora fardados de policiais.

Histórias de amor correm paralelas e todas tem objetivos bem definidos. Um triângulo amoroso é formado pelo exportador Carlos Zude e sua esposa Julieta. Como ele tem todas as suas ocupações voltadas para os negócios, ela se ocupa com o poeta Sérgio Moura. O poeta é simpatizante dos comunistas e por ele estas ideias chegam e seduzem a Julieta. O outro triângulo é formado por Pepe e Lola, um casal de argentinos falidos, sendo Pepe o cafetão de Lola. A fuga da polícia os levou até Ilhéus. O golpe mais comum que aplicam era o "pulo dos nove", que aplicaram no coronel Frederico Pinto. Jorge aproveita estas histórias para penetrá-las de conceitos morais da grande e da pequena burguesia, com os seus valores decadentes e mercantilizados.

Ao final do livro seguem algumas páginas de posfácio, escrito por Antonio Sérgio Alfredo Guimarães. Ele fala da recepção da obra. Jorge, sob as influências de Gilberto Freyre inova e revoluciona a nossa literatura, junto com José Américo de Almeida e o próprio Gilberto Freyre. Sua literatura é apresentada como reportagem social, como documentação da vida regional, sendo assim simultaneamente sociologia e literatura, romance e história. Depois de São Jorge dos Ilhéus a sua literatura também passou a ser vista como mero "folhetim socializante".

Mas vejamos um trecho de Antônio Sérgio em que ele apresenta a tese do romance:"Diante do fracasso dos coronéis em reproduzir-se como classe dominante - seus filhos são tão incapazes quanto eles para lidar com a economia imperialista que assoma-, os exportadores assumem o comando. Estes trocaram os caxixes primitivos pela trapaça financeira, em que o jogo da bolsa de valores passa a ser o lócus mais visível da acumulação financeira imperialista. O comando sobre a economia, entretanto, só pode completar-se pela propriedade da terra, garantindo o controle da produção...".

Creio que vale a pena dizer que Jorge Amado é filho de um coronel do cacau e que nasceu em Itabuna. Portanto, conhecia a realidade local com muita propriedade. O livro foi escrito em 1944.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Treze de maio. Uma contextualização dos acontecimentos.

A monarquia brasileira pouco ligava para a questão da abolição, apesar de todas as pressões internacionais para que uma atitude fosse tomada. A questão até dificultou arrumar namorado para as princesas, mas resolvida este problema, as medidas protelatórias vinham se sucedendo. A monarquia não gostava de governar. Quando os conflitos se avolumaram o casal Gastão e Isabel estavam na Europa, sem pretensões para voltar tão cedo e o Imperador precisaria urgentemente repousar e cuidar de sua saúde, também na Europa. Sofria horrivelmente as consequências da diabetes. A volta do casal foi apressada. Em 30 de junho, finalmente D. Pedro II pode viajar.
O Castelo de papel, livro do qual tiramos as referências básicas para este texto.

Aqui governava o ministério conservador, presidido pelo Barão de Cotegipe, ultra conservador e o mais ferrenho escravagista que havia. Impunha até dificuldades para a aplicação da Lei dos sexagenários. Todos comiam pelas suas mãos. A primeira questão a ser enfrentada, já na ausência do Imperador foi a questão militar, que enfraqueceu o ministério Cotegipe. Isso acelerou a campanha em favor da abolição. Vozes se multiplicavam e outras falavam ainda mais fortemente. Destaques especiais para Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e Rui Barbosa. Estes incitavam o casal para que tomasse a dianteira.

Como não estavam afeitos a governar, o casal não se ausentava completamente da questão. Nutridos por sentimentos ultra católicos, transmontanos, Isabel  além dos cuidados com os filhos se empenhava em campanhas de caridade, arrecadação de óbulos e organização de desfiles para arrecadar fundos para comprar a liberdade de escravos. Tomou até consciência que estes atos tinham pouco valor, pois, em breve todos seriam libertos. Mas jamais imaginava que tudo estaria já tão próximo. Isabel chegou até a acoitar, em sua casa em Petrópolis, três negras que haviam fugido. Isabel era uma católica fanática, uma beata. Não sabia que podia libertar os escravos pela lei. Acreditava mais na caridade.
Em virtude do tratamento de saúde do Imperador, na Europa, a princesa Isabel se tornou a personagem central da abolição.

Cotegipe ficava impassível em seu posto. Quando Isabel lhe cobrava sobre a abolição, invocava a doença do Imperador, que poderia se agravar, lhe levando essas preocupações. Isabel não tinha vontade própria. Estava até disposta a trabalhar, mas sem se cansar. Quanto mais aumentavam as pressões, mais ela acreditava e se dedicava aos atos de caridade. As pessoas caridosas que colaboravam com as campanhas eram agraciadas com camélias, flor que se tornou símbolo das campanhas abolicionistas. Mas uma ideia ela tinha clara. Se a abolição fosse decretada, não poderia vir acompanhada de qualquer tipo de indenização. As finanças do Império não o comportavam. A guerra do Paraguai arruinara as suas finanças.

As ruas estavam para lá de agitadas. Falava-se em avalanches e vulcões negros, referindo-se a fugas e organizações quilombolas que aconteciam e se intensificavam diariamente. Muitos abolicionistas apelaram para o lado católico de Isabel, aumentando assim as pressões. Joaquim  Nabuco chegou a ir a Roma, pedir ao papa Leão XIII, para que excomungasse os proprietários de escravos. O papa não se encabulou em lavar as mãos, dizendo ser este um problema que caberia aos brasileiros resolver.
Camélia, a flor símbolo da abolição.

Os acontecimentos se precipitaram com uma agitação policial, em que a polícia se excedeu em suas funções de reprimir manifestações. Isabel acusada, foi tirar satisfações de Cotegipe, que não a ouviu, dando guarida aos policiais. A questão terminou em renúncia coletiva do ministério. Um novo ministério foi formado, ainda no âmbito dos conservadores. João Alfredo era o novo presidente, contando com o apoio de Cotegipe.

Isabel em sua Fala do Trono em três de maio de 1888, fala abertamente em "extinção do elemento servil pelo influxo do sentimento nacional". João Alfredo mal assumira e recebe uma comissão de deputados paulistas que queriam a abolição imediata, incondicional e sem cláusula de serviço. E na sessão de abertura da nova sessão legislativa, o ministro da agricultura, o paulista Rodrigo Antônio da Silva, apresentou  o projeto da abolição incondicional. Uniram-se conservadores e liberais numa aliança em torno da abolição. 83 votos foram dados contra a escravidão e apenas 9 votos foram dados em contrário. Em sete dias estava liquidada a questão.

De Petrópolis, num domingo, treze de maio, desce a princesa Isabel rumo ao Paço Imperial, para apor sua assinatura no documento, dizendo que apesar da doença do pai este era um dos dias mais felizes de sua vida. No ato ela estava vestida de branco-pérola e rendas valencianas e para a assinatura da lei usou uma caneta cravejada de brilhantes. Em troca ganhou um buquê de camélias e violetas e de Cotegipe uma frase preocupantemente profética. "Redimiste, sim, Alteza, uma raça; mas perdeste vosso trono". De José do Patrocínio ganhou o título de "Redentora". Um pouco mais de 700.000 escravos foram libertos com a lei. Desses, em torno de 300.000 trabalhavam na lavoura.

Enquanto os escravocratas espumavam de raiva e clamavam por indenização, Rui Barbosa fazia as perguntas mais pertinentes: "Essa multidão que anteontem saiu do regime servil e rompeu com ele, de que modo viverá, a que ramo de trabalho consagrará sua atividade? Virão para os centros - a Corte e grandes cidades - figurarem como novos e avultados elementos de perturbação? A cargo de quem ficarão os velhos e as crianças? Creio ter sido Joaquim Nabuco quem teve a melhor visão sobre o problema. Em  O Abolicionismo trata da questão, procurando estabelecer políticas de Estado para integrar os negros libertos na sociedade produtiva. Os principais instrumentos seriam a reforma agrária e escola de qualidade. Outro que dedicou grande parte de sua inteligência ao problema foi Florestan Fernandes.

Políticas afirmativas, também chamadas de medidas reparadoras, só a partir de 2002 com a política de cotas, instituídas no Governo Lula. Quanto ao título de Isabel - de Redentora, - este caiu praticamente no esquecimento. Dois anos após o 13 de maio de 1888, as lojas do Rio de Janeiro ofereciam 13% de desconto nas compras, sem referência à data ou à princesa. Eu só lembro de uma rua em São José dos Pinhais, que na placa de nome de rua em homenagem a princesa, o seu nome vem acompanhado com o título de "A Redentora". Isabel teve méritos na abolição ou ela foi mais fruto do acaso, ou das pressões inerentes ao próprio processo histórico?  Como perguntar é mais importante do que responder, paro por aí.


quinta-feira, 9 de maio de 2013

Os Subterrâneos da Liberdade. 3 - A luz no túnel.

O terceiro volume de Os subterrâneos da liberdade, a luz no túnel começa com pancadaria pura e braba. É tortura e mais tortura. O Dr. Fleury da época era o Dr. Barros e o médico legista Harry Shibata era o Dr. Pontes. Só que este não aguenta o tranco. Ele se suicida. É pancadaria em cima de pancadaria. tem uma cena em que uma criança é torturada na frente de seus pais. Mas ninguém entrega ninguém. As quedas dos camaradas, sempre se dão por traições, ou por alguns camaradas muito fragilizados.
O terceiro volume de "Os subterrâneos da liberdade". "A luz no túnel".  

Neste terceiro volume, ao menos em sua primeira parte, a impressão que ocorre é a de que a polícia saiu vitoriosa contra o Partido. O arquiteto Carlos e o historiador Cícero d'Almeida até se encontram com  Hermes Resende, para que este vá a Getúlio pedir o fim das torturas, ao que o intelectual se recusa, sob a alegação de que não quer dar prestígio a Vargas. O sociólogo vivia um momento de grande popularidade. O declínio do Partido se deu em função das muitas quedas de dirigentes, por causa da ação traiçoeira, de Saquila e, especialmente, de Heitor Magalhães, um antigo tesoureiro do Partido, expulso em função de desvios de dinheiro. Eles são acusados de trotskistas. Heitor denunciou todos os antigos camaradas à polícia. Heitor continuará corrupto, aproveitando-se da rentável indústria do anticomunismo, com o nome de solidariedade à Finlândia.

Importante parte deste terceiro livro é dedicado ao vale do rio Salgado. A tomada das terras dos caboclos pelo latifundiário Venâncio Florival e a instalação da empresa sob o domínio do banqueiro Costa Vale, desta vez será para valer. O consórcio com capitais americanos traz junto com a dominação econômica, a ação do FBI. Os debates são muito interessantes. Deles emanam os preconceitos. Os caboclos não servem para trabalhar, porque são frutos da miscigenação. Os negros, em seu estado original, ao menos serviam para trabalhar. É preciso trazer imigrantes. As conversas vão por aí. 
Jorge Amado na cerimônia em que recebe, em Moscou, o Prêmio Internacional Stálin da paz, em 1952.

No vale, os caboclos prometem resistência. Entre eles está Gonçalo. Ali ele plantara as sementes do Partido. O Partido também estará presente entre os operários da empresa, pela ação do negro Doroteu, aquele da greve de Santos, para ali enviado pelo Partido. A inauguração da Companhia é adiada por duas vezes. Durante as obras ocorre greve e os caboclos se organizam em torno de táticas de guerrilhas. Mas são vencidos. Gonçalo é dado por morto, mas quem morre é um outro camarada. Gonçalo, na reconstrução do Partido, receberá a tarefa da organização dos camponeses.

Também por parte dos trabalhadores ocorrerão interessantes debates. As dúvidas do arquiteto Carlos, que recebe a missão de organizar uma revista, para atrair os intelectuais, ao menos como simpatizantes do Partido. Carlos compartilha esta missão com o historiador e escritor Cícero d' Almeida. Das discussões fica evidente que a direção do Partido deve ser confiado a operários, a essência do que é a classe trabalhadora. A URSS é apresentada como a única possibilidade de derrotar a Hitler e o monstro do nazismo, mas os intelectuais tem dificuldade de compreender o comportamento soviético no Tratado de Munique, quando os sudetos tchecos são entregues a Hitler. Mas o Partido tem interpretação convincente.
Cena do dia 7 de novembro de 1940, data do julgamento de Prestes e do momento que encerra a trilogia de "Os subterrâneos da liberdade".

O livro e a trilogia se encaminha para o final, quando Vítor chega a São Paulo, vindo da Bahia, para reorganizar o Partido. Os diretores presos são condenados e enviados para a Ilha de Fernando de Noronha. Para a reconstrução Vítor conta com Mariana e umas poucas pessoas a mais. Maria e João tiveram um filho, mas João, depois de julgado, recebe a condenação de oito anos de prisão. Neste entremeio ainda se casam Carlos e Manuela e Manuela se propõe a fundar um balé nacional. Recebe, inclusive, a sugestão de ir a Salvador para estudar as danças afro e, incorporá-las ao seu balé.

Já ao final, o Partido está praticamente reestruturado e todo o entusiasmo com esta situação é mostrada por um operário idoso, que chega em casa, junto ao leito de sua esposa, que estava enferma. O velho operário, durante o seu dia vira volantes e pichações dando vivas a Prestes e abaixos para Getúlio. O partido havia renascido. A velha companheira do operário, diante das novas trazidas por este, exulta: "Eu quero ficar boa... Agora que eles voltaram, vale a pena viver. Noutras casas, inúmeras pobres casas onde faltava o necessário para o jantar, a mesma luz de esperança renascia no relato emocionado de um operário que contava sobre as inscrições e as bandeirolas ou que lia as ardentes palavras do volante. Novamente o Partido estava com eles, era como uma luz no túnel. Reparem que o título do terceiro volume se chama a luz no túnel.
Apolônio de Carvalho é o tenente Apolinário, que aparece nos três volumes da trilogia. Foi heroi na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa, além de suas lutas no Brasil. É dele a ficha número um, da inscrição no Partido dos Trabalhadores.

Vítor também explica ao camarada Ramiro a força do Partido: "É por isso que o nosso Partido é imortal e invencível, Ramiro. Não é que nós sejamos uns super-homens... Somos homens com qualidades e defeitos; o que nos diferencia dos demais é pertencermos ao Partido. É dele que nos vem toda a nossa força. Das ideias que são a sua razão de ser; a felicidade do homem sobre a terra, a criação de um mundo sem fome e sem dor. É por isso que ninguém jamais, nenhum chefe de polícia, nenhum Hitler, ninguém pode nos vencer. Porque nós amamos a humanidade, lutamos por ela, o homem é nosso capital mais precioso. Por isso nosso Partido é imortal e invencível, porque comunismo significa vida, elevação do ser humano. Ninguém os poderá aniquilar jamais, Ramiro, ninguém".

O livro se encerra com uma cena do dia 7 de novembro de 1940. É o dia de julgamento de Luís Carlos Prestes. O juiz dá a palavra a ele e ele a aproveita para afirmar a sua crença: "Eu quero aproveitar a ocasião que me oferecem de falar ao povo brasileiro para render homenagem hoje a uma das maiores datas de toda a história, ao vigésimo terceiro aniversário da grande Revolução Russa que libertou um povo da tirania.

Apenas, para lembrar. A trilogia é literatura engajada. Jorge, com a sua escrita, atende a uma determinação do Partido e a escreve no auge de seu ardor militante, logo após ter recebido o Prêmio Internacional Stálin da Paz. A leitura desta trilogia foi algo mais do que fascinante.




quarta-feira, 8 de maio de 2013

Os Subterrâneos da Liberdade 2. - Agonia da Noite.

No encerramento de os ásperos tempos, Jorge Amado deixa a abertura na imaginação para nos envolver com duas histórias que estariam por acontecer. A primeira ocorreria no chamado porto vermelho de Santos e a segunda, no longínquo vale do rio Salgado, onde as jazidas de manganês começariam a ser exploradas. No vale, onde estava o latifúndio de Venâncio Florival, os caboclos precisariam ser varridos de suas  terras  mas aí encontram a  heroica resistência de Gonçalão. Em Santos, toda a expectativa gira em torno da greve dos portuários, desafiando a Constituição do Estado Novo, com a recusa do embarque de café, doado por Vargas, ao colega ditador espanhol, o general Franco. Um ato de solidariedade internacional dos trabalhadores.
O segundo volume da trilogia de "Os subterrâneos da Liberdade". - "Agonia da noite". 

A narrativa é dramática. No porto de Santos se dá o encontro de Doroteu com a sua negra Inácia. Deste amor deveria nascer o menino com o emblemático nome Luís Carlos, mas as patas de cavalo do exército brasileiro, matam tanto o menino por nascer, quanto a pobre negra Inácia. O café só será carregado depois de intervenção militar no porto, prisão dos líderes sindicais, morte de estivadores e o fuzilamento de três soldados, que como na abolição, se recusavam a cumprir ordens ignominiosas. Os soldados do exército é que farão a carga.

No vale do rio Salgado se contrastam as histórias de vidas humildes, que seguiam cumprindo os seus dias de miséria. Julgavam que assim estariam cumprindo os desígnios de Deus, até ouvirem as palavras iluminadoras e conscientizadoras de Gonçalão, que por ali estava em fuga e esconderijo, por causa da defesa dos índios, de que tivera notória participação nas terras da Bahia. Do outro lado estava o fausto e a ambição de Venâncio Florival, de amealhar para si todas as terras sem fim do vale, às custas do sofrimento dos caboclos.
Cópia da primeira edição do segundo volume de "Os subterrâneos da liberdade". Martins Editora.

Gonçalão, praticamente sozinho, detona com a primeira missão organizada por Venâncio, pelo banqueiro Costa Vale e acompanhada de técnicos americanos. Os aparelhos da comitiva são destruídos num incêndio, seguido de uma explosão. Depois disso Gonçalão começa a organizar o seu trabalho, reunindo naqueles confins, uma célula, uma luz de redenção, emanada do Partido. A maior parte desta história ainda sobra para ser contada no terceiro volume. Numa viagem de Gonçalão para Cuiabá, em busca dos camaradas, irá encontrar ali sementes de discórdia, de divisão do Partido, maldosamente trazidas por Heitor Magalhães, a serviço de Saquila. É a obra dos trotskistas. Gonçalão, apesar de toda a disciplina partidária, não consegue crer, que o Partido tenha mudado tanto. Em suas dúvidas, logo recebe os emissários do verdadeiro Partido. Heitor, no entanto, já conseguira fazer o maior estrago, que era a identificação de Gonçalão. Sobre os trotskistas sempre pairava a desconfiança de agirem em consonância com a polícia.

O livro também é entremeado por duas histórias de amor. Um amor puro e verdadeiro, cheio de sofrimentos,  é verdade, sofrimentos impostos pelas missões que o jovem casal, Mariana e João, recebe por parte do Partido. Todo o ascetismo e renúncia, no entanto, jamais impede a felicidade do jovem casal, que tudo sublima em função da nobre causa. A transcendência sempre aponta no horizonte. Do outro lado, Paulo e Manuela vivem um amor burguês. Manuela é uma jovem ingênua que acredita nos bons sentimentos de Paulo, encantado com a beleza e a graça da jovem. Mas Paulo quer, por meio do casamento, acertar a sua vida, já boa. Quer casar-se com a sobrinha da Comendadora da Torre, da emergente classe industrial paulistana. Os seus amores e os seus sentimentos obedecem a frios cálculos, sempre acompanhados e calculados por Shopel, o poeta católico.

O amor burguês é também cheio de sofrimento, pois, nem sempre os sentimentos acompanham os frios cálculos dos interesses. Que o diga a incauta jovem Manuela. A jovem está grávida e, toda apavorada, atende os conselhos do irmão Lucas, que não quer se indispor com Paulo, em função dos negócios, e consente em praticar o aborto. No drama em que vive, se encontra com a doce e meiga Mariana, de quem recebe as primeiras e autênticas palavras de conforto em sua vida. O complemento da história de Manuela também fica para ser contada no terceiro livro. O contraste dos sentimentos sobre o amor é uma das partes mais vivas do livro.O amor burguês é assim descrito pela visão ingênua de Manuela, depois de não resistir aos encantos de sedução de Paulo: "Afinal o que é o amor senão o desejo primeiro, a posse em seguida, e o cansaço infinito depois".
A imprensa popular anuncia "A história do próprio povo". Trata-se de "Os Subterrâneos da liberdade".

O livro é entremeado com as tramoias de Lucas Puccini e Eusébio Lima, que rapidamente vencem qualquer escrúpulo para enriquecerem. Schopel se torna mais asqueroso a cada página que passa. São 120 quilos do mais puro asco, Até ele quer se aproveitar de Manuela, fragilizada com as canalhices de Paulo. Sobra alguma coisa para o sociólogo Hermes Resende, identificado como Gilberto Freyre e também para o escritor Cícero d'Almeida, um comunista não tão ortodoxo, mas que continua aceito no Partido. É uma alusão ao historiador marxista Caio Prado Júnior, com a sua visão de conjuntura brasileira diferente da traçada pela terceira internacional. Para o Partido, é a visão intelectualizada e não real dos problemas.

Mas a mais triste das caracterizações  sobra para os inimigos internos do Partido. Saquila, ainda conserva  alguns traços de comunista, mas que rapidamente estão a desaparecer. É, no entanto, em Heitor Magalhães e em Camaleão que são descarregadas todas as excrescências e malevolências possíveis da humanidade. O segundo volume termina com a queda de vários companheiros do Partido pela ação traiçoeira destes dois antigos camaradas. Também o golpe integralista de 1938 não passa despercebido. Integralistas e armandistas, em conluio com os trotskistas atentam contra o Estado Novo de Vargas. A Notícia fica sob intervenção do Estado.

Ao longo da evolução da trama do livro um outro personagem também cresce enormemente em simpatia. Trata-se de Carlos, o arquiteto dos ricos, que de mero simpatizante, está se aproximando rapidamente do Partido. Agora é ele o protetor de Manuela. Na Espanha, o simpático Apolinário fica sabendo da solidariedade dos portuários de Santos, que não embarcam o café oferecido para Franco, para os falangistas. A armação para o terceiro volume está preparada para as novas dificuldades do Partido, após a queda de vários camaradas e para os confins do vale do rio Salgado e os conflitos camponeses nesta região, bem como a exploração imperialista, em torno das minas de manganês. Mas ele aponta firme para a luz no túnel.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Os Subterrâneos da Liberdade 1. - Os ásperos tempos.

Em 1954 é publicada no Brasil a trilogia de Jorge Amado, Os Subterrâneos da Liberdade. Os livros tem os seguintes sub-títulos: 1. Os ásperos tempos; 2. Agonia da noite e 3. A luz no túnel. No os ásperos tempos é retratado o período da decretação do Estado Novo, no Agonia da noite, os horrores deste período, enquanto que a luz no túnel, aponta para o farol soviético. A trilogia é literatura engajada, obedecendo ao estabelecido pelos soviéticos (Jdanov), de engrandecer o pensamento comunista como uma contraposição à podridão do pensamento burguês. Jorge cumpriu muito bem esta missão. Ele escreveu a trilogia no seu exílio, no castelo de Dobris nos arredores de Praga. Deve tê-la começado em 1952, após ter recebido o prêmio Stálin. Devia estar vivenciando o auge do seu ardor comunista.
O primeiro volume da trilogia "Os subterrâneos da liberdade" - "Os ásperos tempos". Um retrato do Estado Novo.

O período retratado é um dos períodos mais escabrosos da história mundial, que no Brasil é representado pelo Estado Novo e pelo namoro que este sistema mantem com as forças nazistas, fascistas, franquistas e salazaristas, dentro da conjuntura internacional. Mostra bem a indefinição de Vargas, dividido entre as forças ditatoriais europeias e o imperialismo americano. No primeiro livro são apresentados os preparativos para o golpe e a concretização do mesmo. O Estado Novo, dentro da perspectiva do real, é apresentado em sua forma mais cruel. Um massacre contra a heroica classe trabalhadora.

A nova conjuntura, porém, atrapalhou a recepção da obra. Já em fevereiro de 1956 o mundo fica estarrecido pelas revelações bombásticas do XXº Congresso do Partido Comunista Soviético. Kruschev escancara os crimes cometidos por Stalin e a ética comunista perde muito do seu encanto. Um enorme abalo na inabalável fé dos militantes comunistas. Os comunistas brasileiros, por sua vez, se perdem cada vez  mais em suas complicadas análises de conjuntura e em consequência, no estabelecimento de suas estratégias de ação política. As diretrizes para estas análises tem a sua origem nos ditames da Terceira Internacional. Divergências internas se tornam cada vez mais escancaradas e insuperáveis. O próprio Jorge, na volta ao Brasil, abandona a militância comunista, mas jamais a sua fé.
Jorge Amado recebendo o Prêmio Stálin da Paz, em reconhecimento de sua literatura.

A maioria dos personagens que comparecem nos livros da trilogia, são personagens reais da política brasileira. Os demais são de fácil identificação. Daniel Aarão Reis, ao final do terceiro volume, nos ajuda a conhecer e reconhecer os personagens e a contextualizar a obra, num belo posfácio. Os principais personagens são reais: Getúlio Vargas, Armando Sales de Oliveira, Plínio Salgado e Luís Carlos Prestes. Daniel Reis nos auxilia na identificação de Shopel, como sendo o poeta católico e editor Augusto Frederico Schmidt, do proprietário de jornal  A Notícia, Antônio Alves Neto, como sendo Júlio de Mesquita Filho, o proprietário do Estadão e em Saquila, o importante líder trotskista, Hermínio Sachetta. Enquanto isso o simpático tenente Apolinário é Apolônio de Carvalho, que está rumando para a Espanha para combater as falanges franquistas e Vítor é o dirigente do partido Diógenes Arruda, a quem o livro é dedicado. Ele aparecerá mais ao final.

Os primeiros capítulos de Os ásperos tempos são ocupados com as preocupações da elite paulistana, tramando contra Vargas, em torno da candidatura de Armando Sales de Oliveira e que, ao mesmo tempo também, está se borrando de medo, diante da perspectiva de golpe a ser deflagrado por Getúlio. Sentimentos de traição e lealdade flutuam a mercê de cálculos de vantagens sonantes a serem obtidos dentro dos diferentes cenários. 

Os personagens do cenário burguês são os velhos paulistas quatrocentões, os políticos que os representam,   e o poderoso banqueiro Costa Vale, diante do qual todos dobram os seus joelhos. Os emergentes são representados pela comendadora da Torre, importante industrial do ramo da tecelagem. As maiores ironias, de acordo com a minha leitura, recaem no entanto, sobre o poeta Schopel, que, por dinheiro é absolutamente capaz de tudo, inclusive, ser leal e sobre Antônio Alves Neto, diretor do jornal A Notícia, eternamente apavorado pelo medo. A parte mais romanceada da obra recai sobre Paulo, jovem e irresponsável diplomata, filho de deputado, que além do nome pomposo - Paulo Carneiro Macedo da Rocha, pouco tem. Paulo se enamora de Manuela, irmão de Lucas, que tudo faz para sair da pobreza. Paulo e Manuela são a encarnação do amor burguês e todas as vicissitudes que ele envolve. Manuela é uma pobre menina bonita, enganada pelo canalha Paulo. Mais tarde ela se encontrará com os comunistas.
Na foto acima, está o tenente Apolinário,  Apolônio de Carvalho, na vida real. Em baixo, Carlos, ou Carlos Marighella, 

Os personagens comunistas se centram em torno da doce operária Mariana, filha de um pai comunista, baluarte do partido. Mariana organiza greves, células e a sua bravura e lealdade a elevam a condição de estafeta da direção do partido, missão que ela cumpre com galhardia. Se envolve afetivamente com o camarada João, com quem se casa. O casal vive com os sofrimentos que lhe são impostos, especialmente a separação, em função das missões recebidas pelo Partido, mas vivem em transcendental felicidade, que a finalidade da luta lhes dá. Outros personagens que logo ganham a enorme simpatia do leitor são o tenente Apolinário, o lendário cidadão honorário espanhol e francês, honraria em função de sua bravura na Guerra Civil Espanhola e nas lutas da Resistência Francesa, o velho Orestes e o Gonçalão. Este ainda deverá ganhar destaque no segundo livro, pois as lutas em torno do Vale do Rio Salgado (Doce) ainda estão por começar. Também está para começar a luta dos trabalhadores do porto vermelho de Santos, para não embarcar o café brasileiro doado por Vargas ao ditador espanhol, o general Franco.

Sobra ainda a grande polêmica com o pessoal de esquerda, mas que não se enquadra na ortodoxia do Partido. É o caso do confuso e vacilante líder trotskista Saquila, que trabalha no jornal de Antônio Alves Neto. Lê a conjuntura e o mundo com os olhos de seu patrão. Representa a confusa participação dos intelectuais no Partido, destituídos da visão da classe operária. Torpe mesmo é o personagem Camaleão, trazido ao Partido por Saquila.

O livro é maravilhoso. O meu interesse na sua leitura é primordialmente entender este período histórico em sua conjuntura, tanto nacional, quanto internacional e em especial, ver esta história sendo contada do ponto de vista de um comunista ortodoxo e, acima de tudo, brilhante e reconhecido escritor. E vamos à leitura de Agonia da Noite.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Os Subterrâneos da Liberdade. Jorge Amado. - Uma Introdução.

Nesta semana eu tive uma bela aventura literária, histórica e também, porque não, ideológica. Li, assim de vez, a trilogia de Jorge Amado, Os Subterrâneos da Liberdade: 1. Os ásperos tempos; 2 Agonia da noite e 3. A luz no túnel. O livro foi escrito no exílio, entre os anos de 1952/3, no castelo de Dóbris, da União dos escritores Tchecos, nos arredores de Praga. A sua publicação, no Brasil, ocorreu em 1954, pela Livraria Martins Editora. Em 1952, Jorge Amado também recebera o Prêmio Internacional Stálin pela Paz. Em Dobris, Jorge gozava de boas companhias, pois, ali se exilavam comunistas de renome, do mundo inteiro.
A Trilogia, "Subterrâneos da Liberdade": 1. Ásperos tempos; 2. Agonia da noite ; 3. A luz no túnel.

Escrever Os Subterrâneos da Liberdade foi uma missão que Jorge recebeu do seu partido, o partido comunista do Brasil, o PCB, ou simplesmente, o Partido entre os militantes ou Partidão, como ficou genericamente conhecido. Jorge era um dos militantes mais fervorosos, tendo sido, inclusive, deputado constituinte em 1946. Com a perda dos mandatos e a cassação do partido, ele entra na ilegalidade e Jorge vai para o exílio, primeiro em Paris e depois em Dobris, Praga, onde escreverá o livro. 
O primeiro livro da trilogia. Os ásperos tempos.

Quem quiser saber um pouco sobre o Jorge Amado militante, pode ler Jorge Amado, um baiano romântico e sensual, livro de depoimentos sobre Jorge, dados pela esposa Zélia Gattai, pelo filho João Jorge e pela filha Paloma. João Jorge dá as referências mais específicas à militância e, de como o seu credo comunista, ortodoxo no começo e, como devoto posteriormente, era transmitido para os filhos. Zélia Gattai, em outro livro Jardim de Inverno, conta sobre a tarefa da escrita do livro e também da visita de um dirigente comunista brasileiro, tentando impor censura ao livro. O dirigente é Diógenes Arruda, importante personagem do livro, Vítor, que reconstroi o Partido, depois que a polícia do Estado Novo anuncia a sua destruição. A este dirigente Jorge dedica o livro. As suas sugestões de cortes, de censura partidária, não foram acatadas por Jorge.

Bem, falei de uma aventura literária e histórica. Creio que da ideológica eu já falei: a missão dada a Jorge pelo Partido. Para não haver dúvidas, vamos a parte final do terceiro livro. Ali está a grande tese do livro. Depois que a polícia do Estado Novo anuncia o fim do comunismo no Brasil, um velho militante encontra em pichações e volantes distribuídos nas ruas, - com vivas a Prestes e abaixo Vargas, - chega em casa e, anuncia para a esposa doente, que o comunismo não estava morto e, ela então abriu os olhos e exultou: "Eu quero ficar boa... Agora, que eles voltaram, vale a pena viver. Noutras casas, inúmeras pobres casas onde faltava o necessário para o jantar, a mesma luz de esperança, renascia no relato emocionado de um operário que contava sobre as inscrições e as bandeirolas ou que lia as ardentes palavras do volante. Novamente o Partido estava com eles, era como uma luz num túnel". O título do terceiro volume é exatamente a luz no túnel.
O segundo livro da trilogia. A agonia da noite.

Quanto a parte histórica e política ela é delimitada aos antecedentes da proclamação do Estado Novo, no Brasil, em 1937 e termina no dia 7 de novembro de 1940, quando Prestes é levado a julgamento e, quando lhe é dada a palavra ele fala simplesmente o seguinte: "Eu quero aproveitar a ocasião que me oferecem de falar ao povo brasileiro para render homenagem hoje a uma das maiores datas de toda a história, ao vigésimo terceiro aniversário da grande Revolução Russa que libertou o povo da tirania..." E, um juiz, quase histérico lhe corta a palavra.

Se o tempo histórico delimitado é curto, rico ele é, em acontecimentos. No cenário internacional a grande marca é a ascensão dos totalitarismos. Hitler está em franca ascensão. Recebe entusiasmados vivas da burguesia paulistana, enquanto que, os comunistas vêem na única URSS a única força que é capaz de detê-lo. Os comunistas nem mesmo se abalam com a entrega dos sudetos tchecos para Hitler, com a concordância dos soviéticos, pelo Tratado de Munique. Coisas de estratégia! Mas o cenário internacional é este. A guerra civil espanhola é o laboratório de guerra de Hitler, mas lá estão também as heroicas brigadas internacionais de solidariedade com os republicanos, formadas por comunistas do mundo inteiro e, entre eles o grande visionário, o tenente Apolinário, Apolônio de Carvalho.
O terceiro livro da trilogia. A luz no túnel.

No tempo histórico e político nacional, descortina-se o golpe do Estado Novo e a tentativa de golpe dos integralistas, entusiasmados com os sucessos de Salazar, Franco, Mussolini e Hitler. Dois cenários se revezam ao longo da narrativa. É uma luta do bem contra o mal. De um lado está a velha aristocracia paulista, a emergente burguesia industrial, os representantes do sistema financeiro, os gatunos oportunistas do novo governo, um grande dono de jornal,  intelectuais cooptados e o latifúndio. Estes estão a tramar, em meio a bebedeiras, leviandades e traições e, acima de tudo, de vibrações sem par, com as ações da polícia do estado Novo contra os trabalhadores, organizados pelo Partido.

No outro cenário se mistura a tristeza causada pelo sofrimento da opressão e da fome com a alegria e a esperança de que tudo melhorará, que os sofrimentos humanos causados pela opressão burguesa terão um fim, assim como já o tiveram na gloriosa União Soviética. O Partido será a grande luz a guiá-los. Em meio aos sofrimentos também acontecem emocionantes histórias de amor, cheias de ascetismos e renúncias, numa sublimação transcendental, em função da grande causa que os move.
Jardim de Inverno. Livro de Zélia Gattai, em que ela conta as memórias do exílio, entre elas, as passadas no castelo de Dobris, onde Jorge Amado escreveu "Os subterrâneos da Liberdade".

O livro também é extraordinário para a compreensão e interpretação dos fatos históricos. Aí estão retratados personagens importantes, como Caio Prado Júnior (Cícero d'Almeida), Gilberto Freyre (Hermes Resende) e Oscar Niemeyer (o arquiteto Carlos). O poeta e editor católico Augusto Frederico Schmidt, com o nome de Schopel, simplesmente é apresentado como, " 120 quilos de puro asco".

Os pontos altos na trama narrativa são os ligados a greve no porto de Santos, apresentado como o porto vermelho de Santos, onde se dá a primeira greve contra Estado Novo, quando os portuários se recusam a embarcar café, doado por Vargas, para as falanges espanholas de Franco e a luta contra a associação da burguesia brasileira e do sistema financeiro com o nascente imperialismo americano, a substituir o inglês, com a exploração do manganês no vale do Rio Salgado, em Mato Grosso. Apesar do deslocamento geográfico, é óbvio que Jorge trata do minério de Minas gerais, do vale do rio Doce.

A recepção ao livro, evidentemente, foi muito prejudicada por vários fatores de  fundamental importância, como o abalo causado pelas denúncias de Khrushchov, no XXº Congresso do PCU, em 1956, e a quebra da unidade no seu comando, especialmente após o golpe militar de 1964, quando o partido simplesmente se esfrangalha em facções sem fim. Aliás, ao longo de toda a trilogia, em nenhum momento, Jorge poupa os trotskistas, sempre apresentados como traidores do Partido. O maior ódio recai sobre um personagem chamado Saquila.  O Partido Comunista do Brasil, o PCB, que fora fundado em 1926, teve o seu fim decretado, nos anos 90, quando seus sobreviventes se reuniram em torno da sigla do PPS. e do seu líder Roberto Freire.