quinta-feira, 27 de julho de 2017

O Mulato. Aluísio Azevedo.

Estou terminando o meu estoque de livros comprados na pequena feira da Top Livros, uma feira de ponta de estoque, aqueles livros que encalham nas editoras. Agora foi a vez de O Mulato, do maranhense Aluísio de Azevedo. Dele eu já tinha lido O Cortiço (1890) e Casa de Pensão (1894). O Mulato é anterior, datado de 1881. Toda a ambientação do livro ocorre na cidade de São Luís, nos últimos anos do Império. Talvez resida aí um dos maiores valores do livro, um perfeito retrato da sociedade maranhense destes tristes tempos. Que horror.
O Mulato. Uma bela edição da Ediouro. A mão de Ana Rosa e Raimundo não podem se tocar.

A descrição desta sociedade cresce em importância devido ao fato de Aluísio Azevedo pertencer a escola naturalista, que tem exatamente na descrição detalhada de tudo, uma de suas mais importantes características. Aluísio de Azevedo nasceu na capital maranhense em 1857 e veio a morrer em Buenos Aires em 1913. Fez carreira de escritor no Rio de Janeiro, cidade onde também ingressou na carreira diplomática. O escritor pertenceu aos quadros da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira de número quatro.

O Mulato é o primeiro grande livro do escritor. Creio que sem erro podemos afirmar que O Mulato é o grande romance brasileiro da denúncia da existência de um forte racismo no Brasil. No caso, Raimundo, o personagem central, o mulato do título, é sobrinho de seu Manuel Pescada, rico comerciante e proprietário maranhense. Raimundo é filho de um irmão de Manuel, que teve atribulada vida familiar. Ele teve filho com uma escrava, matou a sua mulher em flagrante adultério junto ao padre, que será importante personagem da história e encontrou ele próprio a morte pela mão deste padre, sem no entanto, provocar suspeitas sobre tal. Ele era habilidoso em suas persuasões.

Seu Manuel cuida da formação de Raimundo, que faz os seus estudos em Portugal, formando-se em Direito na famosa Universidade de Coimbra. Após formado conheceu a Europa, viajando por ela ao longo de três anos. Na sua volta ao Brasil moraria na Corte, na cidade do Rio de Janeiro. Antes porém viajaria a São Luís, encerrar as suas pendências com o tio, como a venda de suas propriedades, terra e casas. É bem acolhido na casa do tio. O Cônego Diogo é o compadre e confidente de seu Manuel Pescada. Manuel tem um filha de nome Ana Rosa. Raimundo nada conhece de seu passado.

Bem, aí estão os ingredientes do enredo, que é contado ao longo de 19 capítulos. Um pai, uma filha em idade de casamento, um padre confidente e um jovem doutor que busca desvendar o seu passado. Como tudo isso se deu, eu não conto. Dou apenas mais um dado. Aluísio Azevedo é totalmente anticlerical, e por isso, todas as maldades do romance ficam por conta do cônego Diogo. E ponha maldade nisso. Entra também na história um acomodado caixeiro do seu Manoel, o pacato Dias. No meu modo de ver, o romance não tem um gran finale.

O valor maior está mesmo na descrição que é feita da sociedade maranhense, absolutamente preconceituosa e dada a todo o tipo de crendices e fé cega na fala do latinório do padre. O fato absolutamente imperdoável desta alta sociedade religiosa e burguesa é a mancha da mistura do sangue de Raimundo, o fato de ele ser mulato. Volto a repetir. Deve ser o grande romance da exposição da chaga do preconceito racial dentro da literatura brasileira.Também é uma bela introdução à formação da sociedade brasileira, que tão bem conhecemos nos dias de hoje, de uma elite extremamente desumana e perversa.

No livro, na sua contracapa, encontramos a referência ao grande valor da obra: "Aluísio Azevedo foi o introdutor do movimento naturalista nas letras brasileiras. Acima de tudo, O Mulato é obra de um observador atento da sociedade - agrária, latifundiária, escravocrata - que se transforma em civilização burguesa, pré-industrial, com lenta ascensão dos mestiços e participação na vida social, política e intelectual, sinalizando as relações entre o indivíduo e o meio. Trata-se de uma crônica da vida maranhense, com todos os seus preconceitos e mesquinharias, durante o Segundo Império. O protagonista, Raimundo, é um jovem de boa formação e que após os anos de estudo volta à sua província natal. Apaixonado por Ana Rosa, não obtém a aceitação da família da moça, sem que se dê conta do porquê".

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Saramago. Biografia.

Duas coisas se somaram para que eu comprasse e lesse este livro - Saramago - Biografia, de João Marques Lopes. Por ser leitor da obra de Saramago e o enorme apreço que lhe tenho e pelo fato de ter ido a uma feira da Top Livros, livros de ponta de estoque. João Marques Lopes é doutor em literatura brasileira pela Universidade de Lisboa, mas creio que a sua grande especialidade mesmo, seja a literatura portuguesa. O livro é uma publicação da Leya, do ano de 2009, um ano antes, portanto, de seu falecimento. Saramago nasceu em 1922 e morreu em 2010.

O livro está estruturado em dez capítulos, dos quais passo os títulos e os anos retratados. Já dá uma primeira ideia do livro biografia. 1. O menino pobre (1922-1933); 2. O serralheiro autodidata (1934-1946); 3. Terra do pecado e o silêncio (1947-1965); 4. Poesia, crônica e jornalismo (1966- 1973); 5. O Diário de Notícias a serviço da classe operária e do socialismo (1974-1975); 6. Memorial do Convento e a consagração do romancista (1976-1990); 7. O veto do governo PSD a O Evangelho segundo Jesus Cristo e o "exílio" (1991-1994); 8. O ciclo da alegoria e outras obras (1995-2008); 9. Todos os prêmios; 10. Outras polêmicas. Acompanha ainda, uma cronologia e a bibliografia. No total são 246 páginas.

O livro segue a trajetória normal de uma biografia. Assim nos é contada a infância pobre do menino, o Portugal rural e pouco letrado da época, a sua Azinhaga natal e a sua pobreza em Lisboa e, ainda, os seus primeiros estudos. Depois o menino pobre se encaminha para uma vida de operário que busca ser serralheiro em sua profissão. Toma consciência do mundo pela frequência a bibliotecas, pelas incursões ao teatro e acompanhando os acontecimentos da guerra civil espanhola.

A sua vida de escritor começa por uma obra precoce, Terra do pecado, o seu romance da juventude. Este tempo, tempo de forte repressão, o aproxima da vida literária, escrevendo artigos, fazendo traduções e trabalhando numa editora. Adentra depois no mundo da poesia e da crônica jornalística. Ao exercer estas atividades é que se dará o fim do regime salazarista e Saramago desempenhará novas e polêmicas funções, à frente de O Diário de Notícias, com a divisão das esquerdas e a sua tomada de posição e a saída do diário.

Para quem lê a biografia pelo seu lado mais literário, o livro começa a se adensar a partir do sexto capítulo. O sucesso vem quando ele, corajosamente, se dedica exclusivamente à literatura. Surge Memorial do Convento e a venda de 20.000 livros em dois anos. Já O ano da morte de Ricardo Reis irá vender 20.000 em apenas um mês. Aparecem logo a seguir Jangada de pedra e História do cerco de Lisboa. Começa a receber prêmios e um elogio todo especial de Harold Bloom. O estilo saramaguiano de escrever começa a se consagrar. Pilar del Rio começa a fazer parte desta história.

O sétimo capítulo é dedicado a O Evangelho segundo Jesus Cristo, seguramente o mais polêmico de seus livros. O maior problema ocorrerá com o governo português, pelo seu ministério da cultura que lhe censura a obra. Saramago esperava reações ao livro por ele contestar toda a cultura judaico-cristã, pela longa história de sangue que o cristianismo representou para ser uma religião de Estado e, ainda, pelas provocadoras dúvidas de Jesus em suas profundas reflexões acerca de sua missão. Que a reação viesse do catolicismo, isso era esperado, mas nunca a esperava por parte do governo de Portugal. Por isso decide se exilar em Lanzarote, nas ilhas Canárias, na Espanha, onde estabelece sua residência definitiva, sem romper relações com Portugal, contudo.

O oitavo capítulo é dedicado a um novo e brilhante momento do escritor. Uma fase de decepções e, ao final, um vislumbrar de esperanças. O capítulo é maravilhoso, começando por uma descrição da pós modernidade e das descrenças no mundo do iluminismo, da razão. Descreve o surgimento do pensamento único e do neoliberalismo e o advento da absolutização dos valores do mercado e do consumo. São "cegos que veem, Cegos que vendo, não veem", conclui em seu romance de abertura do ciclo Ensaio sobre a cegueira. Este ciclo de distopias segue com A Caverna e O homem duplicado. As reações ao neoliberalismo o fazem ver o mundo com um pouco mais de otimismo e publica Ensaio sobre a lucidez. Depois seguem os seus livros do ciclo derradeiro, As intermitências da morte, As pequenas memórias, A viagem do elefante, muito apreciado pela crítica especializada e, por fim, Caim, o seu acerto com o Deus do Antigo Testamento.

O nono capítulo apresenta o Saramago como um Superstar, ou um intelectual total, após todas as premiações e honras que recebeu mundo afora. O grande destaque vai para o recebimento do prêmio Nobel de Literatura, em função de O Evangelho segundo Jesus Cristo, no ano de 1998, único Nobel concedido para um escritor da língua portuguesa. Neste capítulo são também registrados números impressionantes sobre a recepção de sua obra em todo o mundo. O livro encerra apontando para as principais polêmicas em que o escritor se envolveu para além daquelas de O Diário de Notícias e do Evangelho, para questões polêmicas do mundo atual, com grande destaque para a violência que os palestinos sofreram em Ramalla, comparando estas atrocidades com as cometidas em Auschwitz.

Ao final da leitura, que serve também como uma excelente introdução para a obra de Saramago, fui acometido de um enorme desejo de releitura de sua obra, sob a luz dos esclarecimentos aqui adquiridos. Os que mais movimentaram o meu desejo de releitura foram os primeiros, Memorial do Convento e Levantando do chão, pela grande mensagem positiva de que são portadores. 



 

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Complexo de vira-latas. Nelson Rodrigues.

Complexo de vira-latas. Esta é seguramente uma das expressões muito usadas com relação a um complexo de inferioridade do Brasil, ou do povo brasileiro, diante de outros povos, especialmente, diante dos europeus e dos Estados Unidos. A expressão tem origem no futebol, mas lamentavelmente não se restringe a ele. Ele se refere também a questões raciais e econômicas e tem consequências gravíssimas para a economia e a sociedade brasileira.
Curiosidades para além da literatura. O conhecimento de um ser humano e a sua época.

O Brasil como país, pátria ou nação tem um despertar tardio. Muitos de nossa elite fizeram todo um esforço e teorizaram de que seríamos uma eterna colônia. Misturas raciais não combinavam com as chamadas eugenias raciais e o determinismo geográfico climático seriam os pecados originais de nossa eterna condenação. Estas teorias começaram a ser contestadas e revertidas, especialmente, a partir dos anos 1930, com escritores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e também José Lins do Rego. Isso ocorreu no campo racial e econômico e com a construção da nação brasileira a partir dos anos 1930.

Lendo o ABC de José Lins do Rego, encontrei referência direta para a expressão "complexo de vira-latas". É sabida de todos a grande paixão do escritor paraibano pelo futebol. A sua aproximação com este esporte se deu através de Leônidas, o "craque de ébano". Este craque começou a despontar em 1932, quando o Brasil conquistou, no Uruguai, a  copa Rio Branco. Em 1943, Mário Filho escreveu a respeito - Copa Rio Branco 1932 - e José Lins do Rego prefaciou o livro e mostrou todo o seu entusiasmo:

"Os rapazes que venceram em Montevidéu eram um retrato de uma democracia racial, onde Paulinho, filho de uma família importante, se uniu ao negro Leônidas, ao mulato Oscarino, ao branco Martins. Tudo feito à boa moda brasileira, na mais simpática improvisação. Lendo este livro sobre futebol, eu acredito no Brasil, nas qualidades eugênicas dos nossos mestiços, na energia e na inteligência dos homens que a terra brasileira forjou com sangues diversos, dando-lhes uma originalidade que será um dia o espanto do mundo". Um tanto romântico, mas que faz tanto bem, em tempos de extravasamento de ódio, como os que estamos vivendo.

Na Copa do Mundo de 1938, na França, o Brasil conquistou o terceiro lugar e Leônidas, o "diamante negro" foi o craque e goleador da copa. Aí veio a interrupção das copas, por 12 anos, provocada pela segunda guerra, mas a paixão pelo futebol só crescia. A copa apenas voltaria em 1950 e o Brasil se candidatara a sediá-la. Mas aí começa a história do complexo. Vou descrevê-la na íntegra, na pena de Bernardo Borges Buarque de Holanda, em seu livro ABC de José Lins do Rego. Isso está nas páginas 170-171.

"Finda a guerra, em 1944, o Brasil se candidatou a realizar a IV copa do Mundo de futebol, prevista para o ano de 1950. Em companhia de Mário Filho, José Lins se empenhou com afinco para que o país sediasse o campeonato.

A fim de dar mostras da capacidade do desenvolvimento do Brasil como nação moderna e civilizada, o escritor participou de maneira ativa da campanha pela construção de um estádio, grande e moderno, aquele que fosse "o maior do mundo". Graças a empenhos como esses, entre 1948 e 1949, foi construído o "colosso do Derby", designação inicial para o Estádio Municipal do Rio de Janeiro. Hoje, o estádio é conhecido popularmente como Maracanã. De fato, ao longo do tempo, o estádio ficou conhecido por atrair as massas. Dada a grandiosidade de sua arquitetura, o estádio foi capaz de receber aglomerações de até 200 mil pessoas, cerca de um décimo da população da cidade do Rio na época.

A Copa foi afinal realizada com sucesso, mas o resultado da equipe brasileira não foi o desejado pela população e pelas autoridades. A derrota frente à tradicional e forte seleção uruguaia, na partida decisiva, ganhou tintas de uma tragédia grega. A tristeza não impediu que José Lins do Rego visse naquele resultado uma prova de amadurecimento do povo brasileiro. Este soube se valer da perda do título para extrair uma lição de aprendizagem.

Quatro anos depois a equipe do Brasil protagonizaria um novo insucesso nos campos de futebol, durante a Copa do Mundo da Suíça (1954). Ao contrário da posição afirmativa de José Lins, que chegara a angariar fundos para a viabilização da viagem da delegação aos cantões suíços, as críticas aos jogadores viriam ampliar o ceticismo dos cronistas quanto a uma suposta fraqueza de índole dos atletas brasileiros. Esses eram vistos pelas classes dirigentes como expressão dos problemas e deficiências inerentes à formação histórica da nacionalidade e ao caráter do homem comum brasileiro.

Essas dificuldades se manifestaram em termos de uma psicologia coletiva: Na hora H, nos gramados, em momentos de decisão, o brasileiro tremia, fraquejava, deixava se intimidar diante dos adversários. Faltava-lhe o sangue-frio dos europeus, como os jogadores húngaros, contra os quais os brasileiros foram eliminados da competição. Trocando em miúdos, tratava-se daquilo que o cronista Nelson Rodrigues, em 1958, apelidou jocosamente de "complexo de vira-latas". A ideia de uma inferioridade inata, fruto da mistura racial exacerbada no Brasil".

Sem comentários.

terça-feira, 18 de julho de 2017

ABC de José Lins do Rego. Bernardo Borges Buarque de Holanda.


Que livro maravilhoso. Confesso que superou todas as minhas expectativas. Este é mais um dos livros de feira de ponta de estoque. O autor demonstra profundo conhecimento da obra de José Lins do Rego e o situa muito bem dentro do contexto da literatura brasileira. Estou falando de ABC de José Lins do Rego, escrito pelo professor da FGV, Rio de Janeiro, Bernardo Borges Buarque de Holanda. O livro é da Editora José Olympio, a editora responsável pela obra do grande escritor paraibano e brasileiro.
De A a Z, a vida do grande escritor. Um trabalho criterioso.

No nordeste os ABCs são bastante conhecidos, especialmente, através da literatura de cordel. Talvez seja a razão do autor ter escolhido esta forma para apresentar o intrigante escritor, que somou em sua literatura o cronista, o memorialista e o romancista de tamanha envergadura. Este monumental escrito passou pelos ciclos da cana de açúcar (do engenho às usinas), pelo misticismo, pelo cangaço e pela seca.  O autor escreveu, de cada uma das 26 letras do alfabeto, uma palavra para destacar a vida e a obra do autor de Fogo Morto, sua obra prima. Vou dar as palavras.

O A somente se poderia referir ao açúcar, a grande razão de ser de toda a obra. O B remete a Babu, o avô do Menino do Engenho. O C se refere a Corredor, nome do engenho onde o menino passou os seus oito primeiros anos de vida. O D lembra o Colégio Diocesano, onde aos oito o Doidinho foi estudar. Considerou o colégio como um reformatório. Doidinho é um dos grandes romances de formação da literatura brasileira. Isto foi em Itabaiana e logo depois na capital.

O E remete à escola de Recife, de onde sai como bacharel em Direito. O F manda para o seu grande livro Fogo Morto e a uma bela descrição de seus personagens. O G o relaciona com Gilberto Freyre, seu grande amigo, influenciador e com o qual estabelece uma visão positiva de interpretação de Brasil. O H lembra as Histórias da velha Totônia, que tanto lhe incendiaram a imaginação em sua infância. São os contos das criadas da casa que tanto bem fizeram ao menino. O I é de Ita, a embarcação que fez o escritor andar pelas capitais literárias do nordeste, Recife, João Pessoa e Maceió e depois o levou ao Rio de Janeiro. Era o principal instrumento de locomoção no litoral brasileiro.

O J é do importante livreiro e amigo José Olympio. Um dos homens a quem mais a literatura brasileira deve, pelos seus estímulos e pela edição de seus livros. Era um lugar de fervo cultural, pois, junto a editora havia também a livraria. O K é de Keynes. Sim, o economista inglês a favor da intervenção no mercado o influenciou e o ajudou a compreender os cenários das crises decorrentes de 1929. O L é de Leônidas, o craque brasileiro que o levou ao fanatismo no futebol e a promoção da beleza da mistura das raças. O M é de Memória e imaginação. De novo somos levadas à infância do menino e ao que se avivou em sua memória e o que foi a ela acrescido pela imaginação. O N é de Naná, Philemena Massa, a companheira de toda a sua vida. 

O O é de opulência e o seu trágico fim com a decadência. É o tema de sua literatura, o açúcar. Dos engenhos às usinas e as transmutações que foram provocadas, econômicas e sociais. O P volta ao futebol, a imensa Paixão pelo Flamengo, de quem foi até dirigente. O Q é de Quixote, o famoso terceiro personagem de Fogo Morto, o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, o Papa-Rabo. O R é de Região e tradição, ou seja, do romance regional ao homem universal. O S remete ao Sertanejo forte, o tema de sua obra que remete inclusive para a questão dos cangaceiros. O T é de Tradução e adaptação, onde é mostrada a abrangência mundial da obra do escritor.

O U é de Usinas e engenhos, de novo, a razão maior de ser de toda a obra. Este tópico é entremeado com um belo álbum de fotografias. A letra V remete ao Viandante. Ele viajou basicamente pelo por três razões. Por questões diplomáticas, como dirigente de futebol e a turismo. Deixou tudo registrado. O W remete a Western Raylroad Company, ou ao trem que esteve sempre presente em sua vida, especialmente nos anos de sua infância. O X remete às xilogravuras que ilustram a sua obra. O Y, ou ipsilone, nos remete à liberdade de criação, com uma beleza de frase: "Os grandes escritores têm a sua língua; os medíocres a sua gramática. Já o Z final nos remete as Zelinianas, onde é mostrado o seu ingresso na Academia Brasileira de Letras, quando em discurso fora de praxe  desancou as qualidade de seus antecessor.

Ao final, um pequeno lamento. Depois de 292 páginas acabaram as letras do ABC de José Lins do Rego. Uma obra simplesmente magistral.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Por que ler Oswald de Andrade. Maria Augusta Fonseca.

A leitura de um livro muitas vezes pode levar a leitura de outro. Foi o que aconteceu comigo, que após a leitura de Oswald de Andrade - biografia, de Maria Augusta Fonseca, li agora, da mesma autora Por que ler Oswald de Andrade. A biografia me impressionou muito e o mesmo aconteceu agora com um passeio pela sua obra. Adquiri os dois livros numa mini feira de livros, da Top Livros, que vende ponta de estoque, ou seja, os livros que encalham nas editoras. Só assim para poder comprar livros, quando se tem um governo que não dá reajuste salarial aos professores estaduais. Quero deixar claro que sou professor aposentado da rede pública estadual do Paraná, onde o governador é o minúsculo carlos alberto richa, minúsculo como político, porém forte em sua virulência.
Um livro magistral. Em favor de uma cultura realmente brasileira.

Oswald de Andrade é um dos maiores nomes da cultura brasileira. Teve, na organização da Semana de Arte Moderna, de 1922, a sua maior evidência. Creio que o podemos caracterizar como um espírito extremamente irrequieto e insatisfeito com os destinos gerais da nação brasileira, especialmente, o seu atrelamento cultural aos padrões culturais europeus. Por este atrelamento jamais haveria criação cultural própria, apenas cópia.

Conversando com um professor da área de literatura, ele me contou que nos seus anos de formação acadêmica, eles recebiam orientação para não lerem Oswald de Andrade, mas apenas Mário de Andrade. Este sim era um escritor de valor. É compreensível. Oswald de Andrade é realmente um grande e irreverente iconoclasta. Quem se utiliza da ironia, da sátira e do escracho sempre estará sujeito a ter poderosos inimigos. Pelo pouco que dele li, já o considero meio imprescindível para quem efetivamente queira conhecer a realidade brasileira, especialmente em seus aspectos culturais.

O livro tem cinco capítulos, mas é centrado no terceiro. No primeiro - um retrato do artista - são retomados dados biográficos do autor. Oswald nasceu em berço esplêndido e a família nunca economizou recursos para que ele acompanhasse a evolução cultural mundial. Onde ela acontecia, Oswald deveria estar presente. Assim a sua vida girou em torno dos grandes polos culturais da humanidade. A crise do café atingiu os alicerces econômicos da família, somados a questões administrativas, com as quais o homem da cultura tinha poucas afinidades.

No segundo capítulo - cronologia - a sua vida é apresentada em sua linearidade, começando com o nascimento em 1890 e terminando em 1954, o ano de sua morte. Abolição da escravidão, fim da monarquia e proclamação da República são fatos que repercutem em sua infância. Ganham destaque também os movimentos de tomada de consciência deste país, ao final da década de 1910 e ao longo da década de 1920, sendo ele um dos mais ativos participantes, com grande destaque para 1922. Estrondosas vaias não o perturbaram. A fase posterior ao 1930 também está vivamente presente em sua vida e obra. Neste período trilhou até os caminhos da esquerda integrando-se, de forma meio rebelde, ao partidão.

O terceiro capítulo - Ensaio de Leitura - ocupa em torno de dois terços do livro, e sem dúvida é a sua razão de ser. Toda a sua obra é analisada. Não apenas os livros, mas também as suas intervenções como ativo cronista dos grandes jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Inicia com O Pirralho e termina com Um homem sem profissão sob as ordens de mamãe, passando pelo Manifesto da Poesia Pau Brasil, e do Manifesto antropofágico, um verdadeiro libelo contra a nossa dominação cultural. Não resisto em apresentar um parágrafo do livro sobre esta questão.

"Como se sabe, entre os diversos sentidos do termo, a antropofagia é conhecida como um ritual de valoração para certos ameríndios que comiam o inimigo a fim de assimilar suas qualidades de guerreiro. No manifesto, à luz dessa tradição, Oswald elaborou a paródia de uma conhecida  fala do príncipe Hamlet, devorando a seu modo a cultura europeia. Arrancava disso uma questão nuclear - Tupi or not tupi - that is the question. Oswald formula essa nova dúvida também como um desafio, por um trocadilho brincalhão. Nota-se que escreve sem usar um único termo da língua portuguesa, já que "tupi" é um som transliterado da língua geral (sem registro escrito). Nesse esforço de conscientização, Oswald repeliu no manifesto a "catequese" da "raça superior", do conquistador que impôs ao ameríndio sua moral repressora, castrando sua cultura, "vestindo suas vergonhas", lembrando que o colonizador branco esmagou a cultura nativa".

A análise passa ainda pelo O Homem do Povo", a fase comunista pela qual passa o escritor junto com Pagu, sua companheira nesta empreitada. Passa ainda pelo seu teatro, com grande destaque para O rei da vela. Passa também pela crítica social de O santeiro do mangue, em que são retratadas as mazelas da sociedade brasileira e a perversidade de sua elite. Também a sua poesia é analisada. Por fim é vista a sua obra de ficção. Memórias sentimentais de João Miramar, Serafim Ponte Grande, Marco Zero e o último de seus livros Um homem sem profissão sob as ordens de mamãe. Confesso que estes últimos são os que mais me interessaram, junto com o rei da vela e os manifestos.

Entre aspas é o nome do quarto capítulo. Neles são escolhidos, aleatoriamente, algumas passagens notáveis de sua obra. O livro se encerra com o quinto capítulo Estante, onde a sua obra é apresentada. Mas não posso encerrar este post sem a memorável frase de Oswald que serve de epígrafe ao livro. CONTESTAR É UM DEVER DA INTELIGÊNCIA.


sexta-feira, 14 de julho de 2017

ADHEMAR. Fé em Deus e pé na tábua. Amilton Lovato.

"Amado e combatido, aclamado e atacado em toda sua carreira política, o homem que faleceu ontem, em Paris, deixa, para a história de São Paulo e do Brasil, uma das mais controvertidas imagens entre os políticos de seu tempo". Desta forma a Folha de S.Paulo anunciou a morte de Adhemar de Barros, ocorrida em Paris, no dia 12 de março de 1969, já em pleno fervilhar da radicalização da golpe militar, após a edição do AI-5, em dezembro do ano anterior.
Uma bela biografia. Da Geração Editorial.

Uma imagem controvertida. Creio que este conceito é o que merece o maior destaque com relação a biografia deste importante personagem político paulista e brasileiro. Cheguei a esta biografia pela feira de livros da Top Livros, livros de ponta de estoque, em que estes são vendidos por preço único de dez reais. Isso de forma alguma significa dizer que o livro não tenha o seu valor. Preço, gosto por biografias e uma certa curiosidade me fizeram comprar o livro. A autoria do livro é de Amilton Lovato, um advogado do interior paulista.

Adhemar nasceu na cidade de Piracicaba em 1901. A sua formação profissional se deu no Rio Janeiro, na Faculdade de Medicina. A sua vida política começou com a Revolução Constitucionalista de 1932. Nunca teve uma cor ideológica e foi fortemente marcado pelo seu destempero verbal. O "rouba mas faz" foi um slogan que o acompanhou ao longo de sua vida política. É o que lemos na orelha do livro como uma espécie de apresentação do mesmo. Também como um outro paulista, hoje em triste evidência, ele se fartava no uso de mesóclises.

O livro se desenvolve ao longo de dezesseis capítulos, distribuídos ao longo de 367 páginas. Nos capítulos iniciais se fala de sua formação, sobre a sua origem familiar, como filho de um dos maiores cafeicultores de São Paulo, sua participação na Revolução Constitucionalista, a posterior adesão a Getúlio e a sua nomeação como interventor no Estado de São Paulo, pelo caudilho. Isso lhe deu imenso gosto pelo poder, o que o tornou um rival do próprio Getúlio.

Nos capítulos que seguem ele é mostrado como o criador do PSP, o grande partido paulista, as suas ligações com o PTB e a sua volta ao governo de São Paulo pela via eleitoral.  Recebe forte oposição da família Mesquita, proprietária do jornal O Estado de São Paulo. As circunstâncias o fazem adiar o seu sonho presidencial, presta ajuda a um novo político que surge na pessoa de Jânio Quadros, de quem se torna, posteriormente, inimigo figadal. Rompe com Getúlio, contra o qual começa a tramar, juntamente com Carlos Lacerda.

Com a sucessão de Getúlio começa um aparente declínio, perdendo a eleição presidencial para Juscelino e sofrendo condenações judiciais e empreendendo fugas. Vence as eleições para a prefeitura de São Paulo e prepara nova ofensiva para as eleições presidenciais de 1960, quando o seu inimigo Jânio sai como vencedor. Após a renúncia de Jânio como presidente, Adhemar mais uma vez se candidata a governador de São Paulo e vence as eleições. Com o golpe de 1964, do qual foi ativo articulador, mais uma vez se torna protagonista da história. Os três capítulos finais tratam desta questão e que sem dúvida são os mais importantes capítulos do livro. São os capítulos 14. A Redentora; 15. Decepção e Ousadia e 16. O Fim.

As suas aspirações políticas o incompatibilizam com a ditadura militar, uma vez que continuava alimentando o seu sonho presidencial. Aos poucos os militares foram se livrando de todas as lideranças civis que os apoiaram no golpe e Adhemar foi por eles deposto do cargo de governador, sendo substituído por Laudo Natel. Adhemar assim conta do seu afastamento:

"Surpreendido com o decreto de suspensão dos meus direitos políticos, sinto-me no dever indeclinável de me dirigir, neste momento tão grave da nossa vida, ao povo brasileiro. Jamais poderia imaginar que a mesma revolução para cuja vitória tão decisivamente contribuí, arriscando naquela altura a minha vida e este próprio mandato, viesse um dia arrebatar os meus direitos políticos. Compelido a deixar o mandato que, pela terceira vez, o povo me confiou, protesto perante a História pela violência que assim compromete todos os princípios da democracia, por cuja sobrevivência lutamos a 31 de março. Grato a meu povo, fiel à minha Nação, confio aqui o meu até sempre e confirmo a minha confiança num Brasil democrático. Rogo a Deus proteger minha Pátria".

O livro termina com um epílogo, em que é narrado o assalto ao cofre do Adhemar, já nos anos de chumbo. O grupo VAR-Palmares foi o autor desta bastante conhecida façanha, mas nunca bem esclarecida. O assalto ao cofre ocorreu na casa de sua eterna amante Ana Capriglione e no qual teriam sido encontrados 2,5 milhões de dólares. Com certeza um livro bem interessante de um personagem político nem tanto.





quarta-feira, 12 de julho de 2017

Carta Manifesto em Defesa da Filosofia no Ensino Médio.

Tive oportunidade de participar deste encontro. Considero esta carta manifesto como uma das melhores análises conjunturais da situação educacional do país, especialmente, no que se refere ao Ensino Médio. A publico, em primeiro lugar pela sua importância e em segundo, para que mais gente tenha acesso a ela, para efeitos de estudos e debates. Ela vai na íntegra, junto com as primeiras assinaturas que foram apostas ao importante documento. 
Cartaz convocando para o XVII Encontro do Nesef.
 

Carta-Manifesto contra privatização e a descaracterização da Educação Pública no país e pelo fortalecimento do Fórum Nacional em Defesa da Filosofia no Ensino Médio
Curitiba, 23 de junho de 2017.

Nós professores/as, estudantes, profissionais em educação e entidades educacionais, estudantis e sindicais reunidos no XVII Encontro do Nesef, V Olimpíada do Ensino Médio e I Encontro Nacional de Educação Filosófica, em 23 de junho de 2017, na Universidade Federal do Paraná, norteados pelo ideal da formação integral e pela garantia dos direitos dos cidadãos, vimos a público nos manifestar: (1) contra as Reformas em curso, em especial, as voltadas ao Ensino Médio; (2) contra quaisquer intimidações, cerceamento das liberdades constitucionais de manifestação e organização e ameaças perpetradas pelo Estado de Exceção.

É sabido que as Reformas educacionais, recentemente impostas pelo Executivo, com o apoio da maioria dos Congressistas, integram um projeto que visa, ao mesmo tempo, enfraquecer o Estado Democrático e de Direito e franquear todos os serviços e bens públicos à iniciativa privada. Existe, portanto, uma ligação estreita entre o conjunto das Reformas, que principiou com o congelamento dos investimentos públicos em saúde, educação e segurança públicas por vinte anos a partir de 2018, seguiu com a Reforma do Ensino Médio e a abertura total à terceirização de atividades laborais e pretende, ainda, aprovar leis que, na prática, cassam o direito à aposentadoria da classe trabalhadora e reduzem seus direitos a patamares semelhantes aos vigentes no século 19.

Todas as reformas hoje em andamento no Brasil têm relação direta com o projeto privatista, neoliberal que se fortaleceu a partir de 2015, e cuja concretização tem ocorrido desde 17/04/2016, quando a Presidenta Dilma Rousseff, legitimamente eleita, foi afastada do cargo, em Sessão presidida pelo Supremo Tribunal Federal a pretexto de um “crime” jamais tipificado como tal.

O processo de impeachment resultou, pouco mais de um ano após sua efetivação, em Reformas que aviltam a democracia, retiram direitos dos/as trabalhadores/as, transferem recursos naturais nacionais (petróleo, água, biodiversidade) aos grupos multinacionais e visam transformar a Saúde, a Educação e a Segurança Pública em serviços privados sustentados com o dinheiro público.

Nesse verdadeiro “leilão” em que o Brasil foi transformado pelo golpe jurídico e midiático, perdem os/as cidadãos/ãs, ao passo que as grandes corporações, os bancos internacionais e o agronegócio tendem a lucrar cada vez mais.

A Reforma do Ensino Médio retira a autonomia das escolas, acaba com a possibilidade de que as mesmas sejam geridas de forma mais democrática, desconfigura o papel do/a pedagogo/a escolar, banaliza os conteúdos escolares, retira a identidade profissional dos/as professores/as, reduz
drasticamente o acesso de estudantes ao conhecimento sistematizado, fere de morte o ensino noturno, a modalidade Educação de Jovens e Adultos e os cursos de Ensino Médio Integrado à Educação Profissional, além de direcionar aos empresários da educação boa parte dos recursos do Fundeb. Em suma: o que está em curso não é um projeto modernizante para a educação brasileira, mas o aprofundamento de um projeto de Estado de caráter privatista e entreguista, marcado pelo aprofundamento do neoliberalismo, no âmbito, global e pela “rapinagem” dos recursos públicos, no âmbito nacional.

Embora a classe trabalhadora ainda não pareça ter se dado conta da gravidade da situação, ou seja: a população em geral, que não se resume a uma classe média conservadora e incauta, ainda pareça não conseguir diferenciar o modelo neoliberal de rapina que o governo golpista e seus aliados estão implementando a passos largos, do modelo de base reformista-progressista que predominou no país desde 2003, entende-se que é preciso reagir.

A reação, por sua vez, presume conhecimento das medidas, considerando suas intenções e prováveis efeitos imediatos e de prazo mais longo.

A Reforma do Ensino Médio, Lei 13.415/2017, ponto-chave das ações de deterioração do Estado de Direito, foi apresentada a partir de uma Medida Provisória, cuja origem encontra-se no PL 6840/2013.

Promulgada mediante um ato unipessoal, autoritário do presidente da República Michel Temer, com força imediata de lei, a Reforma interrompe violentamente um processo de discussão em curso no interior dos diferentes espaços, como escolas e universidades e, também, no Mec.

A Reforma, em suma, desconsidera as Conferências de Educação e o PNE, assim como todo o acúmulo de discussões, projetos e programas realizados por quem tem autoridade pedagógica, intelectual e moral para intervir no campo educacional, isto é, os próprios sujeitos que cotidianamente vivenciam e pensam a Educação.

O texto da lei altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº9394/96, para instituir uma suspeita jornada em tempo integral no Ensino Médio, dispondo sob a reorganização do currículo em áreas do conhecimento, tais quais: Linguagens, Matemática, Ciências da natureza e Ciências humanas, justaposta à Base Nacional Curricular Comum (BNCC).

Mas, é no financiamento, a parte do texto mais negligenciada pela grande mídia, que a Reforma diz realmente a que veio. Foram, aliás, as mudanças no financiamento da Educação e da Saúde, que obrigaram o Governo Michel Temer a realizar alterações no texto da Constituição de 1988. Ocorre que o Novo Ensino Médio, subverte a lógica redistributiva e equacionadora das diferenças regionais do Fundeb; transforma os Sistemas de Ensino, Estaduais e Municipais, em agentes que têm a tarefa de redistribuir os recursos educacionais para a iniciativa privada, tendo como critério principal os interesses imediatos do mercado. A formação de estoque populacional de mão-de-obra, conforme manifestação do setor da indústria paulista, presente nas solenidades de divulgação da Reforma, em 2016, é, segundo executivos do atual Mec, o objetivo da Escola Pública.

Para tanto, propõe-se a composição do currículo do Ensino Médio a partir da BNCC e por Itinerários Formativos Específicos, estes definidos pelos sistemas de ensino, sob a pressão do mercado, que, via de regra, financia o sistema eleitoral e tem com Governadores e Prefeitos uma relação historicamente marcada pela troca de benesses mútuas.

A 5ª área (itinerário formativo) incluída, posteriormente ao PL 6840/2013, na MP e no texto final da Lei 13.415/2017, chamada de Formação Técnica e Profissional, é a que mais claramente abre o espaço da escola pública para Sistemas privados, como o Sistema S (SENAC, SENAI, SESI), na formação tecnicista de mão-de-obra.

A Reforma vai mais longe ao abandonar a exigência de formação superior (licenciatura) para docentes e ao obrigar que haja mecanismos de certificação de todas as vivências e cursos realizados pelos estudantes, independente de sua qualidade ou pertinência epistemológica. Ela incentiva e facilita a Educação a Distância, a adoção de sistemas de créditos e a organização escolar modular. 

A ampliação do tempo escolar é, por assim dizer, uma falácia, pois na verdade, conforme a Portaria Mec 1.145/2016, que regulamenta a Reforma, há a redução de, no mínimo, 1/5 do tempo hoje destinado à socialização dos conhecimentos historicamente produzidos e socialmente referendados. Não por acaso, as únicas disciplinas com algum destaque no texto são as que atualmente integram as provas dos viciados Sistemas de Avaliação em Larga Escala, estes, também, desfigurados de seu papel social de servir como elementos de orientação de políticas públicas educacionais e, como toda a área social, atualmente entregue aos empresários da educação.

O Caráter ideológico das reformas também se expressou através do PLC 193/16, que propõe o “Programa Escola sem Partido”, considerado uma “Lei da Mordaça".

Em Outubro de 2016, milhares de estudante de todo o país se manifestaram contra a, então, Medida Provisória e contra os cortes em investimentos sociais, ambos aprovados, em um movimento que ficou conhecido como Primavera Estudantil. Foi o maior movimento de ocupações urbanas registrado na história ocidental. Mais de 1000 escolas e universidades foram ocupadas pelos estudantes, 816 delas, no Paraná. A repressão do Estado foi violenta; centenas de reintegrações de posse foram realizadas e, no plano ideológico, a mídia conservadora e movimentos ancorados pelo apoio das camadas médias (como o MBL), foram mobilizados e financiados pelo Estado e Empresários a fim de difamar estudantes e descaracterizar os seus ideais legítimos.

Inúmeros professores de escolas públicas e universidades, bem como entidades sindicais acompanharam as ocupações das escolas públicas. Estas foram protagonizadas pelas lideranças estudantis e por jovens conscientes de que a educação é um direito social e está para além da formação de reserva de mão-de-obra para o mercado. Após o desfecho do Movimento, muitos apoiadores e simpatizantes das Ocupas sofreram represálias. Hoje, junho de 2017, aproximadamente 3.000 professores/as no Estado do Paraná estão sob sindicância, perseguição política e/ou sofrendo processos administrativos por terem acompanhado menores estudantes no momento histórico em que as ocupações se fortaleceram.

Para um conjunto desavisado da sociedade civil o protagonismo das lideranças estudantis ficou submetido à “doutrinação ideológica e política”, “formação de quadrilhas” e “conspiração” – atributos estes presentes em denúncias estabelecidas no Estado do Paraná contra muitos docentes que estavam na condição de suporte aos jovens autonomamente organizados.

Para além do posicionamento crítico em relação às reformas e as aviltantes perseguições políticas vivenciadas ainda hoje em decorrência das manifestações democráticas, e, em especial, pela reafirmação do Estado de Direito, propomos:

1. o fortalecimento do Fórum Nacional em Defesa da Filosofia no Ensino Médio, criado em 22/06/2017, com o objetivo de organizar, em nível nacional, um movimento de resistência em relação às reformas em curso e lutar pela manutenção e legitimação da Filosofia como disciplina curricular no Ensino Médio;

2. a aproximação dos intelectuais da filosofia, e das demais humanidades, das lutas sociais, incentivando e intervindo nos debates públicos, visando o esclarecimento e a coerência ético-política; 

3. a realização de análises e críticas públicas, denunciando práticas cínicas e/ou abusivas tanto da parte dos poderes públicos, quanto de indivíduos e organizações.

4. O acompanhamento e a divulgação do transcurso do processo de implementação da Reforma do Ensino Médio, mediante a criação e a alimentação de canais apropriados e de ampla publicidade.
E, finalmente, conclamamos aos coletivos organizados representativos das disciplinas de História, Sociologia, Geografia e Arte se articulem ao Fórum Nacional em Defesa da Filosofia no Ensino Médio, na perspectiva que este se amplie e venha a constituir-se num Fórum em Defesa das Humanidades.

Assinaturas – pessoas/entidades
Geraldo Balduino Horn – Nesef-UFPR; Valéria Arias – Nesef-UFPR/CEP; Emmanuel Appel – Defi-Nesef-UFPR; Anita Helena Sclesener – Nesef-UFPR; Rafael Athayde – Nesef-UFPR; Luiz Carlos Paixão – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação; Lucrécio de Sá – UFRN; Ademir Aparecido Pinhelli Mendes – Nesef-UFPR/Uninter; Ana Paula Barbosa – CEP; Maurício Gadelha Alves – IFRN; Sara Eduarda – Acadêmica de Filosofia – UFPR; Marcelo Moraes – Nesef-UFPR; Juan Carlo Armiliato – Nesef-UFPR; Elio da Silva – Nesef-UFPR; Luciana da Silva Teixeira – FAE; Antônio Joaquim Severino – Grupefe-Uninove; Gisele Moura Schnorr – Unespar; Elisete Tomazetti – UFSM; Emmanuel Appel – Defi-UFPR; Alexander Machado – Cafil-UFPR; Bernardo Kestring – Nesef, Sinpes, Unibrasil, Fasban; Elisane Fank – Nesef/-CEP; Edson Teixeira – Nesef; Raquel Aline Zanini – Nesef-CEP; Alessandro V. Corrêa – Nesef; Luciana Vieira de Lima – Nesef; Rui Valese – Nesef; Wilson José Vieira – Nesef-CEP; Paulo Renato Araújo – Nesef-Rádio Camélia; Antônio Charles Santiago – Unespar; Jean Lucas Tavares – Unespar; Pedro Batista – Unespar; Eliane Blaszkowski Champaoski – Uninter; Arthur Silva Araújo – Filosofia Uninter; Cleber Dias de Araújo – Nesef-UFPR; Delcio Junkes – Nesef-UFPR; Ana Carolina Camargo Morello – Nesef- UFPR; Altair Gabardo Percicotty – Nesef-UFPR; Maria Rosa Chaves Künzle – APP-Sindicato; André Bagattini – Profi-Filo-UFPR; Gilca Ribeiro – Grupefe-Uninove; Karine Amado Garcia– Grupefe-Uninove; Dimitri Wuo Pereira – Grupefe-Uninove; Ofélia Maria Marcondes - Grupefe-Uninove; Rita de Cassia de Campos Andery - Grupefe-Uninove; Sandro Adrian Baraldi - Grupefe-Uninove; Cláudia Cisiane Benetti – UFSM; Elisete Medianeira Tomazetti – UFSM; Bruna Gabriela Domingues – Unespar; Pâmela Bueno Costa – Unespar; Marcos Aurélio; Pedro Elói Rech – APP Metrosul; Balaban – Unespar; Márcia Regina Mocelin – Uninter; Sonia de Fátima Radvanskei – Uninter; Cláudia S. Rosa da Silva – Uninter; Cristiane Dall Agnol da Silva Benvenutti – Uninter; Wilson da Silva – Uninter; Genoveva Ribas Claro – Uninter; Bruna Tratz Passos – Nesef-Uniplac; Márcia Heck – Nesef-Uniplac; Vanice dos Santos ¬– Nesef-Uniplac; Luciana Oliveira – Nesef-Uniplac; Luciana Nunes – Nesef-Uniplac; Priscila Schneider – Nesef-Uniplac; Aurelio dos Santos Souza – Nesef-Uniplac; Márcio Jarek – Professor de Filosofia do Ensino Superior; Alessandro Reina – Nesef-UFPR; Antonio Carlos Carneiro – Fae; Gustavo Henrique Adão – Fae: Patrícia da Silva Tristão – Fae; Vera Fátima Dullius – Fae; José Carlos Bassi – Fae; Junior e Jefferson Tuchinski Class – Fae; Adriana do Pilar Rosa Dias – Fae; Marcia Cristina de Souza – Fae; Lucas Lipka Pedron – Nesef-Gefil-UFPR; Emerson Nogueira – Cafil/-UFPR; Luiz Otávio M. Fiori – Cafil-UFPR; Weliton Alécio Tarelho – Nesef-Licenciar Filosofia e Ensino; Michele Cristine Manosso – Uninter; Michela Veras – Uninter; Elisandra Angrewski – Profa. de Filosofia; Carmen Lúcia F. Diez – Uniplac; Douglas Lopes – Nesef-UFPR.

O ridículo judicial. Márcia Tiburi.

Vou pedir licença para a Márcia Tiburi e publicar o tópico de número 20 de seu novo livro Ridículo Político - uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto. Esta questão é tão premente que precisa ser mais conhecida. É neste intuito que transcrevo este pequeno ensaio, Ridículo judicial. Quero ainda chamar a atenção para o livro, uma leitura mais do que necessária nestes tempos pós modernos, da era do espetáculo. Já fiz a resenha em outro post.
O extraordinário livro de Márcia Tiburi. Leitura obrigatória para entender o atual momento político brasileiro.

"O ridículo político se tornou evidente em nossa época nas cenas promovidas por alguns juízes, promotores, ministros e outros agentes do sistema de justiça. A judicialização da política,, correlata ao discurso político que a demoniza, é um dos aspectos mais essenciais do ridículo político. Atores jurídicos negam a natureza política do poder enquanto, ao mesmo tempo, a praticam em atos de poder. Há aqueles que, por sincera ignorância, desconhecem que, ao decidir, estão condicionados por valores, preconceitos, ideologias e outros fatores políticos. Por outro lado, a má fé sustenta o discurso da 'neutralidade', que permite velar atuações marcadamente parciais dos atores jurídicos.

Rubens Casara, em Processo penal do espetáculo, definiu bem a 'mutação' sofrida pelo processo penal na sociedade do espetáculo: 'A dimensão de garantia, inerente ao processo penal no Estado Democrático de Direito (marcado por limites ao exercício do poder), desaparece para dar lugar à dimensão do entretenimento. Podemos dizer que é essa dimensão substitutiva que cria as condições de possibilidade para a cultura do ridículo. A naturalização do ridículo na cultura como um todo faz parte também do mundo judicial, ele mesmo disfarçado sob a aparência de algo 'esteticamente correto'.  E não é um exagero dizer que o campo do direito tenha contribuído em muito para isso por meio da burocratização e do ritual judiciário. No que Rubens Casara chama de 'julgamento espetáculo', todos querem exercer bons papéis na trama enquanto vigora o 'primado do enredo sobre o fato'. A mídia ajuda a transformar juízes em heróis, mas sob a condição de que não julguem contra a opinião pública e de que mocinhos e bandidos continuem em seus papéis preestabelecidos.

O caráter espetacular faz parte da história do direito. A monumentalidade dos prédios da justiça e a ostentação pelas vestimentas, togas, becas e capas, cuja origem clerical não deve ser esquecida, combinam com rituais burocráticos, retóricos, em tudo teatrais e em tudo mascarados. A toga busca apontar uma dignidade diferenciada e, ao mesmo tempo, funciona como uma máscara: quem a usa, esconde-se e despersonaliza-se: torna-se o ser diferenciado. O negro da toga, por exemplo, simboliza a indiferença perante as cores, a abnegação, a privação e a castidade. Falas rebuscadas, expressões afetadas, o culto ao palavrório, os tratamentos majestáticos e os olhares de superioridade e altivez são adotados como se todos no campo do direito fossem distintos dos demais seres humanos. O tratamento 'doutor', mesmo para quem nunca fez um doutorado, foi naturalizado por quem é 'bacharel'. Esse tratamento tem origem em um decreto da época do Império que se tornou tão naturalizado quanto anacrônico. A desmedida ridícula passou a valer para quem 'simplesmente' usa paletó e gravata em um país tropical. O valor da vestimenta, seja a toga, seja a roupa de marca, seja a gravata, garante que o ridículo político espetacularizado imita a vestimenta dos poderosos e faz com que cada personagem esteja 'a caráter' para o espetáculo.

Mas podemos ainda colocar a questão do conservadorismo exacerbado, do pedantismo distanciador, da assepsia ideológica, da falsa neutralidade valorativa, da sobriedade em tudo, do discurso moralizante e paternalista, do bacharelismo que desconsidera a realidade social, do dogmatismo acrítico, do medo que cidadãos têm  de desagradar os atores jurídicos que detêm postos de destaque nas carreiras jurídicas, o que atinge, evidentemente a todos os envolvidos em um sistema hierárquico. Por trás desse padrão, talvez se possa perceber o sadomasoquismo elevado à instituição que se repete pelos falsos sinais de poder, tais como solenidades, tratamentos monárquicos, insígnias e saudações típicas das corporações militarizadas.

Enfim, com Zaffaroni, pode-se afirmar a existência de três fontes para o ridículo judicial ligadas à burocratização: o bacharelismo pedante típico da formação jurídica, que tem por objetivo se impor na sociedade a partir da afirmação de ritos e de um conhecimento específico; o comodismo crônico ligado tanto à dificuldade de fazer reflexões quanto a interesses subjetivos inerentes à carreira; e, por fim, a neurose conservadora daquele que se acredita um semideus, um sacerdote acima de qualquer ideologia e preconceito, e que, por isso, deve assumir uma feição conservadora para manter o respeito e a dignidade da função, ou seja, uma vítima da normalização produzida pelo senso comum e pelos meios de comunicação de massa, que constroem a imagem do 'bom juiz' como um herói que não tem limites à realização do que entende por justiça".

terça-feira, 4 de julho de 2017

Ridículo Político. Márcia Tiburi.

Mais um livro de Márca Tiburi. Depois do inusitado êxito de Como conversar com um fascista, sai agora, menos de dois anos depois o Ridículo político - uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto. Não é um livro fácil. Para entendê-lo muitos conceitos e autores da filosofia contemporâneos são necessários para uma boa compreensão da obra. Sessenta e um tópicos, que variam de duas a cinco páginas, são apresentados ao longo de duzentos e trinta e seis páginas. Da Record.
O necessário livro de Márcia Tiburi para melhor entender a política na era do espetáculo.


Apenas para terem uma ideia, apresento, com a autora, alguns conceitos e os filósofos que os desenvolveram. "Vivemos na época da exposição radical dos quatro braços tentaculares que produzem a ontologia de nossa cultura, nosso modo de ser: se falamos em sociedade administrada (Adorno e Horkheimer), o núcleo do dispositivo é a racionalidade burocrática; se pensamos em sociedade do espetáculo (Debord), temos que o núcleo do dispositivo é a imagem; se falamos em sociedade do conhecimento (Negroponte), vemos que seu núcleo é a informação; se falamos em uma sociedade excitada (Türcke), então nos referimos ao lugar essencial das sensações em nossa cultura" (Página 164). Apenas para ter uma ideia da profundidade do livro. Como é muito difícil fazer a resenha do livro, vamos a apresentação que está no próprio livro. Primeiramente na contracapa.

"O termo ridículo é usado tanto para falar de algo insignificante, daquilo que não faria diferença, quanto para dar sinal de uma cena escandalosa. Neste livro, deseja-se compreender seu potencial intimamente ligado, em nosso tempo, ao que podemos denominar o momento publicitário da política, que muito tem contribuído para a aniquilação de sua própria ideia como algo positivo. O problema é que política não é algo que se destrói, mas algo que se transforma, e, nesse caso, podemos dizer que o ridículo político é a sua deturpação. O que vem a ser política na era da racionalidade publicitária é a nossa questão. O ridículo político é um efeito da deturpação da política na era do espetáculo; é a deturpação do direito a aparecer, bem como do direito à expressão, do direito de representar e de ser representado. Ridículo político seria, portanto, a forma visível da crise do político enquanto o poder o utiliza justamente para acobertar essa crise".

Já na orelha do do livro, lemos o seguinte: "Quem nunca sentiu vergonha alheia em assuntos políticos? Em nossa época, proliferam cenas que desfiguram a vida política  para além da simples aparência. Um nível curioso de manipulação da imagem nos leva diretamente ao tema da estetização da política, o que representa sua desmoralização. A naturalização e a capitalização do mal-estar estético e ético transformam aquilo que chamamos de ridículo em sua forma de poder capaz de alterar o significado da política. É nesse contexto que podemos falar de "Ridículo Político", fenômeno que tem afetado profundamente a cultura política. 

A berlusconização da política é um fenômeno mundial concomitante à destruição da política. As cenas ridículas - e seus personagens conhecidos - traduzem o sentido da política em nossos dias, mas não apenas como uma bagunça feita por gente despreparada para os cargos que ocupa. A deturpação serve a uma nova política, em um sentido altamente problemático. O poder é transformado em violência, e a seriedade de certos assuntos dá lugar ao cinismo. Enquanto isso, muitos não percebem como ocupam o lugar de otários. Não levar a política a sério se tornou um hábito no Brasil e em todo o mundo. A desatenção ao limite entre o que é simplesmente risível e o ridículo político já produz consequências desastrosas na ordem simbólica. Os cidadãos se afastam da política e um sentido mais radical de democracia desaparece sem muito esforço.

Abusadores do poder seguem sempre mais poderosos como engraçadinhos ou bufões inofensivos, muitas vezes até confiáveis, enquanto a população paga um preço altíssimo por uma despolitização apresentada como o melhor dos mundos. Soltos em escala social, o fascismo, o machismo e o racismo dão o ritmo e o tom da política em nossos dias sem que pareça que algo possa ser feito. Ao introduzir a noção de "ridículo político" no debate sobre estética e política, os ensaios deste livro são uma contribuição original - e fundamental - de Márcia Tiburi para que pensemos sobre quão grave é o hábito de não tratar com seriedade as coisas da política".

Como vimos, ridículo político é a política que provoca riso, que é uma palhaçada. Estes elementos são usados como mistificação. É o momento em que entra em cena a publicidade, que esteticiza este ridículo, para assim dele tirar proveito. Na leitura, com a exemplificação, isto se torna mais evidente e mais fácil de compreender. Entre os muitos exemplos que livro apresenta, mostro dois, que parecem mais evidentes. Dória no Brasil e Trump nos Estados Unidos. O golpista Temer e a sua jovem esposa também fazem parte deste ridículo.

Mas o mais importante do livro vai para muito além destas análises muito perspicazes. É para as suas consequências e para as formas de resistência. A própria Márcia, numa espécie de conclusão aos seus ensaios nos alerta. "Inevitavelmente, precisamos nos perguntar como sairemos disso, como desmancharemos esse processo, como desmontaremos o dispositivo estético político da publicidade política. Sabemos que é preciso pensar, que é preciso refletir, que é preciso produzir outras narrativas capazes de recriar o mundo das subjetividades autônomas e libertárias". O tópico de número 20, sobre o ridículo judicial é simplesmente imperdível. Ainda é necessário dizer que tudo isso é o movimento do capital, em busca de novas formas de dominação.


segunda-feira, 3 de julho de 2017

Os filhos de Lobato. J. Roberto Whitaker Penteado.

Quem é que diz que toda a literatura acadêmica é chata? Acabo de ler um excelente trabalho, uma tese de doutorado, que tem por título Os filhos de Lobato - o imaginário infantil na ideologia do adulto. Seguramente um trabalho nota dez, com direito a publicação em livro. Cheguei a ele, de uma forma como certamente o autor não gostaria, através de uma promoção da Top Livros, de livros de ponta de estoque. Mas isso em nada desmerece o trabalho de José Roberto Whitaker Penteado. Os seus trabalhos relativos a este doutorado foram desenvolvidos na UFRJ.
Um livro maravilhoso. Ótima contextualização e fabulosa análise.

Os filhos de Lobato é uma referência clara sobre a influência exercida sobre as crianças por parte do maior escritor da literatura infantil brasileira. Estas influências são analisadas no último capítulo de sua tese, que é, com certeza também a parte mais difícil de ser investigada. Monteiro Lobato é um escritor extremamente polêmico e, pelo que consta, está eliminado da escola brasileira, sob a acusação de fomento de racismo. Todas estas questões, mais as relacionadas ao seu nacionalismo e a sua luta em torno do petróleo me motivaram para esta leitura, da qual saio plenamente satisfeito.

A tese de José Fernando se desenvolve através de cinco capítulos, a saber: I. Um homem da velha República; II. O nascimento da ideologia; III. A saga do Picapau Amarelo; IV. "Nós precisamos endireitar o mundo, Pedrinho"; V. Os filhos de Lobato. Além dos cinco capítulos, obviamente, tem a apresentação e as conclusões. O livro tem três apresentações. Uma de Ana Maria Machado, que se apresenta como uma das filhas do escritor, de José Murilo de Carvalho, o orientador e de Muniz Sodré de Araújo Cabral, que dá amplo destaque para Emília.

No primeiro capítulo Monteiro Lobato é situado no tempo e no espaço. Nele é reconstituído um ser concreto.  Ele nasceu em Taubaté, em 1882 e morreu em São Paulo, em 1948. As suas atividades foram variadas e também exerceram forte influência sobre a construção do seu olhar para o mundo, olhar este que ele imprimiu em sua literatura. Foi fazendeiro e lidou com café e com empregados, obviamente. Daí a sua visão sobre o povo e o Jeca, o "piolho da terra". Preconceito ou chamada de atenção para o problema? Foi empresário da mineração e do ramo editorial. Nunca foi muito bem sucedido. Era grande admirador das teorias fordista e taylorista. Era grande admirador dos Estados Unidos e de seus valores liberais, com destaque para o individualismo, que chegou a ele, também pelas obras de Nietzsche, de quem era fã incondicional. Este capítulo é formado por seis diferentes tópicos. Pelo meu interesse, o mais interessante dos capítulos, pela contextualização do autor dentro do Brasil da época.

No segundo capítulo entramos mais de perto nos anos de formação do escritor, nas suas experiências de infância e adolescência, nas suas leituras e o contato com a literatura infantil mundial e sobre a sua recepção destas obras. Um belo passeio pelo mundo da literatura infantil. Irmãos Grimm, Andersen... Pequeno Polegar, Chapeuzinho Vermelho, Bela Adormecida... Também são vistas as críticas de Lobato à escola formal, especialmente, ao cerceamento que ela faz sobre a criatividade das crianças. Se preocupa com a preservação da identidade das crianças. Mais uma vez, fortes influências de Nietzsche.

"Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar". Talvez esta frase seja uma síntese perfeita da literatura infantil de Monteiro Lobato. Aliás, a literatura infantil foi o que mais certo deu na vida do autor. Em nenhum outro empreendimento ele foi bem sucedido. O que ele queria efetivamente transmitir através de sua literatura? Isso estava bem claro para o autor. É ele um homem formado dentro das concepções do iluminismo, do positivismo e do evolucionismo. Era a favor do progresso e contra o atraso, procurando combater estas forças promotoras deste atraso. Foi notável o combate que ele sofreu por parte dos católicos, especialmente por seu livro História do mundo para crianças. Muitas condenações por parte do padre Sales Brasil, especialmente, nas concepções contrárias ao criacionismo. Neste capítulo são apresentados os diferentes personagens e as mensagens das quais são portadores. O padre queria queimar os seus livros. Lobato chegou a ser preso pelo Estado Novo.

O quarto capítulo, é bem ilustrado por uma frase de Pedrinho, um dos personagens infantis permanentes da obra. "nós precisamos endireitar o mundo, Pedrinho".  Neste capítulo são esmiuçados os temas abordados e as mensagens de que os personagens são portadores. Lobato era um liberal declarado e também nacionalista, mas como liberal era também anti estatal. Era a favor da exploração do petróleo brasileiro, mas o modelo deveria ser o americano, cabendo a sua exploração à iniciativa privada. Valores tradicionais são vistos com desdém, como os valores da família, em favor da autonomia das crianças. Contra o povo/massa exaltava o valor do indivíduo. Dona Benta e Emília são os grandes personagens portadores da ideologia de Lobato e Nastácia é o personagem que recebe hoje, as maiores críticas, em função do que foi e é considerado como pregação racista. Sua obra é extremamente politizada, mas fora de qualquer visão de política partidária.

O quinto capítulo fala da recepção da obra e de suas influências sobre o mundo infantil. Trata-se de um belo estudo e foi este o objetivo maior da obra. Reparem bem o título. Os filhos de Lobato. Muitos destes filhos são entrevistados e a estes é solicitado sobre as influências que a obra teve em suas trajetórias de vida. Um trabalho que, convenhamos, deve ter sido muito difícil de fazer. Muitos elementos subjetivos e também a questão da formação que percorre muitos e diferentes caminhos. Freud ganha um bom destaque. Recordações e influências da infância.

Em suma, muito aprendi com esta leitura. Também devo confessar que eu não sou um filho de Lobato, embora os anos de minha formação escolar tenham sido os momentos de auge da influência do autor. Nossas leituras eram extremamente selecionadas pelos guardiões de nossa formação, que afastavam de nossos horizontes tudo o que não fosse da tradição do catolicismo, um dos pontos, exatamente, sob o ataque de Lobato.