sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Steve Jobs. Danny Boyle

Tive uma certa resistência em assistir ao filme em cartaz sobre a vida de Steve Jobs. Adoro biografias, mas não tenho nenhum fascínio por pessoas de fama, adquirida por sua riqueza. Em tempos de Oscar priorizo as indicações de melhor filme, mas como estes estão demorando para serem lançados, fui ver Steve Jobs. O que efetivamente me motivou, foi o fato de ele ter sido o grande revolucionário das comunicações, ou mais precisamente, da tecnologia da comunicação.
Cartaz promocional do filme.

Confesso que fiquei surpreso, pelo lado positivo. Fui assistir a um grande filme. Vi depois, que o público dos Estados Unidos não recebeu bem o filme, ao menos no que se refere ao público nas bilheterias e já saiu de cartaz em grande número de cinemas. O filme tem dois focos. Os bastidores dos grandes inventos tecnológicos e o drama da vida particular de Steve, pela difícil relação que teve com uma suposta ou possível filha. Como Steve era um homem de números, calculou que 28% dos americanos (se não me engano) poderiam ser o pai, incluindo ele próprio, é óbvio.

Não sei bem se os problemas eram com a filha ou com a mãe dela e, pasmem, as brigas ocorriam por questões de dinheiro. Mas o sabor do filme está nestes poucos momentos em que o coração do magnata é tocado por esta relação afetiva. A menina sempre aparece em momentos decisivos. Até o pagamento da mensalidade da universidade dela é problema. Os momentos decisivos a que me referi são aqueles em que são feitos os grandes lançamentos dos avanços tecnológicos da genialidade de Jobs (Macintosh - NeXt e os I).  Um fato que me chamou atenção, depois de ver o filme, procurando dados da vida do biografado, é o seu pouco tempo de vida. 1955 - 2011. Morreu aos 56 anos, vítima de um câncer no pâncreas.
O filme tem forte foco nesta relação.

O filme tem diálogos rápidos, tão agitados quanto eram as confusões que antecediam os grandes lançamentos. Acompanhá-los exige concentração total. Não vou fazer grandes comentários, mas com certeza é um belo filme e que merece ser assistido. A direção é de Danny Boyle e o roteiro de Aaron Sorkin. É um roteiro adaptado a partir da biografia escrita por Walter Isaacson. A dupla de atores principais, ou ator e atriz, tem atuação extraordinária e são as únicas indicações a Oscar que o filme recebeu. São Michael Fassbender, no papel de Steve Jobs, como melhor ator e de Kate Winslet no papel de Joanna Hoffman, uma espécie de super secretária, como melhor atriz coadjuvante.

Mas o que efetivamente me levou a esta resenha é uma afirmação de Max Weber sobre o homem moderno que li no livro A Tolice da Inteligência brasileira (pág. 19), de Jessé Souza, que diz o seguinte: "Esses 'tipos ideais' que explicam o indivíduo típico moderno para Weber são, por um lado, o 'especialista sem espírito', que tudo conhece sobre seu pequeno mundo de atividade e nada sabe (nem quer saber) acerca de contextos mais amplos que determinam seu pequeno mundo, e, por outro o 'homem do prazer sem coração', que tende a amesquinhar seu mundo sentimental e emotivo à busca de prazeres momentâneos e imediatos". Inicialmente pensei em por no post apenas esta afirmação. Um espelho perfeito.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

A Tolice da Inteligência Brasileira. Jessé Souza.

Na leitura do livro de Jessé de Souza, - A Tolice da Inteligência Brasileira - ou como o país se deixa manipular pela elite, senti a falta imensa que faz o professor e o estudo sistematizado. É uma leitura deveras provocativa mas que não é de fácil compreensão. Exige-se do leitor muita base teórica, tanto de categorias de interpretação (Weber, Bourdieu, Foucault...), quanto dos principais intérpretes do Brasil. O estudo das interpretações de Brasil me fascina. A primeira observação é a do próprio título e sub título do livro.
Título mais do que provocativo. 99% para 1%. Pode?

Na orelha da capa do livro já encontramos exposta a principal preocupação do livro. "Nos bolsos do 1% mais rico da população brasileira, está o resultado do trabalho dos 99% restantes". Diante desse horripilante dado vem a necessária interrogação. Por que eles, os 99%, aceitam essa situação? A explicação vem - pelo uso da violência simbólica, produzida por um exército de intelectuais que substituem a antiga violência física exercida pelos coronéis, com seu exército de cangaceiros. 

No prefácio vem os alertas. Como a realidade não é vista a olho nu, nos diz o primeiro alerta, "existem ideias dominantes, compartilhadas e repetidas por quase todos, que, na verdade, 'selecionam e distorcem' o que os olhos veem, e 'escondem' o que não deve ser visto". Por que se faz isso? Jessé busca a resposta em Weber: "Os ricos e felizes, em todas as épocas e em todos os lugares, não querem apenas ser ricos e felizes. Querem saber que têm 'direito' à riqueza e felicidade". O que no passado era um privilégio explícito pelo 'sangue azul', os privilégios de hoje precisam ser legitimados, transformados em direitos. Seria o direito do 'mérito pessoal' de indivíduos mais capazes. Existe hoje, presente na sociedade, um racismo cultural. Com a construção dessa legitimação é possível a construção de massas servis e colonizadas até o osso.

Assim o real problema brasileiro, a concentração da riqueza nas mãos de 1% de sua elite, não pode ser vista como problema, mas mérito de seus poucos detentores. A pergunta que se segue  é a de como foi possível construir este tipo de sociedade. Devo ainda uma explicação; Este post tem mais a finalidade de provocar a leitura do livro, do que explicitar os temas tratados. Assim vou apresentar as quatro partes do livro e ir um pouco além de um sumário, apresentando também os subtítulos enunciados:
Jessé Souza é formado em direito mas é mestre e doutor em Sociologia. Professor da UFF.

A primeira parte do livro tem seis capítulos. O primeiro, A falsa ciência, leva a seguinte explicitação: Max Weber e o Brasil: ou como o 'racismo científico' da sociologia moderna é 'engolido' e transformado em pensamento social brasileiro. O que seria este racismo científico? Weber nos fornece as categorias de interpretação. O segundo, O teatro de espelhos do patrimonialismo brasileiro tem como explicitação - Confiança/racionalidade X Corrupção/afeto. Casa-Grande&Senzala (1933) passa a ser analisado. O terceiro, Cordial e colonizado até o osso é acompanhado do seguinte: o liberalismo amesquinhado chega ao Brasil moderno. Creio que todos já identificaram que o objeto de análise será Raízes do Brasil (1936).

O quarto, Donos do poder é apresentado como Os males de origem do estado patrimonialista e a fase de oposição com o mercado. Faoro é acidamente trabalhado. No quinto, O jeitinho brasileiro é mostrado como as banalidades da modernização do culturalismo conservador. Desta vez sobra para Roberto DaMatta. No sexto, O patrimonialismo mostra a que veio, o liberalismo é exposto como racismo de classe. Os atingidos serão Bolívar Lamounier e Amaury de Souza.

A segunda parte tem três capítulos. No primeiro, Nada além do bolso? é mostrado o casamento entre liberalismo e marxismo economicista. Este conceito será explicitado. No segundo, O economismo como cegueira da dimensão simbólica do capitalismo. Não sobra nenhum pequeno comentário a mais para Caio Prado Júnior. No terceiro, Da ralé à revolução burguesa é mostrada a compreensão da singularidade do capitalismo brasileiro e o autor sob análise é Florestan Fernandes.

A terceira parte  tem mais quatro capítulos. O primeiro, Contribuição à inteligência brasileira, para a reconstrução de uma teoria crítica da sociedade no Brasil e no mundo de hoje. Basicamente são retomados os temas já trabalhados. No segundo, A miséria deles e a nossa, é mostrada a dimensão simbólica do capitalismo. As contribuições serão basicamente de Bourdieu. No terceiro, Tão longe, tão perto será visto o que existe, afinal, de comum e de distinto entre as sociedades centrais e periféricas. No quarto, Existe algo de comum na reprodução simbólica das sociedades modernas. São apresentadas novas categorias teóricas de análise, que se constitui numa das mais longas e belas partes do livro.
Jessé Souza exerce hoje a presidência do IPEA, órgão do Ministério do Planejamento.

A Quarta parte é destinada para Conclusões: Para entender a crise atual. Tem três capítulos. O primeiro, A cegueira do debate brasileiro sobre as classes sociais e a pobreza do debate político. Os autores trabalhados são Márcio Pochmann e Marcelo Neri. No segundo, As manifestações de junho e a cegueira política das classes. O terceiro, O golpismo de ontem e de hoje: considerações sobre o momento atual.

Transcrevo ainda o trecho final da orelha da capa; "Tamanha violência só é possível pelo sequestro da inteligência brasileira em prol desse 1% mais rico, que passa a monopolizar os bens e recursos escassos, sejam materiais ou ideais. Em vez de apontar para as causas reais da concentração da riqueza social e para a exclusão da maioria, essas concepções de intelectuais servis ao poder nos levam a acreditar que nossos problemas advêm da 'corrupção apenas do Estado', levando a uma falsa oposição entre o Estado demonizado, tido como corrupto, e um mercado visto como reino de todas as virtudes. Já que as falsas contradições estão sempre no lugar de contradições reais, este livro é um apelo à inteligência viva dos brasileiros de modo a desvelar os mecanismos simbólicos que possibilitam a reprodução de uma das sociedades mais desiguais e perversas do planeta".

A grande questão do livro é revelar que, muito mais do que a corrupção, é a concentração de renda que é o nosso principal problema. A mídia e os intelectuais estão a serviço da ocultação desse problema.




sábado, 23 de janeiro de 2016

A sentença de condenação da União pela prisão ilegal, tortura e morte de Vladimir Herzog.

O livro de Audálio Dantas As duas guerras de VLADO HERZOG - Da perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil, é simplesmente maravilhoso. É um livro de memória e de formação. Ele termina com cinco depoimentos fabulosos das pessoas mais diretamente envolvidas com o caso Herzog. Clarice Herzog, D. Paulo Evaristo Arns, Henry Sobel, José Mindlin, e do juiz Dr. Márcio José de Moraes. O Dr. Márcio produziu um documento histórico, de 56 laudas, em que condenou a União pela prisão ilegal, tortura e morte  de Herzog. A sentença foi proclamada no dia 27 de outubro de 1978, portanto, ainda sob plena vigência do AI-5.
Nas páginas finais deste livro o maravilhoso depoimento do Dr. Márcio.


O depoimento me tocou profundamente. Ele é de uma sinceridade ímpar. O Dr. Márcio não esconde os seus medos, superados pelo dever da consciência. Uma questão de formação. Pela sua importância e beleza o transcrevo na íntegra.

"No dia do culto em memória de Herzog eu fui à praça da Sé. Fiquei numa pastelaria, numa esquina lá no fundo da praça. Enquanto comia um pastel para disfarçar, me prevenir de uma abordagem policial, pensava que mesmo assim, sem coragem de me aproximar da catedral, eu avançara bastante. estava, pelo menos, testando o meu medo.

Eu tinha andado apenas uns 200 metros desde o meu escritório, na rua José Bonifácio, até me refugiar na pastelaria. Mas no meu caso, depois de tantos anos de alienação, minha sensação era a de que acabara de fazer uma grande viagem. Eu sentia, no refúgio da pastelaria, que estava começando a ter consciência do horror que o país vivia.

Eu estava ali, com medo, mas sentia que alguma coisa muito importante acontecia naquele momento. Acho que foi o mesmo que aconteceu com milhares de brasileiros. Eu preciso dizer basta à ditadura. Apesar do medo.

A versão oficial, de suicídio, era insustentável, de uma hipocrisia revoltante. Esta revolta moveu a minha consciência e a de milhões de pessoas. Foi um divisor de águas.
Acompanhando o ato da praça da Sé, amedrontado numa pastelaria. A transformação de uma vida.


Um divisor de águas, certamente, em minha vida. Deixei a banca de advogado e fui prestar concurso para a magistratura. Aprovado, assumi em 1976 o cargo de juiz substituto na 7ª Vara de Justiça Federal em São Paulo. Não podia sequer imaginar que, dois anos depois, cairia em minhas mãos o processo que Clarice Herzog e seus filhos moviam contra a União pela morte de Vladimir.

Avaliei a situação. Estávamos em plena vigência do AI-5 e a mão pesada da ditadura acabara de descer sobre o juiz titular da 7ª Vara, João Gomes Martins Filho, que se preparava para dar a sua sentença, mas foi impedido por uma liminar concedida em mandado de segurança impetrado pelo Ministério Público da União, no então Tribunal Federal de Recursos.

Senti o peso da responsabilidade que deveria assumir.  Eu tinha uma certa noção de que se tratava de um processo de imensa repercussão política e dos riscos que assumiria com ele.

Foi um momento de grande inquietação, de angústia. Debrucei-me sobre o processo. Tinha diante de mim um tremendo desafio. Cabia-me dar a sentença que um velho e digno juiz fora impedido de dar. Eu tinha que ser digno daquele momento.

Tirei férias para mergulhar no trabalho. Deu-se, então, uma revolução interior muito grande. Comecei a me questionar: tenho de encarar esse fato, tenho de ver e rever esse processo para chegar à sentença com dignidade e independência. Mas para chegar à conclusão que antevia, sabia que teria de enfrentar as possíveis consequências. teria que me reformar por dentro, assumir, enfim, todos os riscos.

Passei aquele mês de férias enfrentando a mim mesmo. Trancado em minha casa. No começo, me atormentei, pensando na tragédia de Herzog: "O que aconteceu com esse homem, meu Deus, que tragédia ele viveu em tão poucas horas, as últimas de sua vida? Ele se apresentou à prisão e pouco depois estava morto. Que terror ele sentiu?"  

Essas indagações me atormentavam, me tiravam o sono.
Última fotografia em vida, 33 dias antes da tortura e assassinato.


Sei que os juízes nem sempre têm relação ativa com seus processos. Mas há casos em que os processos os transformam. Foi o que aconteceu comigo em relação ao caso Herzog. Ao ter o processo em minhas mãos, com a responsabilidade de dar a sentença, me transformei como pessoa. Deixei de comer pastel na esquina.

O que fiz, ao mergulhar no processo, foi o que qualquer juiz consciente deve fazer. Não se pode pegar um processo daquele e folheá-lo como se fosse um monte de papéis burocráticos. Se proceder assim, não será um juiz; será um semeador de injustiça.

Ao tocar os papéis, em determinados processos, o juiz pode fazer o exercício de se colocar no lugar da vítima, perceber que por trás deles há pessoas sofrendo.

Eu não conhecia a  senhora Clarice Herzog, mas tinha por ela grande admiração. Admirava-a pela persistência com que lutou para provar que seu marido não se suicidara. Só vim a conhecê-la pessoalmente no fim do ano passado, durante um debate na faculdade de História da USP. naqueles dias, vários eventos se realizaram pela passagem dos trinta anos da morte de Herzog.

Em 1978, logo depois que dei a sentença, a revista Veja me procurou, me ofereceu a capa e as páginas amarelas. Recusei e sugeri que entrevistassem Clarice. Eles fizeram uma grande matéria e puseram a foto de Vladimir Herzog na capa.

Devo dizer, agora, que recusei a capa da Veja não por modéstia; foi por medo mesmo. O peso da sentença era muito grande. No fundo, eu temia uma reação do governo. Afinal, o AI-5 ainda estava na mão deles.

A sentença estava, como era previsível, nas primeiras páginas dos jornais. Sobre ela havia muitas indagações. Uma delas era: como um jovem juiz em início de carreira, em plena vigência do AI-5, ousara condenar a União num processo em que a questão central era a tortura? Outra era se eu tinha lido a sentença que o juiz Martins Filho iria dar às vésperas de sua aposentadoria. Não, nunca li. Nunca, nem antes nem depois de dar a minha sentença.

É importante lembrar as circunstâncias em que o processo veio parar em minhas mãos. No dia 26 de junho de 1978, quando o juiz Martins Filho, titular da 7ª Vara da Justiça Federal, se preparava para dar a sua sentença, chegou de Brasília, por telex, a liminar concedida pelo então presidente do Tribunal Federal de Recursos (TRF), Jarbas Nobre, impedindo a sua leitura.

Com aquilo se pretendia impedir que um juiz em final de carreira desse uma sentença condenando a União. Ele poderia fazer isso por estar em fim de carreira e, portanto, nada tinha a perder. Convinha, assim, que o processo fosse para a mão de um juiz iniciante que, ao contrário, teria tudo a perder. No caso, eu, que era o substituto.

Quando o juiz Martins Filho, um grande homem, me entregou o processo, junto vinha um bilhete que li emocionado: "Mal sabem eles que a sua mão é muito mais forte do que a minha".
A imagem símbolo da tortura e assassinatos sob o regime militar.


Naquele momento, eu tinha uma certeza: tinha de ser digno na tarefa de substituir um homem digno. No processo que ele me entregou, estavam todos os depoimentos candentes das pessoas que passaram pelo DOI-Codi na época em que Vladimir Herzog foi morto. Os depoimentos não deixavam dúvidas sobre a violência da tortura praticada contra os presos. Além disso, havia fortes evidências de que o inquérito que o comandante do II Exército mandara fazer estava repleto de contradições. Logo percebi que a necrópsia que fizeram para atestar o suicídio não era verdadeira. Entre as evidências de sua falsidade estava o fato de que um dos peritos que assinaram o laudo não estava presente no ato do exame pericial, mas o assinou depois, em confiança. Isso era suficiente para a anulação do laudo.

Passo a passo, caminhei na direção da sentença. Durante esse caminhar, encontrei vários colegas que me aconselhavam a ir devagar, que não deveria dar logo a sentença. O AI-5, lembravam, estava em vigor e eles iriam me pegar. Um colega que era deputado federal, Hélio Navarro, argumentava que eu deveria aguardar pelo menos até janeiro do ano seguinte (1979), quando era prevista a extinção do AI-5.

Mas eu tinha, mais do que uma decisão, uma convicção: a sentença deveria ser dada na vigência do AI-5. Assim teria o sentido de um brado de resistência à ditadura e de afirmação do Poder Judiciário. Era, também, uma homenagem ao juiz que fora silenciado.

O caminho percorrido até a sentença não foi fácil. Havia o temor de que algo de ruim pudesse acontecer a mim e à minha família, eu tinha consciência de que poderia estar caminhando para o fim de minha carreira.

Conversei sobre isso com a minha família, explicando o que eu estava temendo. Recebi todo o apoio de minha primeira esposa, Ângela. Havia muitas razões para preocupação. O momento era difícil, delicado pois tínhamos duas filhas pequenas, a Adriana, com 2 anos e a Ana Paula, recém-nascida.

Mas fui em frente. Minha decisão era a de que deveria conduzir o meu trabalho no sentido de chegar a uma sentença com fundamentos jurídicos que lhe dessem o máximo de consistência, que não deixassem margem a contestação. Ela deveria ser desprovida ao máximo de adjetivos. Eu não queria cutucar a ditadura. Se eu podia dar uma tijolada na ditadura, por que iria atirar-lhes pedrinhas?

Quando chegou o dia de anunciar a sentença [27 de outubro de 1978], as preocupações eram maiores. A grande repercussão na imprensa  foi acompanhada por algumas ameaças, telefonemas, cartas anônimas. Eu temia, claro, mas considerava improvável um atentado. Tornara-me conhecido, apoiado pela imprensa, pela maioria da opinião pública. Eles podiam ser violentos, mas não eram burros. Um atentado poderia me transformar em mais um mártir. Não convinha.

Restava o temor de ser alcançado pelo AI-5. Poderia ser cassado, e isso significaria o fim de minha carreira.
O Doutor Márcio. O corajoso juiz que condenou a União em plena vigência do AI-5.


A sentença que responsabilizou a União pela morte de Herzog atingiu o regime militar em seu âmago, já que ele foi morto num recinto militar. Depois de meditar sobre esse fato durante muitos anos, concluí que nesse episódio, em que, logo depois de Herzog, houve a demissão de um comandante militar da chamada "linha dura", teve início a futura redemocratização do país. Ali se deu, na verdade, a ruptura do Estado ditatorial. Foi o Estado Judiciário condenando o Estado Ditatorial. Rompeu-se, ali, a unidade do Estado repressivo, como um vaso que se quebra e não tem mais conserto". 

DANTAS, Audálio. As duas guerras de VLADO HERZOG. Da perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2012. Páginas 390-394.

Adendo. Em 7 de julho de 2023. O livro de Audálio Dantas Tempo de reportagem, na sua parte final, tem uma entrevista/homenagem, em que ele fala sobre este livro, sobre o assassinato de Herzog, em 1975. Vejamos:

"Eliane Brum: Uma coisa que eu fico curiosa, Audálio. Por que só agora tu resolveste escrever sobre isso? E o que significa esse livro para ti? Porque acho que ele significa muitas coisas.

Audálio: Interessante isso, porque já se escreveram vários livros sobre o caso Herzog, e eu, desde o início - isso foi em 1975 - penso em contar essa história. O que me passou pela cabeça: que estava no olho do furacão. O medo de ser, como acontecia com qualquer um, alcançado, de ser levado para uma das casas de tortura e de assassinatos. Mas aquela história: há momentos em que o medo, ao ser enfrentado, mostra que você precisa ter coragem. É curioso, é uma contradição. É isso o que aconteceu. Então eu fiquei com isso, mas, ao mesmo tempo, havia um bloqueio psicológico muito grande. Como é que eu vou contar essa história? Já foi contada, recontada. Até que chegou o momento, e eu disse: eu vou contar porque eu tenho a minha visão dessa história. Vou contar com outras palavras, ué. Ou então com outros aspectos que não são lá muito conhecidos. O livro não procura trazer novidades, mas contar do meu ponto de vista e do ponto de vista dos companheiros que estavam lá"..... Deixo também a resenha de Tempo de reportagem - histórias que marcaram época no jornalismo brasileiro.



quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A Grande Aposta. Adam McKay

A Grande aposta é um filme que mostra a crise imobiliária dos Estados Unidos, ocorrida no ano de 2008. O filme tem a direção e roteiro de Adam MaKay, auxiliado por Charles Randolph. O roteiro é adaptado do livro The Big short, lançado nos Estados Unidos em 2010, virando best-seller, e no Brasil em 2011, com o título de A Jogada do Século, pela Best Business (Record).


Como o filme é um tanto complicado de ser seguido por não ser um filme linear, ele vai sempre repetindo cenas em que os atores atuam e comentam sobre as suas atividades no complicado mundo financeiro, optei por passar uma pequena resenha do livro, que retirei do site da Livraria da Travessa, que inclusive tem o livro disponível para compra. Eis a pequena mas ilustrativa resenha:

"Wall Street afundou a economia global em uma das maiores recessões econômicas das últimas décadas. A crise mundial de 2008 teve início nas hipotecas subprime – um sistema de dívidas lastreadas praticado pelas principais instituições do mercado. É por dentro da maior bolsa de valores do mundo que o autor Michael Lewis conta em A jogada do século como operadores irresponsáveis deram início à grande crise. Elogiado pela crítica especializada, este aguardado título chega às livrarias para explicar como se deu a quebra do outrora poderoso mercado imobiliário norte-americano".



O filme foi muito bem recebido pela crítica, mas não tão bem pelos espectadores. Adam McKay não facilita a vida desses espectadores. A linguagem usada é a mesma linguagem técnica dos operadores do mercado e, nem poderia ser diferente. Gostei de uma classificação, ou de um enquadramento do filme, que o qualifica como uma comédia irônica, mas que na verdade é um drama ou uma tragédia, da qual milhares de pessoas imigrantes e pobres foram as grandes vítimas.

O elenco dos atores é grandioso, contando com a presença de Brad Pitt, que também é o produtor do filme. Brad Pitt não é o protagonista entre os atores. Este papel está reservado para Christian Balle, que interpreta Michael Burry, o primeiro a diagnosticar e desvendar a crise, mas sem conseguir fornecer um receituário para evitá-la. Ainda se destacam Rayan Gosling e Steve Carrel, como operadores do mercado. Neste mundo financeiro, nenhum papel preponderante é atribuído às mulheres.

Não sei se este filme se enquadraria como sendo de entretenimento. Eu o classificaria mais como um filme didático, com explicações minuciosas, detalhadas e ilustradas sobre o como se deu a crise imobiliária, sem precedentes, na história americana e que levou a sua economia a uma crise quase tão grave, quanto a ocorrida em 1929. As nefastas  consequências se estenderam por um longo tempo e que só foram minoradas por uma forte ação salvadora por parte do Estado. Para salvar o mercado financeiro, às favas os dogmas da não intervenção. Para os banqueiros o socorro do Estado. O resto, que fosse pago pelos de sempre. O povo imigrante e pobre, como o filme faz ver.

Excesso de crédito. Certamente esta é a principal causa da crise. Mesmo sem comprovante de renda, os financiamentos eram abundantes. A origem do dinheiro era oriunda de títulos de financiamento vendidos no mercado. O filme ironiza as streapers, que, para obterem financiamento, indicavam o exercício da profissão de terapeutas. O crédito era concedido não para apenas um imóvel, mas para vários. Posteriormente os créditos foram cortados e os imóveis ficaram sem pagadores e sem novos compradores. A crise consumiu em torno de um PIB anual inteiro da economia americana.


O ponto alto do filme é o seu caráter de denúncia. Denúncia do sistema financeiro, do sistema bancário e das agências de risco, estas que classificam papéis, instituições, países e títulos, como recentemente ocorreu com a classificação - para menos - dos títulos brasileiros. Gostei de uma crítica que eu li, profundamente irônica, dentro do espírito do filme, de que muitos espectadores saíram frustrados do filme, não o entendendo, por não ter nenhuma acusação ao PT pela escandalosa corrupção que corria solta. Se o PT foi poupado, o mesmo não acontece com Allan Greenspan, uma espécie de diretor do Banco Central deles, do Sistema Federal de Reserva dos Estados Unidos.

Tecnicamente o filme só recebeu elogios, com grande destaque para a sua trilha sonora. É apontado como um dos favoritos ao Oscar de melhor filme. Junto com esta indicação ele também concorre com as indicações de melhor diretor, melhor roteiro adaptado, melhor montagem e o melhor ator coadjuvante para Christian Balle, no papel de Michael Burry. Imperdível para compreender um pouco melhor o funcionamento da perversidade e impiedade do sistema capitalista.






quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

As duas guerras de VLADO HERZOG. Audálio Dantas.

Raramente vejo televisão. Também tenho por hábito, antes de dormir, dar uma zapeada pelos canais. Foi numa dessas zapeadas que parei na TV Cultura, no programa Roda Viva. Tratava-se de um programa especial para lembrar os 40 anos da morte de Vladimir Herzog, morto nos porões do DOI-Codi paulista, no dia 25 de outubro de 1975, no governo do general Ernesto Geisel. O entrevistado era o jornalista Audálio Dantas, que era o presidente do sindicato dos jornalistas do estado de São Paulo na época. Todos os entrevistadores viveram aqueles dias de ira. Todos, de uma forma ou de outra, testemunharam os horrores daquele tempo.
Um livro de memória e de formação.

Logo percebi a dimensão do programa e, no dia seguinte, o assisti na íntegra pela internet. Também verifiquei se o seu livro As duas guerras de VLADO HERZOG - Da perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil, ainda estava em circulação e o encontrei na livraria do Folha. Ele foi publicado em 2005. É um depoimento muito significativo, uma vez que Audálio Dantas, então presidente do sindicato dos jornalistas de São Paulo, atuou com extrema coragem à frente do sindicato, denunciando a tortura até a morte do jornalista e ajudando a organizar e presidir atos em homenagem e denunciando a farsa da versão oficial da ditadura de que Vlado havia se suicidado. Os fatos são hoje reconhecidos como o início do enfrentamento ao poder ditatorial.

Apesar do título evidenciar os dois momentos da vida do jornalista, apenas o primeiro capítulo, de um total de 34, descreve a rota de fuga do menino e de seus familiares da perseguição nazista. A rota de fuga foi, da então Iugoslávia para a Itália, pelo mar Adriático. Ao final da guerra escolheram como destino o Brasil, chegando ao Rio de Janeiro e se estabelecendo em São Paulo, onde fez os seus estudos, dedicando-se a duas atividades mais ao seu gosto: o jornalismo e o cinema. Trabalhou na BBC, em Londres e, de volta ao Brasil, foi trabalhar na TV Cultura, sendo governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins e o notável José Mindlin o diretor da Fundação Padre Anchieta. O ano da volta, 1968, o ano do AI-5. Também trabalhou na revista Visão.
A foto símbolo da tortura  e de assassinatos durante a ditadura militar.

O grande azar de Vlado foi ter vivido em tempos de uma surda guerra intestina na ditadura militar. De um lado o general Geisel, em dupla com o general Golbery anunciavam uma abertura lenta, gradual e segura. Já em São Paulo, outra dupla articulava um novo golpe dentro do golpe, sob o comando dos generais Sílvio Frota e Ednardo d'Ávila Mello, os chamados indonésios. As vítimas da extrema direita, após a liquidação da luta armada, eram agora os militantes do PCB, que militavam em bom número nos meios de comunicação de massa. Herzog chegou a se filiar ao partido, mas sem militância ou organicidade no partido.

Vlado chegou a negociar a sua ida ao DOI-Codi, se apresentando no dia 25 de outubro, pela manhã, para não ser preso na véspera. Não tentou a fuga por absoluta convicção de sua inocência. Morreu naquele mesmo dia, sendo torturado até a morte. Depois inventaram a farsa do suicídio. É nessa parte que está o objetivo central do livro que é a ação do sindicato, em enfrentar a situação e por um basta nas torturas e assassinatos.
A última foto de Vlado em vida, 33 dias antes de seu assassinato.

A narrativa passa pelo velório e enterro de Vlado no hospital Albert Eistein e no cemitério israelita, com o agravante das contradições entre as tradições judaicas e a pressa dos militares extremistas. A condição de suicida só permitiria enterro em lugar isolado no cemitério. Também entre a comunidade judaica houve problemas. A ala conservadora, aliada dos militares e atuação do rabino Henry Sobel, que não concordava com a versão do suicídio. Sobel teve atitudes extremamente corajosas, que lhe deram ascendência na comunidade e o reconhecimento do Brasil democrático.

O clima era de muita tensão e o sindicato viveu como que em assembleia permanente. O que fazer? Os já raivosos militares ficariam ensandecidos diante de qualquer provocação. Manifestos, versões, construção e desconstrução foram os embates destes difíceis dias. O maior e mais decisivo ato aconteceria no dia 31 de outubro, quando ocorreu o ato ecumênico para homenagear o assassinado, na catedral da Sé. Foi montada a operação, observem o nome, Gutenberg, que isolou a Sé e infiltrou agentes entre os participantes do ato. Tudo terminou bem. Temia-se uma manifestação mais ruidosa, especialmente por parte dos indignados estudantes.

Quando tudo indicava que o grupo de Geisel/Golbery conseguira dominar os extremistas, ocorre nova morte no DOI-Codi, desta vez do operário metalúrgico Manoel Fiel Filho. Este assassinato, no entanto, não teve a mesma repercussão. Esta tal da divisão social do trabalho! As intervenções de Geisel afastando os extremistas conteve as ações de um novo golpe dentro do golpe e o programa de abertura foi se estabelecendo, na mesma medida em que o povo já não mais suportava os atos da ditadura, através de crescentes manifestações.
O ato ecumênico da Sé. O povo enfrenta a ditadura.


O penúltimo capítulo do livro é muito bonito. Clarice, a esposa de Herzog consegue a condenação da União pelo crime de assassinato de Vladimir Herzog. A versão do suicídio estava definitivamente desmontada. Juridicamente isso foi uma batalha, com a aposentadoria compulsória de um juiz que completaria 70 anos e a coragem de um menino novo, que estivera timidamente presente no ato ecumênico da Sé e que depois virou juiz. O livro termina com cinco depoimentos magistrais, colhidos em 2005, por ocasião da escrita do livro. Um deles é o do Dr. Márcio José de Moraes, o juiz em início de carreira, que condenou a União, em plena vigência do AI-5. Os outros depoimentos são de Clarice Herzog, de D. Paulo Evaristo Arns, de Henry Sobel e José Mindlin. Lembrando que o ato ecumênico da Sé foi presidido por D. Paulo Evaristo Arns, Henry Sobel e pelo pastor James Wright. O ato também contou com a presença de D. Hélder Câmara.

Pela beleza do depoimento do Dr. Márcio, vou fazer um post especial para mostrar o seu ato digno e corajoso, que inclusive poderia prejudicar a sua carreira. Não hesitou e a sua atitude em muito contribuiu para que o país voltasse para a normalidade democrática e para o mínimo de respeito aos direitos humanos. Um livro maravilhoso, com um valioso encarte de fotografias. Um livro de memória e de formação.


quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Os oito odiados. Quentin Tarantino.

Um filme de Tarantino sempre gera muita expectativa. Sem dúvida nenhuma, é ele o maior representante do chamado cinema de autor em nossos tempos, cinema em que o diretor vai muito além da direção, cuidando de quase todos os detalhes do filme, especialmente, de seu roteiro, que é por onde um filme sempre começa. Sob hipótese nenhuma existe a divisão entre a concepção e a execução da obra, em que a mente e a mão não se separam, sempre trabalhando juntas. Só este fato já referencia um filme, e muito mais, quando se fala de um diretor da estatura de um Quentin Tarantino. Aos chamados gênios sempre são permitidas criações que seriam inimagináveis para os comuns dos mortais.


É um filme longo, quase três horas de duração, mas como o roteiro é bem definido, o filme flui e não provoca cansaço, embora haja muita reclamação pelo excesso de diálogos, especialmente, na primeira parte do filme. Não vi estes excessos. Ele é dividido em seis capítulos e ganha muita intensidade a partir do quarto. O roteiro nos leva ao cenário do pós guerra civil, no sul dos Estados Unidos. O ódio que dá título ao filme, além dos componentes contextualizados do pós guerra, tem no racismo o seu componente mais forte, ao negro e ao mexicano, mais precisamente, como veremos.

O roteiro é relativamente simples. Começa com duas pessoas numa diligência. Um caçador de recompensas (John Ruth) leva a sua vítima (Dayse Demergue) para a cidade de Red Rock, no estado de Nevada, onde, por ela, receberá uma recompensa de dez mil dólares. A relação é brutal. A vítima merece uma atenção especial. No caminho ocorre uma tempestade de neve, quando cruzam com um outro caçador de recompensas (Major Marquis Warren) e o aceitam como carona. Atenção redobrada nesse personagem, interpretado por Samuel Jackson, que diríamos assim, é o personagem central do filme. É negro. Pouco depois a viagem é novamente interrompida por um outro personagem perdido na tempestade. Também o recolhem. É Chris Mannix, também em busca de Red Rock, onde irá  assumir o poste de xerife.


Impedidos de continuar a viagem em função da intensidade da tempestade, se recolhem ao bar da Minnie, onde se somam a outros quatro personagens que já estão ali, formando assim, os oito odiados, que dão o título ao filme. Três são ladrões e um é um general que participara da guerra da Secessão, pelo lado do sul. É possível que haja mais gente, mas estes oito, são os visíveis. Mais eu não conto, sob pena de entregar o suspense do roteiro. O ambiente é tenso e as cenas são de muita violência e de muito sangue, bem ao estilo de Tarantino. Os personagens, mesmo se odiando e não sendo nada confiáveis, estabelecem entre si alianças, pactos e conchavos, visando a sobrevivência. Mais da metade do tempo do filme se passa nesse bar. Uma espécie de realpolitik levada ao extremo.

Para mim uma das melhores cenas é aquela em que o negro Major Marquis Warren se confronta com o velho general sulista e racista, que a rigor, nem deveria estar aí. Está em viagem para dar sepultura a um filho seu, que presume como morto. Ocorrem aí as cenas mais explícitas do ódio racista. Major conta ao general as atrocidades cometidas pelo filho, bem como os detalhes de sua humilhante morte, que não hesita em contar, que foi de sua autoria. Esta cena, creio que seja um dos propósitos de Tarantino para a realização do filme. Também não a conto, para preservar o suspense. O preconceito com relação a um mexicano entre os oito, ocorre tanto de forma explícita, quanto por dedução lógica. A esta altura, Major já assumiu um certo protagonismo entre os oito. Ele é portador de uma carta, endereçada pessoalmente a ele, pelo ex presidente Abraham Lincoln, na qualidade de amigo. Esta carta também adquire relevância no fechamento do roteiro. 


O papel desempenhado pela vítima Dayse Domergue é nojento e asqueroso. É praticamente o único personagem feminino do filme. Ela é bem pior do que parece à primeira vista. Não é por nada que vale a recompensa de dez mil dólares. A crítica a aponta como candidata ao Oscar de melhor atriz coadjuvante. Mas o destaque entre os atores é o de Samuel Jackson, numa atuação impecável. Ele se destaca em meio a um elenco consagrado. Outro grande destaque do filme é a música, que leva a assinatura de Ennio Morricone. Parece que a relação entre eles, ao menos neste filme, não foi das melhores. Como já apontamos, a direção e o roteiro são do próprio Tarantino.Também a fotografia merece destaque todo especial, com belas paisagens e  cenas de tempestades de neve. As roupas de frio também chamam atenção. Dá vontade de ter umas assim para o frio curitibano.

A crítica tem sido mais ou menos unânime em não apontar este filme como entre os melhores do cineasta e alguns, inclusive, lhe teceram severas críticas. Mas, como já afirmamos, aos gênios são permitidas liberdades e digressões não permitidas aos comuns. Apesar de ser um filme essencialmente de entretenimento, ele também deixa a sua mensagem. Ele põe a cultura americana à frente do espelho para ver as suas feridas, ainda tão profundamente marcantes e não apagadas, apesar do longo tempo histórico em que ocorreram. Filme atualíssimo. Eu, particularmente, pensei muito no Brasil, ao vê-lo, em função das elevadíssimas doses de ódio e de intriga atualmente presentes em nossa sociedade. Ódio de classe e de raça, especialmente.






sábado, 9 de janeiro de 2016

Spotlight. Segredos Revelados.

Fui hoje assistir a Spotlight. Segredos Revelados. A minha expectativa era enorme. Vou fazer um relato, levando mais em conta o que eu senti, ao assisti-lo, do que as virtudes cinematográficas propriamente ditas. Antes de mais nada devo dizer que o filme é extremamente delicado no trato de problemas tão sérios dentro de uma instituição tão poderosa. O roteiro do filme se passa na católica cidade de Boston e se ocupa dos inúmeros casos de pedofilia ocorridos e acobertados por todos os que tinham poder, começando pela igreja, pelo poder judiciário e da própria imprensa. Uma data. Os primeiros momentos do século XXI, com direito a uma retrospectiva aos anos 1990.

O filme, acima de tudo, é uma brilhante aula de jornalismo investigativo. O grande jornal da cidade, o The Boston Globe, recebe um novo diretor de redação, com a missão de resgatar o prestígio do jornal diante da crise provocada pelos tempos on line.  O diretor fareja os problemas de pedofilia e manda investigar. É constituída a equipe spotlight, formada por quatro jornalistas que começam o difícil trabalho. Tudo é silêncio e acobertamento. Todas as instituições silenciam. Ninguém quer prestar informações. Aí então, começa uma verdadeira aula de jornalismo.

Por ser este o núcleo central do roteiro, dou logo a equipe de atores, bem como o diretor e roteirista do filme. É um filme de autor, pois o seu diretor Thomas McCarthy é também o seu roteirista, junto com Josh Singer. O novo diretor de redação é Marthy Baron, interpretado por Liév Schreiber e a equipe de jornalistas da spotlight é Walter Robinson ou "Robby" (Michael Keaton), o seu chefe e jornalista mais experiente e que cuida dos aspectos legais das publicações, Michael 'Mike' Rezendes (Mark Ruffalo) o mais impulsivo, Sacha Pfeiffer (Rachel Mc Adams) e Matt Carrol (Brian d'Arce James). Aula de jornalismo, na busca de fontes, na persistência da investigação e no tempo oportuno para a publicação.

A busca começa pelas vítimas, pouco dispostas a falar e com visíveis sequelas dos atos de que foram vítimas. Depois das vítimas, outros envolvidos foram buscados, especialmente o advogado responsável pelo acobertamento dos crimes. Os padres pouco falam. Existe o caso de um deles, que logo é impedido de falar. As investigações ganham consistência com a quebra de sigilo de justiça que acompanhava os casos. Outro grande fio investigativo foram os padres que eram transferidos com frequência e os registros das causas dessas transferências. Eram eles os pedófilos..

O filme termina com a publicação dos escândalos e a sua enorme repercussão. O filme termina por aí, apresentando ainda grande lista de casos semelhantes aos de Boston pelo mundo afora, inclusive, os casos brasileiros. Vi sobre o cardeal da cidade, Bernard Law, que na época chegou a ser confirmado no cargo pelo papa João Paulo II, mas que não resistiu às pressões e pediu demissão de seu ofício, sendo transferido para Roma, para a igreja de Santa Maria Maggiore. O novo bispo de Roma, o papa Francisco visitou a igreja, mas não viu o cardeal. Foi uma cena de grande constrangimento. Lembrei de Leonardo Boff, que, mais ou menos, assim afirma, que Francisco está mais preocupado com a igreja de Cristo, dos primeiros cristãos, do que com a igreja como instituição de poder.

O meu primeiro sentimento no cinema foi de pena, exatamente, do papa Francisco. Tudo indica que ele quer realmente enfrentar o problema com seriedade. Resta saber se terá forças para tanto. Certamente, esta é uma das questões que levaram Bento XVI à renúncia. Torço para que o papa Francisco encontre forças para seguir a sua trajetória e que encontre as luzes necessárias para a iluminação de seu caminho. Mais uma vez recorro a Leonardo Boff para expressar o meu temor. Seus inimigos já estariam rezando: "Senhor, ilumine-o ou elimine-o".

Particularmente me chamaram atenção algumas cenas ou fatos relatados. Fico no aguardo do lançamento do livro para averiguar melhor. O filme traz alguns segredos revelados como as estatísticas de psiquiatras. Estas estatísticas constatam que 50% dos padres tem vida sexualmente ativa, mas sempre de forma clandestina e sigilosa, o que cria o hábito do acobertamento, incentivo e estímulo à práticas, na sequência, absolutamente ilícitas como a pedofilia, e que esta, seria praticada por 6% dos padres. A partir destas estatísticas a equipe de Spotlight buscou o número de padres pedófilos em Boston.   As vítimas tem um perfil geral comum: crianças de famílias pobres, assistidas pelas entidades assistenciais da igreja, vítimas fragilizadas e mais predispostas ao silêncio. O medo do poder da igreja é geral, o que favorece o acobertamento. Isso ocorre com as investigações, com os julgamentos e o silêncio da mídia. 

Por fim, uma confissão. Eu fui seminarista. Passei pelo seminário desde os tempos da admissão ao ginásio, os anos do ginásio, do ensino médio e da faculdade de filosofia. Foi então que eu saí, mais por questões de obediência do que de sexualidade. Do padre vigário de Harmonia tenho o seguinte a falar. Foi vigário por 50 anos e depois ainda ficou como auxiliar. Um exemplo de homem sério e virtuoso. Nunca ouvi uma única palavra que o desabonasse. No seminário, nunca soube de padres envolvidos. As vezes, em dias em que a gente tinha, o que chamávamos de dias de passeio, de piquenique, no dia seguinte, alguns colegas não estavam mais entre nós. E os boatos que corriam é que eles haviam sucumbido às tentações. Mas voltando ao sério. O filme é muito respeitador e que mais procura uma solução para o problema do que uma mera crítica à igreja católica, tão comum nestes nossos dias de evangelismo neopentecostal.

O filme já ganhou o prêmio de melhor filme do ano, assim escolhido pela Associação dos Críticos de Cinema dos Estados Unidos. É um sério candidato a Oscar de melhor filme. Um filme absolutamente imperdível. E ficamos no aguardo do livro.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Alteridade. Albert Jacquard.

Como o livro Como conversar com um fascista - Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, de Márcia Tiburi trabalha muito com o conceito de alteridade, com a relação que estabelecemos com o outro, com o outro que me constitui, resolvi trazer para o blog, as belas reflexões contidas no livro Filosofia para não filósofos, de Albert Jacquard, com participação de Huguette Planès, sobre a palavra alteridade. Resolvi transcrever o texto, pela sua rara beleza e importância e por não ser tão fácil de localizá-lo. A apresentação do texto é feita sob a forma de diálogo, com as perguntas sendo feitas por Hugette Planès e as respostas dadas por Albert Jacquard, começando por uma bela frase de epígrafe.
O belo livro de Albert Jacquard, Filosofia para não filósofos.
ALTERIDADE: "Aprendamos a viver juntos como irmãos; caso contrário, vamos morrer como idiotas". Martin Luther King.

Inúmeras gerações de estudantes de filosofia aprenderam a célebre frase de Sartre: "O inferno são os outros". Como é que o senhor reage a isso?

Observando que, longe de expressar a opinião do autor, essa frase não passa de uma réplica, em contexto, em contexto bem determinado, inserida em uma peça de teatro. Representa apenas a constatação de uma personagem que inicia sua estada no inferno. Se tivesse sido recebida no paraíso, sem dúvida, teria declarado: "O paraíso são os outros". Mas se tivesse continuado sua vida terrestre, deveria ter constatado que "o inferno é ser excluído pelos outros". Os outros não são nosso inferno pelo fato de serem outros; criam nosso inferno quando não aceitam estabelecer relações conosco.
Acredito na necessidade da relação com o outro não apenas para ser feliz, mas principalmente para me tornar consciente.

Está querendo dizer que o senhor não poderia existir sem os outros?

Com toda a certeza eu poderia existir sozinho, mas não poderia ter conhecimento disso. Minha capacidade para pensar e dizer "eu" não me foi fornecida pelo meu patrimônio genético; o que esse me deu era necessário, mas não suficiente. Só consegui dizer "eu", graças aos "tu" que ouvi. A pessoa que sou não é o resultado de um processo interno solitário; só pode construir-se encontrando-se no foco dos olhares dos outros. Não só essa pessoa é alimentada com todas as contribuições dos que me rodeiam, mas sua realidade essencial é constituída pelas trocas com eles; eu sou os vínculos  que vou tecendo com os outros. Com essa definição, deixa de haver qualquer corte entre mim e os outros.
No entanto, por definição o outro é "outro".

É justamente porque não é idêntico a mim que o outro participa de minha existência. Uma carga elétrica só é definível em presença de outra carga. É essa coexistência que é fonte de tensão; ela inicia uma dinâmica, a da comunicação. Comunicar é colocar em comum; e colocar em comum é o ato que nos constitui. Se alguém considera esse ato impossível, recusa  qualquer projeto humano.
Evidentemente, ainda tem de ser superadas as dificuldades que transformam cada comunicação em uma façanha. Com toda a certeza, não é possível alcançar uma autenticidade que seja sinônimo de compreensão total. Os meios utilizados para comunicar não podem ser perfeitos. A cadeia: pensamento - frase dita para expressar esse pensamento - frase ouvida - pensamento reconstituído a partir dessa escuta - comporta várias possibilidades de erros ou imprecisões.
A mensagem da contracapa do livro.
Por exemplo, a frase:"O gatinho morreu", na peça de Molière, é o caso limite de uma informação aparentemente objetiva, desprovida de qualquer ambiguidade e que, no entanto, por associação de ideias, provoca inquietações de natureza mais grave do que a morte do gatinho. Com efeito, qualquer frase, mesmo se está resumida a um sujeito, predicado e complemento, é portadora de uma mensagem que a supera, considerando o contexto e a maneira como ela é emitida. Com toda a certeza, contém uma informação, mas participa, simultaneamente, de uma comunicação; o que implica, no mínimo, duas pessoas e, por conseguinte, intervenção simultânea do emissor e do receptor.
Dito de maneira diferente, uma palavra só adquire sentido em um certo contexto, que não pode ser o mesmo, por exemplo, para um jovem e para um adulto. Portanto, é necessário admitir que a ferramenta da comunicação é imperfeita. Não há fórmula para remediar isso, a não ser a consciência dessa dificuldade pelos intervenientes e a vontade de superá-la, ao não confinar o interlocutor nas frases que pronunciou.
Pode-se, no mínimo, esperar que essas dificuldades inerentes ao procedimento de troca não sejam agravadas pela atitude das pessoas em questão. Se a mentira ou a má-fé vierem a se inserir no processo, já não haverá troca, mas manipulação recíproca.

Mentira, mas também humilhação. Não será isso ainda pior?

A primeira condição de qualquer comunicação é, com efeito, o respeito. Respeitar o outro é considerá-lo como uma parte de si, o que fica evidente se aceitarmos a definição: "Eu sou os vínculos que vou tecendo com outros". Desta vez, a ética já não consiste em formular preceitos que teriam caído do céu; é a consequência da tomada de consciência do que somos e daquilo que nos faz ser o que somos.

Jean Jaurès fazia questão de não confundir respeito e tolerância. Acreditava que a palavra tolerância era perigosa, em todo caso, insuficiente, condescendente, inclusive injuriosa: "Vocês são tolerados".

A tolerância é uma atitude muito ambígua ("Para isso, existem casas...", dizia Claudel). Tolerar é julgar-se em condições de dominar, julgar; é ter de si mesmo um conceito o bastante positivo para aceitar o outro com todos os seus defeitos. É necessário tomar um rumo completamente diferente e tomar consciência da contribuição dos outros, que se torna tanto mais rica quanto maior for a diferença em relação consigo mesmo.
É, aliás, a razão pela qual não só valorizo a comunicação entre as pessoas, mas também guardo a maior reserva em relação às tecnologias ditas de comunicação que, na realidade, não passam de meios de informação. Na medida em que traz informação, a informática é preciosa; mas limita-se a fornecer comunicação em conversa, congelada. É incapaz de provocar  os sobressaltos criadores que se reproduzem, naturalmente, em um diálogo verdadeiro, feito não só de silêncios, mas também de palavras.
A própria televisão constitui um meio de informação, isto é, de revestir as coisas de uma certa forma; mas, raramente, um meio de comunicação, ou seja, de por as coisas em comum.De fato, leva antes à supressão de qualquer diálogo já que funciona em mão única. Corremos o grande perigo de ela nos transformar em seres passivos, cuja única reação é zapear, isto é, abandonar o interlocutor, em vez de lhe prestar atenção. Expressar uma ideia é uma atividade difícil que deve  ser exercitada; a TV suprime esse exercício; corremos o risco de nos tornarmos todos mudos, frustrados em sua palavra, e que acabarão saciando suas pulsões através da violência.

É o que se vê, perfeitamente, no caso extremo dos que são relegados para os subúrbios e a quem é negada qualquer verdadeira comunicação.

É claro, não se trata da verdadeira etimologia, mas "banlieue" soa, com efeito, como lugar de banimento. E é verdade que os que vivem aí são colocados fora da cidade, fora da lei, fora da vida.
O essencial lhes é recusado, ou seja, a troca com o outro. Vejamos qual é o cerne do problema de cada um: tornar-se si mesmo. Ora, essa autometamorfose não é realizável a não ser por troca. A natureza deu-nos todos os órgãos necessários para nos tornarmos seres humanos, mas não nos indicou o caminho a seguir. Para realizar essa façanha fabulosa que é a capacidade para saber que existimos, é necessário nos beneficiarmos dos olhares dos outros; é necessário, pouco a pouco, tecer os vínculos que são nossa verdadeira pessoa.
A aldeia, a cidade, a nação deveriam ser os lugares dessa tecelagem, que pressupõe, para cada olhar, a possibilidade de encontrar um outro olhar, o ser humano face a outro ser humano, sem hierarquia, sem vestígio de desprezo.
Como está longe desse ideal o subúrbio que se encontra à volta de nossas cidades! Os jovens veem ao longe as luzes de uma metrópole que os rejeita; brincam de guerra porque compreenderam que a violência é para eles a única saída; picham os muros para que estes se tornem menos sinistros, menos implacavelmente confinantes. Os adultos deixaram de ver a tristeza desses edifícios repetitivos, aceitam o desmoronamento dos sonhos de sua infância.

Na construção de cada um, que lugar o senhor reserva para a solidão?

Solidão: trata-se da mesma palavra para duas situações opostas, a solidão suportada, a solidão desejada.
A primeira é dramática; tenho necessidade dos outros e não há ninguém. Sou como uma chama que se extingue por sufocação, por falta de oxigênio.
A segunda é, em certos momentos, necessária para reencontrar a coerência de todos os materiais que se acumularam, restabelecer conexões e se preparar para novos encontros. Essa solidão escolhida pode ser também a ocasião de um encontro: é o verdadeiro milagre da leitura; que felicidade ouvir Montaigne fazer-nos confidências!

No decorrer de sua vida, em sua adolescência, o senhor sofreu com a solidão?

Eu era certamente tímido, incapaz de me expressar, persuadido de que cada palavra pronunciada por mim seria falsa, obstruída pelo meu corpo, procurando refúgio na solidão, ao mesmo tempo que a achava dolorosa. Mas tive a sorte de povoar essa solidão com todos os autores encontrados nas prateleiras das bibliotecas e que foram bastante amáveis comigo; nunca zombaram de mim, levaram-me a desejar contato com seres de carne e osso, que são mais inquietantes, embora muito mais atraentes do que aqueles de quem só restam as palavras.

No meu livro ainda tenho a seguinte anotação:
A anotação é deste livro maravilhoso do professor Milton Santos.

Alteridade e individualidade se reforçam com a renovação da novidade. Quanto mais diferentes são os que convivem num espaço limitado, mais ideias do mundo aí estarão para ser levantadas, cotizadas e desse modo, tanto mais rico será o debate silencioso ou ruidoso que entre as pessoas se estabelece.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record. 2001 (página 131).


quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Preparando roteiro para as terras missioneiras.

Quando estávamos em Diamantina, o Valdemar e eu, conhecendo esta terra maravilhosa de Chica da Silva e JK, as suas atrações naturais e culturais, decidimos conhecer mais e já fizemos a nossa próxima escolha. Seria a região dos sete povos das missões, com possível visita também para as da Argentina e do Paraguai. As Missões foram uma rica experiência de colonização e de cristianização dos povos indígenas da nação Tupi-Guarani.
Ruínas de São Miguel, com destaque para a cruz de Lorena.

Como projeto de cristianização e de colonização teve as suas contradições e, creio mesmo, que a finalidade era de dominação. Mas perto do que os portugueses bandeirantes fizeram com estas populações, reduzindo-as à escravidão, até parece que as missões se transformaram num projeto humanitário, sob a proteção dos padres jesuítas espanhóis. Existe aí toda uma rica história a ser estudada. Foram mais de 150 anos de história que tiveram um final trágico, com direito até a santo não proclamado, o São Sepé Tiaraju. A propriedade individual da terra deveria predominar sobre a sua organização coletiva.

Os trabalhos de agrupamento dos indígenas começaram com o avanço dos bandeirantes na caça aos indígenas, logo no início do século XVII e terminaram em função das desavenças entre os padres jesuítas e as coroas de Portugal e Espanha. As dos sete povos do Rio Grande do Sul sofreram a troca efetuada pelo Tratado de Madri, entre os sete povos e a colônia de Sacramento. Alguns padres se inconformaram com o destino das missões, nas chamadas guerras guaraníticas, passando a organizar e combater ao lado dos índios guaranis. Isso pode ser visto no notável filme A Missão.

Uma missão tinha organização administrativa própria e economia voltada para a autossuficiência, em regime comunitário. A igreja era o centro da missão, onde também se localizava o colégio, as habitações, as oficinas, o mercado, o cemitério e até casa para o cuidado de viúvas e órfãos. Lavoura e gado eram a principal atividade econômica. A música e a arte religiosa também faziam parte de suas atividades cotidianas. Com o fim das missões os índios foram violentamente perseguidos, sob a voraz ditadura do latifúndio. Estes índios, agora itinerantes, formaram um dos gaúchos mais tradicionais e típicos, o gaúcho missioneiro.
Esta imagem ajuda bem na localização da região.

Como é fundamental planejar uma viagem para que ela seja bem sucedida, estou fazendo os devidos preparativos. Já li e vi muito a respeito. Achava que seria bem mais complicado. A grande vantagem é que as missões da Argentina e do Paraguai estão bem próximas. No total houve trinta missões. Sete em território gaúcho, oito no Paraguai e quinze na Argentina. Seis de suas ruínas integram hoje o Patrimônio Cultural da Humanidade, assim declaradas pela UNESCO. A de São Miguel, no Rio Grande do Sul. as de Jesus Tavarangué e Trinidad, no Paraguai e as de Nossa Senhora de Loreto, Santa Ana e San Ignacio Miní, na Argentina.

Tomando a cidade de Curitiba como referência, tanto faz você começar pelo Paraguai e Argentina como pelo Rio Grande do Sul. Começando pela Argentina, vai-se até Foz do Iguaçu e de lá até Posadas, a capital da Província de Missiones. Dali você pode fazer as visitas, tanto as do Paraguai quanto as da Argentina. Normalmente, turistas apressados fazem estas visitas em um dia para cada país. São ruínas, museus, artesanatos e show de luzes para serem visitados. De Posadas para os sete povos das missões tem que fazer a travessia por balsa, ou no porto de Mauá, ou em Porto Xavier. A distância é algo em torno de 300 quilômetros.

No Rio Grande do Sul a visita é a das ruínas de São Miguel. O que existe para ser visitado, mais uma vez são as ruínas, o museu e o artesanato. Ali também existe o tradicional show de luzes e a retratação do que foram as missões. A cidade maior que pode servir de referência é Santo Ângelo. A sua catedral é uma reconstituição da arquitetura missioneira. No meu entendimento uma visita a São Borja também é imprescindível, não tanto pela presença do passado missioneiro, mas por ser a cidade onde estão sepultados dois presidentes, Getúlio Vargas e João Goulart. São Luiz Gonzaga é a terra dos músicos. Lá, ou em seus distritos nasceram Jayme Caetano Braun, Noel Guarany e Pedro Ortaça. Já imaginaram encontrar o Dom Ortaça para um dedo de prosa e para que ele não possa reclamar de nós, como ele reclama em sua música  De Gurreiro a Payador: 


Pra manter viva a memória
As pedras ganharam nome
E transformaram em história
O que resta desses homens, 
Pois mais vale a carcaça
De um templo quase no chão
Que os descendentes da raça
Que vivem changueando o pão.

Para a viagem de volta para Curitiba recebi uma bela indicação do meu irmão, que mora na cidade catarinense de Mondaí. Me recomendou a visita a Ametista do Sul, a capital mundial da pedra ametista. Existem mais de cem minas em exploração. As atrações da cidade são a sua igreja, revestida de pedra ametista e uma pirâmide com os tradicionais cristais. Também achei uma cachaça para a minha coleção. É a Seiva Missioneira, produzida em Caibaté, a cidade coração das missões. Também vou trazer a famosa cruz das missões, a cruz de Lorena, que pelos seus dois braços, indica fé em dobro. Depois da viagem, eu conto do sucedido.















terça-feira, 5 de janeiro de 2016

A Missão. Com Robert de Niro e Jeremy Irons.

Como estou preparando uma viagem, ou uma incursão pela história da América Latina, estou lendo e vendo o que encontro sobre a notável experiência da colonização dos chamados povos das missões, ou das reduções, comandadas pelos padres jesuítas espanhois. Eram 30 as reduções, sendo oito no Paraguai, quinze na Argentina e sete no Rio Grande do Sul. Elas começaram logo no início do século XVII (1609) e continuaram até meados do século XVIII. O seu fim se deve, entre outras razões, ao Tratado de Madri (1750) e as intrigas que os jesuítas tiveram com as cortes de Portugal e da Espanha.

Como é um tema extremamente complexo, deixo as análises maiores para serem feitas após a volta. Quero no entanto, rapidamente situar a questão. Os índios da bacia do Prata eram vítimas da cobiça dos bandeirantes, que os queriam aprisionar para efeitos de escravidão. Aí receberam a proteção dos padres da Companhia de Jesus, que os reuniram em agrupamentos e passaram a organizar a sua vida de forma coletiva. Não vamos aqui discutir a intenção que os jesuítas tiveram com o projeto. Os bandeirantes intensificaram a caça aos índios, pois, com a experiência das missões, os indígenas se tornaram mais valiosos, por estarem mais adaptados e mais aptos para o trabalho.

Hoje quero traçar rápidos comentários sobre o filme inglês A Missão, datado de 1986, numa produção notável e épica. Creio que não erramos ao dizer que os seus realizadores estavam bem intencionados com o filme e procuraram dar uma visão humanizadora aos índios e mostrar um tanto de seu sofrimento sob o processo de colonização. Antes quero registrar uma passagem do livro A Conquista da América - A questão do outro, de Tzvetan Todorov, que situa a questão com muita propriedade: "Não se trata, para estes aproveitadores europeus, de buscar a verdade, mas de encontrar confirmações para uma verdade conhecida de antemão. Tais homens viajando naquela época iniciaram em nome de seu saber - um saber suposto por eles mesmos e sua cultura um processo de colonização e destruição dos outros. O saber era a desculpa para a violência que realizariam em nome da coroa de seu país, do deus de sua religião e, para resumir, da verdade de seu ponto de vista".

O filme tem direção de Roland Joffé, roteiro de Robert Bolt e a música está a cargo do notável Ennio Morricone. Entre os atores destacam-se Robert de Niro como Rodrigo Mendoza, Jeremy Irons, como o padre Gabriel e Ray McAnally, como Altamirano, funcionário da coroa portuguesa. O roteiro em pouco tempo se torna claro. Mendoza é um mercador de escravos, que em duelo mata o próprio irmão, por uma questão amorosa. Vive carregando a sua pedra de Sísifo, simbolizando o peso de sua enorme culpa. Converte-se e se torna um padre jesuíta. Vive sob o comando do padre Gabriel, a quem jurou o voto de obediência, o principal voto dos jesuítas.

O filme retrata uma das missões, a de São Carlos, fazendo uma notável retrospectiva, que encantou padres e funcionários da Coroa, mas que precisava ser destruída. Do ponto de vista brasileiro o principal motivo da destruição foi a realização do Tratado de Madri (1750), pelo qual se efetivou a troca dos sete povos das missões pela Colônia do Sacramento, estrategicamente localizada na entrada da bacia do Prata. Assim, os sete povos das missões riograndenses se tornaram portugueses. Mas as reduções do Paraguai e da Argentina também foram destruídas, tendo como principal motivo a desavença entre a  Coroa e os padres jesuítas. Creio que um outro grande motivo, que precisa ser considerado, é o de que, uma experiência de organização coletiva da economia precisava ser destruída.

O filme foca a guerra declarada contra a Missão pelos exércitos de Portugal e da Espanha. Os índios, já organizados militarmente, resistem bravamente e contam com a ajuda brava do ex mercador Mendoza, ativamente engajado na defesa indígena e do padre Gabriel, que comanda, creio que poderíamos dizer, a resistência passiva.


Gostaria de destacar certas cenas pela sua grande beleza, como a da linguagem do entendimento  universal pela música, quando o padre está tocando a sua flauta e os índios hostis se aproximam, a cena em que o representante da Coroa portuguesa e o chefe indígena discutem sobre a vontade de Deus no diferente destino da missão e o debate entre Mendoza e o padre Gabriel sobre o voto de obediência.

O filme foi rodado na Colômbia, junto com os índios Waunana, que viviam em condições semelhantes aos índios retratados pelo filme em sua época (O filme é de 1986). Os cenários são belíssimos, junto aos rios e uma bela cachoeira. Aliás, o filme ganhou o Oscar de melhor fotografia, mas o seu prêmio maior foi a Palma de Ouro, em Cannes. O filme tem duas horas de duração e tem mais outra hora de extras com o foco voltado para as filmagens e a relação da equipe com o povo indígena dos Waunana. Um belíssimo filme e uma bela introdução a uma viagem que promete.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

A música missioneira. Os 4 troncos missioneiros.

Preparando a viagem para as terras missioneiras (Brasil, Argentina e Paraguai) passei a ouvir um pouco mais do canto dos chamados sete povos das missões. Apesar de eu ter nascido no Rio Grande do Sul (Harmonia, então 3º distrito de Montenegro), eu só fui me envolver com a tradição gaúcha, bem mais tarde. A rigor, as regiões povoadas pelos imigrantes alemães e italianos, pouco tinham a ver com a tradição gaúcha. Na minha formação de seminário, também passamos longe, até da própria história do Rio Grande do Sul.
O LP de 1992 que serviu de inspiração para este post. Da minha coleção.

Deixei o Rio Grande muito cedo, buscando trabalho no Paraná (Umuarama - 1969). As rádios do Rio Grande (Guaíba e Gaúcha) me acompanharam. Nos anos 1980 até chegamos a fundar um Centro de Tradições Gaúchas nesta cidade. Hoje em Curitiba, me encanto com a música nativa do Rio Grande, com grande destaque para aquela que canta a herança missioneira. Mais particularmente lembro do pajeador Jayme Caetano Braun, que tinha um programa na rádio Guaíba, Brasil Grande do Sul, onde fazia uma verdadeira análise de conjuntura da realidade brasileira, com muita ironia e humor, sob a forma de pajeadas. Também tenho muito presente a música de Pedro Ortaça, um dos troncos da música missioneira. Ela tem muita profundidade e, ao mesmo tempo, é muito alegre. Também sempre ouvi a música de Noel Guarany e Cenair Maicá. Estes formam os quatro troncos da música missioneira.

As missões ou as reduções jesuíticas é uma história de muito significado e de muita complexidade. Sem entrar no mérito, os jesuítas deixaram um grande legado. Junto aos índios construíram uma organização de trabalho sob forma coletiva, os sensibilizaram para a arte e os prepararam para o trabalho. Isso tudo deveria ser destruído em função do Tratado de Madri (1750), quando estas terras, pertencentes aos espanhois, passaram a ser portuguesas, em troca da Colônia do Sacramento. Ocorreram então as Guerras Guaraníticas, que tinham por objetivo a destruição da organização do trabalho coletivo dos indígenas, que foi sendo substituído pelo avanço do latifúndio. Estas guerras geraram um santo, que, embora não proclamado, dá até nome a uma cidade, a cidade de São Sepé. O santo é Sepé Tiarajuru, o comandante da resistência indígena. Já os índios, largados à sua própria sorte, se espalharam pela Argentina, Uruguai e pelo Rio Grande, dando origem a um dos personagens típicos dos pagos, o gaúcho missioneiro.

O canto missioneiro é um canto de lamento pelos valores perdidos e, especialmente, pela terra perdida e a sua relegação ao abandono. É também um canto altivo de recuperação de sentido e significado de um tempo que insiste em permanência, de se tornar tempo presente, "em tudo aquilo que canto". Cada um dos troncos missioneiros tem uma bela história de vida. Noel Guarany, até  incorporou o nome do povo indígena guarani, ao seu próprio nome. Cenair Maicá fez de sua música um canto social, reclamando das injustiças e proclamando insubmissões. Jayme Caetano Braun fazia ecoar a sua voz libertária pela potentes ondas da rádio Guaíba e Pedro Ortaça canta a tradição de guerreiros que fizeram da lança a guitarra para entoar a voz das missões. O canto de Pedro Ortaça continua forte e, a ele se somou a música e voz dos filhos, Gabriel e Alberto e a da bela Marianita.

Imaginei fazer este post a partir de um música de Pedro Ortaça. É o que eu farei, mas antes quero mostrar um trecho de Noel Guarany, de Lavadeira do Uruguai, para sentir um pouco o canto missioneiro:

Ajoelhada junto ao rio, 
a cantar com a correnteza,
lavando suores profanos
dos ricos da redondeza,
vê o lombo do dourado
que falta na sua mesa.

Mas vamos a Pedro Ortaça, De Guerreiro a Payador, do LP Pedro Ortaça - De Guerreiro a Payador, de 1992. A música é de Pedro Ortaça numa parceria com Vaine Darde.

Sou o que os historiadores
Procuram lá nas ruínas
Mas não sabem os doutores
Que esta saga não termina
Que ainda restam descendentes
Da terra dos Sete Santos
E o passado está presente
Em tudo aquilo que canto.

Não sabem que a esses escombros
Ainda sirvo de escora
E que carrego nos ombros
Trezentos anos de história.
Podem pensar que sou louco
Mas eu comprovo na estampa
O que hoje somos poucos:
Os fósseis vivos da pampa.

Sou filho dos Sete Povos
Tenho sangue de Sepé
E tudo que digo eu provo
Com juramento de fé
O meu legado é tanto
Nem carece explicações
E até no canto que canto
Ecoa a voz das missões.

Guarani - fui batizado
E oro pago minhas penas
Sob o símbolo sagrado
Da velha cruz de Lorena,
Porém não sabe que narra
A história do vencedor
Que a lança fez-se guitarra
E o Guerreiro, pajeador.

Pra manter viva a memória
As pedras ganharam nome
E transformaram em história
O que restas desses homens,
Pois mais vale a carcaça
De um templo quase no chão
Que os descendentes da raça
Que vagam changeando o pão. 

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