terça-feira, 28 de maio de 2024

O avesso da pele. Jeferson Tenório. Vestibular 2025. UFRGS.

Santa Cruz do Sul é uma cidade do Rio Grande do Sul com cerca de 130.000 habitantes. A imigração alemã é que deu origem à cidade, situada a uns 150 Km da capital. A cultura do tabaco sempre foi a sua grande ocupação econômica, sendo considerada, segundo a Wikipédia, a "capital mundial do fumo". Não, o post não é sobre a cidade de Santa Cruz do Sul. O post é sobre o livro O avesso da pele, do escritor carioca, radicado em Porto Alegre, Jeferson Tenório. Mas, então qual é a razão de começar o post falando de Santa Cruz do Sul?

O avesso da pele. Jeferson Tenório. Companhia das Letras.

Acontece que uma pudenda senhora desta cidade, diretora de uma escola, criticou o livro. A razão para tal, é a de que o livro continha um vocabulário de baixo nível. Essa crítica, na sequência, causou um verdadeiro furor moralista, uma violenta onda de "pudor" contra a "indecência" do livro. A onda se estendeu, atingindo todo o Rio Grande do Sul, além dos estados do Paraná e de Goiás. O livro chegou a ser recolhido das escolas, para averiguação, ou seria censura mesmo. A censura não vingou e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul incluiu o livro entre os selecionados para o seu vestibular - 2025. Antes o livro fora incluído no Programa Nacional do Livro Didático e recebido o prêmio Jabuti de 2021. A primeira edição do livro data de 2020 e já está em 17ª reimpressão. É editado pela Companhia das Letras.

Afinal de contas, do que trata o livro? Ele merece a acusação de ser um livro com "expressões, jargões e cenas de sexo inadequadas", conforme os acusadores?  É ele um livro erótico ou pornográfico? Longe disso. Pornográfica é a realidade nele descrita. Essa sim é profundamente pornográfica. E, creio, que o ocultamento dessa realidade, tenha sido o real motivo para os atentados contra o livro. Eu destacaria três grandes temas sugeridos pelo autor como a centralidade do livro. "No sul do país, um corpo negro sempre será um corpo em risco" (p. 184). Corpo negro e corpo em risco chamam para o tema do racismo e da violência policial. "Você entrava na sala dos professores. Dava bom-dia, mas ninguém te respondia. Estavam com preguiça, sonolentos, tristes ou indignados por terem de estar ali" (p. 163). Eis o terceiro grande tema. Em síntese: Racismo, violência policial e o fracasso do sistema educacional.

Desde os gregos até os modernos, como nos atestam Sófocles, Freud e Kafka, entre tantos outros, a relação entre pais e filhos, sempre foi uma relação complexa e difícil. Isso não foi diferente com Pedro, um aluno do curso de arquitetura de uma pequena faculdade de Porto Alegre. Pequena, mas a única que ele tinha condições de pagar. Pedro era filho de Henrique Nunes, um professor da rede pública do ensino do estado do Rio Grande do Sul, em escolas, repito, em escolas  (no plural) de periferia de Porto Alegre e de Martha, sendo ela uma tradutora. E..., negros. Pedro está em busca da sua identidade e para isso mexe no passado de seus pais, do pai de maneira mais particular. Famílias desestruturadas, sonhos negados, tropeços repetidos. Insegurança a toda prova, além  de amores frustrados e fracassados. Timidez diante de arrogâncias. Eis o teor. Mas o vejamos também, o que está dito na contracapa:

"O avesso da pele é a história de Pedro, que, após a morte do pai, assassinado numa desastrosa abordagem policial, sai em busca de resgatar o passado da família, refazendo os caminhos paternos. Com uma narrativa sensível e por vezes brutal, Jeferson Tenório traz à superfície um país marcado pelo racismo e por um sistema educacional falido, um denso relato sobre as relações entre pais e filhos". Na orelha do livro encontramos uma descrição do pai, confundido com a sua própria vida: "a vida de um homem inteligente e sensível, inquieto, abalado pelas fraturas existenciais da sua condição de negro em um país racista, um processo de dor, de acerto de contas, mas também de redenção e, dentro desta, de superação e liberdade".

Uma das passagens mais belas do livro ocorre quando Henrique, em uma de  suas aulas, rompe com a aula prescrita (No Paraná seria o uso compulsório de plataformas) e mergulha em personagens da literatura e os identifica com a realidade vivida pelos alunos e, em troca, deles recebe atenção e reconhecimento. E isso lhe proporciona alegria. Ele se sente autor de suas aulas, em sintonia com a realidade dos alunos ( Foi Raskólnikov, de Crime e Castigo, que lhe permitiu a abordagem do tema da criminalidade e da culpa). E, caminhando pela São Petersburgo do personagem ele irá ao encontro da morte, numa abordagem policial. Em seu funeral, um aluno lhe renderá tributo:

"Um rapaz jovem, negro, que se identificou como ex-aluno, pediu para falar: eu queria começar dizendo que eu conheci o professor Henrique Nunes na sétima série, eu tinha doze anos. E não tenho como medir tudo que ele fez por mim, tudo que ele fez por inúmeros alunos, tudo que ele me ensinou. Estou arrependido de não ter dito isso a ele. Quero dizer também que o professor Henrique Nunes não morreu por mera circunstância da vida, morreu porque era alvo de uma política que persegue e mata homens negros e mulheres negras há séculos" (p. 179-180).

O livro tem quatro capítulos, subdivididos em pequenos sub capítulos. Eis os títulos: 1. A pele; 2. O avesso; 3. De volta a São Petersburgo (a cidade do personagem de Dostoiévski); 4. A barca (referência a viatura policial). São 189 páginas.

Mas, quero encerrar este post, com uma frase, já do primeiro sub capítulo da primeira parte do livro. Com ela pretendo prestar uma homenagem a todas as professoras e professores, que ainda resistem e ainda encontram alegria e esperança no ato de educar e que, junto com os alunos, compartilham o gosto pelos livros, por acreditarem na sua real força e grandeza na construção do humano. "Na verdade, você nunca soube ir embora. Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas" (p. 13). Se, de um lado, a homenagem, do outro, o repúdio aos que tolhem, aos que NÃO "acreditam que os livros poderiam (podem) fazer algo pelas pessoas".

E como recentemente reli a obra de Érico Veríssimo, nela encontrei, em Solo de clarineta, vol. 2 - algo relativo ao fato de também ele responder a questão de ter sido considerado um escritor erótico ou pornográfico. A sua resposta é acima de tudo uma acusação lindíssima:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/05/e-erico-verissimo-um-escritor-erotico.html



sexta-feira, 24 de maio de 2024

Um defeito de cor. Romance. Ana Maria Gonçalves.

Há uns dois anos eu dediquei um bom tempo para estudar as principais vozes da abolição da escravidão no Brasil. Entre elas figurava a de Luís Gama, o temido Dr. Gama, o grande libertador de escravizados, com base na Lei de 1831, acertada com os ingleses, que declarava livres os escravizados que chegassem ao Brasil, a partir daquela data. Era a famosa lei para "inglês ver". Mas não para o Dr. Gama. Foram mais de 500, os libertos por ele. 

O Dr. Gama tem uma história singularíssima. Ele nasceu na Bahia, filho de mãe escravizada liberta e de um rico comerciante português, que se arruinou com a bebida e o jogo. Premido pelos cobradores, vendeu o próprio filho como escravizado. Sabe-se que ele foi trazido para São Paulo, que fugiu, que se alfabetizou e se tornou um importante personagem de nossa história. Sabe-se também que muito procurou por sua mãe, Luísa Mahin, mas que não a encontrou.

Um defeito de cor. Ana Maria Gonçalves. Record. 2024. 39ª edição.

Pois bem. Em 2006, a escritora mineira Ana Maria Gonçalves, publicou um romance sob o título, Um defeito de cor. A edição que acabo de ler é de 2024 e é a edição de número 39. Fato raro num país em que os leitores estão minguando. Qual é o tema de Um defeito de cor? Por que será que ele teve tão grande repercussão? Qual é o seu tema. A resposta é simples. De forma romanceada e repleta de história real, Ana Maria Gonçalves nos relata a história da menina Kehinde, menina capturada no atual Benim e trazida para a Bahia, na condição de escravizada. O seu nome brasileiro foi Luísa. É a Luísa Mahin, a mãe de Luís Gama.

A história de Kehinde, ou de Luísa, é narrada em dez capítulos, ao longo de 950 paginas, de leitura que se torna praticamente ininterrupta, tal a sua força narrativa. Que menina e que mulher extraordinária!. Uma vida dedicada à sobrevivência e à busca do filho. Quanto à sobrevivência, essa tarefa foi superada com bastante facilidade, sim, reafirmo, com bastante facilidade, em meio às condições mais adversas. De volta à África, tornou-se empresária, atuando como comerciante de armas e no ramo da construção civil. Era uma espécie de rei Midas, em sua versão feminina. Quanto a busca do filho... É a parte principal e o objetivo da escrita do livro.

Coube a Millôr Fernandes a escrita das orelhas do livro, como forma de sua apresentação. Entre essas linhas lemos: "Um defeito de cor narra a história de Kehinde, negrinha de 8 anos capturada no Daomé (Benim), trazida pro Brasil, rodando por Bahia, Maranhão, Santos, São Paulo, e por aí vai, nesse mundo perdido que era este país.

A saga de Kehinde atravessa oito décadas, mais ou menos o mesmo tempo que o negro Damião vive no romance de Josué Montelo, ouvindo Os tambores de São Luís, romance já merecidamente clássico.

Rebeliões, violências inauditas - como arrancar olhos de escravas e castrar escravos por ousarem ser rivais sexuais de senhores, a negritude muçulmana, um mundo que se debate, com liberdades falsas, mas também verdadeiras como a da própria Kehinde, que a conquista aprendendo a ler, escrever e falar inglês. E lhe permite fugir pro Maranhão e pro Recôncavo, e até pro Rio (1840 - emocionante reconstituição), na procura desesperada de um filho vendido.

Madura e liberta mesmo em sua alma, Kehinde volta à África, vira 'industrial', casa com negro 'inglês', e, já velha, volta ao Brasil. Aonde não chega".

Fiz questão absoluta de transcrever o trecho em que Millôr acentua que o livro  trata de "rebeliões, violências inauditas...", para ressaltar o que mais me impressionou na leitura do livro, que me fez pensar comigo mesmo, que a sua leitura é fundamental para se ter um quadro preciso do que foi o violento sistema da escravidão. Isso é visto desde a captura na África, a viagem para a América, a venda em mercados cuja mercadoria eram os próprios seres humanos, além do cotidiano cruel da escravidão. E... o que a moral dominante permitia e absolvia com generosidade aos escravocratas. Uma história de muita dor e sofrimento. O livro também aborda a questão da volta dos escravizados para a África, uma história cheia de complicações. As incongruências do ser humano.

Se mais acima eu usei a expressão - "Rei Midas, em versão feminina", para a "empreendedora" Kehinde, confesso que a questão dessa relativa facilidade me trouxe um certo desconforto (e os outros?). Em tudo o que ela "empreendeu", ela sempre foi muito bem sucedida. Ela virou 'industrial', como aponta Millôr. Uma industrial da construção civil. Por outro lado, esses seus êxitos lhe permitiram ajudar a muita gente. Mas voltemos ao livro, aos seus dez capítulos, ao longo das suas 950 páginas, além do belíssimo prólogo.

Esse prólogo tem por título: - Serendipidades! Magnífico. Uma viagem pode levar a muitas coisas, para além dos propósitos iniciais, planejados para esta mesma viagem. Isso explica a origem do livro. Em uma viagem a ilha de Itaparica ela encontrou uma série de manuscritos que resultaram no teor básico do romance: A história de Kehinde, a mãe do Dr. Luís Gama.

Os dez capítulos não tem títulos. Em compensação, a cada duas ou três páginas, tem uma palavra que sintetiza as páginas seguintes, fato que auxilia bastante a leitura. Vou aqui tentar dar, não um título aos capítulos, mas apontar para o fato mais importante de cada um deles. 

Assim o capítulo de número um aponta para a captura na África e a travessia para o "estrangeiro". O de número dois descreve  o desembarque em São Salvador, a venda e a ida para uma fazenda na ilha de Itaparica. O de número três, por sua vez, mostra cenas do cotidiano da escravidão, escravizados domésticos e do campo, das rebeliões e o fato de ficar pajeada, por obra de seu sinhô e, ainda, a morte deste. O quarto capítulo nos apresenta "Banjokô, o filho, a Sinhá e a moradia em São Salvador, onde ela será escrava de ganho, em casa de ingleses. Lá ela aprende a fazer cookies, que tanto a ajudarão em breve. No quinto capítulo é apresentada a sua relação com a Sinhá, a ajuda de Oxum na compra de sua alforria, o início de suas atividades econômicas (cookies e padaria), o encontro com os muçurumins, com o padre Heinz, com um babalorixá e Alberto. 

O capítulo de número seis é dedicado à relação com  Alberto, a gravidez e o nascimento de um menino, que Kehinde sempre tratará por "você". Mostra também que a relação começa a se complicar, com o envolvimento de Alberto com jogo e bebida. Alberto se casa com moça branca. O capítulo de número sete é repleto de dificuldades para Kehinde. Economicamente ela vai bem, mas com Alberto tudo vai mal, só e sem dinheiro. Banjokô morre e ela se envolve em rebeliões com os muçurumins, e depois, com os federalistas. Fugas

No oitavo capítulo encontraremos Kehinde em suas fugas. Para Itaparica, para o Maranhão e para Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Soube da venda de "você" e inicia a sua desesperada busca. De Salvador ruma para o Rio de Janeiro, Santos, São Paulo e Campinas e, finalmente, para a África. O capítulo de número 9 se passa todo ele na África e mostra o seu envolvimento com o "negro inglês" John, de quem terá gêmeos Mostra também o enorme sucesso financeiro, com o comércio de armas e de casas. O capítulo dez é dedicado aos gêmeos e a sua tentativa de volta ao Brasil em busca de "você".

Cada capítulo tem em torno de cem páginas, uns mais e outros menos. O meu intuito, com a apresentação do principal fato, ou fatos, de cada capítulo é oferecer um primeiro contato com o teor do livro, fatos já bastante conhecidos em seus títulos, mas não em seus detalhes, uma incitação à leitura, portanto. Ainda devo dizer que o livro, na qualidade de romance, é uma mistura de ficção e realidade e, digo mais, de muita história. Possivelmente seja o grande livro, aquele que melhor mostra os horrores do que foi a escravidão no Brasil. Quanto a leitura, uma fluência incomparável, leitura de um fôlego só, embora todo o seu volumoso e rico conteúdo. Recomendo também demais as quase três páginas de indicações bibliográficas, as bases para a pesquisa do presente livro.

Simplesmente um livro necessário. O fato de estar na 39ª edição explica o seu extraordinário êxito. Há alguns anos eu estive em São Luís do Maranhão. Lá me deparei com o livro citado pelo Millôr, na orelha do livro. Deixo a sua resenha:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/07/a-saga-da-raca-negra-os-tambores-de-sao.html


    

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Érico Veríssimo declara princípios básicos. Sociedade e política. Solo de clarineta. Vol. 2.

"Qual deve ser a posição do escritor diante dos problemas sociais, políticos e econômicos de sua época? Essa é a pergunta que continua no ar, sempre atual, e jamais respondida de modo a satisfazer a todos".

Érico Veríssimo responde a esta instigante pergunta em seu livro de memórias Solo de clarineta, volume 2. A resposta é clara e direta e sem subterfúgios ou rodeios. Questão de convicção e de vida militante em favor da democracia, dos direitos fundamentais básicos e da liberdade e contra todos os excessos e arbítrios de poder, seja de direita ou da esquerda. Publico este texto em reverência ao grande escritor e para que seja melhor compreendido entre seus milhares de leitores e também entre os iniciantes na pesquisa. O seu compromisso é "com o homem e a vida". O texto é belíssimo, de um humanismo profundo. Vejamos:


Solo de clarineta - memórias. Érico Veríssimo. Companhia das Letras.

"Para principiar, direi que só quem pode e deve decidir sobre o comportamento político do escritor é ele próprio. Se quiser permanecer alheio a todos esses problemas e inquietações na sua Torre de Marfim e puder viver sem remorsos nessa ausência do mundo, que o faça e tenha bom proveito. Rechaço a ideia de que o escritor deve estar necessariamente a serviço dum partido político, mas aceito a de que ele possa fazer isso, se assim entender. Fala-se muito em literatura engajada. Repito mais uma vez que, o engajamento dum escritor deve ser com o homem e a vida, no sentido mais amplo e profundo dessas duas palavras.

É muito comum ouvir-se ou ler-se que eu jamais me comprometo ou defino politicamente. Ridículo! Creio que durante estes quarenta últimos anos me tenho manifestado claramente sobre problemas e acontecimentos políticos e sociais de maneira que me parece coerente e inequívoca, sempre a favor da liberdade e dos direitos do homem e contra todas as formas de opressão - coisas que nem sempre poderia fazer se fosse obrigado a seguir obedientemente a linha sinuosa e muitas vezes autocontaditória dum partido político.

Não tenho gosto nem talento para a política ativa. Restrinjo-me a princípios de ordem geral. Claro, sei que se eu me aproximar do leito em que um doente agoniza e romper a berrar que amo a saúde e a vida e detesto a doença e a morte - esses protestos ruidosos em nada poderão ajudar o moribundo, que necessita, isso sim, dum medicamento ou de uma intervenção cirúrgica de urgência para salvar-lhe a vida. Parece-me, entretanto, que também é importante não cessar de proclamar a necessidade de curar o organismo enfermo sem mutilações inúteis.

Afinal, em que posição política me encontro? Considero-me dentro do campo do humanismo socialista, mas - note-se - voluntariamente e não como um prisioneiro.

Por que socialista? - hão de perguntar. Porque o extremismo da esquerda e o da direita não passam de faces da mesma moeda totalitária; e porque o centro é quase sempre o conformismo, a indiferença, o imobilismo.

Poderá também o leitor perguntar como pode um homem que tanto preza a liberdade inclinar-se para o socialismo... Ora, é um erro imaginar que socialismo e Liberdade são termos ou ideias que se contradizem. Basta ler o que se escreve  hoje na Polônia, na Tchecoslováquia e na Iugoslávia, em suma, é suficiente inteirar-se a gente do pensamento dos neomarxistas para compreender que Stálin e em certos casos até mesmo Lênin deturparam as teorias de Karl Marx. Como resultado dessa deturpação, na Rússia soviética stalinista criou-se uma nova classe de privilegiados, uma burocracia desumana e inumana, e um novo tipo de alienação de massas, tudo isso em nome da ditadura do proletariado e do futuro do socialismo no mundo.

A dialética marxista é inseparável de seu humanismo. Segundo Marx, uma sociedade não pode ser livre se todos os indivíduos que a compõem não forem também livres. Quando o autor d'O capital falava em 'prática socialista', referia-se especificamente à liberdade. E essa noção de liberdade não foi apenas o ponto de partida de suas ideias, mas também o seu objetivo mais alto.

Karl Marx escreveu também que a teoria não deve separar-se da prática, nem o conhecimento divorciar-se da ação, e que o sistema social não pode ficar alienado dos objetivos espirituais. Segundo ele, só podem existir homens independentes dentro dum sistema social e econômico cujas abundância e racionalidade tenham conseguido liquidar a 'pré-história' e inaugurar a era da 'história humana' que há de redundar no peno desenvolvimento da sociedade.

Não sou sociólogo nem historiador e muito menos economista, mas, com um pouco de intuição  e uma certa dose de senso comum, cheguei cedo à conclusão de que seria absurdo aceitar qualquer sistema político-econômico que exige o sacrifício do homem de hoje em benefício dos chamados 'interesses mais altos do amanhã'.

Segundo o socialismo marxista, o homem como homem não deve ser imolado em benefício da humanidade do futuro. (Tenho escrito repetidamente que o homem é um ser real, a humanidade uma entidade abstrata, e a 'humanidade do futuro' - acrescento - é uma dupla abstração).

Marx, em seus escritos de que o stalinismo preferiu não tomar conhecimento, pois isso não convinha ao seu 'realismo político' - disse que o homem será sempre o objetivo derradeiro da tendência para uma sociedade verdadeiramente humana, tanto na teoria como na prática. E é por isso que os pensadores a que me referi se rebelam contra o pragmatismo burocrático e tecnológico e contra todas as formas de desumanização e alienação do povo.

Outra afirmação curiosa desses escritores neomarxistas é a de que o socialismo não é o objetivo final de Marx, mas uma aproximação. O seu alvo supremo, repita-se, é uma sociedade em que a desumanização cesse e o trabalho do homem se emancipe por completo, fornecendo-lhe todas as condições necessárias à sua autoafirmação.

O sociólogo e filósofo iugoslavo Mihailo Markovic define o humanismo como 'uma filosofia que procura resolver todos os problemas na perspectiva do homem, e que abrange não apenas questões antropológicas, como a da natureza humana, a alienação, a liberdade, mas também ontológicas, epistemológicas e axiológicas'.

Em conversa com amigos muitas vezes lhes disse que, a meu ver, o que faltava à análise marxista da sociedade era uma psicologia. Li com grande satisfação um ensaio em que Erich Fromm levanta essa ideia com sua autoridade e habitual lucidez. Escreveu ele textualmente: 'A teoria de Marx necessita de uma psicologia do homem'.

Acrescenta que os marxistas se convenceram finalmente do fato de que o socialismo tem de também satisfazer à necessidade que a criatura tem dum sistema de orientação e devoção, e que portanto o socialismo tem de tentar responder a perguntas como 'Quem é o homem? Qual o sentido e objetivo de sua vida?'. Acentua Fromm a importância das normas éticas e de desenvolvimento espiritual que ultrapassem frases vazias como 'É bom tudo quanto possa servir à revolução, ao estado proletário, à evolução histórica, etc...etc...etc...'.

Afirmou Marx que a raiz do homem é o próprio homem. Erich Fromm insiste em que uma teoria cujo centro seja o homem não pode continuar como teoria  sem uma psicologia, sob pena de perder contato com a realidade humana.

No mesmo ensaio Fromm refere-se também a um problema que muito me preocupa, principalmente quando me encontro nos Estados Unidos: o do caráter do Homo consumens criado pelas sociedades altamente industrializadas. O objetivo do consumidor não é o de possuir coisas, mas o de consumir cada vez mais e mais, a fim de com isso compensar seu vácuo interior, sua passividade, sua solidão, seu tédio e sua ansiedade. E aí estão as empresas de publicidade, que dispõem de meios cada vez mais insidiosos e engenhosos para criar nas massas necessidades artificiais que acabam por escravizá-las.

Ora, no Brasil o fenômeno apenas começa a esboçar-se. O que me preocupa por ora não é o ainda reduzido número de nossos consumidores, mas sim os muitos milhões de consumidores que nos cumpre libertar da miséria, da fome, da doença e do analfabetismo.

Este não me parece o lugar apropriado, nem eu sou o homem indicado, para propor e desenvolver um programa político econômico para resolver os problemas cruciais do Brasil, nem eu tenho a pretensão de ser portador da fórmula mágica para a nossa salvação.

Achei, isso sim, que devia fazer aqui mais uma vez uma declaração de princípios, e repetir que, se por um lado acredito na necessidade de todos os escritores e artistas terem uma consciência política e social de que não cabe ao romancista apresentar soluções para as crises econômicas, políticas e sociais em que nos debatemos.

E, para encerrar este capítulo, quero transcrever as palavras do professor H. Marcuse, com as quais me encontro de perfeito acordo: 'A realidade humana é um sistema 'aberto'. Nenhuma teoria, seja marxista ou outra qualquer, pode 'impor-lhe' uma solução'". Páginas 262-266.

Toda a obra de Veríssimo debate estas questões, através de seus personagens que encarnam as diferentes posições. Creio também que no Solo de clarineta, vol. 1, quando Érico relata suas viagens por Portugal, na época salazarista, essas suas posições estão afirmadas com muita clareza. Deixo a resenha:


Deixo ainda as resenhas de Solo de clarineta - memórias. vol. 2, do qual foi retirado este texto:


e dos sete volumes de O tempo e o vento:


terça-feira, 14 de maio de 2024

"A minha posição em face de Deus". Solo de clarineta (vol. 2). Érico Veríssimo.

Creio que os leitores sempre têm muita curiosidade em torno das crenças dos escritores. Isso não foi diferente com os leitores de Érico Veríssimo. Ele mesmo aborda a questão, na parte final de Solo de clarineta - memórias. São apontamentos deixados por Érico e incluídos no livro por seu organizador, Flávio Loureiro Chaves. Isso foi necessário visto que este segundo volume é uma obra póstuma. Também creio que a abordagem desse tema ajuda na melhor compreensão do extraordinário autor. As anotações de Érico são as seguintes:

Solo de clarineta - memórias. vol. 2. Érico Veríssimo. Companhia das letras.

"Tenho encontrado certa dificuldade em explicar a amigos e leitores a minha posição em face de Deus. Repetirei que sou um agnóstico, isto é, um homem que não se encontra na posse de provas convincentes que lhe permitam negar ou afirmar a existência dum Criador.

Posso, no entanto, afirmar que não sou destituído de sentimento religioso, pois tenho uma genuína, cordial reverência por todas as formas de vida, e um horror invencível à violência.

Sinto grande afeição e admiração pela figura histórica de Cristo e acredito sinceramente em que, se a ética cristã fosse realmente posta em prática, as criaturas humanas poderiam resolver os seus problemas de convivência num mundo que cada dia se complica mais e mais, pois leva à solidão e à agressividade. Infelizmente o que vemos em certos círculos religiosos é um grande farisaísmo, um cristianismo puramente de fachada. Citando, com a devida licença do autor, uma personagem de ficção (o dr. Leonardo Gris d'O senhor embaixador), direi que certos homens de negócio que se dizem piedosos conseguiram erguer uma parede de concreto entre suas igrejas e seus escritórios comerciais, de maneira que assim podem não só obedecer ao preceito bíblico segundo o qual a nossa mão direita nunca deve procurar saber o que a esquerda faz, como também lhes torna possível acariciar ao mesmo tempo com uma das mãos o Cordeiro de Deus e com a outra o Bezerro de Ouro. E, quando algum escritor denuncia essa prática hipócrita, a primeira ideia que ocorre a esses donos do poder é denunciar o 'escritor subversivo' à polícia. ('Para isso pagamos impostos').

Não aceito as fábulas bíblicas da Criação nem ideias como a do Paraíso, o pecado original, a Santíssima Trindade e outras tais. Acima de tudo não acredito no Inferno e na danação eterna. Creio que os cristãos que admitem essa monstruosidade estão insultando o seu Deus, que deveria ser logicamente a encarnação da suprema bondade e da mais alta justiça, isso para não falar na sua capacidade de perdoar. Por outro lado parece-me que aceitar o mito de que os que se comportam bem na vida terrena ganharão o Céu, onde permanecerão por toda a Eternidade fantasiados de anjos, entre nuvens cor-de-rosa, tocando lira e cantando - seria fazer pouco, muito pouco da imaginação do Ente Superior que teve capacidade e imaginação para criar o Universo com tudo quanto nele há - o que, convenhamos, é realmente um feito prodigioso.

Não, meus amigos, na minha opinião um problema da tremenda magnitude desse que envolve o mistério do Universo, de nossa vida e de nossa morte, merece, ou, melhor, exige uma explicação menos simplória e pueril do que essa que as Escrituras nos oferecem como chave do grande Enigma.

O curioso, entretanto, é que não raro me comovo ante a serena grave beleza de certos templos - principalmente das velhas igrejas e mosteiros românticos. (Este claustrófobo ama os claustros!) Quando visitei a basílica de São Francisco, em Assisi, senti a presença do Poverello. Em Gênova, numa meia-noite de Sábado de Aleluia, assisti a um serviço religiosos numa antiga igreja gótica, que me deslumbrou pela sua colorida pompa litúrgica. Numa memorável manhã de domingo, em Paris, na catedral de Notre-Dame, no momento em que o grande órgão acompanhado de fanfarras rompeu numa tocata de Bach, senti um arrepio em todo o corpo e tive a impressão de levitar no ar numa experiência quase mística, que quero crer tenha sido mais de natureza estética do que propriamente religiosa". Páginas 261-262.

Deixo ainda a resenha do segundo volume de Solo de clarineta, livro que contém este texto: 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/05/solo-de-clarineta-vol-2-memorias-erico.html

Também deixo a resenha dos sete volumes de O tempo e o vento:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/04/os-sete-volumes-de-o-tempo-e-o-vento.html

quarta-feira, 8 de maio de 2024

É Érico Veríssimo um escritor erótico ou pornográfico? Uma autodefinição.

No Solo de clarineta, vol. I., na apresentação do livro, José Otávio Bertasso, diretor da Editora Globo de Porto Alegre, levanta a polêmica entre o Ginásio Anchieta e Érico Veríssimo. O padre L. F. (Leonardo Fritzen) ataca o escritor: "...Pouco valem as leis de higiene se o veneno que corrompe a nossa juventude continua exposto nas vitrines". No texto do jesuíta, a pureza de São Luís Gonzaga era invocada (páginas 9 a 14).


Solo de clarineta - memórias. Érico Veríssimo. Companhia das Letras.

Lembremos que a vontade de destruição de livros, e em épocas mais exaltadas, também os seus autores não é nenhuma novidade. Ah, os safados guardiões da moralidade. Jeferson Tenório, de O avesso da pele, apenas para citar o caso mais recente, que nos conte. Não, me desculpem. Existe algo mais atual. Agora, em meados de abril de 2024, a prefeita de Canoinhas, SC., Juliana Maciel, jogou no lixo dois livros da biblioteca do município, dizendo tratar-se de porcaria. Ao mesmo tempo instigou a outros prefeitos a fazerem o mesmo. Entre os livros, estava As melhores do analista de Bagé, do Luís Fernando Veríssimo. Poucos dias depois, a prefeita se encontrou com Bolsonaro, que sempre afirmou o seu gosto pelo livro de Brilhante Ustra. Creio que muitos dos prefeitos não poderão atender ao pedido da prefeita. Estão presos por corrupção. Dezoito no total, me diz a página do Google. Parece que já são 22. O número também parece significativo, pelo seu simbolismo.


Pois bem, na parte final de O solo de clarineta, em - O escritor e o espelho - Érico Veríssimo fala sobre os temas afeitos a vida de um escritor. Pela beleza dessas reflexões peço especial licença para apresentá-las. Entre os temas está o da sexualidade, erotismo e "palavras feias".

"Confesso que sinto uma sadia, cordial inveja dos escritores que têm uma real, autêntica intimidade com a terra, as árvores, os ventos, os bichos e principalmente com as criaturas humanas que também estão perto das raízes profundas da vida. Às vezes chego a pensar - por mais ridícula que a imagem possa parecer - que sou uma planta do asfalto, mas planta de papel...

Em geral, quando termino um livro, encontro-me numa confusão de sentimentos, num misto de alegria, alívio e essa vaga tristeza que vem após o ato do amor físico, satisfeita a carne. Relendo a obra mais tarde, quase sempre penso assim: 'Não era bem isso que eu queria fazer'.

Chegamos assim a um assunto que eu gostaria de discutir com mais vagar. Sou habitualmente apontado como um escritor erótico ou mesmo pornográfico.

Por que - perguntam-me às vezes - tenho tanta preocupação com o sexo? Ora, respondo, decerto é porque no fundo sou um puritano. Mora dentro de mim um pastor protestante a pregar interminavelmente um sermão apolíptico contra o pecado da carne, e eu não posso consentir que esse homenzinho emascule as minhas personagens ou a mim mesmo.

Por outro lado quero contribuir para que o problema do sexo seja examinado com mais coragem, honestidade, espírito adulto e... saúde. Muitas vezes fico alarmado ao pensar que, relativamente falando, um leitor sente menos indignação ao tomar conhecimento do assassínio de 6 milhões de judeus nas câmaras de gás asfixiante dos campos de concentração nazistas, ou do lançamento da bomba atômica em Hiroshima que redundou na morte de mais de 100 mil pessoas, ou ainda ao saber que mais de dois terços da população do Brasil vive numa miséria abjeta - do que quando lê num romance uma cena erótica descrita com clara franqueza.  O que quero dizer é que noto uma desproporção absurda, direi mesmo monstruosa, entre a natureza e a intensidade desses dois tipos de indignação.

Falando com a maior sinceridade, para mim pornografia mesmo é a crueldade do homem para com seu semelhante, a exploração do homem pelo homem; obscenidade é a guerra e o genocídio. Os mocambos do Recife, as favelas do Rio e de outras centenas de cidades da nossa terra constituem as mais indecentes e repulsivas páginas e cenas da vida brasileira.

Acho que os verdadeiros pornógrafos da história - já que uma pessoa realmente adulta só poderá sorrir das grotescas fantasias do Marquês de Sade - foram homens como Tamerlão, Nero, Calígula, Mussolini, Hitler - para mencionar apenas os primeiros nomes que me brotam na mente.

Quanto a questão dos 'nomes feios', creio que não existe nada mais ridículo que esse supersticioso temor a certos vocábulos que, afinal de contas, não passam de sinais ou símbolos convencionais. Tomemos por exemplo a famosa palavra de quatro letras que designa a mais antiga das profissões. Conta-se que Rui Barbosa descobriu dezenas de sinônimos, entre os perfeitos e os imperfeitos, para o termo prostituta, de maneira que não temos nenhuma desculpa quando usamos a palavrinha tabu. No entanto em toda essa história o que importa mesmo, o realmente deplorável e melancólico, é a experiência da prostituição, o que não parece preocupar muito as pessoas mais sensíveis às palavras do que às coisas que elas representam.

Isso nos dá uma ideia da terrível importância da linguagem. Vivemos tolas e terríveis ilusões semânticas. Por causa de palavras ou frases matamos ou morremos, sentimo-nos desgraçados ou infernizamos a vida de nossos semelhantes. Qualquer ato ou fato, por mais reprovável que seja, de acordo com paradigmas morais rígidos, perde a sua força, a sua natureza pecaminosa, e tende a ser ignorado ou esquecido quando não verbalizado, principalmente em romances. Fazer, pois, não é tão importante, tão grave, quanto dizer ou escrever. Quantas vezes transferimos a culpa duma situação vergonhosa - que na realidade cabe a um regime político-econômico ou a uma conjuntura social - para cima dos ombros do jornalista ou do ficcionista que ousou reproduzi-la numa reportagem ou num romance?

E é exatamente por causa da exagerada importância que damos às palavras que nós muitas vezes resolvemos nossos problemas apenas no papel, isto é, de maneira verbal, e vamos dormir tranquilos. Porque, se ninguém jamais pronunciar ou escrever a palavra puta (desculpem, que se me escapou o 'nome feio'!), a prostituição deixará de ter existência real" (Páginas 259-261).

Deixo a resenha deste segundo volume de Solo de clarineta:


E também a resenha dos sete volumes de O tempo e o vento:




quarta-feira, 1 de maio de 2024

Solo de clarineta. vol. 2. Memórias. Érico Veríssimo.

Vamos começar o nosso post, mais uma vez, com a contracapa do livro: "O segundo volume de Solo de clarineta foi publicado postumamente, em 1976. Aos textos deixados por Érico Veríssimo, Flávio Loureiro Chaves reuniu outros, esboçados pelo escritor em seu roteiro para memórias.

Solo de clarineta. memórias. vol. 2. Érico Veríssimo. Companhia das Letras.

Depois de evocar a fase final da criação de O tempo e o vento, Érico relembra as viagens marcantes de sua vida: Grécia, Portugal e Espanha. Nada parece escapar a seu olhar atento e à pena elegante do debate com estudantes politizados em Coimbra à recepção onde conhece um descendente de Eça de Queirós; do mar Egeu e da colina da Acrópole a uma busca quase obsessiva pelo local onde teria sido assassinado Federico Garcia Lorca.

A segunda parte dessas memórias, embora inconclusa, ilumina de forma inesquecível o extraordinário cidadão do mundo que foi Érico Veríssimo".

Diria mais. Um cidadão que se empenhou na defesa da democracia e dos direitos fundamentais do ser humano e que, com a mesma obstinação e riscos, combatia todas as formas de ditaduras, sejam elas de direita ou de esquerda.

O segundo volume está dividido em duas partes: Vejamos os títulos: Parte I: 1. O arquipélago das tormentas; 2. Sol e mel; 3. Entra o senhor embaixador; 4. Mundo velho sem porteira. Parte II: 1. Nota do organizador; 2. Espanha; 3. Caminho de Sevilha; 4. Granada: em busca do menino Federico; 5. Holanda; 6. O escritor e o espelho. É nesta segunda parte que entra mais a mente e a mão do organizador.

No item de número 1 da primeira parte, - O arquipélago das tormentas, Érico expõe uma parte conturbada de sua vida. As tormentas são uma referência aos seus graves problemas cardíacos, que quase lhe ceifaram a vida. Mas, em meio as tormentas, também há as bonanças, como o casamento de Clarissa, os netos e o começo da escrita de O arquipélago. Em 1962 dará este trabalho como encerrado.

No item de número 2 - Sol e mel, ele relata a sua viagem para a Grécia, onde aprofunda o seu legado humanista. De Péricles acentua uma frase: "Escravo é aquele que não pode dizer o que pensa". Neste sentido, Érico nunca foi um escravo. Mesmo nas condições mais adversas sempre disse o que pensava, especialmente em Portugal, onde dava caneladas na ditadura de Salazar. Da Grécia vai em viagem de cruzeiro até Istambul. Em Creta presta uma reverência a Níkos Kozantzakis, aquele do Zorba, o grego. (Também de O Cristo recrucificado). E, em Atenas, entre as suas belezas naturais, culturais e históricas, faz também uma bela referência ao Grêmio, que tinha andado por lá.

No item de número 3 - Entra o senhor embaixador, temos mais cenas de sua vida, como a morte da mãe, o namoro e o casamento de Luís Fernando, o primeiro neto oriundo deste casamento e, de maneira toda especial, a gênese de O senhor embaixador.

No item de número 4 - Mundo velho sem porteira, Érico se solta pelo mundo, sem antes falar do belo significado de - um mundo sem porteiras. Portugal  é o seu primeiro destino. Trata-se de um belo e culto guia turístico e cultural. Primeiro ele viaja para o norte e depois para o sul. Em Portugal, segue uma rotina meio oficial, junto com o seu editor, entre conferências, autógrafos, almoços festivos e homenagens e furtivas caminhadas por becos recônditos de rara beleza. Essa viagem tem forte teor político, de defesa da democracia. E, um dado fundamental da estrutura histórica do país: os minifúndios, ao norte e os latifúndios, ao sul. Coimbra, Porto, Braga, Guimarães e Évora são as cidades que ganham um destaque maior. É a parte mais longa do livro (No plano original de Érico, Solo de clarineta teria um terceiro volume. Creio que os demais países europeus seriam descritos à semelhança com esta descrição de Portugal). Este capítulo vale o livro. Um hino à liberdade, à democracia e aos direitos fundamentais e um anátema às ditaduras.

A segunda parte é bem mais breve, começando com as explicações do organizador. No tópico - Espanha, temos o relato de uma divergência familiar. Érico queria visitar oito países e Mafalda queria concentrar mais em torno de Roma e de Paris. Ao todo, o casal Veríssimo fez quatro viagens para a Europa, além da de 1959. 

Os títulos - Caminho de Sevilha e - Granada: em busca do menino Federico -, estão escritos, praticamente de maneira definitiva. De Sevilha o grande destaque vai para a descrição dos festejos da semana santa, que os desalojou do hotel. Uma grande festa em que as confrarias disputam a sua real grandeza. Outro destaque vai para as danças flamencas. De Granada, o destaque também vai para a religiosidade da cidade, mas a obsessão maior é Lorca e o seu assassinato pela cruel ditadura de Franco. De Granada tomo uma frase que foi decisiva, ao menos na primeira fase de minha vida. Se eu fosse escrever as minhas memórias, ela seria uma bela introdução e começo. Trata-se, nos conta Érico, da prece de uma mãe católica: Dios, dame un hijo sacerdote.

O título - Holanda, vai para muito além de suas tulipas. Tem uma bela comparação entre a pintura italiana e a holandesa. A Holanda é calvinista, é burguesa. Uma civilização que exalta as coisas e não a alma. Ah, a prosperidade!. Uma reconfiguração religiosa completa de muitas e profundas consequências.

E o escritor e o espelho, o título final do livro, também vale o livro. É uma preciosidade rara. Dela vou retirar três posts específicos, que definem Érico Veríssimo em toda a sua profundidade. Tenho, mais ou menos delineados os posts: É Érico Veríssimo um escritor pornográfico? Sua visão religiosa e sobre Deus e uma definição de princípios sobre sociedade - liberdade - socialismo.

Deixo ainda mais dois posts. Sobre o primeiro volume de Solo de clarineta:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/04/solo-de-clarineta-vol-i-erico-verissimo.html

E outro - com a resenha de cada um dos sete volumes de O tempo e o vento:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/04/os-sete-volumes-de-o-tempo-e-o-vento.html