terça-feira, 14 de maio de 2024

"A minha posição em face de Deus". Solo de clarineta (vol. 2). Érico Veríssimo.

Creio que os leitores sempre têm muita curiosidade em torno das crenças dos escritores. Isso não foi diferente com os leitores de Érico Veríssimo. Ele mesmo aborda a questão, na parte final de Solo de clarineta - memórias. São apontamentos deixados por Érico e incluídos no livro por seu organizador, Flávio Loureiro Chaves. Isso foi necessário visto que este segundo volume é uma obra póstuma. Também creio que a abordagem desse tema ajuda na melhor compreensão do extraordinário autor. As anotações de Érico são as seguintes:

Solo de clarineta - memórias. vol. 2. Érico Veríssimo. Companhia das letras.

"Tenho encontrado certa dificuldade em explicar a amigos e leitores a minha posição em face de Deus. Repetirei que sou um agnóstico, isto é, um homem que não se encontra na posse de provas convincentes que lhe permitam negar ou afirmar a existência dum Criador.

Posso, no entanto, afirmar que não sou destituído de sentimento religioso, pois tenho uma genuína, cordial reverência por todas as formas de vida, e um horror invencível à violência.

Sinto grande afeição e admiração pela figura histórica de Cristo e acredito sinceramente em que, se a ética cristã fosse realmente posta em prática, as criaturas humanas poderiam resolver os seus problemas de convivência num mundo que cada dia se complica mais e mais, pois leva à solidão e à agressividade. Infelizmente o que vemos em certos círculos religiosos é um grande farisaísmo, um cristianismo puramente de fachada. Citando, com a devida licença do autor, uma personagem de ficção (o dr. Leonardo Gris d'O senhor embaixador), direi que certos homens de negócio que se dizem piedosos conseguiram erguer uma parede de concreto entre suas igrejas e seus escritórios comerciais, de maneira que assim podem não só obedecer ao preceito bíblico segundo o qual a nossa mão direita nunca deve procurar saber o que a esquerda faz, como também lhes torna possível acariciar ao mesmo tempo com uma das mãos o Cordeiro de Deus e com a outra o Bezerro de Ouro. E, quando algum escritor denuncia essa prática hipócrita, a primeira ideia que ocorre a esses donos do poder é denunciar o 'escritor subversivo' à polícia. ('Para isso pagamos impostos').

Não aceito as fábulas bíblicas da Criação nem ideias como a do Paraíso, o pecado original, a Santíssima Trindade e outras tais. Acima de tudo não acredito no Inferno e na danação eterna. Creio que os cristãos que admitem essa monstruosidade estão insultando o seu Deus, que deveria ser logicamente a encarnação da suprema bondade e da mais alta justiça, isso para não falar na sua capacidade de perdoar. Por outro lado parece-me que aceitar o mito de que os que se comportam bem na vida terrena ganharão o Céu, onde permanecerão por toda a Eternidade fantasiados de anjos, entre nuvens cor-de-rosa, tocando lira e cantando - seria fazer pouco, muito pouco da imaginação do Ente Superior que teve capacidade e imaginação para criar o Universo com tudo quanto nele há - o que, convenhamos, é realmente um feito prodigioso.

Não, meus amigos, na minha opinião um problema da tremenda magnitude desse que envolve o mistério do Universo, de nossa vida e de nossa morte, merece, ou, melhor, exige uma explicação menos simplória e pueril do que essa que as Escrituras nos oferecem como chave do grande Enigma.

O curioso, entretanto, é que não raro me comovo ante a serena grave beleza de certos templos - principalmente das velhas igrejas e mosteiros românticos. (Este claustrófobo ama os claustros!) Quando visitei a basílica de São Francisco, em Assisi, senti a presença do Poverello. Em Gênova, numa meia-noite de Sábado de Aleluia, assisti a um serviço religiosos numa antiga igreja gótica, que me deslumbrou pela sua colorida pompa litúrgica. Numa memorável manhã de domingo, em Paris, na catedral de Notre-Dame, no momento em que o grande órgão acompanhado de fanfarras rompeu numa tocata de Bach, senti um arrepio em todo o corpo e tive a impressão de levitar no ar numa experiência quase mística, que quero crer tenha sido mais de natureza estética do que propriamente religiosa". Páginas 261-262.

Deixo ainda a resenha do segundo volume de Solo de clarineta, livro que contém este texto: 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/05/solo-de-clarineta-vol-2-memorias-erico.html

Também deixo a resenha dos sete volumes de O tempo e o vento:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/04/os-sete-volumes-de-o-tempo-e-o-vento.html

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