sexta-feira, 24 de maio de 2024

Um defeito de cor. Romance. Ana Maria Gonçalves.

Há uns dois anos eu dediquei um bom tempo para estudar as principais vozes da abolição da escravidão no Brasil. Entre elas figurava a de Luís Gama, o temido Dr. Gama, o grande libertador de escravizados, com base na Lei de 1831, acertada com os ingleses, que declarava livres os escravizados que chegassem ao Brasil, a partir daquela data. Era a famosa lei para "inglês ver". Mas não para o Dr. Gama. Foram mais de 500, os libertos por ele. 

O Dr. Gama tem uma história singularíssima. Ele nasceu na Bahia, filho de mãe escravizada liberta e de um rico comerciante português, que se arruinou com a bebida e o jogo. Premido pelos cobradores, vendeu o próprio filho como escravizado. Sabe-se que ele foi trazido para São Paulo, que fugiu, que se alfabetizou e se tornou um importante personagem de nossa história. Sabe-se também que muito procurou por sua mãe, Luísa Mahin, mas que não a encontrou.

Um defeito de cor. Ana Maria Gonçalves. Record. 2024. 39ª edição.

Pois bem. Em 2006, a escritora mineira Ana Maria Gonçalves, publicou um romance sob o título, Um defeito de cor. A edição que acabo de ler é de 2024 e é a edição de número 39. Fato raro num país em que os leitores estão minguando. Qual é o tema de Um defeito de cor? Por que será que ele teve tão grande repercussão? Qual é o seu tema. A resposta é simples. De forma romanceada e repleta de história real, Ana Maria Gonçalves nos relata a história da menina Kehinde, menina capturada no atual Benim e trazida para a Bahia, na condição de escravizada. O seu nome brasileiro foi Luísa. É a Luísa Mahin, a mãe de Luís Gama.

A história de Kehinde, ou de Luísa, é narrada em dez capítulos, ao longo de 950 paginas, de leitura que se torna praticamente ininterrupta, tal a sua força narrativa. Que menina e que mulher extraordinária!. Uma vida dedicada à sobrevivência e à busca do filho. Quanto à sobrevivência, essa tarefa foi superada com bastante facilidade, sim, reafirmo, com bastante facilidade, em meio às condições mais adversas. De volta à África, tornou-se empresária, atuando como comerciante de armas e no ramo da construção civil. Era uma espécie de rei Midas, em sua versão feminina. Quanto a busca do filho... É a parte principal e o objetivo da escrita do livro.

Coube a Millôr Fernandes a escrita das orelhas do livro, como forma de sua apresentação. Entre essas linhas lemos: "Um defeito de cor narra a história de Kehinde, negrinha de 8 anos capturada no Daomé (Benim), trazida pro Brasil, rodando por Bahia, Maranhão, Santos, São Paulo, e por aí vai, nesse mundo perdido que era este país.

A saga de Kehinde atravessa oito décadas, mais ou menos o mesmo tempo que o negro Damião vive no romance de Josué Montelo, ouvindo Os tambores de São Luís, romance já merecidamente clássico.

Rebeliões, violências inauditas - como arrancar olhos de escravas e castrar escravos por ousarem ser rivais sexuais de senhores, a negritude muçulmana, um mundo que se debate, com liberdades falsas, mas também verdadeiras como a da própria Kehinde, que a conquista aprendendo a ler, escrever e falar inglês. E lhe permite fugir pro Maranhão e pro Recôncavo, e até pro Rio (1840 - emocionante reconstituição), na procura desesperada de um filho vendido.

Madura e liberta mesmo em sua alma, Kehinde volta à África, vira 'industrial', casa com negro 'inglês', e, já velha, volta ao Brasil. Aonde não chega".

Fiz questão absoluta de transcrever o trecho em que Millôr acentua que o livro  trata de "rebeliões, violências inauditas...", para ressaltar o que mais me impressionou na leitura do livro, que me fez pensar comigo mesmo, que a sua leitura é fundamental para se ter um quadro preciso do que foi o violento sistema da escravidão. Isso é visto desde a captura na África, a viagem para a América, a venda em mercados cuja mercadoria eram os próprios seres humanos, além do cotidiano cruel da escravidão. E... o que a moral dominante permitia e absolvia com generosidade aos escravocratas. Uma história de muita dor e sofrimento. O livro também aborda a questão da volta dos escravizados para a África, uma história cheia de complicações. As incongruências do ser humano.

Se mais acima eu usei a expressão - "Rei Midas, em versão feminina", para a "empreendedora" Kehinde, confesso que a questão dessa relativa facilidade me trouxe um certo desconforto (e os outros?). Em tudo o que ela "empreendeu", ela sempre foi muito bem sucedida. Ela virou 'industrial', como aponta Millôr. Uma industrial da construção civil. Por outro lado, esses seus êxitos lhe permitiram ajudar a muita gente. Mas voltemos ao livro, aos seus dez capítulos, ao longo das suas 950 páginas, além do belíssimo prólogo.

Esse prólogo tem por título: - Serendipidades! Magnífico. Uma viagem pode levar a muitas coisas, para além dos propósitos iniciais, planejados para esta mesma viagem. Isso explica a origem do livro. Em uma viagem a ilha de Itaparica ela encontrou uma série de manuscritos que resultaram no teor básico do romance: A história de Kehinde, a mãe do Dr. Luís Gama.

Os dez capítulos não tem títulos. Em compensação, a cada duas ou três páginas, tem uma palavra que sintetiza as páginas seguintes, fato que auxilia bastante a leitura. Vou aqui tentar dar, não um título aos capítulos, mas apontar para o fato mais importante de cada um deles. 

Assim o capítulo de número um aponta para a captura na África e a travessia para o "estrangeiro". O de número dois descreve  o desembarque em São Salvador, a venda e a ida para uma fazenda na ilha de Itaparica. O de número três, por sua vez, mostra cenas do cotidiano da escravidão, escravizados domésticos e do campo, das rebeliões e o fato de ficar pajeada, por obra de seu sinhô e, ainda, a morte deste. O quarto capítulo nos apresenta "Banjokô, o filho, a Sinhá e a moradia em São Salvador, onde ela será escrava de ganho, em casa de ingleses. Lá ela aprende a fazer cookies, que tanto a ajudarão em breve. No quinto capítulo é apresentada a sua relação com a Sinhá, a ajuda de Oxum na compra de sua alforria, o início de suas atividades econômicas (cookies e padaria), o encontro com os muçurumins, com o padre Heinz, com um babalorixá e Alberto. 

O capítulo de número seis é dedicado à relação com  Alberto, a gravidez e o nascimento de um menino, que Kehinde sempre tratará por "você". Mostra também que a relação começa a se complicar, com o envolvimento de Alberto com jogo e bebida. Alberto se casa com moça branca. O capítulo de número sete é repleto de dificuldades para Kehinde. Economicamente ela vai bem, mas com Alberto tudo vai mal, só e sem dinheiro. Banjokô morre e ela se envolve em rebeliões com os muçurumins, e depois, com os federalistas. Fugas

No oitavo capítulo encontraremos Kehinde em suas fugas. Para Itaparica, para o Maranhão e para Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Soube da venda de "você" e inicia a sua desesperada busca. De Salvador ruma para o Rio de Janeiro, Santos, São Paulo e Campinas e, finalmente, para a África. O capítulo de número 9 se passa todo ele na África e mostra o seu envolvimento com o "negro inglês" John, de quem terá gêmeos Mostra também o enorme sucesso financeiro, com o comércio de armas e de casas. O capítulo dez é dedicado aos gêmeos e a sua tentativa de volta ao Brasil em busca de "você".

Cada capítulo tem em torno de cem páginas, uns mais e outros menos. O meu intuito, com a apresentação do principal fato, ou fatos, de cada capítulo é oferecer um primeiro contato com o teor do livro, fatos já bastante conhecidos em seus títulos, mas não em seus detalhes, uma incitação à leitura, portanto. Ainda devo dizer que o livro, na qualidade de romance, é uma mistura de ficção e realidade e, digo mais, de muita história. Possivelmente seja o grande livro, aquele que melhor mostra os horrores do que foi a escravidão no Brasil. Quanto a leitura, uma fluência incomparável, leitura de um fôlego só, embora todo o seu volumoso e rico conteúdo. Recomendo também demais as quase três páginas de indicações bibliográficas, as bases para a pesquisa do presente livro.

Simplesmente um livro necessário. O fato de estar na 39ª edição explica o seu extraordinário êxito. Há alguns anos eu estive em São Luís do Maranhão. Lá me deparei com o livro citado pelo Millôr, na orelha do livro. Deixo a sua resenha:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/07/a-saga-da-raca-negra-os-tambores-de-sao.html


    

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