Há uns dois anos eu dediquei um bom tempo para estudar as principais vozes da abolição da escravidão no Brasil. Entre elas figurava a de Luís Gama, o temido Dr. Gama, o grande libertador de escravizados, com base na Lei de 1831, acertada com os ingleses, que declarava livres os escravizados que chegassem ao Brasil, a partir daquela data. Era a famosa lei para "inglês ver". Mas não para o Dr. Gama. Foram mais de 500, os libertos por ele.
O Dr. Gama tem uma história singularíssima. Ele nasceu na Bahia, filho de mãe escravizada liberta e de um rico comerciante português, que se arruinou com a bebida e o jogo. Premido pelos cobradores, vendeu o próprio filho como escravizado. Sabe-se que ele foi trazido para São Paulo, que fugiu, que se alfabetizou e se tornou um importante personagem de nossa história. Sabe-se também que muito procurou por sua mãe, Luísa Mahin, mas que não a encontrou.
Um defeito de cor. Ana Maria Gonçalves. Record. 2024. 39ª edição.Pois bem. Em 2006, a escritora mineira Ana Maria Gonçalves, publicou um romance sob o título, Um defeito de cor. A edição que acabo de ler é de 2024 e é a edição de número 39. Fato raro num país em que os leitores estão minguando. Qual é o tema de Um defeito de cor? Por que será que ele teve tão grande repercussão? Qual é o seu tema. A resposta é simples. De forma romanceada e repleta de história real, Ana Maria Gonçalves nos relata a história da menina Kehinde, menina capturada no atual Benim e trazida para a Bahia, na condição de escravizada. O seu nome brasileiro foi Luísa. É a Luísa Mahin, a mãe de Luís Gama.
A história de Kehinde, ou de Luísa, é narrada em dez capítulos, ao longo de 950 paginas, de leitura que se torna praticamente ininterrupta, tal a sua força narrativa. Que menina e que mulher extraordinária!. Uma vida dedicada à sobrevivência e à busca do filho. Quanto à sobrevivência, essa tarefa foi superada com bastante facilidade, sim, reafirmo, com bastante facilidade, em meio às condições mais adversas. De volta à África, tornou-se empresária, atuando como comerciante de armas e no ramo da construção civil. Era uma espécie de rei Midas, em sua versão feminina. Quanto a busca do filho... É a parte principal e o objetivo da escrita do livro.
Coube a Millôr Fernandes a escrita das orelhas do livro, como forma de sua apresentação. Entre essas linhas lemos: "Um defeito de cor narra a história de Kehinde, negrinha de 8 anos capturada no Daomé (Benim), trazida pro Brasil, rodando por Bahia, Maranhão, Santos, São Paulo, e por aí vai, nesse mundo perdido que era este país.
A saga de Kehinde atravessa oito décadas, mais ou menos o mesmo tempo que o negro Damião vive no romance de Josué Montelo, ouvindo Os tambores de São Luís, romance já merecidamente clássico.
Rebeliões, violências inauditas - como arrancar olhos de escravas e castrar escravos por ousarem ser rivais sexuais de senhores, a negritude muçulmana, um mundo que se debate, com liberdades falsas, mas também verdadeiras como a da própria Kehinde, que a conquista aprendendo a ler, escrever e falar inglês. E lhe permite fugir pro Maranhão e pro Recôncavo, e até pro Rio (1840 - emocionante reconstituição), na procura desesperada de um filho vendido.
Madura e liberta mesmo em sua alma, Kehinde volta à África, vira 'industrial', casa com negro 'inglês', e, já velha, volta ao Brasil. Aonde não chega".
Fiz questão absoluta de transcrever o trecho em que Millôr acentua que o livro trata de "rebeliões, violências inauditas...", para ressaltar o que mais me impressionou na leitura do livro, que me fez pensar comigo mesmo, que a sua leitura é fundamental para se ter um quadro preciso do que foi o violento sistema da escravidão. Isso é visto desde a captura na África, a viagem para a América, a venda em mercados cuja mercadoria eram os próprios seres humanos, além do cotidiano cruel da escravidão. E... o que a moral dominante permitia e absolvia com generosidade aos escravocratas. Uma história de muita dor e sofrimento. O livro também aborda a questão da volta dos escravizados para a África, uma história cheia de complicações. As incongruências do ser humano.
Se mais acima eu usei a expressão - "Rei Midas, em versão feminina", para a "empreendedora" Kehinde, confesso que a questão dessa relativa facilidade me trouxe um certo desconforto (e os outros?). Em tudo o que ela "empreendeu", ela sempre foi muito bem sucedida. Ela virou 'industrial', como aponta Millôr. Uma industrial da construção civil. Por outro lado, esses seus êxitos lhe permitiram ajudar a muita gente. Mas voltemos ao livro, aos seus dez capítulos, ao longo das suas 950 páginas, além do belíssimo prólogo.
Esse prólogo tem por título: - Serendipidades! Magnífico. Uma viagem pode levar a muitas coisas, para além dos propósitos iniciais, planejados para esta mesma viagem. Isso explica a origem do livro. Em uma viagem a ilha de Itaparica ela encontrou uma série de manuscritos que resultaram no teor básico do romance: A história de Kehinde, a mãe do Dr. Luís Gama.
Os dez capítulos não tem títulos. Em compensação, a cada duas ou três páginas, tem uma palavra que sintetiza as páginas seguintes, fato que auxilia bastante a leitura. Vou aqui tentar dar, não um título aos capítulos, mas apontar para o fato mais importante de cada um deles.
Assim o capítulo de número um aponta para a captura na África e a travessia para o "estrangeiro". O de número dois descreve o desembarque em São Salvador, a venda e a ida para uma fazenda na ilha de Itaparica. O de número três, por sua vez, mostra cenas do cotidiano da escravidão, escravizados domésticos e do campo, das rebeliões e o fato de ficar pajeada, por obra de seu sinhô e, ainda, a morte deste. O quarto capítulo nos apresenta "Banjokô, o filho, a Sinhá e a moradia em São Salvador, onde ela será escrava de ganho, em casa de ingleses. Lá ela aprende a fazer cookies, que tanto a ajudarão em breve. No quinto capítulo é apresentada a sua relação com a Sinhá, a ajuda de Oxum na compra de sua alforria, o início de suas atividades econômicas (cookies e padaria), o encontro com os muçurumins, com o padre Heinz, com um babalorixá e Alberto.
O capítulo de número seis é dedicado à relação com Alberto, a gravidez e o nascimento de um menino, que Kehinde sempre tratará por "você". Mostra também que a relação começa a se complicar, com o envolvimento de Alberto com jogo e bebida. Alberto se casa com moça branca. O capítulo de número sete é repleto de dificuldades para Kehinde. Economicamente ela vai bem, mas com Alberto tudo vai mal, só e sem dinheiro. Banjokô morre e ela se envolve em rebeliões com os muçurumins, e depois, com os federalistas. Fugas
No oitavo capítulo encontraremos Kehinde em suas fugas. Para Itaparica, para o Maranhão e para Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Soube da venda de "você" e inicia a sua desesperada busca. De Salvador ruma para o Rio de Janeiro, Santos, São Paulo e Campinas e, finalmente, para a África. O capítulo de número 9 se passa todo ele na África e mostra o seu envolvimento com o "negro inglês" John, de quem terá gêmeos Mostra também o enorme sucesso financeiro, com o comércio de armas e de casas. O capítulo dez é dedicado aos gêmeos e a sua tentativa de volta ao Brasil em busca de "você".
Cada capítulo tem em torno de cem páginas, uns mais e outros menos. O meu intuito, com a apresentação do principal fato, ou fatos, de cada capítulo é oferecer um primeiro contato com o teor do livro, fatos já bastante conhecidos em seus títulos, mas não em seus detalhes, uma incitação à leitura, portanto. Ainda devo dizer que o livro, na qualidade de romance, é uma mistura de ficção e realidade e, digo mais, de muita história. Possivelmente seja o grande livro, aquele que melhor mostra os horrores do que foi a escravidão no Brasil. Quanto a leitura, uma fluência incomparável, leitura de um fôlego só, embora todo o seu volumoso e rico conteúdo. Recomendo também demais as quase três páginas de indicações bibliográficas, as bases para a pesquisa do presente livro.
Simplesmente um livro necessário. O fato de estar na 39ª edição explica o seu extraordinário êxito. Há alguns anos eu estive em São Luís do Maranhão. Lá me deparei com o livro citado pelo Millôr, na orelha do livro. Deixo a sua resenha:
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/07/a-saga-da-raca-negra-os-tambores-de-sao.html
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