terça-feira, 28 de maio de 2024

O avesso da pele. Jeferson Tenório. Vestibular 2025. UFRGS.

Santa Cruz do Sul é uma cidade do Rio Grande do Sul com cerca de 130.000 habitantes. A imigração alemã é que deu origem à cidade, situada a uns 150 Km da capital. A cultura do tabaco sempre foi a sua grande ocupação econômica, sendo considerada, segundo a Wikipédia, a "capital mundial do fumo". Não, o post não é sobre a cidade de Santa Cruz do Sul. O post é sobre o livro O avesso da pele, do escritor carioca, radicado em Porto Alegre, Jeferson Tenório. Mas, então qual é a razão de começar o post falando de Santa Cruz do Sul?

O avesso da pele. Jeferson Tenório. Companhia das Letras.

Acontece que uma pudenda senhora desta cidade, diretora de uma escola, criticou o livro. A razão para tal, é a de que o livro continha um vocabulário de baixo nível. Essa crítica, na sequência, causou um verdadeiro furor moralista, uma violenta onda de "pudor" contra a "indecência" do livro. A onda se estendeu, atingindo todo o Rio Grande do Sul, além dos estados do Paraná e de Goiás. O livro chegou a ser recolhido das escolas, para averiguação, ou seria censura mesmo. A censura não vingou e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul incluiu o livro entre os selecionados para o seu vestibular - 2025. Antes o livro fora incluído no Programa Nacional do Livro Didático e recebido o prêmio Jabuti de 2021. A primeira edição do livro data de 2020 e já está em 17ª reimpressão. É editado pela Companhia das Letras.

Afinal de contas, do que trata o livro? Ele merece a acusação de ser um livro com "expressões, jargões e cenas de sexo inadequadas", conforme os acusadores?  É ele um livro erótico ou pornográfico? Longe disso. Pornográfica é a realidade nele descrita. Essa sim é profundamente pornográfica. E, creio, que o ocultamento dessa realidade, tenha sido o real motivo para os atentados contra o livro. Eu destacaria três grandes temas sugeridos pelo autor como a centralidade do livro. "No sul do país, um corpo negro sempre será um corpo em risco" (p. 184). Corpo negro e corpo em risco chamam para o tema do racismo e da violência policial. "Você entrava na sala dos professores. Dava bom-dia, mas ninguém te respondia. Estavam com preguiça, sonolentos, tristes ou indignados por terem de estar ali" (p. 163). Eis o terceiro grande tema. Em síntese: Racismo, violência policial e o fracasso do sistema educacional.

Desde os gregos até os modernos, como nos atestam Sófocles, Freud e Kafka, entre tantos outros, a relação entre pais e filhos, sempre foi uma relação complexa e difícil. Isso não foi diferente com Pedro, um aluno do curso de arquitetura de uma pequena faculdade de Porto Alegre. Pequena, mas a única que ele tinha condições de pagar. Pedro era filho de Henrique Nunes, um professor da rede pública do ensino do estado do Rio Grande do Sul, em escolas, repito, em escolas  (no plural) de periferia de Porto Alegre e de Martha, sendo ela uma tradutora. E..., negros. Pedro está em busca da sua identidade e para isso mexe no passado de seus pais, do pai de maneira mais particular. Famílias desestruturadas, sonhos negados, tropeços repetidos. Insegurança a toda prova, além  de amores frustrados e fracassados. Timidez diante de arrogâncias. Eis o teor. Mas o vejamos também, o que está dito na contracapa:

"O avesso da pele é a história de Pedro, que, após a morte do pai, assassinado numa desastrosa abordagem policial, sai em busca de resgatar o passado da família, refazendo os caminhos paternos. Com uma narrativa sensível e por vezes brutal, Jeferson Tenório traz à superfície um país marcado pelo racismo e por um sistema educacional falido, um denso relato sobre as relações entre pais e filhos". Na orelha do livro encontramos uma descrição do pai, confundido com a sua própria vida: "a vida de um homem inteligente e sensível, inquieto, abalado pelas fraturas existenciais da sua condição de negro em um país racista, um processo de dor, de acerto de contas, mas também de redenção e, dentro desta, de superação e liberdade".

Uma das passagens mais belas do livro ocorre quando Henrique, em uma de  suas aulas, rompe com a aula prescrita (No Paraná seria o uso compulsório de plataformas) e mergulha em personagens da literatura e os identifica com a realidade vivida pelos alunos e, em troca, deles recebe atenção e reconhecimento. E isso lhe proporciona alegria. Ele se sente autor de suas aulas, em sintonia com a realidade dos alunos ( Foi Raskólnikov, de Crime e Castigo, que lhe permitiu a abordagem do tema da criminalidade e da culpa). E, caminhando pela São Petersburgo do personagem ele irá ao encontro da morte, numa abordagem policial. Em seu funeral, um aluno lhe renderá tributo:

"Um rapaz jovem, negro, que se identificou como ex-aluno, pediu para falar: eu queria começar dizendo que eu conheci o professor Henrique Nunes na sétima série, eu tinha doze anos. E não tenho como medir tudo que ele fez por mim, tudo que ele fez por inúmeros alunos, tudo que ele me ensinou. Estou arrependido de não ter dito isso a ele. Quero dizer também que o professor Henrique Nunes não morreu por mera circunstância da vida, morreu porque era alvo de uma política que persegue e mata homens negros e mulheres negras há séculos" (p. 179-180).

O livro tem quatro capítulos, subdivididos em pequenos sub capítulos. Eis os títulos: 1. A pele; 2. O avesso; 3. De volta a São Petersburgo (a cidade do personagem de Dostoiévski); 4. A barca (referência a viatura policial). São 189 páginas.

Mas, quero encerrar este post, com uma frase, já do primeiro sub capítulo da primeira parte do livro. Com ela pretendo prestar uma homenagem a todas as professoras e professores, que ainda resistem e ainda encontram alegria e esperança no ato de educar e que, junto com os alunos, compartilham o gosto pelos livros, por acreditarem na sua real força e grandeza na construção do humano. "Na verdade, você nunca soube ir embora. Até o fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas" (p. 13). Se, de um lado, a homenagem, do outro, o repúdio aos que tolhem, aos que NÃO "acreditam que os livros poderiam (podem) fazer algo pelas pessoas".

E como recentemente reli a obra de Érico Veríssimo, nela encontrei, em Solo de clarineta, vol. 2 - algo relativo ao fato de também ele responder a questão de ter sido considerado um escritor erótico ou pornográfico. A sua resposta é acima de tudo uma acusação lindíssima:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/05/e-erico-verissimo-um-escritor-erotico.html



2 comentários:

  1. César José Hartmann8 de junho de 2024 às 11:11

    Deu vontade de ler o livro. Procurarei o livro aqui na minha cidade de Londrina.

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    1. Que maravilha César. Que temas. Um livro que recebeu tanta censura. Na década de 2020 parece que estamos repetindo a de 1920. Tempos sombrios. Agradeço a sua manifestação.

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