As indicações de livros para os diferentes vestibulares também me levam à leituras. Dessa vez, vendo as indicações para 2025, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, me deparei com - A terra dos mil povos - História indígena do Brasil contada por um índio - de Kaká Werá Jecupé. A publicação não é recente, data de 1998, ainda no espírito dos 500 anos do "descobrimento". A pergunta que se impõe necessariamente é - mas o que havia aqui antes dessa data. Uma das teses do livro é a de que hoje temos a necessidade de pacificar os brancos, que nos trouxeram a "civilização". Isso implica num mergulho profundo na visão de mundo desses mil povos, anteriores ao processo civilizatório da cultura ocidental.
A terra dos mil povos. Kaká Werá Jecupé. Peirópolis. 2023.A versão que tenho em mãos é a sua segunda edição, datada de 2020, em 5ª reimpressão, de 2023. O livro é da Peirópolis, mais que uma editora, uma Fundação de Educação em Valores Humanos. Kaká usou dessa Fundação para desenvolver a temática e a visão de mundo da tradição tupi-guarani. Confesso que fiquei encantado com o livro, um dos melhores sobre a cultura indígena, junto com os livros de Darcy Ribeiro e de Manuela Carneiro da Cunha. Apenas mais recentemente temos outras obras como as de Ailton Krenak (Ideias para adiar o fim do mundo) e Davi Kopenawa (A queda do céu) escrito em parceria com o antropólogo Bruce Albert.
Outra observação a partir da leitura do livro é a do quanto que desconhecemos este mundo indígena na formação da identidade nacional brasileira e a relativamente pouca literatura existente a respeito. Digo isso, em comparação com a leitura que envolve a questão dos negros, originários da África. Nesse sentido o livro preenche uma enorme lacuna. Vale também a preocupação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul ao incluir o tema, sob a forma de livro incluído em seu vestibular.
Primeiramente algumas impressões ao longo da leitura. Uma cultura ou visão de mundo fundada na observação dos sábios da tribo e de experiências passadas de geração em geração, absorvendo a herança ancestral e em consonância com uma grande unidade com a natureza, unindo o espiritual ao material é muito diferente de uma cultura que foi prescrita. Por isso, entre eles, o maior respeito à natureza, à generosidade da Mãe-Terra. Muito semelhante com as outras culturas dos povos originários da América, de sua cultura à Pachamama. Muita semelhança também com os ancestrais africanos e mesmo com os gregos. E a força dos quatro elementos: Terra, Ar, Água e Fogo. Em suma, uma cultura oriunda da observação dos fenômenos da natureza, entrelaçados ao humano e perpetuada pelo culto à ancestralidade. Ou, uma cultura não fundada em livro de prescrições.
Entre os muitos trechos sublinhados, destaquei este, que tinha por título: "Somos parte da terra e ela é parte de nós". Diz assim: "Contudo, a maior contribuição que os povos da floresta podem deixar ao homem branco é a prática de um ser uno com a natureza interna de si. As tradições do Sol, da Lua, e da Grande Mãe ensinam que tudo se desdobra de uma fonte única, formando uma trama sagrada de relações e inter-relações, de modo que tudo se conecta a tudo. O pulsar de uma estrela na noite é o mesmo do coração. Homens, árvores, serras, rios e mares são um corpo, com ações interdependentes. Esse conceito só pode ser compreendido por meio do coração, ou seja, da natureza interna de cada um. Quando o humano das cidades petrificadas largar as armas do intelecto, essa compreensão será compreendida. Nesse momento, entraremos no ciclo da unicidade, e a terra sem males se manifestará no reino humano" (p. 64). Este mundo sucumbiu à civilização do branco, à chamada racionalidade do mundo ocidental. Lembro de Leonardo Boff, numa aproximação com esta visão, quando fala de três tipos de razão: a da inteligência, a do coração e a da espiritualidade.
Ele também nos apresenta crenças indígenas a respeito da origem do mundo e da humanidade. "De maneira geral, pode-se dizer que o índio classifica a realidade como uma pedra de cristal lapidado, com muitas faces. Nós vivemos em sua totalidade, porém só apreendemos parte dela pelos olhos externos. para serem descritas, é necessário ativar o encanto para imaginarmos como são as faces que não se expressam por palavras" (p.71).
Uma parte notável do livro apresenta uma pequena síntese cronológica da história indígena brasileira, o espírito do tempo, de 1500 a 1998, ano da escrita do livro. Pena que essa cronologia não foi atualizada até 2020, por ocasião da 2ª edição. É uma história de atrocidades e de resistências, atrocidades dos bandeirantes e de grande parte dos catequistas. De resistência pelas inúmeras lutas contra a dominação e colonização, como a experiência da República Comunista Cristã dos Guaranis e a luta presente até os dias de hoje, pela visibilidade e preservação de suas culturas e demarcação de terras. Aí ele nos apresenta os resistentes dos tempos mais recentes, como Mário Juruna, Raoni, Ailton Krenak, Álvaro Tukano e Sônia Guajajara, esta aliando à luta indígena, a luta das mulheres.
Outro belo capítulo é o das múltiplas contribuições indígenas na formação da cultura brasileira, com destaque para a agricultura, o cultivo da terra, a classificação das plantas, contribuições para a saúde, para a ética e para a filosofia, para alcançar uma longevidade, além de seus saberes fármacos, entre outros tantos. A identidade brasileira tem as suas raízes plantadas nas três grandes culturas que a formaram, todos com os seus saberes. E, como nos lembra o grande mestre Paulo Freire, que não existem saberes superiores e inferiores, mas sim, saberes diferentes. Depois da leitura desse capítulo vi um vídeo sobre a atual agricultura biodinâmica. Impressionante a sua origem.
Ele também aborda a delicada questão religiosa, nos chamando a atenção para o conceito latino do religare. "Religar-se a alguma coisa. Com o Divino, com Deus. Foi essa a ideia trazida para esses trópicos no século XVI". Mas não foi bem isso. Werá Jecupé não se intimida em nos apontar para a terrível hipocrisia e contradição entre o pregado e a sua prática:
"Vimos que, no decorrer deste século, essas ideias se manifestaram nos templos, nas catedrais, nas capelas, nos livros. E vê-se que essa ideia não surge na atitude da civilização. Enquanto isso, o espaço entre a ideia e a atitude tem gerado a miséria humana. A palavra corre pelo governo humano sem espírito, sem cumprimento do que se diz. Pois palavra e espírito estão longe. A voz sai morta, porém maquiada para dar a impressão de vida. A religião é surda, pois o espírito está mudo" (p. 99). Mais uma vez lembrei de Paulo Freire, numa inscrição em camiseta que ganhei numa participação em seminário sobre o grande mestre: É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática.
Com muita satisfação, quando eu li as duas últimas páginas do livro, que falam da biografia do autor, encontrei a referência de que A terra dos mil povos - História indígena contada por um índio - "...em 2022 foi listada pela Folha de S.Paulo dentre as 200 obras importantes para entender o Brasil, em levantamento de 169 intelectuais da língua portuguesa" (p. 125). Parabéns aos envolvidos que me fizeram chegar ao livro e, especialmente ao autor, pelo rico aprendizado.
E..., a partir do contido no livro, uma reflexão final. É preciso pacificar o branco e isso implica em...
Deixo ainda uma dica de Antônio Cândido, na sua indicação dos livros mais importantes para conhecer o Brasil. Para a questão indígena ele indicou o livro aqui resenhado:
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/12/indios-no-brasil-historia-direitos-e.html
E o grande clássico sobre o colonialismo, o colossal Os condenados da terra, de Frantz Fanon.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/03/os-condenados-da-terra-frantz-fanon.html
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