terça-feira, 18 de junho de 2024

um útero é do tamanho de um punho. angélica freitas. Vestibular - 2025. UFRGS.

"não queria fazer uma leitura // equivocada // mas todas as leituras de poesia // são equivocadas" (p. 52). Abro a minha resenha de um útero é do tamanho de um punho, dessa maneira como uma forma de prevenção. Confesso que tenho enorme dificuldade em ler livros de poesia. Faço essa ressalva, para antecipadamente justificar problemas de entendimento, usando para isso, as palavras da própria autora, a poeta gaúcha Angélica Freitas. Cheguei ao livro por meio de uma listagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para o vestibular de 2025. A edição que eu li é da Companhia das Letras, 2017, 9ª impressão.

um útero é do tamanho de um punho. angélica freitas. Companhia das Letras.

Procurando facilitar os caminhos, começo apresentando dados biográficos de Angélica, que, creio, ajudam na interpretação de sua poesia, ou então, fazem uma aproximação com os temas por ela trabalhados, os mesmos que foram por ela vividos. Angélica Freitas nasceu na histórica, tradicional e aristocrática cidade de Pelotas, no ano de 1973. Depois passou a ser uma espécie de cidadã do mundo, tomando a este, como o espaço de suas experiências, angústias e vivências. E também de sua poesia.

Em Porto Alegre, na sua Universidade Federal, fez o curso de jornalismo, indo depois para São Paulo exercer a profissão de jornalista, na redação do tradicional O Estado de S. Paulo. Vão vendo.... Duas vezes já usei a palavra tradicional. Rupturas à vista? Andou pela Holanda, pela Bolívia, mas as suas experiências mais marcantes ocorreram na Argentina e no México. Na revista TRIP encontrei uma entrevista sua, dada para Natasha Cortêz (Revista datada de 26.10.2012), em que ela fala dessas experiências.

Na Argentina ela conviveu com um grupo de mulheres, feministas, mergulhando no tema da construção da mulher (A mulher é uma construção) e no México, onde assistiu a uma colega, em um aborto. No México o aborto é legalizado e com cobertura da Saúde Pública. O fato que a sensibilizou foi a atitude de mulheres religiosas, católicas, que, primeiro, mansamente tentaram demover os familiares da sua prática e passando, progressivamente, para um discurso muito forte, violento. Esses fatos, segundo ela, a levaram ao tema - mulher, às suas inquietações e aos padrões que lhe são impostos. Está aí o núcleo central do livro.

Com essas questões em mente, ela retorna a Pelotas e, por um ano, se ocupa com a escrita do livro, começando com uma pesquisa sobre o corpo da mulher, quando se depara com a frase "um útero do tamanho de um punho fechado". Estava aí o título (apenas com a supressão do fechado) e o mais longo dos poemas do livro (Um útero do tamanho de um punho p. 59-66). Ela também fala sobre a razão de escrever o livro em sua cidade natal. Uma cidade provinciana, onde os papéis de gênero são bem definidos, com o patriarcado e o machismo empurrando a mulher para os espaços domésticos. Rupturas e ironias à vista?

Perguntada se ela teria uma predileção especial por algum dos poemas, ela diz que não, mas em sua resposta começa a falar sobre "Uma mulher limpa" (p.11-14), contrapondo-a com a mulher suja e feia. Ironia pura, um soco de punho fechado! No poema ela se recusa a ser a mulher padronizada, de como ela deve ser, se comportar, de se vestir, para ser mulher limpa e fofa. Para encontrá-la (essa mulher limpa e fofa) basta ir a uma loja de departamentos, ao setor de vestuário feminino, que você a encontrará. Tudo igual. Esse poema ocupa a primeira parte do livro, (e deixo uma dica, o poema mereceu a atenção de Márcia Tiburi, na revista Cult, datada de 12 de maio de 2013). Um poema que, além da ironia, também é de muita coragem nesses tempos obscuros.  Merecem também destaques - a mulher que incomoda muita gente e a ironia que a fez retornar a gracinhas de sua infância (i piri qui).

Vamos ainda ver um pouco da história do próprio livro, que além de prêmios, também ganhou um mundo, com traduções para o espanhol e para o alemão. A sua primeira edição é do ano de 2012, pela Cosac Naify, recebendo nova edição em 2017, pela Companhia das Letras. Pela data dos comentários das duas revistas, dá para perceber que o lançamento causou e, continua causando, agora com a indicação para o vestibular da grande universidade gaúcha. 

Vamos a dois pequenos aperitivos. O primeiro sobre a mulher limpa:

"porque uma mulher boa // é uma mulher limpa // e se ela é uma mulher limpa // ela é uma mulher boa"

há milhões de anos // pôs-se sobre duas patas //  a mulher era braba // braba e suja e ladrava

porque uma mulher braba // não é uma mulher boa // e uma mulher boa, é uma mulher limpa

há milhões, milhões de anos // pôs-se sobre duas patas // não ladra mais, é mansa // é mansa e boa e limpa (p.11 - tem sequência). ...

E - o segundo, sobre  a mulher em construção:

"A mulher é uma construção // deve ser

A mulher basicamente é pra ser // um conjunto habitacional // tudo igual // tudo rebocado //só muda a cor

particularmente sou uma mulher // de tijolos à vista // nas reuniões sociais tendo a ser // a mais malvestida

digo que sou jornalista

(a mulher é uma construção // com buracos demais

vaza

a revista nova é o ministério // dos assuntos cloacais // perdão // não se fala em merda na revista nova)

vocé é mulher // e se de repente acorda binária e azul //e passa o dia ligando e desligando a luz?

(você gosta de ser brasileira? // de se chamar virgínia woolf)

a mulher é uma construção // maquiagem é camuflagem

toda mulher tem um amigo gay // como é bom ter amigos

todos os amigos tem um amigo gay // que tem uma mulher // que lhe chama de fred astaire

neste ponto, já é tarde // as psicólogas do café freud // se olham e sorriem

nada vai mudar -

nada nunca vai mudar - a mulher é uma construção". (p.45-6). 

"Em seu segundo livro de poemas, publicado pela primeira vez em 2012, a poeta subverte imagens absolutamente gastas do que se espera da mulher - anunciadas em capas de revistas e em vitrines de lojas  de departamentos - para discutir, de modo transgressor, sobre questões de gênero". É o que lemos na contracapa do livro e, certamente, também a intenção da UFRGS, ao incluí-lo em sua lista para o vestibular.


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