sábado, 19 de dezembro de 2020

Pais e Filhos. Ivan Turguêniev.

Por algum problema na compra virtual de livros, recorri à minha estante para encontrar algum livro ainda não lido. A tarefa foi relativamente fácil. Encontrei-o na coleção "Os Imortais da Literatura Universal". Selecionei, de Iván Turguéniev, Pais e Filhos. É o fascínio pela literatura russa. Procurei saber pouco a respeito da obra para lê-la sem a influência dos comentadores. Mesmo assim me chamou atenção o fato de que o autor - em virtude desse livro, teve que abandonar o seu país. Por que será?

Pais e Filhos (1862). A obra prima de Turguêniev. Tradução de Ivan Emilianovitch.

Pelo título imaginei que o tema fosse o conflito de gerações, as famosas e sempre presentes desavenças entre os diferentes membros da família e o conflito de gerações. Nesse sentido, duas famílias ganham no livro, especial atenção. A família de Nicolau Pietróvitch Kirsánov, viúvo, pai de Arcádio e irmão do complicado Paviél e Vasyli e Arina Bazárov, pais de Eugênio Bazárov. Eugênio é um estudante de ciências da natureza, com propensões fortes para a medicina.

Arcádio e Eugênio são muito amigos e é a partir dessa amizade que o romance está constituído. Os dois visitam, primeiramente, os pais de Arcádio e depois os de Eugênio. Ambas as famílias são proprietárias rurais, ainda em tempos de servidão. O romance foi escrito em 1862. Confesso que senti profunda antipatia pelo personagem Eugênio pela sua arrogância, deboche e indiferença perante as pessoas. Creio que tive os mesmos sentimentos de Paviél, que, inclusive, o desafiou para um duelo. Ao longo de todo o livro Nicolau mostra uma grande preocupação com a educação dos mujiques, os servos atingidos pelas reformas agrícolas de 1861. (Os servos eram também chamados de almas - daí o título do livro de Gogol - Almas Mortas).  

A rica literatura russa desse período precisa necessariamente de contextualização. O país passava por grandes transformações. O país lutava para se manter um país rural, monarquista e escravista mas em contrapartida sopravam os ventos da modernização europeia dos ideais republicanos e libertários. No livro de biografias que acompanha a coleção, no livro sobre Turguêniev lemos o seguinte: "Os russos debatiam a situação de sua pátria, dividindo-se em eslavófilos e ocidentalistas. Esse clima atingiu o auge por volta de 1853 e esmoreceu no início do século XX. Ambas as correntes concordavam quanto à necessidade de o Estado ser soberano, mas divergiam no que respeitava ao tipo de governo, à estrutura social, aos valores religiosos e tradicionais". Quanto as divergências dos dois grupos, vejamos as posições:

"Os eslavófilos defendiam o regime monárquico, a servidão, as tradições seculares, o isolamento cultural. Sonhavam com a união perfeita de todos os povos eslavos sob a hegemonia da Rússia, nação rica de sentimentos, fé e arte. [...] Por seu turno, os ocidentalistas, cuja causa Turguêniev (1818-1883) abraçou desde os primeiros momentos, lutavam por um governo republicano, pela libertação dos servos e pela aproximação da Rússia ao Ocidente. O passado histórico constituía para eles um fardo incômodo, do qual era preciso livrar-se urgentemente, a fim de adotar as técnicas, invenções e ideias europeias. Não viam dificuldades em se transplantarem os valores culturais e as formas artísticas, e acreditavam que, com maior facilidade ainda, poderiam importar inventos, como as máquinas a vapor, ou instituições comerciais, como as sociedades por ações". No livro Bazárov é o mensageiro dessa modernidade. Já do outro lado se encontrava Dostoiévski (1821-1881) que "dedicou" a estes jovens modernos e modernizadores o seu implacável livro Os Demônios.

Turguêniev (1818-1883) era rico herdeiro de Varvara, sua mãe, proprietária de mais de cinco mil servos. Nunca se entendeu com ela. Passava muito tempo no exterior, admirando Hegel, recebendo influências de Rousseuau e sempre em meio a influentes companhias, como Bakúnin, Heine e Flaubert. Turguêniev, pela literatura, procurou construir o seu herói e porta-voz. Ao que tudo indica não foi muito bem sucedido. O seu herói era fraco diante das urgências da Rússia. Assim foi Rúdin, protagonista e título do romance com o tema, como também Bazárov, o seu mensageiro, em Pais e Filhos. É o que lemos na biografia que acompanha a coleção.

Quanto a Pais e Filhos lemos o seguinte: "Pais e Filhos  representava a última tentativa de Turguêniev para criar o herói russo: Bazárov. Intelectual materialista, nega o amor e a arte, recusa a religião, combate as tradições, tudo submete à experiência científica e acredita nos benefícios de uma revolução total. É um 'niilista', segundo o termo cunhado por Turguêniev especialmente para ele. Um rebelde que 'não se inclina a nenhuma autoridade nem aceita nenhum princípio sem exame'. O amor, no entanto o desarma e o conduz à morte". Ainda sobre o romance, a respeito de sua recepção junto ao público lemos: 

"Os jovens desaprovaram o desenlace do romance, a seu ver prova de uma tomada de posição do autor contra Bazárov e, por extensão, contra todos os 'filhos'. Por sua vez os 'velhos' sentiram-se ridicularizados na obra e consideraram Bazárov um modelo apontado à juventude como um ideal. Em suma, ambas as gerações objetaram ao romance e encetaram uma polêmica que durou anos. Na verdade, além da criação do herói russo, Turguêniev pretendia descrever o conflito entre pais e filhos, mostrando os defeitos e as qualidades de uns e outros. A grandeza do romance, a pintura dos ambientes e da paisagem rural, a precisão estilística, a soberba criação das personagens, sobretudo Bazárov - qualidades que fazem de Pais e Filhos sua obra-prima -, passaram despercebidas ao público e aos críticos da época". Sobraram muitas amarguras, especialmente com a situação social dos servos, agora emancipados, mas vivendo na miséria.

Ah! a abolição. Lembrando Joaquim Nabuco: A escravidão foi abolida - mas não a sua obra. Toda leitura é um enorme aprendizado.




domingo, 13 de dezembro de 2020

Os Noivos. Alessandro Manzoni.

Lendo a bela biografia do memorável papa João XXIII, deparei com o fato de sua grande afeição a um romance, que, inclusive, o teria influenciado no seu breve mas profícuo pontificado (1958-1963). Trata-se de Os Noivos, do escritor e ativista político italiano Alessandro Manzoni. A personagem pela qual o santo papa (este sim - um santo) mostrou maior admiração era Inês, em função das soluções que sempre encontrava diante das dificuldades, mesmo que impossíveis. Inês era a mãe de Lúcia Mondella, que junto com Renzo Tramaglino, formam o par romântico da obra.

 Os Noivos. Alessandro Manzoni. Abril Cultural. 1971. Tradução Marina Guaspari.

Outro fato que muito me chamou a atenção netsa biografia foi a sua admiração por São Carlos Borromeu, um antigo cardeal da cidade de Milão. Lhe admirava a sua profunda generosidade e vida dedicada aos pobres da cidade. Esses dados me levaram à busca do livro. O encontrei na coleção "Os imortais da literatura universal", uma edição da Abril Cultural, publicada em 1971. Em 2012, numa viagem ao norte da Itália eu visitava a cidade de Stressa, junto ao Lago Maggiore, no qual visitamos as Ilhas Borromeu e o famoso palácio que leva o nome da família. O guia muito nos falou do poder dessa família, mas não fez essa menção à sua generosidade. Falava do poder da família que se estende até os dias de hoje. Em Milão, lembro também de um monumento em homenagem a Alessandro Manzoni, por sua dedicação à causa da unificação italiana. Tudo isso me levou à leitura imediata do livro.

O livro é muito simples. Uma grande história de amor. Mas o que faz o escritor com esta história de amor? Insere nela a história da cidade de Milão. Antes de falar da concepção do livro vamos a dois dados da contextualização, tanto do livro, quanto do escritor. Alessandro Manzoni nasceu em Milão em 1785 e morreu na mesma cidade em 1873. O livro foi escrito, numa primeira versão entre os anos de 1821-1823 e reescrito entre 1825-1827, em três volumes. Chegou a ver, portanto, a sua tão sonhada unificação italiana (concluída em 1871). O livro faz uma retrospectiva de aproximadamente duzentos anos, para escrever a história de sua cidade, nas décadas de 1620 e início da de 1630. Nesse intento pesquisou a obra de Giuseppe Ripamonti, História de Milão. Na época a cidade estava sob domínio espanhol. Os personagens, no entanto, são seus. Entre eles estão os mais famosos - O Inominado, a monja de Monza e o Cardeal Frederico Borromeu.

No livro de biografias que acompanha a coleção encontramos o seguinte sobre a concepção da obra: "Manzoni simula basear-se num manuscrito do século XVII, por ele remanejado, segundo informa o subtítulo: História milanesa do século XVII descoberta e refeita por Alessandro Manzoni". Quanto a trama, lemos o que segue:

"A trama da obra gira em torno do amor de Renzo e Lúcia - os noivos - que, para poderem casar-se, tem de vencer os obstáculos colocados pelo vil Dom Rodrigo, poderoso senhor espanhol. Frei Cristóvão é uma das pessoas que se compadecem dos apaixonados; tenta ajudá-los, mas não logra vencer as artimanhas do tirano. A monja de Monza, princesa confinada ao convento, toma Lúcia sob sua proteção. Entretanto, não consegue impedir que a moça seja raptada pelos capangas do Inominado, misterioso cúmplice de Dom Rodrigo. Pouco tempo mais tarde, tocado pela graça divina, o Inominado se arrepende de seu crime e decide ajudar Renzo e Lúcia na concretização de seus sonhos.

Os protagonistas de Os Noivos são invenção do autor; contudo, o cenário histórico e social em que se movem é real, e a ele a crítica moderna se volta com renovado interesse. O público da época, empolgado com as aventuras dos noivos, não percebera a profundidade da visão humana e social de Manzoni. Um dos pontos altos do romance é justamente a descrição da peste de Milão, subsequente a um devastador ataque de lanceiros alemães. O medo da morte leva os cidadãos a lutarem entre si; qualquer 'untador', ou seja, suspeito de transmitir a peste, era sumariamente executado pela turba, com a conivência das autoridades".

Quanto a peste, ela merece um destaque todo especial. A riqueza de sua descrição. Isso ganha particular interesse em virtude de vivermos em tempos de pandemia. Quantas semelhanças. Quanta ignorância! Tem até um personagem, Dom Ferrante, tido como um homem culto, que morre com a peste, por descuidos em se prevenir, por simplesmente negar a doença e a sua contaminação. Vários dos capítulos, já ao final da obra, são dedicados à peste. Atende a uma série de curiosidades, a comparações de época.

Entre os personagens do bem, ganham grande destaque os convertidos, como o Inominado e o próprio Frei Cristóvão. É impossível não se apaixonar por esse frei. Também a generosidade do cardeal Frederico Borromeu ganha destaque, junto com o tratamento severo que ele dá a Dom Abbondio, um padre pusilânime, que se nega a casar os noivos em virtude dos interesses de Dom Rodrigo pela jovem Lúcia.

O livro termina com as razões que o autor encontrou para escrever o romance. Depois das considerações de Renzo o noivo, chega a vez de Lúcia falar: "E eu? Que quer você que eu tenha aprendido? Não fui buscar os contratempos; foram eles que me procuraram. A não ser - acrescentou, sorrindo - que o meu disparate seja querer-lhe bem e ser sua mulher.

A princípio, Renzo ficou entalado; depois de um longo debate, convieram os dois em que os dissabores não raro nos vêm da irreflexão, mas que o procedimento mais inocente e cauteloso não basta para conjurá-los; e, quando nos afligem, por falta nossa ou alheia, a confiança em Deus os atenua e torna proveitosos, para uma vida melhor.

Embora resulte dum raciocínio de criaturas humildes, esta conclusão parece-nos tão justa e acertada, que aqui transcrevemos, como suma de toda a nossa narrativa".

O autor - Manzoni, é importante dizer, que depois de muitas peregrinações ao longo de uma "boa vida", também é um convertido ao catolicismo. E, para terminar, o meu agradecimento ao querido papa João XXIII por essa dica de leitura.

A bela biografia do papa João XXIII.

E a resenha da biografia: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/12/papa-joao-xxiii-thomas-cahill.html




sábado, 5 de dezembro de 2020

PAPA JOÃO XXIII. Thomas Cahil.

Seguramente um livro cuja leitura faz muito bem. O li pela primeira vez em janeiro de 2010. O retomei agora, lendo-o bem mais atentamente, com muito mais cuidado. Nunca me canso em afirmar que o papa João XXIII foi a maior das influências que eu recebi em minha vida, especialmente em meus anos de formação nos seminários de Bom Princípio (1957-1958), Gravataí (1959-1964) e Viamão (1965-1968). O pontificado de João XXIII foi exercido durante os anos de 1958 a 1963, e a sua vida entre os anos de 1881 a 1963. Guardo ligeiramente na memória, o evento da morte e a troca dos papas.

Papa João XXIII. Thomas Cahill. Objetiva 2002. Tradução de Ana Luiza Dantas Borges.

Mas o objetivo deste post é o livro de Thomas Cahill, Papa João XXIII, da editora Objetiva. A publicação é do ano de 2002. Cahil é ex-diretor de publicações religiosas da Doubleday e leva a sua vida entre  as cidades de Nova York e de Roma. Na biografia ele mostra uma profunda admiração e carinho pelo papa que, segundo ele, dirigiu suas palavras ao mundo, e não apenas aos cristãos católicos, como os papas costumavam fazer. Cahill também é homem de profunda erudição, mostrando um domínio quase absoluto do complexo tema da história dos papados. Humanidade e sensibilidade perpassam a biografia. Também é verdade que a vida do biografado em tudo contribuiu para isso.

Na orelha de capa encontramos dois parágrafos que pretendem sintetizar o livro. O primeiro versa sobre o pontificado, buscando também uma retrospectiva histórica dos papados e o segundo versa sobre o ser humano extraordinário que o papa João XXIII foi. Vejamos: "Papa João XXIII começa com a história concisa, mas de alcance geral, da Igreja Católica e do papado, culminando no breve, mas inesquecível, reinado de Angelo Giuseppe Roncalli como Papa João XXIII, em meados do século XX. Aos 76 anos ele não era uma figura pública muito conhecida, nem um teólogo altamente treinado; assim, de início, acreditou-se que seria apenas um papa de transição. Durante seu reinado, entretanto, ele instituiu mudanças produtivas e sem precedentes, que refletiram sua preocupação com as aflições da humanidade.

Em uma prosa agradável e apaixonada, Cahill acompanha a vida do Pontífice de suas raízes camponesas ao marcante Segundo Concílio do Vaticano, com sua ênfase na justiça social para todos, assinalando o começo de uma verdadeira mudança na Igreja Católica e em sua relação com o mundo moderno. Nesta biografia que cativará igualmente católicos e não católicos. Cahill combina, com sua rara habilidade, imaginação, discernimento interpretativo e erudição, conseguindo, assim, refletir a intuição, espontaneidade e visão imparcial do próprio Papa João XXIII".

O livro, de 295 páginas, está dividido em quatro capítulos, uma pequena introdução, epílogo, notas e fontes e agradecimentos. Dou o título e subtítulo dos capítulos: I. Antes de João: Da congregação à Igreja e ao Padrão da Ortodoxia. A Igreja Imperial. Os Romanos e os Bárbaros. As duas espadas. A necessidade da Reforma e somente o papa. Muita história e erudição, uma história da constituição do papado, passando por crises e afirmações. Um belo capítulo.

II. Angelo, o homem: De camponês a padre. De secretário a historiador. De servente a arcebispo. De diplomata a patriarca. Um capítulo muito rico. Apresenta a sua trajetória de vida pessoal, de sua infância e juventude para penetrar na história italiana e mundial desse período. Sofia, Constantinopla e Paris entram em cena na vida de Angelo.

III. Roncalli, o pastor; João, o Papa. Veneza. O Vaticano: O patriarca de Veneza ganha projeção e é alçado à condição de Papa, escolhido em seu 11º escrutínio. Rompe a tradição dos conservadores Papas Pio, retoma Leão XIII, convoca o Concílio Vaticano II e escreve as progressistas encíclicas Mater et Magistra e Pacem in Terris. Sublinhei, em especial, uma frase: "Não foi o Evangelho que mudou; nós é que começamos a compreendê-lo melhor" e anotei duas observações: Pasolini produz e dirige o filme O Evangelho segundo São Mateus em sua homenagem e Os Noivos, de Alessandro Manzoni era um de seus livros de cabeceira. Já o separei para a leitura.

IV. Depois de João: Paulo VI. João Paulo II. Apresenta Paulo VI como seu continuador, na conclusão do Concílio e com a bela encíclica Populorum Progressio. Depois se acomoda sob a influência dos Conservadores. Já João Paulo II representa uma volta a Pio XII e se apresenta ao mundo não mais como um Papa universal mas como um policial universal, muito mais preocupado em punir do que em perdoar. Retrocessos de um papado interminável, de um Papa que "viajou o mundo, sem se dirigir ao mundo" mas apenas aos cristãos católicos do mundo.

Volto à minha formação. Tenho muito orgulho dela. Também saí da roça - de agricultura primitiva para o seminário. Ainda em Bom Princípio, recebemos a notícia da morte de Pio XII e de sua sucessão por João XXIII. Em Gravataí acompanhamos o Concílio Vaticano II e a Doutrina Social Católica por suas encíclicas e em Viamão acompanhamos um pouco do pontificado de Paulo VI. Nos chegavam as primeiras influências de uma visão progressista, humana e fraterna de mundo. Tenho muito orgulho dessa minha formação. O livro/biografia é também um belo exercício da compreensão e do significado vivenciado da riqueza da palavra "alteridade".

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

O Ingênuo. Voltaire.

Voltaire tem uma forma muito peculiar de dizer as suas "verdades". Para isso ele usa do conto e um conto que tem muita ironia, sátira e linguagem figurativa e invertida. Nem tão pouco - falta a mordacidade e o sarcasmo. É o que encontramos em O Ingênuo, o seu conto datado do ano de 1767. Já anteriormente publicara Cândido ou o Otimismo, (1759), com a mesma tonalidade. Voltaire viveu entre os anos de 1694 e 1778. Segue o Link de Cândido ou Otimismo. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/11/candido-ou-o-otimismo-voltaire.html

O Ingênuo. Editora Escala. Tradução de Antonio Geraldo da Silva.

O Ingênuo é um huron, um povo indígena da América do Norte. Ele é encontrado pela família Kerkabon, que tem em seu meio um padre, que é o prior de Nossa Senhora da Montanha. Parte da família havia migrado anteriormente para o Canadá. O huron é portador de dois pequenos retratos, nos quais são reconhecidos os parentes migrantes. O huron recebera os retratos de seu irmão, que combatera os franceses no Canadá. No huron eles observam traços de barba, um indicador de que não é um índio puro. Ele tem mestiçagem. Observando melhor os retratos, reconhecem os traços familiares e descobrem na figura do índio, um sobrinho.

Assim começam as aventuras do huron, de nome Ingênuo, no continente europeu. Admirados de ele não ser católico, o preparam para o batismo, ensinando-lhe a bíblia. No batizado recebe o sugestivo nome de Hércules, em alusão a um cidadão que transformou, numa única noite, cinquenta meninas em mulheres. A senhorita de Saint Yves, que pertence a família, se apaixona por ele e é plenamente correspondida. Ela é de beleza ímpar, o que lhe faz ter pretendentes bem influentes. É aí que começam as desgraças dos dois.

O huron se vê envolvido num combate com os ingleses e se mostra valente combatente e é enviado para a corte de Luís XIV, para receber honrarias. Na verdade lhe prepararam uma cilada, para afastá-lo da senhorita Saint Yves. É preso junto com um jansenista de nome Gordon, com quem troca confidências, passando por um enorme e rápido aprendizado. Gordon era um sábio. Voltaire apresenta as razões para o rápido aprendizado do Ingênuo:

"Esse rápido desenvolvimento de seu espírito era devido à sua educação selvagem, bem como a têmpera de sua alma, pois, nada tendo aprendido na infância, não havia aprendido preconceitos. Seu entendimento, não tendo sido curvado pelo erro, permanecera em sua retidão. Via as coisas como são, ao passo que as ideias que nos inculcam na infância fazem com que as vejamos, durante toda a vida, como não são". Que frase fantástica. O Ingênuo não fora contaminado pela escola.

O pequeno conto, de apenas vinte pequenos capítulos, também pode ser lido como uma tragédia, especialmente, a partir do momento em que entram em cena os padres jesuítas e, de modo todo particular, aqueles que são confessores do rei e dos ministros. O rei é nada mais - nada menos - do que  o poderoso Luís LIV. Por isso mesmo, vários capítulos se desenvolvem, ora em Paris, ora em Versalhes. Um dos padres mais influentes, o padre Saint Pouange cobra alto preço para a libertação do amado da senhorita Saint Yves, o que a torna extremamente infeliz e a leva até a morte. "Ela sucumbe por virtude", nos conta Voltaire.

O conto/tragédia termina com o adoecimento da bela jovem, cujo corpo foi consumido pela sua grande alma. O Ingênuo se transformou num bom oficial, mas o tempo que tudo apaga, não foi capaz de apagar as dores do pobre e infeliz Ingênuo. Até o influente padre Saint Pouange se arrependeu de suas patifarias. Vejamos ainda, a referência relativa ao conto na contracapa do livro:

"O Ingênuo segue, aproximadamente, a mesma linha de pensamento (de Cândido), embora se calque na onda do indianismo que se propagou na França do século XVIII. Voltaire ressalta a pureza de princípios dos índios americanos, contrapondo-os às ridículas e desgastadas convenções sociais e políticas da Europa da época". Assim, o Ingênuo huron, corresponderia ao "bom selvagem" de Rousseau. Efetivamente, um enorme choque cultural.

Adendo - 02.12.2020. Voltaire, apesar de ter sido demonizado pelos apologistas católicos, era um pensador moderado, um polemista divertido e sagaz, uma alma religiosa, embora idiossincrática, que se confessou a um padre em seu leito de morte e se permitiu receber a extrema-unção. Mas ele percebeu, com muita clareza, que as funções do Estado tinham de ser desvencilhadas das funções da religião. Abominou, com razão, o fanatismo e obscurantismo do clero, quer católico, quer luterano, reformado ou anglicano, e achava repelentes as práticas "cristãs" comuns da tortura, enforcamento, decapitação e incineração contra aqueles acusados de impiedade. De modo radical, ele e os companheiros filósofos  de seu círculo acreditavam que todos os homens eram iguais perante Deus e deveriam ser iguais perante a lei. Para Voltaire, essa não era, em si, uma proposta antimonarquista; não tinha nenhum motivo de queixa contra a realeza como tal. Porém foi logo seguido por homens (e mulheres) menos moderados que impeliram suas especulações entusiasmadas - e best sellings - a conclusões mais revolucionárias..

Isso não quer dizer que somente Voltaire e seus amigos defendessem a bandeira da inteligência e justiça, enquanto todo o sistema político-religioso da Europa enfileirava-se contra eles. As ideias dos filósofos logo afetaram o ar que todos respiravam". Era a força do Iluminismo ou do Esclarecimento. CAHIL, Thomas. Papa João XXIII. Rio de Janeiro. Objetiva 2002. Páginas 80-81.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Cândido ou o Otimismo. Voltaire.

Pangloss dizia vez por outra a Cândido: "Todos os acontecimentos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis, pois, afinal, se não tivesse sido expulso de um lindo castelo com uma saraivada de pontapés no traseiro por amor da senhorita Cunegundes, se não tivesse sido perseguido pela Inquisição, se não tivesse percorrido a América a pé, se não tivesse aplicado um belo golpe de espada no barão, se não tivesse perdido todos os carneiros do bom país de Eldorado, não estaria aqui comendo doces de cidra cristalizada e pistaches". - "Concordo plenamente", disse Cândido, "mas devemos cultivar  nosso terreno". (Páginas 94-5).

Cândido ou o Otimismo. Voltaire. Editora Escala. Tradução de Antonio Geraldo da Silva.

Assim termina um dos mais famosos contos de toda a história da literatura. Trata-se de Cândido ou o Otimismo, de Voltaire. Depois de todas as desventuras relatadas no conto, Cândido, Pangloss, Cunegundes, uma velha - filha de papa, Cacambo e Martim, somados a Paquette e o frade Giroflée, vão consultar um dervixe, que foi interrogado por Pangloss, o grande mestre da filosofia: "Mestre, vimos implorar que nos diga por que foi formado um animal tão estranho como o homem". A partir daí se estabelece o seguinte diálogo:

"Com que estás te metendo", disse o dervixe. "Será que é de tua conta"?

"Mas, meu reverendo pai", disse Cândido, "Há tanto mal na terra".

"O que importa", disse o dervixe, "se há mal ou bem? Quando Sua Alteza manda um navio ao Egito, será que importa se os ratos a bordo estão à vontade ou não"?

"O que se deve fazer então"? Perguntou Pangloss.

"Ficar calado", respondeu o dervixe.

"Desejava realmente", disse Pangloss, "vir aqui discorrer um pouco com o senhor sobre os efeitos e as causas, o melhor dos mundos possíveis, as origens do mal, a natureza da alma e a harmonia preestabelecida".

Ao ouvir essas palavras, o dervixe bateu-lhes a porta na cara. (Página 93). 

Depois de todas as desventuras e sem rumo, o Dr. Pangloss, sempre o grande mestre, depois de definir que  o otimismo "é a mania de sustentar que tudo está bem quando tudo está mal" (Página 56) e de, quando perguntado por Cândido, se mesmo "quando foi enforcado, dissecado, espancado, e obrigado a remar nas galeras, continuou pensando que tudo neste mundo ia o melhor possível"?, ele responde: "Mantenho minha opinião de sempre, pois, afinal sou filósofo. Não convém desdizer-me, uma vez que Leibniz não pode estar errado e uma vez que a harmonia preestabelecida é, por outro lado, a coisa mais bela do mundo, assim como o são a totalidade e a matéria sutil" (Página 89-90).

A solução contra o otimismo ou a ingenuidade parece vir num dos diálogos finais, quando toda a turma já está em Constantinopla, num diálogo com um agricultor. Cândido lhe dirige a palavra. "O senhor deve ter uma vasta e magnífica propriedade".

"Só tenho uns três alqueires", respondeu o turco. Cultivo-os com meus filhos. O trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade". Cândido assim reflete sobre estas palavras, com Pangloss e Martim: "Esse bom velho parece-me ter conseguido para ele um destino em muito preferível ao daqueles seis reis com quem tivemos a honra de jantar" [...] "Também sei", disse Cândido "que temos que cultivar nossa terra". "Tem razão" disse Pangloss, "pois, quando o homem foi colocado no jardim do Eden, foi colocado ut operaretur eum, para que o trabalhasse, o que prova que o homem não nasceu para o descanso". "Trabalharemos sem filosofar", disse Martim. "É o único meio de tornar a vida suportável" (Página 94).

Esse é o conto que começa na Vestfália e termina em Constantinopla, relatando as misérias e os sofrimentos humanos, através do grupo de pessoas com quem tem relações ao longo da viagem, que ocupa trinta pequenos capítulos da mais fina ironia. A longa viagem mostra que em todos os lugares, com exceção do Peru, o país do Eldorado, predomina a mesquinharia e a falsidade moral. Ao final todos eles convivem exercitando seus talentos.

Na contracapa do livros lemos o seguinte comentário de apresentação: "Cândido é um conto. Escrito contra seus opositores, Voltaire, com fina ironia, sem deixar de lado o sarcasmo e, com frequência, extremamente mordaz, responde com este conto em que contrapõe ingenuidade e esperteza, desapego e ganância, delicadeza e violência, amor e ódio, simpatia e crueldade e outros paradoxos da existência humana. Inserções de cunho filosófico levam os personagens a buscar causas e efeitos de qualquer coisa, a razão suficiente do que se pensa e se faz, a ética ou a moral do que é feito. O conto em si pode ser visto como um espelho do irreal e, na verdade, reflete a irrealidade ou a farsa de realidade que o mundo da época de Voltaire vivia". Lembrando que Voltaire nasceu em 1694 e morreu em 1778. O conto teve a sua primeira publicação no ano de 1759. Os seus alvos preferenciais são os padres, os jesuítas em especial, os judeus, que lhe tomaram a fortuna, a política e a religião. A Inquisição, as missões jesuíticas e o terremoto de Lisboa (1755) também aparecem no conto.

Adendo - 02.12.2020. Voltaire, apesar de ter sido demonizado pelos apologistas católicos, era um pensador moderado, um polemista divertido e sagaz, uma alma religiosa, embora idiossincrática, que se confessou a um padre em seu leito de morte e se permitiu receber a extrema-unção. Mas ele percebeu, com muita clareza, que as funções do estado tinham de ser desvencilhadas das funções da religião. Abominou, com razão, o fanatismo e obscurantismo do clero, quer católico, quer luterano, reformado ou anglicano, e achava repelentes as práticas "cristãs" comuns da tortura, enforcamento, decapitação e incineração contra aqueles acusados de impiedade. De modo radical, ele e os companheiros filósofos  de seu círculo acreditavam que todos os homens eram iguais perante Deus e deveriam ser iguais perante a lei. Para Voltaire, essa não era, em si, uma proposta antimonarquista; não tinha nenhum motivo de queixa contra a realeza como tal. Porém foi logo seguido por homens (e mulheres) menos moderados que impeliram suas especulações entusiasmadas - e best sellings - a conclusões mais revolucionárias.

Isso não quer dizer que somente Voltaire e seus amigos defendessem a bandeira da inteligência e justiça, enquanto todo o sistema político-religioso da Europa enfileirava-se contra eles. As ideias dos filósofos logo afetaram o ar que todos respiravam". Era a força do Iluminismo ou do Esclarecimento. CAHIL, Thomas. Papa João XXIII. Rio de Janeiro. Objetiva 2002. Páginas 80-81.



terça-feira, 24 de novembro de 2020

DANTE. R.W.B. Lewis. 1265 - 1321.

 Depois de vários livros sobre a realidade brasileira, uma mudança de rumo na leitura. Uma volta a um tema que me é muito grato. O mundo das biografias. O biografado da vez foi Dante Alighieri, da coleção Breves biografias, no livro Dante, autoria de R.W.B. Lewis. O livro é do ano de 2002. Na verdade, trata-se de uma releitura do livro.

Dante. Objetiva. 2002. Tradução. José Roberto O'Shea.


A primeira leitura me remete ao ano de 2007, quando na Universidade Positivo, no curso de Publicidade e Propaganda, em trabalhos de extensão, desenvolvíamos projetos bem ousados. Um desses projetos foi o da leitura e discussão de grandes obras literárias. Coube-me o desafio de trabalhar, nada mais e nada menos, do que uma das maiores obras da Literatura Universal, o poema de Dante A Divina Comédia. Essa ousadia me levou a muitas leituras.

A biografia escrita por R.W.B. Lewis é de agradável leitura e pressupõe um conhecimento básico da obra de Dante, ou então de quem se propõe a lê-la. Ela serve como um guia, proporcionando uma bela contextualização de época e da escrita. Dante nasceu na sua amada cidade de Florença no ano de 1265, vindo a morrer em Ravena, no exílio, em 1321. Toda A Divina Comédia foi escrita no exílio (Verona e Ravena) e sob condenação de pena de morte. Dante foi ativo político em sua cidade e tinha pavor das pessoas indiferentes, das pessoas que se omitiam. Dante viveu em tempos em que não havia estabilidade política.

Creio não errar em afirmar que os três temas mais presentes em A Divina Comédia são o amor, a política e a religião, esta, por óbvio, o tema central. Creio também que todos sabem, que o Grande poema está dividido em três partes: - uma visita ao Inferno, ao Purgatório, onde será guiado por Virgílio (um tributo ao autor da Eneida), e ao Paraíso, onde terá como guia Beatriz, sua paixão desde a infância e representando a sabedoria divina. A obra foi iniciada em 1308-9 e concluída em 1321, tendo demorado, portanto, entre onze e doze anos para a sua conclusão e  tendo-a escrito em condições bem adversas.

A Divina Comédia é uma autobiografia, bem como uma parte da história de Florença. Nos diferentes círculos de suas três partes são encontradas personalidades vivas de Florença e da região e que bem refletem as brigas entre o poder temporal e o poder espiritual, entre os favoráveis ao papa, ao imperador e aos príncipes locais. No Inferno estão os seus inimigos, os que traíram as suas causas e que o condenaram. No Purgatório, estão pessoas com quem ele conviveu, mas que cometeram pequenos deslizes. Já no Paraíso encontraremos os seus amigos, benfeitores e os santos da Igreja. A Divina Comédia é, seguramente, também uma obra de Teologia, sob a inspiração dos princípios de santo Tomás de Aquino. Para quem estiver interessado em um esquema da obra, toda ela preconcebida mentalmente, indico a revista - Entre livros - Entre clássicos, nº 1, da editora Duetto, dedicada a Dante.

Uma revista extraordinária. São 100 páginas bem didaticamente expostas.


Dessa revista, seleciono três versos, representando cada uma das partes. Assim temos "Deixai toda esperança, vós que entrais", para o Inferno, "Puro e pronto para subir às estrelas", para o Purgatório e "O amor que move o sol e as outras estrelas" para o Paraíso. Mas voltamos ao livro/biografia.

Ele está divido em oito capítulos, a saber: 1. Dante, o florentino; 2. Presenças da vizinhança: Tenra idade; 3. Amor, Poesia e Guerra: A década de 1280. IV. A morte de Beatriz e Vida Nova: 1285 - 1295; V. O percurso da Política: 1295 - 1302; VI. O Poeta no exílio: 1302 - 1310 - Iniciada a Comédia... (O Divina foi um acréscimo posterior); VII. No meio do caminho: 1310 - 1319 (Trata-se do primeiro verso - "No meio do caminho em nossa vida eu me encontrei por uma selva escura"); VIII. Ravena: 1318 - 1321 - Terminada a Comédia.

Como podem observar, a vida e a obra do poeta estão entrelaçadas. Deixo ainda os dois parágrafos da orelha do livro, que chamam atenção para esse fato, como também para a sua vida de escritor.: "Somente R.W.B. Lewis, biógrafo de renome e autor do livro The city of Florence, seria capaz de escrever com tanto discernimento sobre Dante Alighieri, o célebre filho de Florença. A obra Dante examina a vida e o complexo desenvolvimento - emocional, artístico e filosófico - do eminente poeta-historiador, desde a perambulação pelas colinas  e esplêndidas igrejas da Toscana, passando pelos dias de jovem recruta engajado na defesa da democracia, pela época em que Dante exerceu liderança cívica, até chegar aos amargos anos em que viveu como exilado de Florença, cidade que, um século mais tarde, tentaria, a todo custo, resgatar para si a imagem do poeta. 

Lewis revela ao leitor o Dante menino, no primeiro encontro com a mítica Beatriz, o poeta lírico, obcecado pelos temas do amor e da morte, o grande mestre da narrativa dramática e da alegoria, bem como a busca monumental do poeta pela Verdade final, na Divina Comédia. Nessa obra-prima da autodescoberta e da redenção é que Lewis localiza a autobiografia de Dante - e a soma das turbulentas paixões e epifanias do poeta".

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. Francisco de Oliveira.

O curso  "Educação, Sociedade e Sindicalismo", promovido pelo coletivo de formação da APP-Independente em parceria com o Nesef da UFPR, me levou a um novo ciclo de leituras da realidade brasileira, motivado por uma provocação feita pelo professor Gaudêncio Frigotto, na fala de abertura. O livro da vez, que foi explicitamente citado pelo professor Frigotto, foi Crítica à razão dualista - O ornitorrinco, do saudoso e notável professor Francisco de Oliveira. Os anteriores foram: Economia Política Brasileira, de Guido Mantega, Colapso do Populismo no Brasil, de Octavio Ianni, A Ideologia da Segurança Nacional, de Joseph Comblin e Educação como Prática da Liberdade, de Paulo Freire.

Os provocativos ensaios de Francisco de Oliveira sobre a realidade brasileira.

O livro é formado por ensaios, escritos em duas diferentes etapas. O primeiro foi escrito em 1972 e O Ornitorrinco, em julho de 2003. Em O Ornitorrinco, o professor examina a realidade social e econômica brasileira, trinta anos após os primeiros escritos, que abordam o mesmo tema. O ensaio é bastante complexo para leigos em assuntos de economia, mas de forma alguma é incompreensível. O professor Francisco de Oliveira faz uma crítica às teorias das interpretações tradicionais da economia política brasileira no ensaio de 1972. Ele explica a origem dos textos: "Esse ensaio foi escrito como uma tentativa de resposta às indagações de caráter interdisciplinar que se formulam no Cebrap acerca do processo de expansão socioeconômica do capitalismo no Brasil...". Apresento os títulos dos capítulos:

I. Uma breve colocação do problema; II. O desenvolvimento capitalista pós-anos 1930 e o processo de acumulação; III. Um intermezzo para a reflexão política: revolução burguesa e acumulação industrial no Brasil; IV. A aceleração do Plano de metas: as pré-condições da crise de 1964; V. A expansão pós-1964: nova revolução econômica burguesa ou progressão das contradições?; VI. Concentração da renda e realização da acumulação: as perspectivas críticas. O ensaio é acompanhado de tabelas ilustrativas, contendo os dados da acumulação.

Numa pequena síntese poderíamos dizer que Francisco de Oliveira apresenta as transformações da economia brasileira, ocorridas a partir de 1930, com as transformações promovidas pela passagem de uma economia agrária e exportadora para uma economia industrial e urbana. Todas essas transformações ocorreram sob o princípio da acumulação, sem os benefícios que essas transformações causaram nos países que por primeiro promoveram seus processos de industrialização. Mantém diálogos com os economistas ligados à CEPAL e ao partidão, criticando a visão darwinista dos comunistas, da evolução por etapas, no aguardo dos benefícios que necessariamente a industrialização traria.

A retomada do ensaio em 2003 revê esse processo de acumulação em sua continuidade para nos trazer a esdrúxula figura do ornitorrinco, como metáfora da deformação de nossa realidade socio-econômica. O ornitorrinco é um animal de rara e indefinida feição. O professor recorre à Grande Enciclopédia Larousse para defini-lo: "Mamífero monotremo, da subclasse dos prototérios, adaptado à vida aquática. Alcança 40 cm de comprimento, tem bico córneo, semelhante ao bico de pato, pés espalmados e rabo chato. É ovíparo. Ocorre na Austrália e na Tasmânia...O ornitorrinco vive em lagos e rios, na margem dos quais escava tocas que se abrem dentro d'água. Os filhotes alimentam-se lambendo o leite que escorre nos pelos peitorais da mãe, pois esta não apresenta mamas.  O macho tem um esporão venenoso nas patas posteriores. Este animal conserva certas características reptilianas, principalmente uma homeotermia imperfeita".


Que comparação! É a visão de um país e de uma sociedade que se industrializou e se urbanizou, mas não se desenvolveu, sob a égide da "modernização conservadora", tão cara aos sociólogos dos Estados Unidos. Como chegamos a toda essa deformação? Os dois ensaios, escritos num hiato de tempo de trinta anos nos remetem às causas. Elites submissas ao capital internacional, golpes contra a democracia permanentemente pairando no ar, interpretações errôneas da realidade, sindicalismo frágil e o espírito do capital, especialmente do capital financeiro indomável são apontadas como as causas dessa anomalia da figura social e econômica do ornitorrinco.

Na página 132, já em O Ornitorrinco encontramos a descrição do ornitorrinco brasileiro. Dou uma pequena amostra: "Como é o ornitorrinco? Altamente urbanizado, pouca força de trabalho e população no campo, dunque nenhum resíduo pré-capitalista; ao contrário, um forte agrobusiness. Um setor industrial da Segunda Revolução Industrial completo, avançado, tatibate, pela Terceira Revolução, a molecular-digital ou informática. Uma estrutura de serviços muito diversificada numa ponta, quando ligada  aos estratos de altas rendas, a rigor, mais ostensivamente perdulários que sofisticados; noutra, extremamente primitiva, ligada exatamente ao consumo dos estratos pobres". E por aí vai...para terminar de uma forma bastante desesperançosa, ao constatar que estamos presos nas teias da financeirização da economia em que estão enredados os dois grandes partidos brasileiros. O PT, como administrador dos fundos de pensão e o PSDB, como administrador dos grandes bancos. Que futuro teremos?

Na mesma página 132 temos uma nota que considero profundamente ilustrativa. Fala sobre FHC.: "Deste ponto de vista, o livro de FHC, Empresário Industrial e desenvolvimento econômico (DIFEL), reconhecia que a burguesia industrial nacional preferia a aliança com o capital internacional. Trata-se talvez do que de melhor o ex-sociólogo, hoje ex-presidente e eterno candidato ao Planalto, produziu academicamente. Roberto Schwartz (que prefacia o livro) sustenta a tese de que, na Presidência, Cardoso implementou exatamente suas conclusões deste livro; já que a burguesia nacional havia renunciado a um projeto nacional, ele enveredou decididamente para integrar o país na globalização".

Que Deus tenha piedade desse país, dessa nação! Francisco de Oliveira foi um dos fundadores do PT, partido com o qual se frustrou enormemente, filiando-se ao PSOL. Em 2019, quando a figura do ornitorrinco se deformava ainda mais em sua configuração, o bravo pensador da economia, da sociedade e da realidade brasileira faleceu, aos 85 anos de idade.

Na contracapa do livro lemos o escrito de Roberto Schwartz: "Escritos com trinta anos de intervalo, Crítica à razão dualista (1972) e O Ornitorrinco (2003) representam, respectivamente, momentos de intervenção e de construção sardônica. Num a inteligência procura clarificar os termos da luta contra o subdesenvolvimento; no outro, ela reconhece o monstrengo social em que, até segunda ordem, nos transformamos".



quinta-feira, 12 de novembro de 2020

A essência da concepção de educação de Paulo Freire. Educação como prática da Liberdade.

No ano de 1968 eu me formava em filosofia na Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição, da cidade de Viamão, no Rio Grande do Sul. No ano anterior eu já tinha tomado a decisão de sair do seminário, interrompendo um sonho plantado em mim, ainda na mais tenra infância, de ser padre. Saí de lá com uma consciência absolutamente ingênua. Em 1969 chegava ao Paraná e fui ser professor da rede pública do Estado, na cidade  de Umuarama, onde comecei a atividade que me tornou um educador.

Ainda hoje eu continuo no trabalho de formar em mim esse educador. Esse educador, que reconhece seus limites e parte para a busca de complementar a sua finitude, de complementar os seus limites. Leituras, práticas docentes e lutas por dignidade profissional me forjaram como educador. Creio que evoluí, num trânsito que percorreu os caminhos da consciência ingênua para atingir o estado de uma consciência crítica, uma consciência de classe. Creio que hoje consigo responder às principais questões que são postas para um educador consciente de seu trabalho e missão.

Concepção e método de uma Educação como prática da liberdade.


Nesse trânsito sofri muitas influências. Não tenho dúvidas que o que mais pautou a minha vida me veio dos anos de seminário. Uma formação cristã, onde fui abandonando o padroeiro dos padres seculares, o padre São João Maria Vianney, o inspirador do fundador da Opus Dei, para adotar o cristianismo de  Cristo, que me foi repassado por João XXIII, assimilando os magníficos ensinamentos do Concílio Vaticano II e a doutrina social cristã sob a inspiração do grande papa Paulo VI. Entre os teóricos que orientaram a minha práxis, hoje vou me ater apenas a um: Paulo Freire e fazer referência ao seu primeiro grande livro, Educação como prática da liberdade.

Na última atividade que exerci como professor, na qualidade de professor de filosofia e de teoria política da Universidade Positivo, usei um texto desse livro, à exaustão. Trata-se da introdução ao primeiro capítulo do livro, A sociedade brasileira em transição. Considero esse texto o mais belo texto da filosofia brasileira e nele estão apontados os fundamentos ontológicos do ser humano. Tenho o texto no blog e o deixo aqui registrado. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/07/a-sociedade-brasileira-em-transicao.html

Hoje quero tomar mais algumas páginas desse livro para registrar aquilo que considero o essencial da fundamentação teórico prática da concepção de educação de Paulo Freire. Essa concepção eu a retiro do capítulo IV, Educação e conscientização. É uma concepção de educação fundamentada na realidade brasileira, que no dizer do educador, estava em trânsito de uma sociedade fechada para uma sociedade aberta. Esta sociedade, pelo golpe de 1964, foi novamente transformada numa sociedade intransitiva, com todos os seus malefícios. Mas vamos à riqueza do texto.

"Mas como realizar esta educação? Como proporcionar ao homem meios de superar suas atitudes, mágicas ou ingênuas, diante de sua realidade? Como ajudá-lo a criar, se analfabeto, sua montagem de sinais gráficos? Como ajudá-lo a inserir-se? A resposta nos parecia estar:

a)num método ativo, dialogal, crítico e criticizador; b) na modificação do conteúdo programático da educação; c) no uso de técnicas como o da Redução e da Codificação.

Somente um método ativo, dialogal, participante, poderia fazê-lo. E que é o diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois polos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos. Só aí há comunicação.

'O diálogo é portanto, o indispensável caminho', diz Jaspers, 'não somente nas questões vitais para nossa ordenação política, mas em todos os sentidos do nosso ser. Somente pela virtude da crença, contudo, tem o diálogo estímulo e significação: pela crença no homem e nas suas possibilidades, pela crença de que somente chego a ser eu mesmo quando os demais também cheguem a ser eles mesmos.

Era o diálogo que opúnhamos ao antidiálogo, tão entranhado em nossa formação histórico-cultural, tão presente e ao mesmo tempo tão antagônico ao clima de transição.

O antidiálogo  que implica numa relação vertical de A sobre B, é o oposto a tudo isso. É desamoroso. É acrítico e não gera criticidade, exatamente porque desamoroso. Não é humildade. É desesperançoso. Arrogante. Auto-suficiente. No antidiálogo quebra-se aquela relação de 'simpatia' entre seus polos, que caracteriza o diálogo. Por tudo isso, o antidiálogo não comunica. Faz comunicados.

Precisávamos de uma Pedagogia da Comunicação, com que vencêssemos o desamor acrítico do antidiálogo.  Há mais. Quem dialoga, dialoga com alguém sobre alguma coisa. Esta alguma coisa deveria ser o novo conteúdo  programático da educação que defendíamos.

E pareceu-nos que a primeira dimensão deste novo conteúdo com que ajudaríamos o analfabeto, antes mesmo de iniciar sua alfabetização, na superação de sua compreensão mágica como ingênua e no desenvolvimento da crescentemente crítica, seria o conceito antropológico de cultura. A distinção entre os dois mundos: o da natureza e o da cultura. O papel ativo do homem em sua e com sua realidade. O sentido de mediação que tem a natureza para as relações e comunicação dos homens. A cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez.  A cultura como o resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador. O sentido transcendental de suas relações. A dimensão humanista da cultura. A cultura como aquisição sistemática da experiência humana. Como uma incorporação, por isso crítica e criadora, e não como uma justaposição de informes ou prescrições 'doadas'. A democratização da cultura -  dimensão da democratização fundamental. O aprendizado da escrita e da leitura como uma chave com que o analfabeto iniciaria a sua introdução no mundo da comunicação escrita. O seu papel de sujeito e não de mero e permanente objeto.

 A partir daí, o analfabeto começaria a operação de mudança de suas atitudes anteriores. Descobrir-se-ia, criticamente, como fazedor desse mundo da cultura. Descobriria que tanto ele, como o letrado, tem um ímpeto de criação e recriação. Descobriria que tanto é cultura o boneco de barro feito pelos artistas, seus irmãos do povo, como cultura também é a obra de um grande escultor, de um grande pintor, de um grande místico, ou de um pensador. Que cultura é a poesia dos poetas letrados de seu país, como também a poesia de seu cancioneiro popular. Que cultura é toda criação humana.

Para a introdução do conceito de cultura, ao mesmo tempo gnosiológica e antropológica, elaboramos, após a 'redução' deste conceito a traços fundamentais, dez situações existenciais 'codificadas', capazes de desafiar os grupos e levá-los pela sua 'descodificação' a estas compreensões. Francisco Brennand, uma das maiores expressões da pintura atual brasileira, pintou estas situações, proporcionando assim uma perfeita integração entre educação e arte.

A primeira situação inaugura as curiosidades do alfabetizando que, na expressão de autor e amigo do autor, 'destemporalizado' inicia sua integração no tempo.  É impressionante vermos como se travam os debates e com que curiosidade os analfabetos vão respondendo às questões contidas na representação da situação. Cada  representação da situação apresenta um número determinado de elementos a serem descodificados pelos grupos de alfabetizandos, com o auxílio do coordenador de debates.

E, na medida em que se intensifica o diálogo em torno das situações codificadas - com 'n' elementos -  e os participantes respondem diferentemente a eles, que os desafiam, e que  compõem a informação total da situação, se instala um 'circuito' de todos os participantes, que será tão mais dinâmica quanto a informação corresponda à realidade existencial dos grupos.

Muitos deles, durante os debates das situações de onde retiram o conceito antropológico de cultura, afirmam felizes e autoconfiantes, que não se lhes está mostrando 'nada de novo, e sim refrescando a memória'. 'Faço sapatos', disse outro, 'e descubro que tenho o mesmo valor do doutor que faz livros'.

'Amanhã', disse certa vez um gari da Prefeitura de Brasília, ao discutir o conceito de cultura, 'vou entrar no meu trabalho de cabeça para cima'. É que descobrira o valor de sua pessoa. Afirmava-se. 'Sei agora  que sou culto', afirmou enfaticamente, um idoso camponês. E ao se lhe perguntar por que se sabia, agora, culto, respondeu com a mesma ênfase: 'porque trabalho e trabalhando transformo o mundo'.

Reconhecidos, logo na primeira situação, os dois mundos - o da natureza e o da cultura e o papel do homem nesses dois mundos - vão se sucedendo outras situações, em que ora se fixam, ora se ampliam as áreas de compreensão do domínio cultural.

A conclusão dos debates gira em torno da dimensão da cultura como aquisição da experiência humana. E que esta aquisição, numa cultura letrada, já não se faz via oral apenas, como nas iletradas, a que falta a sinalização gráfica. Daí, passa-se ao debate da democratização da cultura, com que se abrem as perspectivas para o início da alfabetização". Paulo Freire. Educação como prática da liberdade. Páginas 115 -118, da 20ª edição da Paz e Terra, 2000.

Como Paulo Freire fala em cultura, deixo ainda uma definição da mesma, dada por Freud. Diz ele, o seguinte: "Como se sabe, a cultura humana - me refiro a tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de suas condições animais e se distingue da vida dos bichos; e eu me recuso a separar cultura [Kultur} e civilização [Zivilization] - mostra dois lados ao observador. Ela abrange, por uma lado, todo o saber e toda a capacidade adquiridos pelo homem com o fim de dominar as forças da natureza e obter seus bens para a satisfação das necessidades humanas e, por outro, todas as instituições necessárias para regular as relações dos homens entre si e, em especial, a divisão dos bens acessíveis". FREUD. Siegmund O mal-estar na cultura. Porto Alegre. L&PM Pocket. 2010. Páginas 23-4.


quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Educação como Prática da Liberdade. Paulo Freire.

Continuando o meu ciclo de leituras de realidade brasileira, motivado pela realização do curso "Educação, sociedade e sindicalismo", promovido pelo coletivo de formação da APP-Independente e pelo NESEF, da UFPR, o livro da vez foi o de Paulo Freire, Educação como prática da liberdade. Trata-se, obviamente, de uma releitura. Devo ter entrado em contato com esse livro ao final da década de 1970 ou início dos anos 1980. O livro foi escrito no Chile ao longo do ano de 1965 e teve a sua primeira publicação em 1967. Nele Paulo Freire contextualiza o seu método ou a sua concepção de educação. Também por óbvio, esse seu método está inserido na realidade, a realidade brasileira. Por isso a escolha.

O primeiro grande livro do Patrono da Educação Brasileira.

O livro é uma decorrência do seu trabalho de doutorado feito na cidade de Recife, na hoje Universidade Federal de Pernambuco, que tinha por tema a educação e a atualidade brasileira. Esse tema, somado com as suas primeiras experiências no campo da alfabetização constituem a essência do livro. No meu modesto entendimento, esta é a mais importante obra do mestre, junto com a Pedagogia do oprimido. A edição que tenho em mãos é a 24ª, da Paz e Terra, do ano 2000. A edição anterior foi simplesmente consumida pelo tempo e pelo uso.

Antes de entrar na resenha propriamente dita, tenho duas recomendações de leitura a fazer: a primeira é a do livro mais autobiográfico do autor Cartas a Cristina - Reflexões sobre minha vida e minha práxis. O livro é uma resposta à sua sobrinha, que queria saber sobre a vida, sobre a formação e o pensamento do tio. A segunda é uma bela biografia sua, em edição recente, de 2019. É de autoria de Sérgio Haddad e tem por título: O Educador - Um perfil de Paulo Freire. Uma publicação da Todavia. Deixo o link das resenhas: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/04/cartas-cristina-reflexoes-sobre-minha.html?m=1 e http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/03/o-educador-um-perfil-de-paulo-freire.html

O livro em questão, Educação como Prática da Liberdade tem quatro capítulos, uma apresentação de Francisco Weffort, com o título de educação e política, o belo poema de Thiago de Mello sobre o método de alfabetização Canção para os fonemas da alegria e um apêndice final, com ilustrações das primeiras experiências relativas aos trabalhos de alfabetização. 

Os capítulos tem os seguintes títulos: 1. A sociedade brasileira em transição. 2. Sociedade fechada e inexperiência democrática. 3. Educação Versus massificação. 4. Educação e Conscientização. Os dois últimos capítulos são o cerne do livro, sem reduzir a importância dos dois primeiros, que são belíssimos. Eles fundamentam ontologicamente o ser humano e descrevem a realidade brasileira, em que estes seres estão inseridos. Considero o primeiro desses capítulos como o mais belo texto da filosofia brasileira. Usei-o à exaustão no tempo em que ainda estava na ativa, em sala de aula. Tenho até uma transcrição: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/07/a-sociedade-brasileira-em-transicao.html

O primeiro capítulo me fez lembrar uma fala do mestre, na cidade de Umuarama, em 1992, quando ele afirmava que a elite brasileira é, de longe, a elite mais perversa do mundo. Nesse capítulo ele fala dessa elite, da sua formação e da realidade em que está inserida. Mas essa sociedade estava em transição, como se afirma no título do capítulo A sociedade brasileira em transição. Que trânsito era esse? Era o da saída de uma sociedade fechada, latifundiária, escravocrata, patriarcal e extremamente violenta. Era uma sociedade que condenava os "outros" ao mutismo, onde a "fala do púlpito" era a única voz tolerada, mesmo assim, quando não contrariava os interesses do latifúndio agro exportador. Nesse trânsito já se vislumbrava uma sociedade aberta, abertura causada pelas transformações decorrentes da industrialização e da urbanização. Para os desvalidos desse sistema é que ele destinou todos os esforços de sua práxis.

O segundo capítulo é uma continuação dessa fundamentação ontológica do ser humano para, depois adentrar na caracterização da realidade brasileira, realidade essa, que impedia a concretização do humano: Sociedade Fechada e Inexperiência Democrática é o título. Era essa sociedade fechada que impedia o trânsito para a sociedade aberta para a democracia e para a participação. Os instrumentos de dominação dessa elite são bem conhecidos. Foram elas que provocaram o golpe de 1964, com a finalidade de manter a intransitividade dessa mesma sociedade em função da manutenção de privilégios. Essa foi também a razão pela qual Paulo foi perseguido, preso e expulso de seu país. O trânsito da sociedade brasileira, de uma  oligarquia latifundiária e exportadora para uma sociedade urbana e industrial teria que obedecer aos ditames daquilo que a sociologia dos Estados Unidos chama de "modernização conservadora". É a velha acusação de subversão pondo o tacão e o coturno sobre a  nascente democracia brasileira.

O terceiro capítulo Educação Versus Massificação é o cerne do livro. É a apresentação do método ou dos princípios daquilo que Paulo Freire entende por educação. É ouvindo, perguntando e inventando que se fará a nova educação popular, que será ativa e participativa. Por essa concepção ninguém dará aulas sobre democracia. - Ela simplesmente será praticada. Não serão ditas ideias. - Ideias simplesmente serão trocadas. Por ela se desenvolverá o gosto por achados, por descobertas. Por ela se desenvolverá a consciência em expansão, até se tornar crítica fato que necessariamente levará à participação e à democracia. Será, antecipando conceitos da Pedagogia do oprimido, um grande não à pedagogia bancária e um grande sim à pedagogia problematizadora. O livro também expressa uma admiração profunda pelo ISEB e aos seus idealizadores que tanto o inspiraram e influenciaram.

Esse terceiro capítulo se complementará com o quarto Educação e conscientização. Nele se explicitará a sua concepção de educação, que não nasceu de abstrações - mas das experiências desenvolvidas junto ao povo e, obviamente, por concepções teóricas que remetem aos princípios ontológicos da concepção do humano, da liberdade, da igualdade e da democracia. Por ela, ele será sempre um sujeito ativo, a construir sua cultura e ao seu fazer história. Por esse conceito, o ser descobre o humano dentro si e essa descoberta romperá com o mutismo que lhe era imposto por uma sociedade autoritária e imobilizadora. Essa concepção jamais o moverá para a domesticação. " Eu já estou espantado comigo mesmo", disse um dos participantes de uma das experiências, após descobrir-se gente.  (Escrevo esse post, no momento em que mais de cem escolas no Paraná, sob o governo de Rato Junior, serão transformadas em escolas "cívico militares".  Serão escolas, como afirmei outro dia, em que o coturno pisará na poesia. Desculpem o momento de indignação). Eu retomarei esse tema num post específico.

O livro termina com um apêndice onde são relatadas 10 experiências pioneiras desenvolvidas ainda no Brasil, acompanhadas de alguns relatos sobre a escolha e das características das palavras geradoras. Estas passam por questões da comunicação e da linguagem, fundadas no diálogo No livro de Sérgio Haddad O Educador - Um perfil de Paulo Freire, existe um depoimento do general Castelo Branco, por ocasião da solenidade promovida em Angicos, com a presença do Presidente da República, João Goulart. Castelo Branco era na época o comandante da 4ª Região Militar, com sede em Recife. A sua frase contém a ideia de que esse método só serve para "engordar cascavéis no sertão. Uma compreensão perfeita de Paulo Freire pelo lado das elites, que, ainda hoje, lhe devotam tanto ódio.

Deixo ainda três recomendações de leitura para o decorrer do ano do centenário de nascimento do "Patrono da Educação Brasileira". Os seus dois livros iniciais - Educação como prática da liberdade e Pedagogia do oprimido. E ainda, a sistematização de tudo o que ele julga ser necessário para o conhecimento e a prática do educador, uma espécie de "catecismo" pedagógico seu, no bom sentido da palavra,  Pedagogia da autonomia - Saberes necessários à prática educativa. 



quinta-feira, 5 de novembro de 2020

A Ideologia da Segurança Nacional. Padre Joseph Comblin.

Na minha retomada de leituras sobre a realidade brasileira, instigado pelo trabalho do coletivo de  formação da APP-Independente e pela palestra de abertura feita pelo professor Gaudêncio Frigotto, terminei o terceiro livro da série. O livro da vez foi o do padre Joseph Comblin, A Ideologia da Segurança Nacional - O Poder Militar na América Latina. Os anteriores foram: A Economia Política Brasileira, de Guido Mantega e O Colapso do Populismo no Brasil, do professor Octávio Ianni. Seguem os links das resenhas: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/10/a-economia-politica-brasileira-guido.html e http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/10/o-colapso-do-populismo-no-brasil.html

A Ideologia da Segurança Nacional. Civilização Brasileira. 1978. Tradução de A. Veiga Fialho.

Adquiri esse livro, possivelmente no ano de 1988, quando fiz um curso de formação de quadros do Partido dos Trabalhadores no Instituto Cajamar. O utilizei bastante, especialmente naquilo que ele traz sobre o Brasil. Reconheço hoje, que muito do que penso sobre a realidade brasileira, me veio por meio desse livro. O autor, o padre Comblin, foi professor nas Universidades de Harvard (USA) e de Louvain (Bélgica). Lembro da enorme satisfação que me dava ao ir à Livraria da Brasiliense, na Rua Barão de Itapetininga, na cidade de São Paulo.

Do que trata o livro? Tanto o título, quanto o subtítulo explicitam bem o tema. A ideologia da Segurança Nacional - O poder militar na América Latina. A edição do livro data do ano de 1977 e, já no ano seguinte, foi lançado no Brasil pela Civilização Brasileira. O livro é uma exaustiva pesquisa sobre o tema. Enquanto estava tentando definir os conceitos básicos do livro, buscando nele citações, optei pelas que estão na contracapa do livro. A Doutrina da Segurança Nacional "é a base em que se apoiam e a força de que se alimentam os regimes militares que, em vários países, se atribuíram, sem consulta à opinião pública, a tarefa de salvá-los do 'comunismo internacional'". A explicação continua, afirmando que ela "não é bastante clara, mas que gera angustiante insegurança individual em nome de algo indefinido e subjetivo", para terminar afirmando que "é, na verdade, uma arma da Guerra Fria anticomunista, antiintelectual, antisindical, anti qualquer pessoa, movimento ou coisa que provoque receio àqueles que a utilizam". O último parágrafo da contracapa fala dos objetivos do livro:

"Este livro do Padre Comlin, professor de teologia das Universidades de Harvard e Louvain, fruto de minuciosa pesquisa e escrito em linguagem elevada, desmistifica tais pressupostos e demonstra que somente se alcança a verdadeira segurança de uma nação quando povo e governo, por ele escolhido, marcham democraticamente unidos em busca da paz e justiça social".

É uma doutrina criada pelos Estados Unidos, difundida em suas escolas militares para os militares latino americanos, doutrinados assim,, para serem os esteios da democracia, sempre ameaçada pelo "comunismo internacional". Na conclusão do livro lemos algo muito esclarecedor sobre as origens da doutrina, onde estão localizadas as fontes da doutrina: "O que aconteceu na ilha de Cuba envolveu diretamente todas as nações latino-americanas. A história de cada uma delas ficou marcada de modo decisivo. A Revolução cubana pode ser considerada como o equivalente da Revolução Russa para a América Latina: O que essa revolução significou para a Europa, o fidelismo significou para a América Latina". A Revolução cubana não poderia se repetir, custasse o que custasse, ou seja, a guerra deveria ser uma guerra total e permanente. Para deixar bem claro, a Ideologia da Segurança Nacional é uma reação ao comunismo internacional, que permanentemente ameaça o ocidente democrático e cristão e os seus valores.

O livro contém uma introdução, uma cronologia dos Regimes de Segurança Nacional na América Latina, cinco capítulos, conclusão e bibliografia. Dou os títulos e subtítulos dos capítulos:

Capítulo 1. A Doutrina. I. Os conceitos básicos - A) A geopolítica e a bipolaridade: 1) A geopolítica vista pela doutrina; 2) A geopolítica na América Latina; 3) O conceito geopolítico de Nação: 4) Bipolaridade. B) A guerra Total. 1) O conceito de guerra generalizada; 2) A Guerra Fria; 3) A guerra revolucionária. II. Os elementos da Doutrina: A) os objetivos nacionais: 1)Definição dos objetivos nacionais; 2) Unidade dos objetivos nacionais. B) A segurança nacional; 1) Definição da Segurança nacional; 2) Novidade do conceito de Segurança nacional; 3) Extensão da Segurança. C) O Poder nacional: 1) O sentido do poder; 2. As divisões do poder nacional: D) A Estratégia Nacional e E) Segurança e Desenvolvimento. 

Capítulo 2. O Sistema. I. O Sistema político: A) O transitório e o definitivo; B) O Estado; C) O Estado militar; D) As Instituições; E) O Exército do Poder e F) interpretações. II. O Sistema Social visto através do exemplo brasileiro: A) Dados materiais e B) Interpretação do Sistema Social.

Capítulo 3. A Segurança Nacional nos Estados Unidos: I. A Doutrina: A) A doutrina da Segurança Nacional: 1) A Segurança Nacional como linguagem; 2) As origens do conceito; 3) Evolução do conceito; 4. Extensão da Segurança; B) O Mundo da Segurança Nacional: 1) A preparação; 2) Os homens da Segurança Nacional;  3. "Os homens do presidente". C) O Estado de Segurança Nacional: 1) A presidência imperial; 2. As instituições da Segurança Nacional e 3) O Pentágono. II. A Influência da Doutrina Americana nos Estados Dependentes.  A) O Sistema Militar Interamericano: 1. A integração das forças armadas do continente americano; 2. Da ajuda militar à venda de armamentos e 3) Os programas de formação militar. B) A Missão dos Militares no Sistema Interamericano: 1) Primeira fase: 1961- 1968 e segunda fase: 1969- 1977.

Capítulo 4. A Segurança Nacional na América Latina. I. O Brasil. A) A fase de preparação: 1) Preparação remota e 2) A Escola Superior de Guerra. B) A Segurança Nacional no Poder: II. O Peru. A) A Revolução Peruana; B) A preparação; C) Modificações na Doutrina da Segurança Nacional e D) As armadilhas da Segurança Nacional. III. O Chile. A) Formação e B) Posições. IV. A Argentina. A) O contexto ideológico; B) A variante argentina da Segurança Nacional. V. O Uruguai. VI. O Equador. VII. A Bolívia.

Capítulo V. A Paz e a Política. I.  O mito americano da guerra; A) Estratégia e Política; B) O mito da guerra generalizada e absoluta; C) O mito da Guerra Fria; D) O mito da Guerra Revolucionária; E) A mistificação da Inteligência. II. Reconstruir a Política. A) Política e Paz; B) Política, Estado/Nação; C) Política e Moral; D) A formação da Nação no Terceiro Mundo. III. As ciladas da Segurança Nacional. A) O perigoso fascínio do Absoluto; B) Segurança e violência; C) Insegurança e Desenvolvimento. IV. A Utopia dos objetivos nacionais: A) Os avatares do interesse nacional; B) Utopia e razão; C) Objetivos e valores espirituais; D) Objetivos nacionais e desenvolvimento. V. A Alienação do Poder Nacional. A)  O círculo do Poder; B) O homem e o poder; C) A cultura e o poder; D) Poder e subdesenvolvimento.

É uma leitura altamente recomendável e esclarecedora. Eu tive mais gosto pelos capítulos I, III e IV. São os mais históricos, sendo que o de número 1, que também é teórico, assim como o II e V. O V é muito atual, especialmente após o golpe de 2016. Basta substituir o termo "marxismo universal" por "marxismo cultural". Assim a guerra total já pode recomeçar. O inimigo já está identificado e os militares, por enquanto se infiltrando nas instituições e na vigilância.




 

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

O Colapso do Populismo no Brasil. Octávio Ianni.

 Em decorrência do curso promovido pelo coletivo de formação da APP-Independente e do NESEF, da UFPR, de formação de lideranças sindicais - "Educação, sociedade e sindicalismo" e da palestra de abertura, dada pelo professor Gaudêncio Frigotto, passei por um novo ciclo de leituras de interpretação da realidade brasileira. O primeiro livro da lista foi o extraordinário livro de Guido Mantega A Economia Política Brasileira, uma bela busca das raízes das tomadas de decisão, ao longo da política brasileira e que inspiraram os diferentes modelos econômicos aqui adotados. Um livro que super recomendo. Entrei em contato com esse livro ao final dos anos 1980 ao participar do curso de formação de quadros, no Instituto Cajamar, curso promovido pelo Partido dos Trabalhadores. Deixo o link da resenha: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/10/a-economia-politica-brasileira-guido.html

5ª edição de O Colapso do Populismo no Brasil. Civilização brasileira .1995.


O segundo livro dessa série é o de Octávio Ianni O Colapso do Populismo no Brasil. Com esse livro entrei em contato no ano de 1997, no estudo das disciplinas que faziam parte do mestrado em História e Filosofia da Educação na PUC de São Paulo. O livro, extremamente didático, é uma série de aulas sobre a "crise brasileira", ministradas professor - na Columbia University, de Nova York, entre os meses de fevereiro e maio de 1967, bem no olho do furacão - entre o golpe de 1964 e o golpe dentro do golpe de 1968. Esse livro eu comprei na Livraria da Editora Cortez, nas imediações da PUC., onde eu era freguês com direito a descontos. 

Creio que o primeiro termo desse livro a ser esclarecido é o termo do título - populismo . Geralmente ele é acompanhado de uma conotação negativa que lhe é atribuído pelo senso comum. Obviamente, uma conotação eivada de ideologia. Ianni caracteriza bem o termo, nas reflexões que faz ao longo e na conclusão de seu livro: Selecionei dois parágrafos da conclusão: "...Em consequência, o exame dos acontecimentos colocou-nos diante do problema do imperialismo, tanto quanto diante dos papeis da burguesia nacional. As relações de classes surgiram em suas manifestações concretas; obscuras ou claras, de antagonismo ou acomodação. E o populismo, em suas diferentes modalidades (getulismo, trabalhismo, populismo de esquerda, etc.) foi caracterizado e interpretado, no contexto social e econômico em que realmente surgiu. Vejamos, pois, uma síntese desse quadro [...].

"O populismo brasileiro surge sob o comando de Vargas e os políticos a ele associados. Desde 1930, pouco a pouco, vai se estruturando esse novo modelo político. Ao lado das medidas concretas, desenvolveu-se a ideologia e a linguagem do populismo. Ao mesmo tempo que os governantes atendem a uma parte das reivindicações do proletariado urbano, vão se elaborando as instituições e os símbolos populistas. Pouco a pouco, formaliza-se o mercado de força de trabalho, no mundo urbano-industrial em expansão. As massas passam a desempenhar papeis políticos reais, ainda que secundários. Assim, pode-se afirmar que a entrada das massas no quadro das estruturas de poder é legitimado por intermédio de movimentos populistas (Página 176 da 5ª edição. O itálico é  do original).

E o que seria então o fim desse populismo? Em primeiro lugar ele deixa bem claro que isso ocorreu com o Golpe de Estado, militar-civil de 1964. Vejamos Ianni, ainda em suas conclusões: "Prisioneiros dos interesses econômicos e políticos da classe dominante - particularmente aqueles organizados no âmbito das corporações multinacionais - os donos do poder não conseguem resolver os dilemas básicos da sociedade brasileira. Obcecados pela estabilidade e a segurança, para combater qualquer manifestação de vida democrática, permaneçam no plano das aparências, insensíveis aos reais problemas sociais. Por essas razões é que os problemas do operário, camponês, universitário (entre outros) são encarados, antes de mais nada, como problemas relacionados à estabilidade socio-política, ou às conveniências da segurança interna. Por essas razões, ainda, é que às relações tradicionais de dependência estão se acrescentando novas instituições e maior engenho ideológico. Como resultado geral, permanece submersa, ou em segundo plano, a verdadeira essência dos problemas.

Assim, as relações entre as classes sociais adquirem contornos cada vez mais nítidos. À medida que se asfixiam os movimentos das massas (no proletariado urbano e rural), surgem novas manifestações da luta de classes. O populismo terá sido apenas uma etapa na história das relações entre as classes sociais. Nesse sentido é que se pode dizer que no limite do populismo está a luta de classes. Da mesma forma, no limite da ditadura de vocação fascista pode estar a sociedade socialista" (Página 182-3).

Me chamou particular atenção a primeira observação do professor no capítulo XI, A ideologia dos governantes, que bem define o golpe de 1964: "O que singulariza a política econômica inaugurada em 1964 é o fato de que ela substitui a ideologia do desenvolvimento pela ideologia da modernização. Conforme estava sendo posto em prática, o desenvolvimentismo orientava-se no sentido de dinamizar as forças produtivas; implicava a independência política e, em certo grau, impunha a autonomia econômica. A ideologia da modernização, por seu lado, conforme se efetiva depois de 1964, denota um esforço destinado a refinar o status quo e a facilitar o funcionamento dos processos de concentração e centralização do capital" (Página 151).

Para dar um panorama geral do livro destaco as suas três partes e os 12 capítulos. As três partes são as seguintes: Primeira parte: - Política e desenvolvimento. Encontramos aí quatro capítulos: 1. O sentido das crises; 2. Tensões e conflitos; 3. Fases da industrialização e 4. Desenvolvimento agrário. Basicamente são mostrados os processos de industrialização e urbanização promovidos pelo modelo de substituição de importações e os conflitos com os setores oligárquicos vinculados ao latifúndio e à economia agrário exportadora.

Na segunda parte temos - Populismo e nacionalismo, também com quatro capítulos: 5. Getulismo e populismo; 6. Política de massas no campo; 7. A esquerda e as massas e 8. Contradições do desenvolvimento Populista. Essa parte entra no âmago da discussão proposta pelo livro, que é a ideologia que fundamentou o populismo.

Na terceira parte temos - A Política de "interdependência", com mais quatro capítulos: 9. O Golpe de Estado; 10. A Dependência Estrutural; 11. A Ideologia dos Governantes e 12. Ditadura. Como devem ter percebido é o "colapso do populismo", com a substituição da política desenvolvimentista em favor da modernização conservadora, da concentração do capital e do empobrecimento das massas populares. Eis o real sentido do tema abordado nas aulas ministradas pelo professor, na Universidade dos Estados Unidos. O livro tem dois prefácios. Um é destinado à quarta edição, de 1986 e o outro à primeira edição, que é do ano de 1967.

Um livro fundamental para compreender a maior ruptura política que existiu no país e as suas implicações políticas, econômicas, sociais, culturais e atingindo todos os campos da vida brasileira. Tudo em favor do que o autor chama de inserção na "civilização ocidental" que promoveu a dependência estrutural do Brasil ao capitalismo internacional, ditado pelas grandes potências e que nos condena a permanentemente não atingir a nossa autonomia política e econômica. Dá, também, para entender perfeitamente o triste momento vivido pelo Brasil após o novo golpe, o de 2016. Ele tem absolutamente o mesmo sentido. O "populismo" havia voltado com os governos populares do PT.

Também já fiz a próxima opção de leitura. Será A Ideologia da Segurança Nacional - O poder militar na América Latina, do padre belga, que foi professor em Louvain (Bélgica) e em Harvard (Estados Unidos).

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

A Economia Política Brasileira. Guido Mantega.

No dia 16 de novembro de 2020, o coletivo de formação da APP-Independente, em conjunto com o NESEF, da UFPR, deram início a mais um trabalho de formação. Dessa vez o curso se destinaria à formação de lideranças para a atividade sindical. O professor Gaudêncio Frigotto fez a palestra de abertura. Essa foi precedida de uma leitura de texto, sob o título de "Estado, educação e sindicalismo no contexto da regressão social". Na palestra, a análise da realidade brasileira ganhou grande destaque, com a indicação de uma série de livros. Isso me fez voltar a um novo ciclo de leituras de interpretação do Brasil.

Na segunda metade da década de 1980 eu ainda me encontrava em Umuarama. Era dirigente regional da APP-Sindicato, fiz minha filiação ao Partido dos Trabalhadores e participei de cursos de formação de quadros do Partido no Instituto Cajamar, uma verdadeira universidade popular. Lá estudamos a formação de partidos políticos, o socialismo e, acima de tudo, a realidade brasileira. Foi ali que eu conheci o Frei Betto, César Benjamin e Edir Sader, entre outros. Me marcaram muito. 

Como consequência desses estudos, comprei muitos livros. Lembro que me enveredei pelas ruas de São Paulo, na busca da rua Barão de Itapetininga, endereço da Livraria Brasiliense. Um dos livros que comprei no ano de 1988 foi o de Guido Mantega A Economia Política Brasileira. Na época, não cheguei a lê-lo. Era um período de muita agitação política, com a redemocratização do Brasil. Tive intensa participação em praticamente todos os movimentos. Só no ano de 1988 estive três vezes em Brasília. Lembrando que 1988 foi o ano da promulgação da Constituição, um verdadeiro Pacto Social, com o qual saímos do período autoritário implantado em 1964. As leituras tiveram que esperar.

Economia Política Brasileira. 4ª edição. Guido Mantega.


Embora o livro não tenha sido citado na fala do professor Frigotto, retomei o meu ciclo de leituras por ele. Que leitura maravilhosa e esclarecedora. O livro busca a origem histórica da economia política brasileira, como nos aponta o título. Ele é uma adaptação de sua tese de doutoramento na USP, no início dos anos 1980. A primeira edição do livro é do ano de 1984, numa publicação da Polis/Vozes. A banca examinadora foi constituída pelos professores Paul Singer, Luiz Carlos Bresser Pereira, Brasílio Salum, Fernando Henrique Cardoso e Gabriel Cohn. Na contracapa do livro lemos a seguinte apresentação:

"Pela primeira vez foram reunidas as ideias de celso Furtado, Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré, Ignácio Rangel, Paul Singer, Maria da Conceição Tavares, Francisco de Oliveira, André Gunder Frank, Luiz Carlos Bresser Pereira e demais pensadores estruturalistas, marxistas e neokeinesianos, e organizadas nas correntes de pensamento que deram origem à Economia Política Brasileira.

Numa linguagem acessível não apenas aos estudantes de Economia, mas a todo o público de Ciências Humanas, Guido Mantega reconstitui os debates teóricos das décadas de 50 e 60, promovidos por esses clássicos do pensamento econômico brasileiro, que participaram da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), do Partido Comunista Brasileiro ou demais entidades do gênero, e produziram o Modelo de Substituição de Importações, o Modelo Democrático-Burguês e o Modelo de Subdesenvolvimento Capitalista". São os temas do livro.

Para quem não tiver tempo para a leitura inteira do livro, indico ao menos da introdução, que oferece um belo panorama do livro. Também tem um belo quadro ilustrativo da árvore genealógica da economia política brasileira. O livro tem cinco capítulos, além da bela introdução, já referida e, por óbvio, a indicação da bibliografia utilizada. Tudo isso ocupa 288 páginas.

Como estímulo para a leitura e propiciar uma melhor antevisão da leitura, dou os títulos e subtítulos dos cinco capítulos: I. O Nacional-desenvolvimentismo: 1. antecedentes do desenvolvimentismo. 2. O pensamento da CEPAL: a deterioração dos termos de intercâmbio; industrialização, intervencionismo estatal e nacionalismo. 3. Ragnar Nurske e o círculo vicioso da pobreza. 4. Gunnar Myrdal e o capitalismo bonzinho. 5. O Instituto Superior de Estudos Brasileiros. 6. O Nacional desenvolvimentismo e os planos estatais: Comissão Mista Brasil-Estados Unidos (1951/53), Grupo Misto BNDE-CEPAL (1953/55), O Plano de Metas. Da minha parte  tenho a dizer que é impossível estudar o Brasil sem passar pelos estudos da CEPAL e do ISEB.

II. O Modelo de Substituição de Importações: 1. Celso Furtado e a Teoria do Subdesenvolvimento; desenvolvimento e subdesenvolvimento. Os conceitos básicos do modelo. Luta de classes e democracia capitalista. Os impasses do subdesenvolvimento. 2. Ignácio Rangel e a inflação brasileira: Entre Marx e Keynes. O imperativo das forças produtivas.  Inflação e desenvolvimento. 3. Os herdeiros do Modelo de substituição de importações. Maria da Conceição Tavares e a fundamentação do modelo. Paul Singer e os ciclos conjunturais. Luiz Carlos Bresser Pereira e a nova classe média.

III. Raízes do pensamento econômico marxista brasileiro: 1. Lênin e a Revolução Democrático-Burguesa. 2. Trotski e a Revolução Permanente. 3. A III Internacional e os movimentos nacionais revolucionários. 4. A IV Internacional e o capitalismo atrasado.

IV. O Modelo Democrático-Burguês: 1. O PCB e a Revolução Democrático-Burguesa. A Declaração de Março e a via pacífica. Nelson Werneck Sodré e a consolidação do Modelo. 2. Contradições do Modelo. Dominação capitalista e política econômica. Reforma agrária, salários e mercado industrial. Burguesia industrial, nacionalismo e capital estrangeiro. Burguesia nacional e regime político.

V. O Modelo de Subdesenvolvimento Capitalista: 1. A. Gunder Frank e o desenvolvimento do sub desenvolvimento. Paul Baran e o excedente periférico. As constelações metrópoles-satélites. Deficiências da Teoria do Subdesenvolvimento. Proletariado periférico e revolução socialista. 2. Caio Prado Jr. e o capitalismo colonial. A Revolução Brasileira e a crítica à tese feudal. Balanço da teoria do capitalismo colonial. O capitalismo sem acumulação. 3. Rui Mauro Marini e a superexploração do subimperialismo. Do intercâmbio desigual à exportação de mais-valia. Contradições da Teoria da Superexploração. Superexploração, subconsumismo e subimperialismo. 4. Frank, Marini e a teoria da Revolução permanente.

Foi uma leitura extremamente proveitosa e com o esclarecimento dos temas tratados, como as questões relativas a economia política, ou as deliberações políticas que envolveram a economia e o desenvolvimento brasileiro. E vamos em frente. Já selecionei outro livro, também não citado por Frigotto em sua fala de abertura. Já, já apresento a resenha.


terça-feira, 20 de outubro de 2020

História do medo no Ocidente - 1300-1800. Jean Delumeau.

 No rastro da leitura de A Civilização do Ocidente Medieval, de Jacques Le Goff e de História do Riso e do Escárnio, de Georges Minois, o livro da vez foi História do Medo no Ocidente - 1300-1800, de Jean Delumeau. Um livro impressionante. Que força e poder tem o tal do medo, especialmente, quando se está diante de um período histórico em que se desenvolveram a Guerra dos Cem Anos (1337-1453 - entre a Inglaterra e a França), duas reformas religiosas (a protestante - Lutero - 1517) e a contra reforma (Concílio de Trento 1535-1563) e a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648 - entre católicos e protestantes). Deixo o link dos dois livros:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/10/a-civilizacao-do-ocidente-medieval.html  e

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/10/historia-do-riso-e-do-escarnio-georges.html

O notável livro de Jean Delumeau, História do medo no ocidente - 1300-1800. Tradução de Maria Lúcia Machado.

Na contracapa do livro encontramos uma síntese quase perfeita do livro: "Ao tomar como objeto de estudo o medo, Jean Delumeau parte da ideia de que não apenas os indivíduos mas também as coletividades estão engajadas num diálogo permanente com a menos heroica das paixões humanas. Revelando-nos os pesadelos mais íntimos da civilização ocidental do século XIII ao XVIII - o mar, os mortos, as trevas, a peste, a fome, a bruxaria, o Apocalipse, Satã e seus agentes (o judeu, a mulher, o muçulmano -, o grande historiador francês realiza uma obra sem precedentes na historiografia do Ocidente".

Vejamos isso de uma forma mais organizada através dos doze capítulos do livro, precedidos de uma introdução e sucedidos por conclusão e pela referência bibliográfica das inúmeras notas. Tudo isso ocupa 471 páginas. O livro se divide em duas partes: Parte um: "Os medos da maioria", com cinco capítulos e a Parte dois, " A cultura dirigente e o medo", com mais sete capítulos. 

Os capítulos da primeira parte, com os respectivos subtítulos são: 1. Onipresença do medo. "Mar variável onde todo temor abunda"; o distante e o próximo; o novo e o antigo; hoje e amanhã; malefícios e adivinhação. 2. O passado e as trevas. Os fantasmas; o medo da noite. 3.Tipologia dos comportamentos coletivos em tempo de peste. Presença da peste; imagens de pesadelo; uma ruptura inumana; estoicismo e desregramentos - desalento e loucura; covardes ou heróis; de quem é a culpa. 4. Medo e sedições I. Objetivos, limites e métodos de investigação; o sentimento de insegurança; medos mais precisos; o temor de morrer de fome; o fisco: um espantalho. 5. Medo e sedições II. Os rumores; as mulheres e os padres nas sedições; o iconoclastismo; o medo da subversão.

Os capítulos da segunda parte, também com os respectivos subtítulos são: 6. "A espera de Deus". Medos escatológicos e nascimento do mundo moderno; duas leituras diferentes das profecias apocalipticas; os meios de difusão dos medos escatológicos; um primeiro tempo forte dos medos escatológicos: o fim do século XIV e o começo do século XV; um segundo tempo forte: a época da reforma; um Deus vingador e um mundo envelhecido; a aritmética das profecias; geografia dos medos escatológicos. 7. Satã. Ascensão do satanismo; satanismo, fim do mundo e mass media da Renascença; O "príncipe deste mundo"; as "decepções" diabólicas. 8. Os agentes de Satã. I. Idólatras e muçulmanos. os cultos americanos; a ameaça muçulmana. 9. Os agentes de Satã. II. O judeu, mal absoluto. As duas fontes do antijudaísmo; papel do teatro religioso, dos pregadores e dos neófitos; as acusações de profanações e assassinatos rituais; converter; isolar; expulsar; uma nova ameaça: os convertidos. 10. Os agentes de Satã. III. A mulher. Uma acusação que data de longe; a diabolização da mulher; o discurso oficial sobre a mulher no final do século XVI e no começo do século XVII; uma produção literária frequentemente hostil à mulher; uma iconografia frequentemente hostil à mulher. 11. Um enigma histórico: A grande repressão da feitiçaria I. O dossiê. A escalada de um medo; uma legislação de inquietude; cronologia, geografia e sociologia da repressão. 12. Um enigma histórico: a grande repressão da feitiçaria II. Ensaio de interpretação. O universo da heresia; o paroxismo de um medo; uma civilização da blasfêmia; um projeto de sociedade.

Como podem ter notado, o cristianismo perpassa praticamente todo o livro. Para mim dois capítulos se revestiram de maior significado, talvez porque chegaram muito fortemente até os nossos tempos, o capítulos 9 e 10, sobre os agentes de Satã, o judeu como o mal absoluto e a mulher. Na década de 1960, eu ainda rezava na sexta feira da Paixão "Oremos etiam pro perfidis judeis". Essa oração foi abolida pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). E sobre a mulher então, nem falar. Capítulos muito ilustrativos e cuja leitura eu recomendo muito.

Ainda três parágrafos das orelhas do livro: "'Não temos história do amor, da morte, da crueldade, da alegria...' Essa queixa de Lucien Fabvre em 1948, tão repetida desde então, foi como um manifesto, que definiu o programa de trabalho da disciplina que se chamou a história das mentalidades. Uma das lacunas que o fundador da escola dos Annales deplorava é preenchida é preenchida por este livro de Jean Delumeau: a história dessa paixão primordial que é o medo. Paixão pouco estudada, porque não é nada honrosa. Quem de nós, perguntava Roland Barthes (em 1973), confessa seu medo? Sabemos que a filosofia clássica dividiu, em linhas gerais, as paixões em positivas e negativas: amor e ódio, coragem e medo. É claro que as paixões positivas são mais bem vistas, mas dentre as negativas, a mais vil sempre foi o medo (em suas formas brandas - temor, receio, timidez - ou excessivas: covardia, pusilanimidade). E no entanto, se paixão é pathos, se antes que o século XIX identificasse paixão a amor-paixão ela esteve mais ligada à passividade, ao que sofremos (nos dois sentidos do termo, descritivo e doloroso), o medo talvez seja a paixão em que mais sofremos, isto é, a paixão por excelência.

Que estudo pode, assim, ser mais oportuno que o medo? É um dos grandes temas recalcados de nossa cultura (voltamos a lembra Roland Barthes). Apesar disso, ou por isso mesmo, ele se destaca na estratégia das paixões. Como ler sem notar, no romance, na poesia, no teatro, a força do medo? Como pensar a política sem ver, não só o que os homens deixam de fazer por covardia, mas também o que fazem por medo? Como, enfim, pensar a condição humana sem estes pares primordiais, não só os que mencionei acima, mas ainda outro que vem desde os Antigos, medo e esperança?

Thomas Hobbes, que nasceu de parto prematuro quando o pais fugiam, em 1588, da temida Armada de Felipe II, escreveu na velhice: 'Minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo'. Esta frase se entendeu como significando: o gêmeo do medo se identifica com esta paixão; Hobbes seria o filósofo do pavor. Mas, se os gêmeos são e foram, não dois medos, mas medo e esperança (the old Twins, Hope and Fear, dizia John Donne por essa época) - então muda o sentido de toda a sua filosofia política. E este exemplo vale para a história que faz Delumeau. Conhecer o medo, devassar seus arcanos não é só entender a uma curiosidade particular. É ampliar nossas consciências para reconhecer um fantasma, cuja força está em ser inconfesso". Estes parágrafos são de Renato Janine Ribeiro.