quinta-feira, 12 de novembro de 2020

A essência da concepção de educação de Paulo Freire. Educação como prática da Liberdade.

No ano de 1968 eu me formava em filosofia na Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição, da cidade de Viamão, no Rio Grande do Sul. No ano anterior eu já tinha tomado a decisão de sair do seminário, interrompendo um sonho plantado em mim, ainda na mais tenra infância, de ser padre. Saí de lá com uma consciência absolutamente ingênua. Em 1969 chegava ao Paraná e fui ser professor da rede pública do Estado, na cidade  de Umuarama, onde comecei a atividade que me tornou um educador.

Ainda hoje eu continuo no trabalho de formar em mim esse educador. Esse educador, que reconhece seus limites e parte para a busca de complementar a sua finitude, de complementar os seus limites. Leituras, práticas docentes e lutas por dignidade profissional me forjaram como educador. Creio que evoluí, num trânsito que percorreu os caminhos da consciência ingênua para atingir o estado de uma consciência crítica, uma consciência de classe. Creio que hoje consigo responder às principais questões que são postas para um educador consciente de seu trabalho e missão.

Concepção e método de uma Educação como prática da liberdade.


Nesse trânsito sofri muitas influências. Não tenho dúvidas que o que mais pautou a minha vida me veio dos anos de seminário. Uma formação cristã, onde fui abandonando o padroeiro dos padres seculares, o padre São João Maria Vianney, o inspirador do fundador da Opus Dei, para adotar o cristianismo de  Cristo, que me foi repassado por João XXIII, assimilando os magníficos ensinamentos do Concílio Vaticano II e a doutrina social cristã sob a inspiração do grande papa Paulo VI. Entre os teóricos que orientaram a minha práxis, hoje vou me ater apenas a um: Paulo Freire e fazer referência ao seu primeiro grande livro, Educação como prática da liberdade.

Na última atividade que exerci como professor, na qualidade de professor de filosofia e de teoria política da Universidade Positivo, usei um texto desse livro, à exaustão. Trata-se da introdução ao primeiro capítulo do livro, A sociedade brasileira em transição. Considero esse texto o mais belo texto da filosofia brasileira e nele estão apontados os fundamentos ontológicos do ser humano. Tenho o texto no blog e o deixo aqui registrado. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/07/a-sociedade-brasileira-em-transicao.html

Hoje quero tomar mais algumas páginas desse livro para registrar aquilo que considero o essencial da fundamentação teórico prática da concepção de educação de Paulo Freire. Essa concepção eu a retiro do capítulo IV, Educação e conscientização. É uma concepção de educação fundamentada na realidade brasileira, que no dizer do educador, estava em trânsito de uma sociedade fechada para uma sociedade aberta. Esta sociedade, pelo golpe de 1964, foi novamente transformada numa sociedade intransitiva, com todos os seus malefícios. Mas vamos à riqueza do texto.

"Mas como realizar esta educação? Como proporcionar ao homem meios de superar suas atitudes, mágicas ou ingênuas, diante de sua realidade? Como ajudá-lo a criar, se analfabeto, sua montagem de sinais gráficos? Como ajudá-lo a inserir-se? A resposta nos parecia estar:

a)num método ativo, dialogal, crítico e criticizador; b) na modificação do conteúdo programático da educação; c) no uso de técnicas como o da Redução e da Codificação.

Somente um método ativo, dialogal, participante, poderia fazê-lo. E que é o diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois polos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos. Só aí há comunicação.

'O diálogo é portanto, o indispensável caminho', diz Jaspers, 'não somente nas questões vitais para nossa ordenação política, mas em todos os sentidos do nosso ser. Somente pela virtude da crença, contudo, tem o diálogo estímulo e significação: pela crença no homem e nas suas possibilidades, pela crença de que somente chego a ser eu mesmo quando os demais também cheguem a ser eles mesmos.

Era o diálogo que opúnhamos ao antidiálogo, tão entranhado em nossa formação histórico-cultural, tão presente e ao mesmo tempo tão antagônico ao clima de transição.

O antidiálogo  que implica numa relação vertical de A sobre B, é o oposto a tudo isso. É desamoroso. É acrítico e não gera criticidade, exatamente porque desamoroso. Não é humildade. É desesperançoso. Arrogante. Auto-suficiente. No antidiálogo quebra-se aquela relação de 'simpatia' entre seus polos, que caracteriza o diálogo. Por tudo isso, o antidiálogo não comunica. Faz comunicados.

Precisávamos de uma Pedagogia da Comunicação, com que vencêssemos o desamor acrítico do antidiálogo.  Há mais. Quem dialoga, dialoga com alguém sobre alguma coisa. Esta alguma coisa deveria ser o novo conteúdo  programático da educação que defendíamos.

E pareceu-nos que a primeira dimensão deste novo conteúdo com que ajudaríamos o analfabeto, antes mesmo de iniciar sua alfabetização, na superação de sua compreensão mágica como ingênua e no desenvolvimento da crescentemente crítica, seria o conceito antropológico de cultura. A distinção entre os dois mundos: o da natureza e o da cultura. O papel ativo do homem em sua e com sua realidade. O sentido de mediação que tem a natureza para as relações e comunicação dos homens. A cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez.  A cultura como o resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador. O sentido transcendental de suas relações. A dimensão humanista da cultura. A cultura como aquisição sistemática da experiência humana. Como uma incorporação, por isso crítica e criadora, e não como uma justaposição de informes ou prescrições 'doadas'. A democratização da cultura -  dimensão da democratização fundamental. O aprendizado da escrita e da leitura como uma chave com que o analfabeto iniciaria a sua introdução no mundo da comunicação escrita. O seu papel de sujeito e não de mero e permanente objeto.

 A partir daí, o analfabeto começaria a operação de mudança de suas atitudes anteriores. Descobrir-se-ia, criticamente, como fazedor desse mundo da cultura. Descobriria que tanto ele, como o letrado, tem um ímpeto de criação e recriação. Descobriria que tanto é cultura o boneco de barro feito pelos artistas, seus irmãos do povo, como cultura também é a obra de um grande escultor, de um grande pintor, de um grande místico, ou de um pensador. Que cultura é a poesia dos poetas letrados de seu país, como também a poesia de seu cancioneiro popular. Que cultura é toda criação humana.

Para a introdução do conceito de cultura, ao mesmo tempo gnosiológica e antropológica, elaboramos, após a 'redução' deste conceito a traços fundamentais, dez situações existenciais 'codificadas', capazes de desafiar os grupos e levá-los pela sua 'descodificação' a estas compreensões. Francisco Brennand, uma das maiores expressões da pintura atual brasileira, pintou estas situações, proporcionando assim uma perfeita integração entre educação e arte.

A primeira situação inaugura as curiosidades do alfabetizando que, na expressão de autor e amigo do autor, 'destemporalizado' inicia sua integração no tempo.  É impressionante vermos como se travam os debates e com que curiosidade os analfabetos vão respondendo às questões contidas na representação da situação. Cada  representação da situação apresenta um número determinado de elementos a serem descodificados pelos grupos de alfabetizandos, com o auxílio do coordenador de debates.

E, na medida em que se intensifica o diálogo em torno das situações codificadas - com 'n' elementos -  e os participantes respondem diferentemente a eles, que os desafiam, e que  compõem a informação total da situação, se instala um 'circuito' de todos os participantes, que será tão mais dinâmica quanto a informação corresponda à realidade existencial dos grupos.

Muitos deles, durante os debates das situações de onde retiram o conceito antropológico de cultura, afirmam felizes e autoconfiantes, que não se lhes está mostrando 'nada de novo, e sim refrescando a memória'. 'Faço sapatos', disse outro, 'e descubro que tenho o mesmo valor do doutor que faz livros'.

'Amanhã', disse certa vez um gari da Prefeitura de Brasília, ao discutir o conceito de cultura, 'vou entrar no meu trabalho de cabeça para cima'. É que descobrira o valor de sua pessoa. Afirmava-se. 'Sei agora  que sou culto', afirmou enfaticamente, um idoso camponês. E ao se lhe perguntar por que se sabia, agora, culto, respondeu com a mesma ênfase: 'porque trabalho e trabalhando transformo o mundo'.

Reconhecidos, logo na primeira situação, os dois mundos - o da natureza e o da cultura e o papel do homem nesses dois mundos - vão se sucedendo outras situações, em que ora se fixam, ora se ampliam as áreas de compreensão do domínio cultural.

A conclusão dos debates gira em torno da dimensão da cultura como aquisição da experiência humana. E que esta aquisição, numa cultura letrada, já não se faz via oral apenas, como nas iletradas, a que falta a sinalização gráfica. Daí, passa-se ao debate da democratização da cultura, com que se abrem as perspectivas para o início da alfabetização". Paulo Freire. Educação como prática da liberdade. Páginas 115 -118, da 20ª edição da Paz e Terra, 2000.

Como Paulo Freire fala em cultura, deixo ainda uma definição da mesma, dada por Freud. Diz ele, o seguinte: "Como se sabe, a cultura humana - me refiro a tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de suas condições animais e se distingue da vida dos bichos; e eu me recuso a separar cultura [Kultur} e civilização [Zivilization] - mostra dois lados ao observador. Ela abrange, por uma lado, todo o saber e toda a capacidade adquiridos pelo homem com o fim de dominar as forças da natureza e obter seus bens para a satisfação das necessidades humanas e, por outro, todas as instituições necessárias para regular as relações dos homens entre si e, em especial, a divisão dos bens acessíveis". FREUD. Siegmund O mal-estar na cultura. Porto Alegre. L&PM Pocket. 2010. Páginas 23-4.


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