sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Da contestação à conformação. A formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista.

No último parágrafo do livro Da contestação à conformação - A formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista se lê: "Por enquanto, o que efetivamente existe é a constatação segundo a qual, no contexto do novo padrão de acumulação de capital, a CUT e, por desdobramento, sua política de formação, caminharam de uma perspectiva combativa, classista e anticapitalista para uma conformação adequada à ordem capitalista, o que, na minha opinião, tem significado uma vitória do capital e, consequentemente, uma derrota para a classe trabalhadora". É mais ou menos o enunciado do próprio título.
O livro de Paulo Sérgio Tumolo, Da contestação à conformação - A formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista. 

O livro de Paulo Sérgio Tumolo é o resultado de seus estudos de doutoramento, desenvolvidos na PUC/SP, no famoso Programa de História e Filosofia da Educação, desenvolvidos ao longo dos anos 1995-1999. O livro, editado pela Unicamp, é datado de 2002. O tema é desenvolvido ao longo de uma introdução e de cinco capítulos, sendo que o capítulo 4 chega ao âmago da questão da formação. Vamos situar rapidamente estes capítulos. I. O novo padrão de acumulação de capital e os decorrentes processos de trabalho; 2. As transformações no mundo do trabalho e o movimento sindical; 3. O percurso da Central Única dos Trabalhadores; 4. A formação sindical da CUT: Da formação político-sindical à formação profissional; 5. Transformação social, consciência de classe e educação dos trabalhadores.

No primeiro capítulo, passando pelos mais abalizados referenciais teóricos, é mostrada a passagem do modelo fordista/taylorista para o toyotismo, que terá como característica uma maior exploração dos trabalhadores e uma, ainda maior, acumulação de capital. No segundo capítulo são mostradas as consequências desta reestruturação produtiva, a intimidação dos movimentos sindicais pelo mundo afora, gerando enorme crise nos seus movimentos.

No terceiro capítulo começa a maior especificidade de seu tema, abordando a fundação da CUT, em 1983 sob os princípios de um sindicalismo classista, anticapitalista e extremamente combativo, para depois, aos poucos, entornar o seu movimento para a acomodação, através das negociações das câmara setoriais em comissões tripartite. Passa a ser um sindicato propositivo, um sindicato do sim, atuando no interior do sistema capitalista, que já não quer mais destruir. Democracia e cidadania são as novas palavras de ordem. É também o momento da aproximação da central com as centrais social democratas mundo afora, com a filiação à CIOSL. A tendência interna Articulação se torna amplamente majoritária.

O capítulo quarto é o mais denso e volumoso dos capítulos e a espinha dorsal do livro. Mostra os trabalhos de formação desenvolvidos pela CUT. Estes trabalhos acompanham a lógica da trajetória política da central. Estes trabalhos são divididos em três diferentes períodos: o primeiro vai da fundação até o ano de 1987. Sobre este período o autor aponta dificuldades até em encontrar material, enfatizando uma tendência ao esquecimento. É o período em que havia trabalho militante e espontâneo e a luta política ainda não estava tão demarcada. A secretaria de formação era ocupada por Ana Lúcia da Silva, de uma tendência trotskista. A partir de 1987, por oito anos consecutivos e por três mandatos, a secretaria foi ocupada por Jorge Lorenzetti, da Articulação. O período é marcado pela passagem das escolas conveniadas para as escolas orgânicas. Na orientação da formação desaparecem as perspectivas classista e socialista e as novas palavras chave serão as da negociação, proposição, democracia e cidadania. A partir de 1994 a secretaria estará nas mãos de Mônica Valente. É o período em que começam os núcleos temáticos e a disputa com o sistema S pela formação profissional, entrando na disputa de verbas públicas e ajudando, inclusive, a deslocar a formação profissional da educação pública, no ensino regular. Combater o desemprego era a justificativa. Este período chega ao apogeu quando a CUT passa a ter a sua Escola/Empresa, a Escola Sul, sediada em Florianópolis. Tudo isso é longamente trabalhado e documentado.

No quinto capítulo volta a questão da formação sob a perspectiva de como ela deveria ser na perspectiva classista, de não conformação ao sistema capitalista em troca do usufruto das benesses burguesas, como ele demonstra ter ocorrido. Elas jamais serão para todos. Marx, Engels, Rosa de Luxemburgo, Gramsci serão sempre as referências. A formação deve ser uma elevação, uma saída do senso comum com os trabalhos que possibilitem a consciência de classe e as transformações que serão fruto de uma consciência revolucionária.

Uma triste trajetória. No exato momento em que os avanços do capitalismo se dão e a sua exploração é aprofundada, a maior central sindical acompanha este movimento com a sua acomodação, sob o comando de uma tendência que fez de tudo para se afirmar majoritária. A central se verticalizou e se tornou uma instituição burocrática e, em seus congressos de deliberação, o número de participantes da base se tornou cada vez menor. O livro é uma grande referência para a retomada de princípios que estejam em sintonia com os ditames de fundação da própria central sindical. Um retorno aos princípios originários. Livro necessário para a reflexão e para dar os próximos passos. Esta acomodação tem sujeitos.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

A Forma da Água. Guillermo del Toro.

Desde o anúncio das indicações ao Oscar era este filme, A forma da água, que mais expectativas me trazia. Seja pela direção de Guillermo del Toro ou seja, pelas treze indicações à estatueta que recebeu. A crítica também lhe dedicou raro entusiasmo. Não é um filme fácil. Ele se situa muito no campo do simbólico e está aberto para a interação. Não é um filme cansativo. O desenrolar do enredo te prende o tempo todo. Ele fala por enigmas, sendo inclusive muda, a personagem principal.


O filme retrata os anos 1960. A guerra fria está bem visível e é o mote principal do filme. Num laboratório secreto dos Estados Unidos é cultivado um monstro para servir de experimento na corrida espacial, para onde os russos já tinham lançado um cachorro e um ser humano. Os agentes americanos deste laboratório são pessoas extremamente cruéis e o Dr. Hoffstetter merece, inclusive, todo o ódio e desprezo da muda, Eliza.

Já que começamos a falar dos personagens, vamos a eles, em seu envolvimento na trama. Elisa, junto com Zelda são pessoas encarregadas pela limpeza. Zelda se torna cúmplice de Elisa na proteção ao monstro. Elisa conta ainda com a ajuda de seu vizinho e melhor amigo, um pintor não tão bem sucedido, Giles, para a realização desta sua empreitada. Um dos pontos fortes do filme é a relação de cumplicidade que existe entre as duas, que, exatamente, por serem da limpeza, serviço pouco valorizado, não atraem as suspeitas sobre elas. Eliza se envolve amorosa e sexualmente com o monstro.

Tecnicamente o filme é, diríamos, perfeito. É também um filme cabeça, sendo Guillermo del Toro responsável, tanto pela direção, quanto pelo roteiro filme. Normalmente esta soma é responsável por grandes filmes. As indicações ao Oscar, um recorde absoluto nesta versão 2018, somaram nada menos do que treze indicações. São elas, as de melhor filme, melhor diretor, melhor atriz (Sally Hawkins no papel da muda Elisa), melhor roteiro original, melhor ator coadjuvante (Richard Jenkins, no papel do vizinho e amigo, Giles), melhor atriz coadjuvante (Octávia Spencer, no papel da colega de trabalho, Zelda) e mais as indicações técnicas de melhor design de produção, fotografia, montagem, figurino e mixagem de som.

Do Adoro Cinema tomo esta referência altamente elogiosa: "Uma ode aos desajustados, aos incompreendidos, aos outsiders e aos párias". No mesmo Adoro Cinema ainda lemos: "Com o filme, Guillermo del Toro usa todas a ferramentas do cinema para criar um universo mágico, cheio de alegorias, que ilumina aqueles que não se encaixam. Se algum dia você já se sentiu só no mundo, essa é a sua praia. Ou o seu tanque".


Vejamos ainda uma afirmação do próprio del Toro sobre o seu filme: "O filme é sobre conectar-se ao 'outro'". "A ideia de empatia, de como nós precisamos uns dos outros para sobreviver. E é por isso que o título original do roteiro que eu escrevi era 'Um Conto de Fadas para Tempos Complicados'. Não à toa, os únicos amigos de Elisa são uma mulher negra e um gay que está no armário". Com certeza, um filme pretensioso. Li agora, que existem acusações de plágio com relação ao roteiro do filme. Polêmica no ar. As acusações existem desde as indicações ao Oscar que o filme recebeu.

Este filme levou quatro estatuetas. O melhor filme, a melhor direção, o melhor design de produção e a melhor trilha sonora original. Premiadíssimo.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Três anúncios para um crime.

Dando continuidade às idas ao cinema, para ver todos os indicados ao Oscar de melhor filme, ontem foi a vez de Três anúncios para um crime. O filme ganhou muito mais glamour ao vencer os Oscars britânicos do BAFTA. Trata-se realmente de um bom filme, mas tenho minhas dúvidas, se ele realmente é tudo o que se diz sobre ele. Ele tem sete indicações à estatueta: melhor filme, melhor atriz, melhor ator coadjuvante, melhor roteiro original, melhor montagem, melhor edição e melhor trilha sonora original.

Gosto dos chamados filmes de autor, aqueles filmes em que roteiro e direção estão na mesma mão. No caso, Martin McDonagh, é responsável tanto pela direção quanto pelo roteiro. Embora ele concorra ao título de melhor roteiro original, é quanto a ele, que me pairaram as maiores dúvidas. Me pareceu haver cenas até de uma relativa ingenuidade. Coisas que jamais ficariam de fora do radar de um atento e experiente policial.


Mas vamos aos fatos. A questão básica do filme já está dada. O estupro e o assassinato da filha de Mildred Hayes. Como mãe ela se lança no desvendar do crime. Como a ineficiência da polícia é um fato um tanto corriqueiro, Mildred também irá encontrar problemas para desvendar o caso da filha. Neste desvendar de mistérios é que está a melhor parte do filme. São mostradas várias pessoas, como a própria mãe, seu filho, seu ex marido e a sua noiva novinha, o xerife da cidade, vários policiais e outros tantos. Todos eles tem uma característica em comum, o seu desajustamento na convivência em sociedade.

Os diálogos mais pertinentes e constantes se dão entre Mildred e Bill Willoughby, o xerife da cidade e responsável pela investigação.  Como estas não avançam, Mildred recorre a três anúncios em outdoors, em estrada onde praticamente não passa ninguém. Por isso mesmo eles chamarão tanta atenção e conduzirão os fatos da trama. Eles causam horrores. Gostei de uma das designações numa crítica ao filme: um farwest moderno. O filme está cheio de uma das maiores presenças na sociedade contemporânea, o ódio.

Suicídio, incêndio em delegacia, nos outdoors, personagens queimados, amores improváveis, encontros impossíveis, são alguns ingredientes do filme. Merece até uma interpretação psicanalítica. O final é absolutamente inconcluso. A mãe e um policial irão ao encalço do assassino estuprador, sobre o qual eles tem dúvidas. Decidirão ao longo do caminho o que fazer com ele.

Os destaques do filme vão para os diálogos estabelecidos, para os personagens e os desajustes de suas vidas e para a interpretação fantástica de Mildred Hayes (Frances McDormand), indicada ao Oscar de melhor atriz e de Bill Willoughby (Wood Harrelson) no papel do xerife e com indicação a melhor ator coadjuvante. Vale também a boa sequência e a força dos diálogos que tornam a passagem do tempo meio que imperceptível. Quanto a premiações, vamos ficar aguardando.

Ganhou pela atuação. Levou a estatueta de melhor atriz, para Mildred, uma mulher sedenta de justiça (Frances McDormand) e a de melhor ator coadjuvante (Wood Harrelson).

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

A Nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal.

Nos anos 1990 estudei muito o neoliberalismo. Eu era dirigente sindical (APP-Sindicato) e o Estado nos oprimia. Sistematicamente avançava sobre nossos direitos. Era Jaime Lerner, em nível estadual, e Fernando Henrique Cardoso, em nível nacional. Fui estudar. Ingressei no curso de mestrado da PUC/SP, no famoso programa de História e Filosofia da Educação. Estudamos os princípios gerais do neoliberalismo e a sua aplicação para as políticas educacionais via Banco Mundial. Ainda guardo vasta bibliografia.

Tempos de crise são tempos de estudo. No sindicato promovíamos debates, trazíamos os grandes intelectuais brasileiros para debates e, por textos e vídeos das falas, levamos as discussões para o interior das escolas, ou para as bases, como se fala na linguagem sindical. Continuava os estudos, sempre atualizando a agenda, chegando à grande referência no ramo, o livro de Naomi Klein, A Doutrina do choque, a ascensão do capitalismo de choque. Com a eleição do PT, acreditava que, ao menos por um bom tempo, não precisávamos mais ter grandes preocupações.

Os tempos mudaram radicalmente. Com a reeleição de Dilma, as impaciências neoliberais espreitavam o melhor momento para agir. Seres humanos, como hoje sabemos, lutaram para que o governo trocasse de mãos, num grande acordão, envolvendo inclusive o STF. Era 31de agosto de 2016. O golpe tomou forma e continua sendo construído diariamente. O inimaginável está acontecendo em um país tragicamente emudecido.
O extraordinário e impactante livro sobre A nova Razão do Mundo.

Retomei as leituras sobre o tema. Queria entender as razões mais profundas do golpe e os seus envolvimentos maiores. Li muito. Livros de autor e livros coletivos. Inclusive passei a escrever, me situando entre os resistentes, nos três volumes das Crônicas da Resistência. Os livros que mais me impressionaram foram os de Jessé Souza, de Márcia Tiburi e o último, agora, o livro de Rubens Casara, Estado Pós-Democrático - Neo-Obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Este livro me levou ao mais impactante de todos. A nova razão do mundo - Ensaio sobre a sociedade neoliberal. Os autores são os franceses, Pierre Dardot e Christian Laval.  A nova razão do mundo é a criação de uma subjetividade neoliberal. É o fim dos tempos. É o apocalipse.

Passei a entender muita coisa, especialmente os absurdos e a desfaçatez da pregação neoliberal. Passei a entender os motivos de eu não ter mais a mínima vontade de ver televisão, especialmente os noticiários e os comentaristas. Nunca abandonei o rádio, mas a migração se tornou cada dia maior, entre a CBN e a Band News. Atualmente prefiro o silêncio. Não mais vejo comentários e debates, o a favor e o contra. É tudo propaganda. É repetição de cantilena neoliberal para plantar verdades. É a tão batida tecla de Goebbels, a da repetição. A competição, a concorrência levam à eficiência, à perfeição. É a razão instrumental levada à potenciação máxima. É a selvageria spenceriana em estado absoluto. É Hobbes, o diagnóstico e a solução. É a guerra de todos contra todos sob a vigilância de Leviatã.

É o homem empresa movido pela instabilidade em busca do sucesso financeiro, como produtor e consumidor, como dimensão única do sujeito, na nova subjetividade. Quanta pobreza. O ser humano vive em puro estado de adaptação e o concorrencial, o competitivo são as únicas regras para a sua motivação e desejos. É o empobrecer humano levado às últimas instâncias. É o ser humano recluso em seu individualismo e que vê o outro, meramente, como alguém a ser vencido, com a ajuda de Deus, se possível, contando com a ajuda do demônio em forma de pregador. A sociedade é a soma de indivíduos. A esta frase de Tatcher agora acrescentam, indivíduos empresa, competitivos e em permanente estado concorrencial.

Pela densidade do livro fica praticamente impossível fazer uma resenha. Apenas vou destacar três capítulos, os que mais me tocaram. O capítulo 4, da primeira parte, sobre o homem empresarial e o 8 e 9 da segunda parte, respectivamente O governo empresarial e A fábrica do sujeito neoliberal, ou seja, como se forma a subjetividade neoliberal. Deste eu dou um passeio pelos subtítulos: O sujeito plural e a separação das esferas; a modelagem da sociedade pela empresa; a "cultura da empresa" e a nova subjetividade; a empresa de si mesmo como ethos  da autovalorização; as "asceses do desempenho" e suas técnicas; a "gestão da alma" e a gestão da empresa; risco: uma dimensão da existência e um estilo de vida imposto; accountability; o novo dispositivo "desempenho/gozo"; da eficácia do desempenho; diagnósticos clínicos do neossujeito; sofrimento no trabalho e autonomia contrariada; corrosão de personalidade; desmoralização; depressão generalizada; perversão comum; o gozo de si do neossujeito e o governo do sujeito neoliberal.
O livro de Rubens Casara que me levou para A Nova razão do Mundo.

Na conclusão, sob o título de O esgotamento da democracia liberal, que é o Estado Pós-Democrático, os autores buscam saídas, ou seja, a construção de uma nova racionalidade, de uma nova subjetividade. Vou procurar formar um grupo de estudos para trabalhar este livro, em toda a profundidade que ele merece.

Voltando ao livro, ele se divide em duas partes: Parte I. A Refundação Intelectual. Possui cinco capítulos, ligados aos movimentos históricos das articulações e rearticulações dos neoliberais. Vejamos os títulos: 1. Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo; 2. O Colóquio Walter Lippmann ou a reinvenção do neoliberalismo; 3. O ordoliberalismo entre "política econômica" e "política de sociedade"; 4. O homem empresarial e 5. Estado forte, guardião do direito privado. A parte II se destina para A Nova Racionalidade, ou seja, um estudo da nova subjetividade do ser humano sob as doutrinas neoliberais. É chocante. São mais quatro capítulos: 6. A grande virada; 7. As origens ordoliberais da construção da Europa; 8. O governo empresarial e 9. A fábrica do sujeito neoliberal.

Posso assegurar que foi o livro mais impactante que eu li neste últimos tempos. Ele me trouxe um desassossego profundo e uma vontade ainda mais firme de me empenhar em todas as lutas pela construção de um mundo humano e não uma fábrica de loucuras e de loucos. E por fim uma frase como aperitivo: "A vida, a saúde e o amor são precários, por que o trabalho não escaparia dessa lei"? É a citação de um neoliberal francês. Procure localizá-la à página 347.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Lady Bird. É hora de voar.

Os fatos narrados neste filme acontecem diariamente e em todas as partes do mundo. A complicada relação entre pais e filhos. Na psicanálise, é mais com o pai. No caso do  filme, é com a mãe. Os conflitos não são tão graves assim para merecerem o filme. No entanto, o filme está aí e chamou a atenção da academia, contando com cinco indicações. É o queridinho da vez da crítica dos Estados Unidos. Li alguns comentários, de sites nossos, sendo a maioria absolutamente desabonadores. Também não é assim.


O filme se passa na cidade de Sacramento. Vamos localizar Sacramento. A cidade é a capital do estado da Califórnia e, como capital, tem o seu Capitólio. É uma cidade em torno de 500.000 habitantes e não é tão provinciana como o filme, ao menos para mim, sugeriu ser. Sacramento é apresentada como uma cidade muito religiosa. Da religião, inclusive, recebeu o seu nome. Nesta cidade, em 2002, encontraremos a menina Christine Mc-Pherson (Saoirse Ronan), de 17 anos, que quer voar. Não para Los Angeles ou São Francisco, mas para a costa leste.

Christine, a auto intitulada Lady Bird, estuda no último ano de um colégio católico. Tudo indica que a família, quanto o colégio, são de origem irlandesa, o que não deixa de ser um detalhe importante. Ninguém é tão, ou mais católico, quanto os irlandeses. Christine é uma menina normal com todas as características da adolescência. Vive todos os ritos de passagem. Marion, sua mãe (Laurie Metcalf), é apresentada como uma megera, mas não a considerei tão terrível assim. Lembrando que Megera é uma personagem da mitologia grega, uma das erínias, ligada ao rancor. 

Marion se preocupa mais com as questões financeiras da família, deixando de lado as questões mais afetivas com relação a filha. Assim Christine estabelece relações mais afetivas com o pai, um bonachão desempregado. O problema de Marion é mais relacionado com a comunicação e com o encontro de dois gênios fortes. Uma cena inicial, que me conquistou, foi a referência a John Steinbeck, ao seu fabuloso As vinhas da Ira. Lady Bird queria fazer o caminho inverso dos retirantes que marchavam para os sonhos da West Coast primitiva. Os sonhos da menina estavam à leste.

Lady Bird enfrenta os problemas típicos da adolescência, de uma menina que está concluindo, o que nós chamamos de ensino médio. A ida para a universidade, as primeiras relações com a sexualidade e a afetividade e o mundo do trabalho. Ela quer independência e autonomia, que ela imagina, estarem longe de sua cidade e de sua mãe. As questões financeiras são o grande entrave. As soluções viriam com o endividamento dos financiamentos.

Lady Bird é determinada, disposta a voar, como sugere o sub título - É hora de voar. A mãe a trava e o pai lhe serve como uma espécie de catapulta psicológica. Ela vai para o leste e enfrenta novos problemas e novas situações. Sozinha, liga para casa. Grava uma mensagem. Uma bela mensagem. Uma tentativa de restabelecer com a mãe, a via da comunicação. O tema do grande despertar para a vida é trabalhado com rara sensibilidade, sem caretices e lições de moral. Lições de moral, creio, seriam o pior caminho a ser tomado.

Gosto dos filmes de autor, de autora no caso. Greta Gerwig é simultaneamente responsável pelo roteiro e pela direção do filme. Ela concebeu e executou. E..., teve já o seu reconhecimento. Ela concorre a duas estatuetas: a de melhor direção e a de melhor roteiro original. Diria, fazendo uma correção, a três, já que o filme é, essencialmente seu. Ele está indicado para a estatueta maior, de melhor filme. Além destas três indicações, mais outras duas. E indicações substantivas, significativas. O time feminino trabalha de forma espetacular e Saoirse, no papel de Christine, concorre à indicação de melhor atriz e Laurie Metclaf, a mãe Marion, à de melhor atriz coadjuvante.Vale muito assistir os cerca de 90 minutos do filme.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

8 décadas. Carolina Nabuco.

Mary del Priore, com o seu Histórias da gente brasileira, volume 3. República. Memórias. 1889 - 1950, me levou ao livro de Carolina Nabuco, 8 décadas, como uma das memorialistas citadas em seu livro, das mais citadas, diga-se de passagem. Daí para a leitura, dois fatos me impulsionaram. A grande admiração que tenho pelo abolicionista Joaquim Nabuco e uma visão de oito décadas através de um olhar que certamente muito incorporou de seu pai.
Um tour por oitenta anos de vida. Memórias de Carolina Nabuco.

Joaquim Nabuco não foi apenas um abolicionista. Ele tinha um projeto de incorporação dos negros libertos ao todo social brasileiro, integrando-os ao mercado interno, com um projeto de educação e de reforma agrária. Além da abolição, também a obra desta escravidão deveria ser extinta. E esta, como vemos, persiste até os dias de hoje com extrema crueldade. Quanto a visão de oito décadas, um passeio simplesmente maravilhoso. Carolina teve um olhar bem construído e com muita perspicácia e humanidade observa o que ocorre no mundo, no triste e violento século XX. A geração que viveu duas guerras mundiais. O livro tem sete capítulos e um apêndice. Os fatos estão agrupados por décadas.

Creio que também podemos dividir o seu livro em duas partes. Primeiramente temos seis capítulos referentes à última década do século XIX e as cinco primeiras do XX. A segunda parte, de 1950 em diante, faz relatos mais pessoais, contando fatos de seu mundo interior e privado. O livro conta ainda com dois apêndices, com falas suas, uma sobre o lar de Joaquim Nabuco e outra, história de meus livros. A primeira edição do livro data de 1978. As datas limites de sua vida são as de 1890 e 1981.

No capítulo I, 1890-1900, mostra as revoltas internas do início da república, com grande destaque para a Revolta da Armada, quando seu pai, monarquista convicto, aguardava o retorno a este regime e para Canudos. Lembra do surto da febre amarela e dos famosos casos judiciais de Dreyfus e de Oscar Wilde. Este, um julgamento moral. A família se muda para Paris. No capítulo II, 1900-1910, descreve o clima cultural de Paris e a mudança para Londres. Observa os fatos internacionais da década, com destaque para a guerra dos Boeres e a revolução tecnológica, da máquina substituindo os cavalos. Vê os primeiros movimentos do transporte aéreo. Volta ao Brasil, com a febre amarela já derrotada e descreve o seu ingresso no mundo da literatura com Charles Dickens. A família passa a morar em Washington. O mundo da diplomacia.

No capítulo III, 1910-1920, as atenções se voltam para a morte de seu pai, indo então morar com a mãe, em Petrópolis. Descobre a literatura portuguesa através de Eça de Queirós e toma consciência da triste realidade social brasileira. Começa a escrever em português. Se escandaliza com o atraso do Rio de Janeiro e a absoluta falta de oportunidades para o ingresso no mundo do trabalho, a não ser, pela via do funcionalismo público. Fala da vocação religiosa de seu irmão, o sacerdote Joaquim. Descreve o ano de 1918, o ano final da guerra e o da febre amarela no Brasil. 1.100 óbitos em um único dia. Chegam ao Brasil as influências dos Estados Unidos e ela se maravilha com o gênio de Einstein. No capítulo IV, 1920-1930, o primeiro destaque vai para o ano do centenário, com a exposição internacional. A derrubada do morro do Castelo serviu de cenário, sob o custo de que a nossa história veio abaixo. Os locais da fundação da cidade desapareceram. Em 1929, após grande esgotamento, o livro A vida de Joaquim Nabuco é publicado.

No capítulo V, 1930-1940, o primeiro destaque vai para a Revolução de Vargas, iniciada pelos tenentes, emendando a seguir com a revolta de São Paulo, em 1932. Se mostra inconformada com a forma da escolha dos deputados classistas. Tinha alguém da família no meio. Fala da fundação do Partido Comunista e do surgimento dos integralistas e da ditadura do Estado Novo. Por algum tempo vai morar no Chile, que considera como a sociedade mais fechada da América do Sul. Poucas famílias controlam toda a economia. Descreve os costumes do Rio de Janeiro, o estourar da Segunda Guerra e as fragilidades de Chamberlain. No capítulo VI, 1940-1950, a guerra, obviamente, ocupa as suas primeiras reflexões. O rompimento da Linha Maginot e a retirada de Dunquerque são o tema mais constante. Mora uns tempos na Itália, onde inicia o seu livro sobre santa Catarina de Sena. Em 1948 morre dona Evelina, sua mãe. Mora uns tempos em Washington e, depois, novamente em Petrópolis.

No capítulo VI, 1950 em diante é que começa a diversificação do livro. Descreve a primeira década, contando da história da família e a origem da propriedade em que irá morar, junto com o irmão, já diplomata aposentado, no Rio de Janeiro. Aproveita este momento para opor o Rio de Janeiro de sua infância com o Rio de janeiro dos anos 1950. Nesta mesma casa também passara a sua infância. Os fatos políticos já não entram na abrangência das memórias deste período, passando então a falar dos velórios, de sua geração que se esvai, da chegada de sua velhice, em páginas memoráveis, às quais dediquei um post em separado e termina com belas reflexões sobre Deus em sua vida. Transcrevo o parágrafo final.

"Isso dito, não quero me perder mais em vagas imaginações. Deixo que essas minhas memórias se terminem com a simples afirmação da fé católica em que me conservei, graças a Deus". Se você tiver curiosidade a respeito de Carolina e de sua vida em família e de sua vida como escritora, atente para os dois apêndices, que se ocupam destes temas. Uma leitura simplesmente maravilhosa. Uma viagem de volta ao mundo, não em 80 dias, mas por 8 décadas.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

As três esferas da existência humana. O nascer da cultura. O fazer da história.

Abro este texto com uma citação famosa de Brecht, de que nada é natural, que tudo é cultural. Diz a frase: "Nada é impossível de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência do singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar". Conclusão da história. O cultural é uma invenção humana. Se foi feito de um jeito, também o poderá ser de outro. O cultural e o histórico são invenções humanas.

Freud, em O futuro de uma ilusão, nos dá uma bela conceituação de cultura: "Como se sabe, a cultura humana - me refiro a tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima das condições animais e se distingue da vida dos bichos; e eu me recuso a separar cultura (Kultur) e civilização (Zivilization) - mostra dois lados ao observador. Ela abrange, por um lado, todo o saber e toda a capacidade adquiridos pelo homem com o fim de dominar as forças da natureza e obter seus bens para a satisfação das necessidades humanas e, por outro, todas as instituições necessárias para regular as relações dos homens entre si e, em especial, a divisão dos bens acessíveis". Quem quiser aprofundar a questão, indicaria a leitura de Marx e Engels - A Ideologia Alemã. Me permitam uma pitada de ironia. Para não provocar nenhuma confusão com aqueles promotores de São Paulo, confirmo que os autores são mesmo Marx e Engels e não Marx e Hegel. Marx e Hegel nada escreveram em conjunto. Marx aproveitou sim, conceitos hegelianos e os levou adiante em suas análises.
14 capítulos maravilhoso de filosofia.


Mas é num manual de filosofia que encontramos uma explicação, cuja síntese seria a de que a cultura é a soma das relações que o ser humano estabelece com a natureza, com os outros e consigo mesmo. Esta explicitação está no livro de Antônio Joaquim Severino, Filosofia, logo no seu primeiro capítulo. Vejamos:

As três esferas da existência humana.

O quadro a seguir busca representar o que foi descrito e exposto neste capítulo. As esferas da existência humana e sua inter-relação. (O quadro se refere a um círculo, onde aparecem as três relações, ou práticas, que são as seguintes):

Prática produtiva: Pelo trabalho, os homens interferem na natureza com vistas a prover os meios de sua existência material, garantindo a produção de bens e a reprodução da espécie (a cultura em sua parte técnica, material).

Prática social:  Ao produzir seus meios de subsistência, os homens estabelecem entre si relações que são funcionais e caracterizadas por um coeficiente de poder (a cultura em suas instituições).

Prática simbolizadora: As relações produtivas e sociais são simbolizadas em nível de representação e de apreciação valorativa, no plano subjetivo visando a significação e a legitimação da realidade social e econômica vivida pelos homens (a cultura em sua valoração, simbolização, representação e imaginário). Depois seguem as explicitações.

Com efeito, vimos que a existência humana, a partir do momento em que vai se tornando especificamente humana, ela se desenvolve em três dimensões. A dimensão básica é, sem dúvida, aquela da prática produtiva. É a esfera das relações de troca que o homem estabelece com a natureza, sem o que, obviamente, não poderia nem mesmo existir. O homem é uma parte da natureza, uma organização de elementos dessa natureza, e para sobreviver, física e biologicamente, precisa manter com ela um fluxo contínuo de trocas de elementos, sobretudo sob a forma de alimentação e de respiração. Para retirar da natureza esses elementos, o homem intervém sobre ela, agindo sobre seus processos, modificando-a, adaptando-a às suas necessidades. Essa atividade fundamental é o trabalho, prática produtiva através da qual provê os meios de sua subsistência.

Mas o desenvolvimento dessa atividade produtiva repercute sobre as relações dos homens entre si. A atividade produtiva representada pelo trabalho não pode se reduzir a uma prática puramente individual. É como se o homem/indivíduo isolado não conseguisse prover sua subsistência sozinho, ao contrário do que ocorre com os animais, que podem cuidar de sua sobrevivência mesmo individualmente isolados, contando com a habilidade instintiva para retirar da natureza os elementos para sua sobrevivência sem interferir no seu processo. Assim sendo, ao mesmo tempo que produzem seus bens naturais, os homens passam a se organizar de maneira sistemática, estruturada: eles instalam o modo social de viver, superando o modo puramente gregário de ajuntamento dos animais. A nova forma de agrupamento vai distribuir os indivíduos em grupos e subgrupos, dividindo e atribuindo as funções que cada um deve exercer em benefício do conjunto formado pelo grupo abrangente que é a sociedade como um todo. Os indivíduos e grupos não apenas são estruturados mas também hierarquizados, de tal forma que haverá tento uma divisão técnica das funções como uma divisão política do poder, no sentido de que alguns podem mais que outros.

Mas ocorre ainda a instauração de uma terceira dimensão, intrinsecamente vinculada às duas primeiras: acontece que ao mesmo tempo que produzem e se organizam socialmente, os homens desenvolvem, no plano de sua subjetividade, uma representação simbólica das condições de uma existência. Pela prática simbolizadora da consciência, eles criam conceitos e valores mediante os quais representam e avaliam essa realidade social e econômica.

Essas três dimensões se articulam entre si, de tal modo que o desenvolvimento de cada uma repercute sobre as outras duas, num fluxo e num contrafluxo permanentes. Assim, se o modo de produção, de um lado, repercute no mundo da formação social e se ambos repercutem sobre o modo da representação subjetiva dos homens, de outro, as suas representações mentais interferem na sua organização social e na sua atividade produtiva, como ainda teremos oportunidade de ver mais aprofundadamente no capítulo 12. Páginas 26-28.
Em 2017, um encontro com Antônio Joaquim Severino, na UFPR.


(O capítulo 12 tem o seguinte título: A atividade simbolizadora do homem: produção e organização da cultura. Também recomendaria, dentro da especificidade do tema, o capítulo 10. O homem, a natureza e o trabalho: a ordem econômica da sociedade e o 11. O homem na ordem política da sociedade: poder e dominação. Aliás, o livro de Severino é um dos melhores livros didáticos de filosofia de que dispomos. Deixo a referência:  SEVERINO,  Antônio Joaquim. Filosofia. São Paulo: Cortez Editora, 1997). Com certeza, existem edições mais novas.



segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Velhice. Do livro "8 décadas", de Carolina Nabuco.

A leitura é o ato mais fascinante que pode existir. Ontem, ainda, alguém reclamou sobre a brevidade da vida e a consequente impossibilidade de ler tudo o que se gostaria. Mas a gente vai se esforçando. Estou terminando de ler um livro fantástico. Cheguei a ele através de Mary del Priori, com o seu Histórias da gente brasileira, o terceiro volume, em que ela fala dos primeiros sessenta anos de nossa república. Ela privilegia os memorialistas. Carolina Nabuco, a filha do grande Joaquim Nabuco, com o seu livro - 8 décadas, é das mais citadas. Quero aqui reproduzir uma parte de um dos capítulos, quando ela descreve a chegada da velhice. O texto é muito bonito e como existem poucos relatos sobre este tema, tomo a liberdade de apresentá-lo.
O maravilhoso livro de memórias de Carolina Nabuco (1890-1981).



"A velhice chega à vezes tão lentamente que nem a vemos chegar. Nosso primeiro contato com ela pode ter uma causa mínima como sentir um braço amigo oferecendo-nos apoio num caminho onde não existia embaraço, ou ouvir uma voz amiga murmurar 'olhe o degrau', num aviso dispensável.

A primeira vez que estendi a mão a minha mãe para ajudá-la a descer de um bonde, ela se aborreceu.
- Não é preciso, - disse.
É possível que eu também tenha afastado em meu tempo algum auxílio prematuro. Há muito, porém, que concordo com o pensar de Cícero, que, no ensaio De senectute, confessou o prazer que encontra nas pequenas atenções que provam sua autoridade de velho, autoridade esta

'resultante não de nossas rugas nem de nossos cabelos brancos, mas daquilo que os anciãos possuem como frutos derradeiros de suas virtudes na vida.  Embora possa parecer trivial ou frívolo, é honroso receber cumprimentos; ver uma pessoa caminhar ao nosso encontro; levantar-se ao chegarmos, acompanhar-nos, reconduzir-nos, consultar-nos. Esses modos de proceder, correntes entre nós, existem igualmente em outras terras, onde os velhos recebem tanto cuidado quantos os mores são mais cultos. Seja exemplo a Lacedônia, onde se honra a idade mais que em qualquer outra terra. Contam que certa vez em Atenas um ancião, não havendo encontrado lugar num teatro, dirigiu-se aos embaixadores da Lacedônia, e estes lhe cederam logo um assento. Que volúpia dos sentidos pode se comparar com as que procedem dessas prerrogativas? Elas permitem aos que gozaram de esplendor verem terminar o drama de sua vida sem os desacertos ou falhas que às vezes podem suceder no último ato a atores inexperientes' (De senectute, pág. 71).

O importante na velhice é poder encher tempo e pensamento com ocupações adequadas à idade. Diz Cícero no mesmo belo ensaio que a ocupação mais confortadora para ele foi a jardinagem. Devia ser muito belo o jardim em que se comprazia na sua vivenda da velha Roma. De fato o revolver da terra e do solo, sempre submissos às nossas intenções, sempre prontos a dar, oferecer aos dedos dos velhos um recurso poderoso e secreto, uma fonte de frescura e repouso, uma porta aberta ao gozo das flores em jardins ou das frutas em pomares.

A exemplo de Cícero, Francis Bacon (o mesmo lorde Bacon a quem, em certo momento, foi atribuída a autoria das obras de Shakespeare) escreveu sobre jardins com precisão e beleza:
'Foi Deus quem plantou o primeiro jardim. E este é em verdade o mais puro dos prazeres humanos, o maior refrigério espiritual. Ao seu lado edifícios e palácios não passam de artefatos grosseiros'.

É bem típico do sentir inglês esse amor de Bacon por jardins. Em nenhum país o florescer de canteiros causa tanta alegria. Parque do tipo Versailles, onde o verdor de plantas é talhado formalmente, não podem merecer o mesmo agrado que os floridos canteiros de um English garden.

Na sua casa da Rua barão do Flamengo, mamãe só tinha por jardim um estreito, e raramente florido, canteiro que corria ao longo do muro vizinho. No fundo, havia dois pés de oleandro vermelho (espirradeira) que tentavam invadir a casa pela sala de jantar.

Em Petrópolis, embora não fosse grande, seu jardim era maior que o do Rio porque subia morro acima. No verão o declive do morro cobria-se com um manto de hortênsias, e se tornava todo azul.

Mamãe distraía-se conduzindo uma lata absorvente contra as formigas de Petrópolis, que, às vezes, numa só noite, lhe depenavam as roseiras. Acompanhei, durante a velhice de minha mãe (repetida pela minha nesse ponto de jardinagem e em muitos outros) a alegria que ela sentia com o primeiro botão numa roseira por ela plantada, ou o abrir de um galho florescente num arbusto cujo crescimento a alegrava. Encontrava em seus modestos canteiros um prazer certamente igual ao que conhecem os os donos de grandes terras quando frutificam suas árvores, sorriem seus campos ou vermelhejam seus cafezais.

Ocorrem-me muitos outros recursos de que os velhos podem se valer. Nem todos porém são tranquilos como a jardinagem. Conheci nos Estados Unidos uma nonagenária, ativa, saudável e de grande fortuna, cuja paixão era o teatro.Não perdia uma peça que merecesse ser vista, valendo-se da grande escolha que Nova York - onde morava - sempre oferece.

Como não ficaria bem a uma grande dama sair à noite desacompanhada, tinha como hóspede permanente de sua casa um senhor de meia-idade e de boa aparência (creio que parente seu) que se achava sempre pronto para envergar seu black tie para lhe servir de escort quando ela resolvia sair para um espetáculo ou uma  exposição.

Não me constou que ela fosse assídua a concertos, gosto que eu teria compreendido melhor, pois a música, como as flores, é boa para qualquer idade. Um dos piores aspectos da velhice é o tédio de reouvir o que já foi ouvido muitas vezes, ou contemplar o que já foi visto à saciedade. Com o passar dos anos tudo tende a ser repetição, e são poucas, infortunadamente, as coisas que não cansam nunca: certos aspectos da natureza, o riso das crianças, a verdadeira simplicidade.

A velhice inteligente é a que aceita suas condições sem reclamar contra as misérias e dissabores da idade, e aproveitando as vantagens que possam surgir. Lembra bem Emerson que, para quem chega ao fim da corrida, os contratempos ou erros perdem muito a significância. Quando as contas da nossa vida já estão feitas e concluídas, um fracasso a mais ou a menos desaparece facilmente entre os créditos registrados. Acontece o contrário com os prazeres menores, inclusive os da comida. Estes, muitas vezes, adquirem graça nova.

Entre as observações mais acertadas que conheço sobre as idades da vida incluo este pensamento de meu pai, que se encontra no seu pensées détaches: 'A juventude é a surpresa da vida. Quem não a sente mais não é jovem e jovens são todos os que a conservam'.

Há velhices mais felizes que outras. Ninguém, porém, pode contar com a promessa feita a Aser na Bíblia: 'Tua velhice será como os teus dias de juventude' (Deuteronômio XXXIII, 25). Ninguém pode evitar a diminuição da força vital, a baixa do calor humano. Este é o primeiro sintoma da velhice, e pode se efetuar com maior ou menor rapidez.

Encontro uma referência a essa redução do calor humano numa carta de meu pai a seu amigo Machado de Assis. Falando de Graça Aranha, que, como secretário e amigo, foi o companheiro dileto dos últimos anos de Joaquim Nabuco, e pertencia a uma geração mais nova, escreveu meu pai: 'Ele me aquece mais do que eu o esfrio'.

A redução do calor humano e, com ele, a do poder de atrair e de ser atraído, de amar e de ser amado, traz o espectro do isolamento, uma das maiores cruzes da velhice. Os anos normalmente tendem a diminuir, ou a destruir, nosso interesse pelas coisas que vão pelo mundo e por isso nosso próximo em conjunto ou individualmente. E esse nosso desinteresse se encontra sempre, para seu castigo, o desinteresse dos outros por nós.

Os velhos carregam o peso de uma bagagem de experiência e de detritos que os separa do mundo, e os impede de acertar passo com os que palmilham estrada ainda limpa. Podemos evitar a solidão se soubermos fazer doação de nossa experiência de modo a interessar e não a entediar os ouvintes; e que faça reviver nosso passado para eles. Interessá-los será tanto mais fácil quanto lhes houvermos conquistado a afeição.

Feliz entre todas é a velhice assistida por afeições de jovens. Sei-lhe o valor pela minha própria experiência, tanto da infância quanto da velhice, tanto pelo que me coube dar a velhos outrora quanto pelo que, graças a Deus, recebo hoje dos mais novos. Sei que as crianças não são avaras de sua luz e do seu carinho, mas generosas em iluminar ou aquecer as existências que chegam à etapa final. Nunca custa dar o supérfluo. Lembro-me de, em criança e em moça, ter achado prazer em externar afeição, não, decerto, a qualquer velho, mas especificamente de ter sentido esse prazer em relação a meu avô materno e a minha madrinha Zizinha. Tive convivência com uma ou com outra velhice antes de chegar à minha própria, principalmente com a da minha mãe e de minha madrinha. Ambas foram velhices tranquilas, boas de acompanhar.

Nunca me achei fisicamente parecida com minha mãe, talvez porque preferisse pensar que o era com meu pai, mas a parência com minha mãe existia sem dúvida, pois acontece às vezes um espelho me devolver de repente a imagem de minha mãe em velha. Nem todas as velhices são boas. Por fidelidade a um afeto que me havia sido valioso em outras idades da vida, dediquei tempo e carinho aos últimos anos de uma amiga cuja vida correra pouco adiante da minha.

Para distrair esta pessoa que me havia sido boa companhia, e a quem dediquei verdadeira afeição, valia-me, nos seus últimos anos, dos assuntos capazes de lhe despertar interesse, mas infelizmente eram fúteis e mínimos. Só lhe prendiam a atenção casos pequenos e pessoais. Não se cansava de recordar os êxitos mundanos que - bonita que fora - lograra conquistar. Só lhe aprazia falar de si.

O mundo, em que outrora brilhara, não podia mais lhe dar satisfação, e ela não reunira acervo de interesses permanentes. A velhice achou-a assim verdadeiramente desprovida. Estas velhices fechadas em egoísmo são raramente respeitáveis.

Perdida a beleza do rosto, a graça e esbelteza da figura, só pode restar a homens e mulheres a dignidade do porte e a bondade no trato. E os anos têm a infeliz tendência de emprestar dureza a muitas fisionomias.

A graça da velhice deve ser tranquila. Considero como uma bênção do céu uma velhice agradável aos olhos como foi a da baronesa de Bonfim. Tão alva de cabelo quanto de cútis, tão fina de traços quanto de mãos e de gestos, sua beleza serena e rara tinha a suavidade de uma luz de vela, iluminando o salão onde reunia amigos e admiradores de toda idade.

A maior tristeza que a velhice pode trazer é a de nos desiludir sobre nós mesmos, de verificarmos que não somos quem pensávamos. Os defeitos de caráter tendem a se acentuar com a idade e não encontram mais a tolerância que podem ter merecido em épocas mais aprazíveis.

O direito de abençoar é um privilégio da velhice de que me valho sempre que posso. Até a desconhecidos na rua me acontece abençoar de longe, apenas com um olhar. As palavras 'Deus te abençoe', ditas ou pensadas, estabelecem um contato em forma de triângulo, com Deus por base. No caso de transeuntes na rua elas me vêm como um súbito eflúvio de compreensão, em geral nascido de comiseração. Ainda hoje surpreendi-me duas vezes quase murmurando God bless you (em inglês, sim, pois muitas vezes rezo em inglês ou em francês, como aprendi a fazer em minha infância). Das duas pessoas a quem dirigi essa bênção secreta, uma era um velho que esperava numa esquina o momento de atravessar a rua. Tinha uma cara decente, paciente, em que me pareceu ver a marca de uma vida decorrida sem recompensa. A outra foi um rapazinho que entrou na igreja onde eu me achava. Tirou um terço do bolso e pôs-se a rezar. Este me pareceu demasiado desarmado para os perigos que espreitam moços do seu tipo. Transpirava inocência. Cheguei a ambas essas conclusões instintivamente, sem pensar, sem interferência de raciocínio.

Há dias vi o capelão da igreja que eu frequento caminhando na rua com ar de extremo cansaço. Gostaria de saber se minha piedade calada lhe comunicou de longe o encorajamento de que estava precisando.

Tenho aliás grande curiosidade de saber se uma simples intenção benéfica pode se transmitir. Admito a hipótese de que esses votos-preces despertem alguma onda no espaço e no tempo. Afinal, o poder da oração é - como reconheceu o cientista Alexis Carrel no livro L'homme cet inconnu - uma das forças ignotas para a ciência, mas inegavelmente existentes neste mundo de mistério". Páginas 226 a 232. O livro segue com "Deus em minha vida".




domingo, 4 de fevereiro de 2018

O Homem - Ser-no-mundo. Características essenciais do ser humano. Ontológicas e fenomenológicas.

Existem alguns textos que me marcaram profundamente e que continuam me marcando. Um destes textos é retirado do livro Filosofia - Aprendendo a pensar. Os autores são Leopoldo Justino Girardi e Odone José de Quadros. Odone é irmão do conhecido cronista esportivo das rádios Guaíba e Gaúcha, Lauro Quadros. Odone foi seminarista, colega de um irmão meu. Assim passou pelos seminários de Gravataí e Viamão, uns dez anos antes de mim.

Usei este texto em muitos trabalhos de formação, inclusive, em colégios de alto padrão em Curitiba. É formação humana. Diria que se trata das características essenciais do ser humano, fundamentais para o conhecimento de si próprio. O homem é um ser-no-mundo, com as características da finitude, da imanência, da transcendência, da relacionalidade, da singularidade e da pluralidade. As palavras se contrapõem e, maravilhosamente, se complementam. Dosava estas reflexões com o pensamento de Paulo Freire. Como recebi uma solicitação, envolvendo a palavra transcendência, e como o texto não é tão fácil de se encontrar, o deixo aqui, com os devidos créditos.
É a 9ª edição do livro. Mas já vi um com a 17ª edição. Que bom.

O Homem, ser-no-mundo.

Introdução.

A reflexão realizada até este este ponto concentrou-se no ser humano, destacado da realidade concreta da sua existência e analisado na singularidade o seu ser na tentativa de saber quem ele é, tanto fenomenologicamente como ontologicamente. Podemos ter uma noção da essência do ser humano. De posse destes dados, o nosso caminhar filosófico continua se dirigindo ao ser humano, não singularmente tomado, mas enquanto é um ente concreto existente num mundo concreto. Deste mundo concreto faz parte o homem como um ser no meio de outros seres. O mundo é, fundamentalmente, a casa onde o homem mora. É o universo onde realiza sua existência e desenvolve sua vida. Não se restringe esta casa ao piso, mas envolve o teto e toda a decoração que faz do universo o habitat natural da vida do homem. Toda a realidade, portanto, que direta ou indiretamente exerce influências sobre a vida do homem, faz parte da casa do homem. É desta forma que se entende que o homem é um ser-no-mundo. Junto dos demais seres, o homem é um ser que apresenta algumas peculiaridades ou características que o fazem distinto de todos os outros seres. Entre tais características podemos ressaltar as que seguem.

Características fundamentais.

1. A finitude: O ser humano é finito, limitado, contingente, precário. Não é necessário, não é absoluto. Tal finitude e limitação decorrem não só da condição corpórea, mas também de seu caráter de ser-para, de ser incompleto, de ser contingente. Ser humano diz sempre, constitutivamente, limitação. Tal limitação liga-se radicalmente a uma situação que comporta as coordenadas tempo e espaço. O ser humano corpóreo ocupa um determinado espaço e, como ser vivente, está envolto numa dinâmica de movimento e, por isso, inserido no tempo. Sua existência é um contínuo tornar-se, fazer-se, projetar-se. Nesta perspectiva, o tempo humano comporta um tempo pleno de possibilidades que não mais retornam; um presente, único instante, a um só tempo absoluto e efêmero, onde se dá a decisão que se projeta e que projeta o futuro, o destino, o que o homem há de ser.

Temporalidade e espacialidade, criando ao ser humano uma determinada situação, fazem-no um ser histórico. A historicidade radicalmente brota, também, da corporeidade e do ser-no-tempo. O corpo, munido dos sentidos e a necessidade de decidir, decidir-se e resolver-se fazem o homem descobrir, além de sua situação, a sua própria circunstância. Aberto ao exterior, percebe que a corporeidade o limita. Inserido num contexto maior, porém, dá sentido a realidades variadas que constituem o seu habitat, o seu mundo onde o ser humano constroi sua vida.

Tal tarefa não se dá senão à medida em que o homem toma consciência do seu tempo e do seu espaço ou, no dizer de Ortega y Gasset, de sua circunstância. Esta é a forma humana de crescer, de fazer história, de ser presença, de ser sujeito, enfim, de ser histórico. A historicidade co-existe com a consciência. Sem consciência o homem tornar-se-á alienado, massificado, manipulado, objeto. Na raiz do seu ser, o homem foi criado para ser sujeito da história. Torná-lo objeto é um atentado à sua dignidade.

2. A imanência: O homem é um ser profundamente inserido em seu mundo, constituindo-se em parte integrante deste mundo onde não se sente estranho e isolado, mas um alguém no meio de uma realidade complexa onde o homem vê algo. Manifesta o homem uma profunda solidariedade com o seu universo, sentindo-se em sua própria casa. Esse sentido de permanência no interior do universo do qual faz parte é que, aqui, se denomina imanência. O ser humano mora numa casa onde ele não é estranho, mas sua presença dá significação e razão de ser à própria casa. O mundo circundante ao homem é um mundo histórico, um mundo em transformação, um mundo constantemente remodelado, porque aí se acha o homem. É ele que justifica a própria existência do mundo. Imagine-se o mundo sem o homem e teríamos um mundo cuja existência careceria de sentido.

3. A transcendência: A solidariedade do homem com o mundo não confunde o homem com o mundo. Graças à sua racionalidade o homem se conhece distinto do mundo e numa situação de alteridade com relação ao mundo. O homem tem consciência de que ele é uma coisa e o mundo, que é sua casa, outra. A consciência desta distinção gera a sua condição de ser transcendente ao mundo. E nisto está a autoconsciência do ser humano. Vive no mundo, tira sua subsistência do mundo, precisa do mundo, transforma-o, mas não se confunde com ele. É a transcendência do homem.

4. A relacionalidade: O homem é um ser capaz de criar vínculos, entabular relações em vários níveis com a realidade que o circunda e, desta forma, sofrer transformações e modificações em seu próprio ser. Fundamentalmente há dois campos de relações: com a natureza e com os outros seres humanos. O encontro do homem com a natureza se dá em razão da própria condição corpórea do ser humano. A natureza, o mundo das coisas, integra o seu ser. Há um momento em que o homem age sobre a natureza, modificando-a, transformando-a, dominando-a. É uma tarefa de libertação em busca de uma autonomia e independência. Este é o processo de humanização. A medida em que o homem se torna senhor da natureza na qual está inserido, vai se tornando mais humano. A ação, a atividade, o conhecimento, o conhecimento em vários níveis, o trabalho se inserem nesta dinâmica de humanização do homem.

Há exorbitação quando, ao invés de transformar, modificar, dominar, destrói a natureza. Esta, destruída, não tem como responder à ação maléfica do homem, que será atingido pelas consequências negativas desta ação. "A terra tornar-se-á deserto por causa dos seus habitantes; tal será o fruto de suas obras". (Miq. 7, 13).

Essa transcendência toma outra dimensão quando o homem, em seu mundo circundante, se encontra com o outro homem. Não é mais o encontro de alguém com algo, mas é o encontro de alguém com outro alguém. A transcendência do ser humano o leva a desvencilhar-se das amarras de sua imanência e criar um campo de relações totalmente distinto do campo das relações homem-natureza. No encontro com "alguém" o ser humano afirma o próprio "eu",  contradistingue-se dentro de uma identidade de natureza. Descobre sua dimensão dialogal e comunitária, sua sociabilidade. À medida em que este campo de relações é robustecido, salienta-se no ser humano sua dimensão espiritual e inicia-se o processo de personalização. À medida em que o campo de relações alguém-alguém é incentivado, o ser humano mais se afirma como pessoa. "O ato de abrir-se ao outro - diz Jaspers - é ao mesmo tempo para mim o ato de realizar-me como pessoa".

5. A singularidade: O ser humano, através da reflexão, descobre em sua interioridade sua realidade interna e sabe-se ser tão-somente uma pessoa única, uma só realidade.. Capaz de doar-se, dedicar-se, ir ao encontro dos outros, conserva, contudo, a individualidade do próprio ser. Sob o domínio do "eu", há somente um indivíduo. Toda a dedicação do próprio ser é ineficaz, quando se trata de dividir a realidade pessoal que é indivídua. O ser humano é indivíduo. É neste sentido que se diz também que o ser humano é, por natureza, uma solidão. Ele é só. Sozinho. Não significa isolamento, mas unicidade. Ao pronunciar, numa afirmação, o eu, por baixo deste monossílabo transparece nítida e conscientemente uma única e mesma realidade: o indivíduo, no mistério de sua interioridade, apesar de sua dimensão microcósmica.

6. A pluralidade. É a característica que aparece no momento em que o homem, capaz de transcender a sua singularidade e seu mundo interior, microcósmico e misterioso, encontra o outro homem e descobre sua dimensão social, dialógica e comunitária. Descobre que que seu ser pessoal só se desenvolve na medida em que sua vida se der com-os-outros. Tentando penetrar na interioridade de seu ser para conhecer-se a si mesmo, descobre que a convivência com os outros é condição para o conhecimento próprio. O autoconhecimento não se dá a não ser na medida em que o homem convive. O homem precisa do outro. Sua plenitude pessoal só se verificará na convivência. Viver é, radicalmente, conviver. Viver é ser-para-o-outro. E aqui está a pluralidade do ser humano. Parece uma afirmação paradoxal, relacionada com a afirmação em torno da singularidade. Os aspectos, porém, são diferentes. A singularidade é descoberta numa dimensão de imanência, de introspecção, enquanto o ser humano se volta para a sua interioridade; a pluralidade, enquanto o homem é capaz de transcender os limites de sua realidade corpórea e, por uma extrospecção, penetrar no campo da comunicação. Enquanto o homem é uma ilha, mas que somente aparece enquanto com outras ilhas forma um arquipélago.

XXXXX

Como é lindo e gratificante este texto. É o humano. Senti Paulo Freire ao longo de todo o desenvolver do texto. O jovem Marx, filósofo, também. Eu apenas acrescentaria um terceiro campo de relações, no item da relacionalidade, que é a relação que estabelecemos conosco mesmos. A soma das três relações nos dá o conceito de cultura. Ah, se nós reconhecêssemos a nossa primeira característica, a de nossa finitude. Esta é a condição para a abertura e a busca em nossa formação. A fonte, para efeitos de bibliografia.  GIRARDI, Leopoldo Justino. QUADROS, José Odone. Filosofia - Aprendendo a pensar. Porto Alegre: Sagra Luzatto. 1998. 9ª edição. Páginas 36 a 39. Capítulo 5.


sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Me chame pelo seu nome. Luca Guadagnino.

Continuo na temporada do Oscar. Já assisti O destino de uma nação, sobre uma parte da vida de Churchill e The Post - A guerra secreta. Hoje foi a vez de Me chame pelo seu nome, uma produção da França, Itália, Estados Unidos e Brasil. É um filme que tende a muita polêmica em virtude de sua temática, o amor homo afetivo entre um jovem e um acadêmico americano que vai passar férias na Itália. Ah! Se o MBL descobrir! Vão querer incendiar os cinemas e, como o assisti no espaço Itaú, este pode repetir a cena de seu concorrente, o Santander, e suspender a programação. Tempos de ódio, de muito ódio.


O tema é tratado com muita delicadeza e sobriedade e o ambiente em que este amor aflora é de um elevado nível cultural, onde o multicultural aflora e a diversidade não é vista como uma questão moral. As pessoas envolvidas não são presas a clichês morais e tem elevados níveis de compreensão e intervenção na realidade. Neste ambiente, acima de tudo, impera o respeito à individualidade e não há vez para os preconceitos. Há sim, as amarras da formação.

O filme se centra num belo jovem, Élio, filho único de uma rica família, cujo pai se dedica aos estudos da cultura greco-romana. Um de seus focos é a beleza da escultura. Praxísteles. O ambiente é a magnífica casa de férias desta família, na Itália, na qual recebem a visita de um acadêmico americano, que virá auxiliar na pesquisa que o pai do jovem está realizando. Élio é muito prendado e se dedica especialmente à música. É muito disputado pelo público feminino nas festas de sua turma. Tem uma namorada que simplesmente o adora. O americano, de nome Oliver, se entrosa muito bem neste ambiente.

Lentamente os dois, Oliver e Élio, começam a se perceber e vão para além da simples percepção. A timidez os reprime, ao menos, nas primeiras aproximações. Eles se contém. Mas aos poucos a paixão irrompe e rompe as fronteiras, com a música determinando o grau de intensidade. Aos poucos ele chega à explosão. Todas as cautelas são tomadas para que ninguém os perceba. A explosão afetiva ocorre quando eles trocam os seus nomes, fundido-se os dois seres. Me chame pelo seu nome. Oliver chama Élio de Oliver e Élio chama Oliver de Élio. Vivem um pequeno mas intenso romance e Oliver volta aos Estados Unidos. Poucos dias depois comunica a Élio o seu casamento.

Élio volta à convivência com os seus pais. O pai o chama para uma conversa. Nenhuma tonalidade firmada na moral. Muito pelo contrário. Exalta a coragem do filho. Em conversa telefônica Oliver diz a Élio que sente inveja de seu pai, porque se fosse o seu, imediatamente o iria mandar para um "reformatório", a exemplo de uma determinada psicóloga "cristã" brasileira, que propôs o "cura gay".

As críticas acusam o filme por sua lentidão. mas os favoráveis apontam para o tempo necessário para o desenrolar do enredo com a devida delicadeza que o tema merece, sem cair na rotulação dos preconceitos, tão generalizados em nosso tempo e meio. Aliás, é bom dar uma olhada nas críticas ao filme. Um destilar de ódio e preconceito. Anotei algumas passagens: "Nada presta, a não ser a fotografia"; "filme para viado ver"; "filme xarope e superestimado". E por aí vai.

Um filme, acima de tudo, de muita beleza e delicadeza, com destaque para a música e para a paisagem. A bela Itália. O filme tem três indicações para a estatueta: A de melhor filme, de melhor roteiro adaptado e a de melhor canção. James Ivory, adapta o original homônimo do escritor egípcio, André Aciman. Um filme para muito além do mero entretenimento, para toda a complexidade do ser humano.

Este levou a estatueta de melhor roteiro adaptado.


quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

The Post. A guerra secreta. Steven Spielberg.

Um filme grandioso. Li num comentário que o filme não existiria se Donald Trump não se tivesse eleito presidente dos Estados Unidos. Seria uma homenagem à sua barbárie, que lhe foi prestada pelo conhecido diretor Steven Spielberg e servir também como um alerta para que o truculento presidente respeite a liberdade de imprensa. O filme é The Post - A guerra secreta. O tema é a sempre controvertida guerra do Vietnã (1955-1975).

 A força do filme está nos diálogos e na corajosa ação em defesa da liberdade de imprensa. O título do filme The Post já nos indica que o jornal tema é o Washington Post, na época, ainda um jornal local de pequeno porte. Kat Graham (Meryl Streep) é a proprietária, que o recebe como herança da família. Portanto, temos aí um importante componente do filme. A proprietária é uma mulher. O jornal quer crescer e por isso lança ações suas na Bolsa de Valores. Esse fato requer cuidados. O jornal deverá ter credibilidade, aliada a muita prudência. Ele precisa se conter.

E precisa estar de olho nos concorrentes. Ben Bradlee (Tom Hanks), o editor chefe, não tem pruridos morais no sentido de espionar a concorrência para ver as suas linhas de investigação. Isso dá resultados. O enredo do filme começa efetivamente quando o New York Times publica documentos secretos do Pentágono e, em contrapartida, recebe a ação do presidente Nixon (1969-1974) no sentido de barrar as publicações, pela Lei da Espionagem, questões de segurança nacional. Kennedy e Johnson eram mais benevolentes. Nixon, pelo que o filme indica, era um tremendo de um mau caráter.

O Washington Post também tem os documentos em mão. Publica ou não publica? Ponderações por todos os lados. O advogado faz alertas e o mesmo procedimento é adotado por uma espécie de consultor de assuntos financeiros. As ações lançadas na bolsa precisam ser consideradas. Qual seria a reação dos investidores? Ben tudo faz para que os documentos sejam publicados. Alertado de que poderia ser preso, tem dúvidas. Kat dará a palavra final. Contra quase todos, toma a decisão em favor da publicação. Ela é um sucesso. Praticamente todos os jornais americanos acompanham a sua decisão e também os publicam.

O último round do enredo se dará na justiça, na Suprema Corte. Com grande suspense o resultado é aguardado. Quem triunfará? O resultado não foi nenhuma unanimidade. 6 a 3 foi decisão da Corte em favor da liberdade de imprensa. Se consagra o princípio de que esta liberdade precisa ser testada para ver se ela realmente existe. "O único jeito de defender a liberdade de publicação é publicando", diz uma espécie de mensagem final do filme.

O filme tem muitos méritos. A atuação política de Steven Spielberg é bem conhecida. Ele se expõe. Em tempos obscuros como os nossos, de Trump e de golpe em marcha no Brasil o tema precisa ser exposto. O comportamento da grande mídia brasileira precisa ver este filme e aprender com ele, que a liberdade de imprensa precisa ser utilizada em favor dos governados e não dos governantes, ou ainda pior, pela verba recebida dos governantes. Filme também obrigatório para ser exibido nos cursos de jornalismo. Há muito o que aprender com o filme e com as suas mensagens. Duas indicações a Oscar. Melhor filme e melhor atriz. A temporada do Oscar promete.