Existem alguns textos que me marcaram profundamente e que continuam me marcando. Um destes textos é retirado do livro Filosofia - Aprendendo a pensar. Os autores são Leopoldo Justino Girardi e Odone José de Quadros. Odone é irmão do conhecido cronista esportivo das rádios Guaíba e Gaúcha, Lauro Quadros. Odone foi seminarista, colega de um irmão meu. Assim passou pelos seminários de Gravataí e Viamão, uns dez anos antes de mim.
Usei este texto em muitos trabalhos de formação, inclusive, em colégios de alto padrão em Curitiba. É formação humana. Diria que se trata das características essenciais do ser humano, fundamentais para o conhecimento de si próprio. O homem é um ser-no-mundo, com as características da finitude, da imanência, da transcendência, da relacionalidade, da singularidade e da pluralidade. As palavras se contrapõem e, maravilhosamente, se complementam. Dosava estas reflexões com o pensamento de Paulo Freire. Como recebi uma solicitação, envolvendo a palavra transcendência, e como o texto não é tão fácil de se encontrar, o deixo aqui, com os devidos créditos.
É a 9ª edição do livro. Mas já vi um com a 17ª edição. Que bom.
É a 9ª edição do livro. Mas já vi um com a 17ª edição. Que bom.
O Homem, ser-no-mundo.
Introdução.
A reflexão realizada até este este ponto concentrou-se no ser humano, destacado da realidade concreta da sua existência e analisado na singularidade o seu ser na tentativa de saber quem ele é, tanto fenomenologicamente como ontologicamente. Podemos ter uma noção da essência do ser humano. De posse destes dados, o nosso caminhar filosófico continua se dirigindo ao ser humano, não singularmente tomado, mas enquanto é um ente concreto existente num mundo concreto. Deste mundo concreto faz parte o homem como um ser no meio de outros seres. O mundo é, fundamentalmente, a casa onde o homem mora. É o universo onde realiza sua existência e desenvolve sua vida. Não se restringe esta casa ao piso, mas envolve o teto e toda a decoração que faz do universo o habitat natural da vida do homem. Toda a realidade, portanto, que direta ou indiretamente exerce influências sobre a vida do homem, faz parte da casa do homem. É desta forma que se entende que o homem é um ser-no-mundo. Junto dos demais seres, o homem é um ser que apresenta algumas peculiaridades ou características que o fazem distinto de todos os outros seres. Entre tais características podemos ressaltar as que seguem.
Características fundamentais.
1. A finitude: O ser humano é finito, limitado, contingente, precário. Não é necessário, não é absoluto. Tal finitude e limitação decorrem não só da condição corpórea, mas também de seu caráter de ser-para, de ser incompleto, de ser contingente. Ser humano diz sempre, constitutivamente, limitação. Tal limitação liga-se radicalmente a uma situação que comporta as coordenadas tempo e espaço. O ser humano corpóreo ocupa um determinado espaço e, como ser vivente, está envolto numa dinâmica de movimento e, por isso, inserido no tempo. Sua existência é um contínuo tornar-se, fazer-se, projetar-se. Nesta perspectiva, o tempo humano comporta um tempo pleno de possibilidades que não mais retornam; um presente, único instante, a um só tempo absoluto e efêmero, onde se dá a decisão que se projeta e que projeta o futuro, o destino, o que o homem há de ser.
Temporalidade e espacialidade, criando ao ser humano uma determinada situação, fazem-no um ser histórico. A historicidade radicalmente brota, também, da corporeidade e do ser-no-tempo. O corpo, munido dos sentidos e a necessidade de decidir, decidir-se e resolver-se fazem o homem descobrir, além de sua situação, a sua própria circunstância. Aberto ao exterior, percebe que a corporeidade o limita. Inserido num contexto maior, porém, dá sentido a realidades variadas que constituem o seu habitat, o seu mundo onde o ser humano constroi sua vida.
Tal tarefa não se dá senão à medida em que o homem toma consciência do seu tempo e do seu espaço ou, no dizer de Ortega y Gasset, de sua circunstância. Esta é a forma humana de crescer, de fazer história, de ser presença, de ser sujeito, enfim, de ser histórico. A historicidade co-existe com a consciência. Sem consciência o homem tornar-se-á alienado, massificado, manipulado, objeto. Na raiz do seu ser, o homem foi criado para ser sujeito da história. Torná-lo objeto é um atentado à sua dignidade.
2. A imanência: O homem é um ser profundamente inserido em seu mundo, constituindo-se em parte integrante deste mundo onde não se sente estranho e isolado, mas um alguém no meio de uma realidade complexa onde o homem vê algo. Manifesta o homem uma profunda solidariedade com o seu universo, sentindo-se em sua própria casa. Esse sentido de permanência no interior do universo do qual faz parte é que, aqui, se denomina imanência. O ser humano mora numa casa onde ele não é estranho, mas sua presença dá significação e razão de ser à própria casa. O mundo circundante ao homem é um mundo histórico, um mundo em transformação, um mundo constantemente remodelado, porque aí se acha o homem. É ele que justifica a própria existência do mundo. Imagine-se o mundo sem o homem e teríamos um mundo cuja existência careceria de sentido.
3. A transcendência: A solidariedade do homem com o mundo não confunde o homem com o mundo. Graças à sua racionalidade o homem se conhece distinto do mundo e numa situação de alteridade com relação ao mundo. O homem tem consciência de que ele é uma coisa e o mundo, que é sua casa, outra. A consciência desta distinção gera a sua condição de ser transcendente ao mundo. E nisto está a autoconsciência do ser humano. Vive no mundo, tira sua subsistência do mundo, precisa do mundo, transforma-o, mas não se confunde com ele. É a transcendência do homem.
4. A relacionalidade: O homem é um ser capaz de criar vínculos, entabular relações em vários níveis com a realidade que o circunda e, desta forma, sofrer transformações e modificações em seu próprio ser. Fundamentalmente há dois campos de relações: com a natureza e com os outros seres humanos. O encontro do homem com a natureza se dá em razão da própria condição corpórea do ser humano. A natureza, o mundo das coisas, integra o seu ser. Há um momento em que o homem age sobre a natureza, modificando-a, transformando-a, dominando-a. É uma tarefa de libertação em busca de uma autonomia e independência. Este é o processo de humanização. A medida em que o homem se torna senhor da natureza na qual está inserido, vai se tornando mais humano. A ação, a atividade, o conhecimento, o conhecimento em vários níveis, o trabalho se inserem nesta dinâmica de humanização do homem.
Há exorbitação quando, ao invés de transformar, modificar, dominar, destrói a natureza. Esta, destruída, não tem como responder à ação maléfica do homem, que será atingido pelas consequências negativas desta ação. "A terra tornar-se-á deserto por causa dos seus habitantes; tal será o fruto de suas obras". (Miq. 7, 13).
Essa transcendência toma outra dimensão quando o homem, em seu mundo circundante, se encontra com o outro homem. Não é mais o encontro de alguém com algo, mas é o encontro de alguém com outro alguém. A transcendência do ser humano o leva a desvencilhar-se das amarras de sua imanência e criar um campo de relações totalmente distinto do campo das relações homem-natureza. No encontro com "alguém" o ser humano afirma o próprio "eu", contradistingue-se dentro de uma identidade de natureza. Descobre sua dimensão dialogal e comunitária, sua sociabilidade. À medida em que este campo de relações é robustecido, salienta-se no ser humano sua dimensão espiritual e inicia-se o processo de personalização. À medida em que o campo de relações alguém-alguém é incentivado, o ser humano mais se afirma como pessoa. "O ato de abrir-se ao outro - diz Jaspers - é ao mesmo tempo para mim o ato de realizar-me como pessoa".
5. A singularidade: O ser humano, através da reflexão, descobre em sua interioridade sua realidade interna e sabe-se ser tão-somente uma pessoa única, uma só realidade.. Capaz de doar-se, dedicar-se, ir ao encontro dos outros, conserva, contudo, a individualidade do próprio ser. Sob o domínio do "eu", há somente um indivíduo. Toda a dedicação do próprio ser é ineficaz, quando se trata de dividir a realidade pessoal que é indivídua. O ser humano é indivíduo. É neste sentido que se diz também que o ser humano é, por natureza, uma solidão. Ele é só. Sozinho. Não significa isolamento, mas unicidade. Ao pronunciar, numa afirmação, o eu, por baixo deste monossílabo transparece nítida e conscientemente uma única e mesma realidade: o indivíduo, no mistério de sua interioridade, apesar de sua dimensão microcósmica.
6. A pluralidade. É a característica que aparece no momento em que o homem, capaz de transcender a sua singularidade e seu mundo interior, microcósmico e misterioso, encontra o outro homem e descobre sua dimensão social, dialógica e comunitária. Descobre que que seu ser pessoal só se desenvolve na medida em que sua vida se der com-os-outros. Tentando penetrar na interioridade de seu ser para conhecer-se a si mesmo, descobre que a convivência com os outros é condição para o conhecimento próprio. O autoconhecimento não se dá a não ser na medida em que o homem convive. O homem precisa do outro. Sua plenitude pessoal só se verificará na convivência. Viver é, radicalmente, conviver. Viver é ser-para-o-outro. E aqui está a pluralidade do ser humano. Parece uma afirmação paradoxal, relacionada com a afirmação em torno da singularidade. Os aspectos, porém, são diferentes. A singularidade é descoberta numa dimensão de imanência, de introspecção, enquanto o ser humano se volta para a sua interioridade; a pluralidade, enquanto o homem é capaz de transcender os limites de sua realidade corpórea e, por uma extrospecção, penetrar no campo da comunicação. Enquanto o homem é uma ilha, mas que somente aparece enquanto com outras ilhas forma um arquipélago.
Como é lindo e gratificante este texto. É o humano. Senti Paulo Freire ao longo de todo o desenvolver do texto. O jovem Marx, filósofo, também. Eu apenas acrescentaria um terceiro campo de relações, no item da relacionalidade, que é a relação que estabelecemos conosco mesmos. A soma das três relações nos dá o conceito de cultura. Ah, se nós reconhecêssemos a nossa primeira característica, a de nossa finitude. Esta é a condição para a abertura e a busca em nossa formação. A fonte, para efeitos de bibliografia. GIRARDI, Leopoldo Justino. QUADROS, José Odone. Filosofia - Aprendendo a pensar. Porto Alegre: Sagra Luzatto. 1998. 9ª edição. Páginas 36 a 39. Capítulo 5.
Temporalidade e espacialidade, criando ao ser humano uma determinada situação, fazem-no um ser histórico. A historicidade radicalmente brota, também, da corporeidade e do ser-no-tempo. O corpo, munido dos sentidos e a necessidade de decidir, decidir-se e resolver-se fazem o homem descobrir, além de sua situação, a sua própria circunstância. Aberto ao exterior, percebe que a corporeidade o limita. Inserido num contexto maior, porém, dá sentido a realidades variadas que constituem o seu habitat, o seu mundo onde o ser humano constroi sua vida.
Tal tarefa não se dá senão à medida em que o homem toma consciência do seu tempo e do seu espaço ou, no dizer de Ortega y Gasset, de sua circunstância. Esta é a forma humana de crescer, de fazer história, de ser presença, de ser sujeito, enfim, de ser histórico. A historicidade co-existe com a consciência. Sem consciência o homem tornar-se-á alienado, massificado, manipulado, objeto. Na raiz do seu ser, o homem foi criado para ser sujeito da história. Torná-lo objeto é um atentado à sua dignidade.
2. A imanência: O homem é um ser profundamente inserido em seu mundo, constituindo-se em parte integrante deste mundo onde não se sente estranho e isolado, mas um alguém no meio de uma realidade complexa onde o homem vê algo. Manifesta o homem uma profunda solidariedade com o seu universo, sentindo-se em sua própria casa. Esse sentido de permanência no interior do universo do qual faz parte é que, aqui, se denomina imanência. O ser humano mora numa casa onde ele não é estranho, mas sua presença dá significação e razão de ser à própria casa. O mundo circundante ao homem é um mundo histórico, um mundo em transformação, um mundo constantemente remodelado, porque aí se acha o homem. É ele que justifica a própria existência do mundo. Imagine-se o mundo sem o homem e teríamos um mundo cuja existência careceria de sentido.
3. A transcendência: A solidariedade do homem com o mundo não confunde o homem com o mundo. Graças à sua racionalidade o homem se conhece distinto do mundo e numa situação de alteridade com relação ao mundo. O homem tem consciência de que ele é uma coisa e o mundo, que é sua casa, outra. A consciência desta distinção gera a sua condição de ser transcendente ao mundo. E nisto está a autoconsciência do ser humano. Vive no mundo, tira sua subsistência do mundo, precisa do mundo, transforma-o, mas não se confunde com ele. É a transcendência do homem.
4. A relacionalidade: O homem é um ser capaz de criar vínculos, entabular relações em vários níveis com a realidade que o circunda e, desta forma, sofrer transformações e modificações em seu próprio ser. Fundamentalmente há dois campos de relações: com a natureza e com os outros seres humanos. O encontro do homem com a natureza se dá em razão da própria condição corpórea do ser humano. A natureza, o mundo das coisas, integra o seu ser. Há um momento em que o homem age sobre a natureza, modificando-a, transformando-a, dominando-a. É uma tarefa de libertação em busca de uma autonomia e independência. Este é o processo de humanização. A medida em que o homem se torna senhor da natureza na qual está inserido, vai se tornando mais humano. A ação, a atividade, o conhecimento, o conhecimento em vários níveis, o trabalho se inserem nesta dinâmica de humanização do homem.
Há exorbitação quando, ao invés de transformar, modificar, dominar, destrói a natureza. Esta, destruída, não tem como responder à ação maléfica do homem, que será atingido pelas consequências negativas desta ação. "A terra tornar-se-á deserto por causa dos seus habitantes; tal será o fruto de suas obras". (Miq. 7, 13).
Essa transcendência toma outra dimensão quando o homem, em seu mundo circundante, se encontra com o outro homem. Não é mais o encontro de alguém com algo, mas é o encontro de alguém com outro alguém. A transcendência do ser humano o leva a desvencilhar-se das amarras de sua imanência e criar um campo de relações totalmente distinto do campo das relações homem-natureza. No encontro com "alguém" o ser humano afirma o próprio "eu", contradistingue-se dentro de uma identidade de natureza. Descobre sua dimensão dialogal e comunitária, sua sociabilidade. À medida em que este campo de relações é robustecido, salienta-se no ser humano sua dimensão espiritual e inicia-se o processo de personalização. À medida em que o campo de relações alguém-alguém é incentivado, o ser humano mais se afirma como pessoa. "O ato de abrir-se ao outro - diz Jaspers - é ao mesmo tempo para mim o ato de realizar-me como pessoa".
5. A singularidade: O ser humano, através da reflexão, descobre em sua interioridade sua realidade interna e sabe-se ser tão-somente uma pessoa única, uma só realidade.. Capaz de doar-se, dedicar-se, ir ao encontro dos outros, conserva, contudo, a individualidade do próprio ser. Sob o domínio do "eu", há somente um indivíduo. Toda a dedicação do próprio ser é ineficaz, quando se trata de dividir a realidade pessoal que é indivídua. O ser humano é indivíduo. É neste sentido que se diz também que o ser humano é, por natureza, uma solidão. Ele é só. Sozinho. Não significa isolamento, mas unicidade. Ao pronunciar, numa afirmação, o eu, por baixo deste monossílabo transparece nítida e conscientemente uma única e mesma realidade: o indivíduo, no mistério de sua interioridade, apesar de sua dimensão microcósmica.
6. A pluralidade. É a característica que aparece no momento em que o homem, capaz de transcender a sua singularidade e seu mundo interior, microcósmico e misterioso, encontra o outro homem e descobre sua dimensão social, dialógica e comunitária. Descobre que que seu ser pessoal só se desenvolve na medida em que sua vida se der com-os-outros. Tentando penetrar na interioridade de seu ser para conhecer-se a si mesmo, descobre que a convivência com os outros é condição para o conhecimento próprio. O autoconhecimento não se dá a não ser na medida em que o homem convive. O homem precisa do outro. Sua plenitude pessoal só se verificará na convivência. Viver é, radicalmente, conviver. Viver é ser-para-o-outro. E aqui está a pluralidade do ser humano. Parece uma afirmação paradoxal, relacionada com a afirmação em torno da singularidade. Os aspectos, porém, são diferentes. A singularidade é descoberta numa dimensão de imanência, de introspecção, enquanto o ser humano se volta para a sua interioridade; a pluralidade, enquanto o homem é capaz de transcender os limites de sua realidade corpórea e, por uma extrospecção, penetrar no campo da comunicação. Enquanto o homem é uma ilha, mas que somente aparece enquanto com outras ilhas forma um arquipélago.
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Como é lindo e gratificante este texto. É o humano. Senti Paulo Freire ao longo de todo o desenvolver do texto. O jovem Marx, filósofo, também. Eu apenas acrescentaria um terceiro campo de relações, no item da relacionalidade, que é a relação que estabelecemos conosco mesmos. A soma das três relações nos dá o conceito de cultura. Ah, se nós reconhecêssemos a nossa primeira característica, a de nossa finitude. Esta é a condição para a abertura e a busca em nossa formação. A fonte, para efeitos de bibliografia. GIRARDI, Leopoldo Justino. QUADROS, José Odone. Filosofia - Aprendendo a pensar. Porto Alegre: Sagra Luzatto. 1998. 9ª edição. Páginas 36 a 39. Capítulo 5.
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