quarta-feira, 30 de junho de 2021

Arrancados da terra. Lira Neto.

Comprei este livro, tanto pelo autor, quanto pelo tema. Um livro do Lira Neto sempre é garantia de um bom livro. Quanto ao tema, a discussão sobre a presença holandesa em Pernambuco, sempre foi uma questão posta, ao longo da história brasileira. Quanto a presença dos judeus nesta ocupação, o tema passou a me interessar mais, quando fiz uma viagem para a cidade do Recife e me enveredar pela rua dos judeus e me defrontar com a sinagoga ali existente. A leitura não me decepcionou. Estou falando de Arrancados da terra - Perseguidos pela Inquisição na Península Ibérica, refugiaram-se na Holanda, ocuparam o Brasil e fizeram Nova York. O livro é um lançamento da Companhia das Letras, deste ano de 2021.

Arrancados da Terra. Lira Neto. Companhia das Letras. 2021.

Ao final do livro, nos agradecimentos, Lira Neto fala da gênese do livro: "Escrever este livro foi um projeto acalentado ao longo de quase uma década. A ideia original, contudo, era realizar uma biografia de Maurício de Nassau. Ao mergulhar na documentação relativa ao domínio neerlandês em Pernambuco, um tema paralelo foi me chamando a atenção, pouco a pouco, até me desviar por completo do propósito inicial.

A cada nova consulta aos arquivos e à vasta bibliografia sobre o chamado 'Brasil holandês', a saga dos sefarditas que chegaram ao Recife via Amsterdam parecia-me uma história cada vez mais fascinante. Ao vasculhar os rastros daqueles personagens em sua grande maioria anônimos, descobri-me eu próprio um descendente dos cristãos-novos que, perseguidos pela Inquisição ibérica, se refugiaram em terras pernambucanas e, posteriormente, nos sertões do Ceará. 


Na casa do amigo Rodolfo Prates, um brinde com o Lira, em um momento raro e privilegiado.

Tal constatação foi responsável pela mudança de planos. Abandonei a ideia de biografar Nassau e deixei-me enredar pela trama  desses indivíduos em permanente deriva" (Página 319). Um pouco antes, no epílogo, onde são apontados os destinos dos principais personagens, lemos: "Após a reconquista portuguesa do Recife, muitos judeus e cristãos-novos convertidos ao judaísmo no Nordeste brasileiro não puderam ou não quiseram partir do país. Embrenharam-se sertões adentro. Retornaram ao catolicismo ou desenvolveram alguma espécie de cripto-judaísmo, longe do litoral e dos olhos dos espiões do Santo Ofício" (Página 304). Eis as origens do Lira Neto. Ele nasceu na cidade de Fortaleza.

O subtítulo do livro fornece também o seu roteiro. Vejamos atentamente. Perseguidos pela Inquisição na Península Ibérica, refugiaram-se na Holanda, ocuparam o Brasil e fizeram Nova York. Lembrando, para situar o fato na história, que a ocupação holandesa em Pernambuco e seus arredores, se deu entre os anos de 1630 e 1654. Outro fato importante desse período é que Portugal perdera a sua autonomia política por sessenta anos (1580-1640), sendo governado pelos soberanos espanhóis. Era o tempo da chamada União Ibérica. Esse período correspondeu a um dos mais violentos tempos da Inquisição, da qual os judeus foram o alvo principal. Este é o período que corresponde aos Arrancados da Terra. Arrancados de Portugal, eles se estabeleceram na Holanda, país que os recebeu relativamente bem.

A Holanda era nesta época o país mais liberal e tolerante e também o que mais se desenvolvia. Era um período de grande prosperidade comercial. Os judeus a financiavam. Holanda e Espanha viviam em conflito. Outro dado importante desse período foi a existência da Companhia das Índias Ocidentais, empresa que era um misto de empreendimento comercial e militar e a grande responsável pela ocupação, entre outros lugares estratégicos, do nordeste brasileiro. O interesse econômico era o domínio da produção e das rotas comerciais do açúcar e de escravos. Maurício de Nassau foi o governador holandês em Pernambuco entre os anos de 1637 e 1643, o tempo de maior esplendor. 



Fotos minhas, em viagem ao Recife.

Esse foi o momento propício que os judeus sefarditas, isto é, os judeus ibéricos estabelecidos na Holanda, viram para empreender negócios e se estabelecer em novas terras. Muitos deles vieram ao Recife, onde livremente, puderam empreender e professar sua fé. Se organizaram em vida comunitária, fundaram seu cemitério, sua sinagoga e trouxeram, inclusive, um rabino para manter acesa a sua fé. Isso não significa que não sofriam importunações dos calvinistas holandeses com os quais frequentemente se desentendiam, mais por questões econômicas do que religiosas.

Por uma série de razões, os negócios da Companhia das Índias Ocidentais começam a naufragar em Pernambuco, o que permite a ofensiva portuguesa para a retomada desses domínios e a consequente retirada dos holandeses, entre eles os judeus, que se viram novamente diante das ameaças da sempre vigilante Inquisição. Tiveram prazo curto para a retirada. A grande maioria voltou para a Holanda. Um navio porém, toma um destino diferente. Fica praticamente à deriva, aportando nas costas da Venezuela e da Jamaica. Aí 23 judeus contratam um navegador francês que os levaria a Nova Amsterdam, para ali se estabelecerem, junto a outros judeus que ali já habitavam. A Nova Amsterdam, com o posterior domínio inglês sobre a região, passou a se denominar Nova York.

Essa história é contada ao longo de dezoito capítulos, mais epílogo, pós-escrito, agradecimentos, notas e referências bibliográficas, que ocupa as 399 páginas do livro. Aproveito ainda para dar destaque a um outro personagem presente no livro, tanto no Recife, quanto em Lisboa e Amsterdam. Trata-se do famoso padre Antônio Vieira. O foco não são os seus famosos sermões, mas a sua missão diplomática junto a D. João IV, o soberano português, após a Restauração.

Para deixar uma ideia mais precisa do livro, apresento o teor que consta na orelha do livro: "Entre os séculos XVI e XVIII, ser judeu em Portugal e suas colônias significava viver sob um regime de terror permanente. A Inquisição ou Tribunal do Santo Ofício - órgão policial-judiciário da Igreja católica encarregado do combate à heresia - constituía um autêntico Estado dentro do Estado, com poderes absolutos na repressão a crimes religiosos, dos quais professar o judaísmo era um dos mais graves.

Delatados por inimigos, ou mesmo por parentes sob a coação dos inquisidores, os judeus que recusavam a conversão sumária eram submetidos a prolongadas prisões e torturas. Insistir no 'danado erro' da apostasia levava à fogueira. Restava se esconder ou fugir.

Milhares de sefarditas (judeus ibéricos) deixaram Portugal e se fixaram sobretudo na França e na Holanda. Uma próspera colônia Israelita de origem lusitana se desenvolveu em Amsterdam nas primeiras décadas do século XVII. No enfrentamento da intolerância e a salvo da censura e da repressão, entre os canais da 'Jerusalém do Norte' floresceu uma brilhante geração de rabinos e intelectuais, encabeçada por Menasseh ben Israel (nascido Manuel Dias Soeiro), Saul Mortera e Isaac Aboab da Fonseca - além de pensadores revolucionários como Uriel da Costa e Baruch Spinoza.

Depois da invasão batava no Nordeste brasileiro, na década de 1630, muitos judeus cruzaram o oceano para tentar a vida nos domínios de Maurício de Nassau. Até a expulsão dos holandeses em 1654, os sefarditas de Pernambuco, liderados por Aboab da Fonseca, puderam fundar sinagogas e exercer sua fé livremente, além de prosperar na lavoura e no comércio sob a égide da Companhia das Índias Ocidentais. Com o retorno do jugo português e da Inquisição, eles foram obrigados a recomeçar sua jornada incessante em busca da Nova Canaã.

Dos cárceres do Santo Ofício à esperança do Novo Mundo, este livro mapeia as vidas errantes dos pioneiros que formaram a primeira comunidade judaica das Américas, no Recife, e ajudara a construir Nova York".

Sobre o tema dos judeus na Holanda, apresento também o belo livro Hereges, do Leonardo Padura. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/10/hereges-leonardo-padura.htmlhttp://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/10/hereges-leonardo-padura.html



quinta-feira, 24 de junho de 2021

Necropolítica. Achile Mbembe.

Há muito eu queria ler Achille Mbembe. O conhecia apenas através de comentários, especialmente, os retirados de seu livro Crítica da razão negra. A minha iniciação começou, no entanto, com Necropolítica, um fulminante pequeno ensaio sobre o exercício de um poder soberano sobre a vida ou a morte das pessoas, ao longo da afirmação histórica da modernidade. Como sabemos, a modernidade é a construção histórica que substituiu o mundo medieval, fundado em crenças, pelo mundo da razão, da ciência e do progresso. O mundo da "deusa razão". Autodeterminação, liberdade e igualdade eram as suas prerrogativas máximas. Estas, afirmadas pelas revoluções burguesas, sofreram violenta contestação com a proclamação da independência do Haiti, no ano de 1804, com a expulsão do governo francês. As bandeiras do iluminismo, definitivamente, não eram para todos.


O ensaio de Mbembe, Necropolítica, vem acompanhado de um subtítulo, biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. O corpo do ensaio, basicamente, é a elucidação desses conceitos. Esses,  vem acompanhados de ilustrações históricas. O ensaio não é dividido em capítulos, mas ao longo dele encontramos alguns subtítulos, que apresento: Política, o trabalho da morte e o "devir sujeito"; o biopoder e a relação de inimizade; necropoder e ocupação colonial na modernidade tardia; máquinas de guerra e heteronomia; do gesto e do metal e, uma conclusão. Creio que o subtítulo mais esclarecedor seja o do necropoder e ocupação colonial na modernidade tardia. Isso me permite apresentar toda a parte anterior, como a política colonial e imperialista, ocorrida após os descobrimentos marítimos e o estabelecimento de colônias pelos países europeus. Creio que facilita e, creio também, que já devem ter percebido a minha intenção.

Os conceitos filosóficos apresentados são inspirados em Foucault, Hannah Arendt, Georges Bataille, entre outros. Logo no início, em uma espécie de introdução, lemos alguns conceitos presentes ao longo de todo o texto. Assim lemos: "Este ensaio pressupõe que a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar  ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder". Segue depois a definição de biopoder, tomado de Michel Foucault: "aquele domínio da vida sobre o qual o poder estabeleceu o controle". Seguem, ainda, uma série de questões, que ele busca, depois responder: "Mas sob quais condições práticas se exerce o poder de matar, deixar viver ou expor à morte? Quem é o sujeito dessa lei? O que a implementação de tal direito nos diz sobre a pessoa que é, portanto, condenada à morte e sobre a relação que opõe essa pessoa a seu assassino/a? [...] que lugar é dado à vida, à morte e ao corpo humano (em especial o corpo ferido ou massacrado)? Como eles estão inscritos na ordem do poder?

Um dos tópicos mais importantes é aquele que começa a ser elucidado a partir da página 16: o biopoder e a relação de inimizade. Em outras palavras, a quem é dado o exercício do biopoder, a quem é dado o poder de matar ou de deixar viver. É preciso fixar quem é o inimigo. A raça sempre foi o principal critério para essa fixação. O colonialismo em muito contribuiu com a fixação da raça como critério para o direito soberano de matar. 

A partir de Hannah Arendt, Mbembe desenvolve uma série de reflexões, que fixam no outro, o inimigo. O outro precisa morrer para que eu me sinta seguro, ou, matar a fim de viver. Se o colonialismo serviu para fixar os inimigos nas colônias, matar os selvagens que resistiam ao processo civilizatório, o estado soberano europeu, também encontrou inimigos em seu próprio território. Esta fixação culminou com a chamada "solução final", do extermínio racial promovido pelo nazismo. A razão, que deveria ser instrumento emancipador, cada vez mais foi adquirindo o seu caráter instrumental.

Outro aspecto interessante  é a evolução da técnica de matar. Ela acompanhou os progressos trazidos pela Revolução Industrial. Do rudimentar processo de enforcamento se evoluiu para a guilhotina, para as câmaras de gás e para os fornos de cremação. A técnica de matar se transformou num processo impessoal, silencioso e rápido. Antes destas formas serem aplicadas ao longo da Segunda Guerra, elas foram devidamente testadas nos territórios sem lei do colonialismo. 

A leitura do ensaio se torna mais fácil a partir de suas páginas finais, a partir da página 38: Necropoder e ocupação colonial na modernidade tardia. São ilustrações históricas, ocorridas após os terríveis fatos da Segunda Guerra Mundial. Novos conceitos de guerra são apresentados, como a ocupação de espaços que resultam nas cidades do colonizado e no exercício da soberania vertical, pelo controle dos espaços aéreos. O poder soberano sobre a vida ou a morte continua a evoluir com as novas tecnologias, que permitem maiores controles e confinamentos. Como exemplos são citados o apartheid na África do Sul e a ocupação israelense na Faixa de Gaza, Palestina e Cisjordânia. As guerras já não mais atingem os indivíduos ou as pessoas diretamente envolvidas com a guerra, mas populações inteiras. As guerras passam a ser infraestruturais, como foram as do Kosovo e do Golfo.

Termino por apresentar uma descrição do que é a "cidade do colonizado" e a "guerra infraestrutural". Começamos com a "cidade do colonizado": "É um lugar de má fama, povoado por homens de má reputação. Lá eles nascem, pouco importa onde ou como; morrem lá, não importa onde ou como. É um mundo sem espaço; os homens vivem uns sobre os outros. A cidade do colonizado é uma cidade com fome, fome de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma vila agachada, uma cidade ajoelhada". Página 41.

O exemplo para o que seria uma guerra infraestrutural é retirado da guerra do Kosovo: "Em Kosovo, a 'degradação' das capacidades sérvias tomou a forma de uma guerra infraestrutural que destruiu pontes, ferrovias, rodovias, redes de comunicação, armazéns e depósitos de petróleo, centrais termoelétricas, centrais elétricas e instalações de tratamento de água. Como se pode presumir, a execução de tal estratégia militar, especialmente quando combinada com a imposição de sanções, resulta na falência do sistema de sobrevivência do inimigo. Os danos persistentes à vida civil são particularmente eloquentes. Por exemplo, a destruição do complexo petroquímico Pancevo, nos arredores de Belgrado, durante a campanha de Kosovo 'deixou as proximidades tão contaminadas com cloreto de vinilo, amônia, mercúrio, nafta e dioxinas, que se recomendou o aborto às mulheres grávidas, da mesma forma que todas as mulheres locais foram aconselhadas a evitar a gravidez durante dois anos". Página 50-51.

Pela dificuldade em fazer esta resenha, apresento a conclusão do ensaio feita pelo próprio autor: "Neste ensaio, propus que as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropolítica) reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror. Tentei demonstrar que a noção de biopoder é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte. Além disso, propus a noção de necropolítica e de necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar 'mundos de morte', formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de 'mortos vivos'. Sublinhei igualmente algumas das topografias recalcadas de crueldade (plantation e colônia, em particular) e sugeri que o necropoder embaralha as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, mártir e liberdade". Página 71.

Achille Mbembe nasceu em Camarões. É professor de História e Ciências Políticas na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, e também na Duke University, nos estados Unidos. Três referências bibliográficas me chamaram especial atenção: O Atlântico negro, de Paul Gilroy; Hegel e o Haiti, de Susan Buck-Morss e O discurso filosófico da modernidade- doze lições, de Jürgen Habermas. Mbembe é um dos gritos mais agudos ouvidos no mundo atual.


quinta-feira, 17 de junho de 2021

Ivanhoé. Walter Scott. As origens do romance histórico.

Ao assistir um episódio de Mundo visto de cima, que mostrava cenários e castelos medievais do Reino Unido, tomei a decisão de ir um pouco além. Retirei, da minha estante, o volume de número 37 - da coleção Os imortais da literatura universal e o adiantei na fila de minhas leituras. Trata-se do romance que mistura romantismo e história e que, em muito, aprofunda o conhecimento sobre a formação histórica deste país. No romance estão entremeadas histórias de amor com fortíssimas doses de nacionalismo. Este, especialmente, por conta dos povos saxões. Há, inclusive, uma absurda cena de ressurreição. Estou falando de Ivanhoé, de Walter Scott.

Ivanhoé. Walter Scott. Abril. 1972. Tradução: Brenno Silveira.

Walter Scott nasceu na cidade de Edimburgo, Escócia, no ano de 1771, vindo a morrer na mesma Escócia, no ano de 1832. As biografias do autor dão o merecido destaque a esse fato. Um sentimento saxônio o acompanhou pela vida afora. As biografias também destacam que Walter, mais tarde Sir Walter, era mau aluno em latim e matemática, mas que nos intervalos das aulas ganhava a atenção de seu colegas, pelas histórias que ele contava. Histórias que ele ouvira de seu avô, ou que tinha lido, de livros retirados da pequena biblioteca do mesmo avô. São as raízes desse romancista, que entremeia fatos históricos, especialmente medievais, com apaixonadas e heroicas histórias de amor.

Ivanhoé é um belo exemplo dessas características do escritor. Ele tem a parte romântica, na dedicação e amor, ou verdadeira paixão, à tradição dos saxônios (Cedric), entremeadas de ardentes histórias de amor, em meio a batalhas e disputas entre os irmãos Ricardo I e João, reis da Inglaterra. Estes reis são Ricardo Coração de Leão (1189 - 1199), famoso pela sua participação nas Cruzadas e o seu sucessor João, o João sem Terra (1199 -1216), muito conhecido pela famosa promulgação da Magna Carta (1215). Estão aí os ingredientes do romance de 556 páginas, com letras miudinhas, divididas ao longo de 44 capítulos. A estrutura narrativa é feita com muita habilidade. A leitura não para.

Essas contextualizações são importantes para se ter uma compreensão melhor do romance e também para penetrar um pouco mais no interior da história medieval, uma história cheia de violências e de traições, sempre por causas ditas e tidas como nobres. As guerras eram "santas". As lutas eram travadas não por causas terrenas, mas sempre sim, por causas e interesses divinos. Quanta farsa! Vamos ver um pouco dos personagens e do roteiro, sem entregar a narrativa.

O espaço territorial do atual Reino Unido, nesse período, era formado por uma aliança normando-inglesa, sendo o poder exercido pelos irmãos Ricardo e João, com grandes disputas, quando Ricardo estava preso em poder dos austríacos. Essa disputa está presente em praticamente todos os capítulos do livro. O rei João tem ao seu lado os cavaleiros templários, com destaque para o mau Brian de Bois Guilbert. Ricardo, depois de pago o seu resgate, volta a Inglaterra para tomar o poder do irmão com a ajuda de Ivanhoé, o personagem central e título do romance. Também Robin Hood (Locksley) aparece ao lado de Ricardo e de Ivanhoé. Ricardo também recebe o apoio do saxônio Cedric, pertencente aos últimos herdeiros nobres desse povo. Ele é o tutor da bela jovem Rowena e o pai de Ivanhoé, filho que ele renegara, pela sua inclinação para o lado dos normandos. Também o judeu Isaac e a sua bela filha Rebecca aparecem na narrativa. As guerras precisam de financiamento para as batalhas, para armar os cavaleiros e pagar os resgates. (A atuação de Isaac se parece com o capitalismo financeiro dos dias atuais - sempre desdenhado mas sempre desejado). 

É desnecessário dizer que as duas belas jovens são disputadas com todo o ardor. São pontos altos do romance, a descrição dos templários, muito, mas muito cristãos e a descrição do judeu Isaac, avarento, e sempre disposto a intervir para ganhar algum dinheiro a mais. São mostrados todos os preconceitos contra a raça judaica. Por outro lado mostra também toda a lealdade deste povo ao seu Deus e a unidade de todos, nos sofrimentos constantes de que são permanentes vítimas. Quanto às histórias de amor, elas te darão belas horas de entretenimento. Mas você pode ter também toda a certeza de que aprenderá muitas lições de historia. É um mergulho na Idade Média, onde está a raiz da formação do atual Reino Unido.

Sobre o romance, lemos o que segue, no livro de biografias que acompanha a coleção: "O romance (datado de 1819 ou 1820) tem como cenário a Inglaterra do século XII, onde se enfrentam os reis normandos, originários do continente, e os saxões, instalados há séculos na ilha. O fundo é histórico e as descrições dos ambientes e costumes feudais extremamente fieis. Muitas personagens, como Ricardo Coração de Leão (1157-1199) e o Príncipe João sem Terra (1167-1216), existiram realmente, embora a trama em que estão envolvidas seja, em grande parte fictícia.

A arte de Walter Scott consiste em estabelecer as relações entre estes dois níveis: o real, historicamente verdadeiro, e o imaginário, mas verossímil dentro do espírito da época descrita. Assim, conquanto as aventuras de Ivanhoé sejam fictícias, não o são os castelos, os torneios, os templários, os preconceitos anti-semitas apresentados no decorrer do romance".

Destaquei ainda um parágrafo, já da parte final, que mostra bem o tema e o espírito do livro:  "Além dos membros das duas famílias, compareceram ao casamento (de Ivanhoé com........), tanto normandos como saxônios de alta linhagem. O povo recebeu o acontecimento com demonstrações gerais de regozijo, pois era uma garantia de paz e harmonia futuras entre as duas raças, as quais. desde essa época, se misturavam tanto que, hoje, já não é mais possível distingui-las. Cedric viveu o suficiente para ver essa fusão quase completa, pois, à medida que os dois povos se aproximavam e se uniam pelo casamento, os normandos iam-se tornando menos desdenhosos e os saxônios menos rústicos. Mas não foi senão durante o reinado de Eduardo III (1327-1337) que a língua mista, agora chamada inglesa, passou a ser falada na corte de Londres, e que o espírito de hostilidade entre normandos e saxônios também desapareceu completamente" (página 551). A formação da fusão dessas línguas, formando a língua inglesa, também aparece ao longo de todo o romance.

Mas a aproximação com os judeus e o fim da alimentação dos preconceitos contra esta raça, ainda estaria longe para acontecer. Livro maravilhoso. O livro também foi levado ao cinema e como existe link disponível, o deixo. É fantástico ver os cenários descritos. https://ok.ru/video/689944726047. O filme é estrelado por Robert e Elisabeth Taylor. Walter Scott inicia a longa tradição dos tão apreciados romances históricos.


segunda-feira, 14 de junho de 2021

Os Subterrâneos do Vaticano. André Gide. Nobel de Literatura - 1947.

Continuo na empreitada de ler os romances da coleção Os Imortais da Literatura Universal, da Abril Cultural, publicada ao longo os anos 1971-1972, anos em que eu iniciava as minhas atividades na profissão de professor. Na verdade, formado em filosofia no ano de 1968, em Viamão - RS, vim ao Paraná, para a cidade de Umuarama, onde iniciei os meus trabalhos no magistério, no ano de 1969. O dinheiro sempre fora escasso, mas não me impediu a compra desta maravilhosa coleção. Lia os livros, na medida das possibilidades do tempo. Sobraram muitos.

Os Subterrâneos do Vaticano. Abril. 1971. Tradução: Miroel Silveira e Isa Leal.

Agora foi a vez de ler André Gide, Nobel de Literatura, do ano de 1947. O livro foi Os Subterrâneos do Vaticano. O livro é interessante e mostra um narrador que te prende a atenção, mas, não creio que este livro esteja entre as principais obras do escritor. Ele é do ano de 1914. André Gide nasceu em Paris no ano de 1869 e, morreu, na mesma cidade, no ano de 1951. A sua vida foi sempre de angústias profundas e ela, a sua biografia, esta sim, daria uma bela obra prima. Em seu diário confessava: "Foi minha infância solitária e mal humorada que me fez o que sou". Mãe protestante e autoritária se complementaram com um colégio, igualmente protestante e autoritário. Ah! Os rigores da moral. Hipocrisia à vista.

Aos nove anos, lemos no livro de biografias que acompanha a coleção, foi flagrado num ato de masturbação e, mãe e educandário zelosos, lhe buscavam a "cura". Passou, continuamos lendo, pela experiência do casamento, com direito à impotência na noite de núpcias e, também, por experiências homossexuais. Temia o mesmo julgamento de Oscar Wilde. No mesmo livro ainda lemos: "Voltado pra si próprio, como Narciso, nascia um escritor". Ao final de sua vida, escritor já consagrado e laureado, partiu do individual para o social e do psicológico para o campo político. Foi então movido por preocupações existenciais e com um mundo de injustiças, provocadas pelo colonialismo francês.

O romance tem uma estrutura complexa e pouco linear na narrativa. Quem se dispuser a lê-lo pela temática apontada no título, Os subterrâneos do Vaticano, pode desistir. Quanto ao Vaticano e à temática religiosa, encontraremos uma quadrilha de "mil patas" que explora a boa fé de católicos fervorosos, empenhados na salvação do verdadeiro papa, que se encontraria preso no Vaticano, ou no Castelo Sant'Ângelo, construções que estariam interligados subterraneamente. Daí, provavelmente, o título. A quadrilha extorquia dinheiro dos fiéis para o empreendimento de uma cruzada libertadora do verdadeiro papa. Dá para perceber que se trata de uma obra de ficção. As intrigas teriam se dado entre os maçons e os padres jesuítas. Famílias nobres (Baraglioul) e um filho bastardo (Lafcádio) fazem parte da trama. Aliás, Lafcádio Wluiki, o filho bastardo do conde de Baraglioul, é o personagem principal do romance.

Da Wikipédia tomo uma síntese da trama: "Este livro, deliberadamente caótico cruza e opõe intrigas e personagens. Há desde o início as discussões de Julius de Baraglioul, ultra católico, e de seu cunhado, Anthime-Armand Dubois, pensador liberal, que sofrem uma cruzada, antes de retomar subitamente as suas opções originais. Há o grupo de terroristas, com seu chefe, o assustador Protos, que espalha o rumor segundo o qual o papa havia sido sequestrado e era mantido nos subterrâneos do Vaticano. E, sobretudo, há o jovem Lafcádio o qual, prisioneiro de sua mística do ato gratuito, com a mesma indiferença salva num dia a vida de uma jovem criança e, num outro, mata o pobre Amédée Fleurissoire sem qualquer motivo. Esta farsa satírica ilustra a loucura de alguns enfoques intelectuais, e o remorso final de Lafcádio, torturado pela  consciência de seu crime, mostra as consequências de seu ato".

No livro de biografias lemos o seguinte sobre este livro: "Lafcádio Wluiki é a personagem central de um novo Gide, cansado de um eterno vaivém dos sentimentos e angústias pessoais que até então marcara sua obra. Antítese dos indivíduos 'condicionados' pelo meio e pela educação, Lafcádio é completamente livre, desvinculado de laços familiares ou sociais. Filho bastardo de um conde diplomata e de uma prostituta, ele é um nobre entre os plebeus e um plebeu entre os nobres. A herança de seu pai garante-lhe uma vida sem profissão e sem classe. Lafcádio não tem religião, nem moral, nem compromisso definitivo com qualquer um dos sexos. Pode permitir-se aquilo que poucos - ou ninguém - ousariam levar a cabo: o ato gratuito. Assim sem motivo e sem interessar-se pelos efeitos, ele salva vidas, ele mata.

Por trás de uma elaborada intriga romanesca, o autor procura mostrar as possíveis consequências, na vida prática, de certos ideais sumários de liberdade. O 'ato gratuito', seja ele realizado sobre um indivíduo ou contra a autoridade constituída não leva à nada.

Num gênero literário que o próprio Gide classifica de sotie (relato satírico medieval), as personagens são loucas, ilógicas ou 'livres', segundo se queira. A Igreja católica e a Franco-Maçonaria aparecem envolvidas em fantásticas conspirações, onde predominam a imaginação e a ironia. Não se trata de uma crítica severa. O estilo é leve, despreocupado, quase casual, como a estória".

Outros livros do autor mereceriam certamente maior atenção, como A Sinfonia Pastoral, que relata a amizade entre o pedagogo e seu aluno, um relato biográfico e Teseu, uma obra impregnada pelo existencialismo. Por essas obras ele é mais reconhecido e, inclusive, laureado com um Nobel de Literatura..

domingo, 6 de junho de 2021

Textos de Literatura. Aulas de filosofia. II. Servidão Humana. W. Somerset Maugham.

Continuo hoje com a apresentação de textos de literatura para aulas de Filosofia. Continuo com o escritor francês/inglês W. Somerset Maugham e o livro Servidão Humana. Hoje apresento o capítulo LIII. Nele iremos encontrar Philip, o personagem central da obra, com algo em torno de 22 anos, refletindo sobre os rumos a tomar em sua vida, após dois anos vividos em Paris e após a decisão de não prosseguir os seus estudos de pintura, para a qual, descobrira, não ter os suficientes dotes e a devida vocação.

Philip retorna para a casa de seus tios, para "iniciar a vida pela terceira vez". Ele, desde cedo, se tornara órfão, tanto de pai, quanto de mãe. A sua educação fora confiada ao seu tio, um pastor da Igreja Anglicana. Decide-se pelos estudos de medicina. Dúvidas existenciais o acometem. No texto número 1, encontramos este mesmo Philip, na cidade de Heidelberg, aos 20 anos, para aprender a língua alemã. Segue o post com o texto. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/06/textos-de-literatura-aulas-de-filosofia.html

Servidão Humana. W. Somerset MaughamAbril. 1971. A 1ª publicação é de 1946.



XXXXXXX

CAPÍTULO LIII. 

O Sr. Carey retirou-se para o gabinete, levando o jornal. Philip passou para a cadeira do tio (era a única confortável da sala) e olhou pela janela para a chuva que caía.  Mesmo com aquele tempo tristonho, havia qualquer coisa de repousante nos campos verdes que se estendiam para o horizonte. Havia na paisagem um encanto íntimo que ele não se lembrava ter notado antes. Dois anos de França tinham-lhe aberto os olhos para a beleza daquela região.

Pensava com um sorriso na observação do tio. Era uma sorte que o seu espírito tendesse para a volubilidade. Começara a dar-se conta da grande perda que havia sofrido com a morte do pai e da mãe. Esse era um dos motivos que, na vida, o haviam impedido de ver as coisas da mesma maneira que os outros. O amor dos pais pelos filhos é o único sentimento perfeitamente desinteressado. Crescera entre estranhos conforme pudera, mas raramente tinha sido tratado com paciência e indulgência. Orgulhava-se do domínio que tinha sobre si mesmo. Fora-lhe inculcado pela zombaria dos seus companheiros. Depois, chamaram-no de cínico e insensível. Adquirira um aspecto calmo e alheio e, as mais das vezes, uma máscara impassível, de maneira que agora já não podia mostrar os seus sentimentos. Diziam-no despido de emoções, mas ele sabia que estava à mercê delas: uma bondade inesperada comovia-o tanto que às vezes não se aventurava a falar para que não lhe notassem a insegurança da voz. Lembrava-se da amargura de sua vida na escola, da humilhação que havia sofrido, dos gracejos que lhe haviam incutido um terror mórbido do ridículo. Recordava-se também do seu sentimento de solidão depois que, posto em face do mundo, medira a distância que separava as suas quimeras da realidade. Mas, apesar de tudo, podia observar-se como se fosse um outro e sorrir divertido.

'Palavra que, se eu não fosse volúvel, me enforcaria', refletiu alegremente.

Tornou a pensar na resposta que havia dado ao tio quando este lhe perguntara o que tinha aprendido em Paris. Tinha aprendido muito mais do que dissera. Certa palestra com Cronshaw lhe ficara gravada na memória e uma frase por ele empregada, frase assaz comum, lhe fizera trabalhar o cérebro.

- Meu caro rapaz - tinha dito Cronshaw -, a moral abstrata não existe.

Quando Philip deixou de crer no cristianismo, sentiu que um grande peso lhe era tirado dos ombros; despojando-se da responsabilidade que sobrecarregava cada ato, quando cada ato era de infinita importância para a salvação de sua alma imortal, experimentou uma viva sensação de liberdade. Mas agora sabia que isso fora uma ilusão. Ao abandonar a fé em que tinha sido criado, mantivera intata a moral que era sua parte integrante. Resolveu, então, pensar por si mesmo sobre as coisas e não se deixar influenciar por preconceitos. Descartou-se de vícios e virtudes e rejeitou as leis assentes do bem e do mal, com a ideia de encontrar por si a sua própria norma de vida. Afinal, nem sabia se era mesmo necessário possuir tal norma. Essa era uma das coisas que desejava descobrir. Sem dúvida,, muito do que parecia válido assim se afigurava porque lhe fora ensinado desde a primeira infância. Lera inúmeros livros, mas eles não o ajudaram muito, pois baseavam-se na moral cristã; e mesmo os autores que proclamavam não acreditar no cristianismo nunca se davam por satisfeitos senão quando organizavam um sistema de moral de acordo com o Sermão da Montanha. Não valia a pena ler um longo volume para aprender que nos devemos conduzir exatamente como os outros. Philip desejava saber como devia proceder, e julgava-se capaz de fugir à influência do ambiente. Ao mesmo tempo, porém, era necessário continuar vivendo e, enquanto não formava uma teoria de conduta, traçou para si mesmo uma regra provisória:

'Segue as tuas inclinações levando na devida conta o guarda  da esquina'.

A completa liberdade de espírito, julgava ele, era o que de melhor havia adquirido em Paris. Afinal, sentia-se absolutamente livre. Lera sem método inúmeras obras filosóficas, e, agora, aguardava com delícia o lazer dos próximos meses. Começou a ler a esmo. Atacava cada novo sistema com um pequeno prurido de emoção, esperando encontrar nele alguma orientação para a sua conduta. Sentia-se como um viajante em país desconhecido e, à medida que avançava, era fascinado pela empresa. Lia comovidamente, como os outros leem pura literatura, e o coração lhe batia com força quando descobria, em palavras nobres, alguma coisa que já havia sentido de modo obscuro. Tinha o espírito concreto e movia-se com dificuldade nas regiões abstratas, mas, ainda quando não podia seguir o raciocínio, experimentava um curioso prazer em acompanhar os pensamentos tortuosos que desfilavam agilmente nos limites do incompreensível. Por vezes parecia que grandes filósofos nada lhe tinham para dizer, ao passo que, em outros, reconhecia um espírito congênere ao seu. Era como o explorador da África Central que depara subitamente com um vasto planalto onde os prados são pontilhados de árvores, de modo que é fácil imaginar-se num parque inglês. Deliciava-se com o robusto bom senso de Thomas Hobbes. Espinosa enchia-o de respeito: nunca entrara em contato com um espírito tão nobre, tão inacessível e austero, lembrava-lhe a estátua de Rodin, L'Age d'Airain, que admirava apaixonadamente. Vinha depois Hume. O ceticismo desse filósofo encantador fazia vibrar em Philip uma corda simpática, e, ao sabor daquele estilo translúcido que expunha ideias intrincadas em palavras simples, medidas e musicais, lia-o como leria uma novela: com um sorriso de prazer nos lábios. Mas em nenhum pode encontrar exatamente o que desejava. Haja lido nalguma parte que todo homem nasce platônico, aristotélico, estoico ou epicurista; e a história de George Henry Lewis (além de dizer que a filosofia é pura fantasmagoria) lá estava para demonstrar que o pensamento de cada filósofo se achava inseparavelmente ligado ao homem que ele fora. Conhecendo-se-lhe a vida, era fácil imaginar em grande parte a filosofia que escrevera. Dir-se-ia que não agimos de certa maneira por pensar assim, mas antes pensamos de certa maneira por assim termos sido feitos. A verdade nada tem que ver com isso. Não existe a verdade. Cada homem é o seu próprio filósofo, e os primorosos sistemas que os grandes homens do passado construíram só foram válidos para os seus autores.

O importante, pois, é descobrir o que somos e o nosso sistema filosófico se construirá por si mesmo.  Parecia a Philip haver três coisas a encontrar: a relação do homem com o mundo em que vive, sua relação com os homens entre os quais vive e, finalmente, a relação do homem consigo próprio. Traçou um plano pormenorizado de estudo.

A vantagem de viver no estrangeiro é que, entrando-se em contato com os usos e costumes do povo entre o qual se vive, aqueles são observados de fora e percebe-se que não resultam da necessidade, como julgam os que os praticam. Não se pode deixar de descobrir que as crenças para nós indiscutíveis são, para o estrangeiro, absurdas. O ano passado na Alemanha e a longa permanência em Paris tinham preparado Philip para receber os ensinamentos céticos que agora lhe chegavam com tamanha sensação de alívio. Viu que nada era bom e nada era mau: as coisas simplesmente se adaptavam a um fim. leu a Origem das Espécies. O livro parecia oferecer a explicação de muitos pontos que o inquietavam. Era, agora, como o explorador que infere a existência de certos acidentes naturais e, batendo as margens de um largo rio, depara aqui com o afluente que previa, ali com as planícies férteis e povoadas e, mais além, com as montanhas.  Quando se faz uma grande descoberta, o mundo se surpreende ao depois de que ela não tenha sido aceita imediatamente, e mesmo nos que lhe reconhecem a verdade o efeito é sem importância. Os primeiros leitores da Origem das Espécies aceitaram-na com a inteligência, mas as suas emoções, que são a base da conduta, ficaram intatas.

Nascido uma geração após o aparecimento desse grande livro, e depois de já haver passado a fazer parte das ideias usuais muita coisa que escandalizara os contemporâneos da obra, Philip pode aceitá-la de coração jubiloso. A grandeza da luta pela vida lhe parecia emocionante e a regra moral que ela sugeria concordava com as suas predisposições. Dizia para si mesmo que a força era o direito. De um lado está a sociedade, um organismo com as suas leis de desenvolvimento e autopreservação e, do outro, o indivíduo. A sociedade classifica de virtuosas as ações que redundam em seu proveito, e de viciosas as que a prejudicam. Bem e mal não significam mais do que isso. O pecado é um preconceito de que o homem livre se deve desembaraçar. Na luta com o indivíduo, a sociedade dispõe de três armas: a lei, a opinião pública e a consciência. As duas primeiras podem ser combatidas pela astúcia, única arma do fraco contra o forte - o vulgo exprime isso muito bem quando diz que pecado é ser apanhado nele -, mas a consciência é o traidor dentro dos muros, lutando na alma de cada um em prol da sociedade e levando o indivíduo a imolar-se, num sacrifício irrefletido, à prosperidade do inimigo. Sim, porque é evidente que o Estado e o indivíduo consciente de si mesmo são irreconciliáveis. Aquele se serve do indivíduo para fins próprios, espezinhando-o se é contrariado, recompensando-o com medalhas, honras e pensões se é fielmente servido; este, forte somente na sua independência, move-se no seio do Estado, pagando (por conveniência) certos benefícios recebidos, em dinheiro ou serviços, mas sem sentir a menor obrigação; indiferente às recompensas, pede apenas que o deixem em paz. É um viajante independente que faz uso dos bilhetes Cook porque lhe  poupam incômodos, mas olha com um desprezo bem-humorado para os grupos que se entregam ao guia. O homem livre não pode agir mal. Faz tudo o que deseja... quando pode. Sua força é o único estalão de sua moral. Reconhece as leis do Estado e pode infringi-las sem se sentir em falta, mas, quando punido, aceita o castigo sem rancor.

A força está com a sociedade.

Mas, se para o indivíduo não existe bem nem mal, a consciência - parecia a Philip - perde o seu poder. E foi com um grito de triunfo que, segurando a velhaca, expulsou-a de si. Isso, entretanto, não o aproximou do sentido da vida. Por que o mundo fora criado e para que nasciam os homens? Essa questão continuava tão insolúvel como sempre. Seguramente devia haver alguma razão. Pensou em Cronshaw e na sua parábola do tapete persa. Ele a oferecia como uma solução do enigma, declarando misteriosamente  que a resposta só tinha valor quando encontrada por quem a procurasse.

- Que diabo queria dizer? - murmurou sorrindo.

E assim, no último dia de setembro, desejoso de por em prática todas essas novas teorias sobre a vida, Philip, com 1.600 libras e o seu pé equino, tornou a partir para Londres a fim de iniciar a vida pela terceira vez. MAUGHAM. W. Somerset. Servidão Humana. Abril. 1971. Páginas 240 - 243. Capítulo 53.

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Textos de literatura. Aulas de filosofia. I. Servidão Humana. Somerset Maugham.

Vou iniciar uma nova empreitada. Ao ler Servidão Humana, com toda a certeza, um grande romance de formação, separei dois textos, que seriam perfeitas aulas de filosofia. Não vou fazer um trabalho sistemático, de busca de textos de literatura para aulas de filosofia, mas ao longo de minhas leituras, deixo-os em separado, para fazer posts sobre eles. Vou fazer isso ao longo de novas leituras, bem como retomar outras.

Hoje inicio com o capítulo XXIII do livro de William Somerset Maugham, Servidão Humana. Neste capítulo vamos encontrar o jovem PHILIP, com algo em torno de 18 anos, saindo de escolas religiosas da Inglaterra, onde, órfão de pai e de mãe, tivera uma educação religiosa extremamente severa sob a tutela de um tio seu, que era pastor. Ele vai para a Alemanha, para Heidelberg, a fim de estudar alemão. Lá entre em contato com outros jovens, com diferentes visões de mundo. Sua mente, movida por certezas absolutas, provindas do Absoluto, se abrem para a dúvida. Aí encontraremos um novo ser humano em formação. Rompe então com a formação familiar e se defronta com as interrogações fundamentais da vida.

Servidão Humana.  W. Somerset Maugham. Abril. 1971.

XXXXXXX

 CAPÍTULO XXIII.

Nem Hayward nem Weeks imaginavam que essas conversas em que se entretinham durante as noites de ócio eram depois esmiuçadas pelo cérebro ativo de Philip. Nunca lhe ocorrera, antes, ser a religião um assunto que comportasse discussão. Para ele a religião se resumia a Igreja Anglicana, e não acreditar nos seus ensinamentos era um sinal de capricho e teimosa que não podia deixar de receber o merecido castigo, neste mundo ou no outro. Alimentava, contudo, certas dúvidas quanto ao gênero de castigo que sofreriam os incrédulos. Podia ser que um juiz misericordioso, reservando as chamas do inferno para os pagãos - maometanos, budistas, etc. -, poupasse, no entanto, os dissidentes e os católicos romanos (embora viessem a sofrer horrível humilhação, mais tarde, ao reconhecerem o erro em que haviam caído!); era também possível que Ele se mostrasse condescendente para com aqueles que não tivessem tido ensejo de conhecer a verdade - se bem que o número de tais criaturas devesse ser muito reduzido, dado as atividades missionárias. Se tivessem tido esse ensejo, porém, e o tivessem desprezado - categoria essa em que estavam incluídos, é claro, os católicos romanos e os dissidentes -, o castigo seria inevitável e bem merecido. Era evidente que o incrédulo encontrava-se num estado perigoso. Talvez não lho houvessem dito ípsis verbis, mas o certo é que deram a Philip a impressão de que só os adeptos da Igreja Anglicana podiam aspirar a felicidade eterna.

Uma das afirmações categóricas que lhe fizeram foi a de que o descrente é um homem perverso e viciado. Weeks, entretanto, embora não depositasse fé em nada do que Philip acreditava, levava uma vida de pureza cristã. Philip raras vezes encontrara quem se mostrasse bondoso para com ele, e por isso o comovia o desejo que tinha o americano de auxiliá-lo. Certa vez, durante um resfriado que o prendeu na cama por mais de três dias, Weeks o tratou como o faria uma mãe. Não havia nele vício nem maldade: havia apenas sinceridade e amor ao próximo. Era possível, por conseguinte, ser-se virtuoso e descrente ao mesmo tempo.

Haviam dado a entender a Philip, igualmente, que as pessoas se faziam adeptas de outros credos apenas por obstinação ou interesse pessoal. Intimamente, todas tinham consciência da falsidade deles, procurando por todos os meios iludir os outros. Visando aperfeiçoar o seu alemão, Philip formara o hábito de assistir todos os domingos ao ofício luterano, mas com a chegada de Hayward passou a acompanhá-lo à missa. Observou que, enquanto a Igreja protestante se apresentava quase vazia e a congregação parecia desatenta, o templo dos jesuítas estava sempre apinhado de fiéis, que se entregavam com todo fervor às suas orações. Não tinham aparência de hipócritas. Esse contraste o surpreendeu bastante, pois sabia que os luteranos, cuja fé se assemelhava mais à da Igreja Anglicana, estavam, por essa razão, mais próximos da verdade que os católicos romanos. A maioria dos homens - a congregação era quase totalmente masculina - compunha-se de alemães do sul, e Philip pensava consigo que, se tivesse nascido no sul da Alemanha, seria naturalmente católico romano. Por outro lado, tanto podia ter nascido numa nação católica, como na Inglaterra. Na própria Inglaterra, tanto podia pertencer a uma família wesleyana, batista ou metodista, como à sua que felizmente professava a religião oficial. Sentia-se atemorizado ante o perigo que correra. Philip fizera amizade com o chinês que se sentava à mesa com ele, duas vezes por dia. Chamava-se Sung. Mostrava-se sempre sorridente, afável e polido. Era estranho que estivesse condenado a arder no inferno pelo simples fato de ser chinês. Mas se a salvação fosse possível independentemente da fé que o homem alimentasse, não haveria nenhuma vantagem especial em pertencer à Igreja Anglicana.

Cheio de perplexidade, Philip resolveu sondar Weeks. Teve de usar de cautela, pois era muito sensível ao ridículo e o humor acre com que o americano se referia à Igreja da Inglaterra o desconcertava sobremodo. Weeks confundiu-o ainda mais. Fez Philip reconhecer que aqueles alemães da Igreja dos jesuítas estavam tão firmemente convencidos da verdade do Catolicismo Romano quanto ele estava com relação à Igreja Anglicana, e daí levou-o a admitir que os maometanos e budistas estavam também convencidos da verdade de suas respectivas religiões. Dir-se-ia que a consciência da verdade nada significava: todos tinham a certeza de estarem com a razão. Weeks não pretendia destruir a crença do rapaz, mas sentia grande interesse pela religião e considerava-a um assunto absorvente. Descrevera acertadamente o seu ponto de vista quando afirmara não acreditar em nada daquilo que constituía a crença dos outros. De uma feita Philip fez-lhe uma pergunta que ouvira de seu tio, no vicariato, por ocasião de uma conversa sobre certa obra moderadamente racionalista que andava provocando discussões pelos jornais.

- Mas por que razão haverias tu de estar com a verdade, enquanto estariam erradas criaturas como Santo Anselmo e Santo Agostinho?

- Queres dizer que eles foram homens inteligentes e cultos, ao passo que alimentas grandes dúvidas quanto aos predicados intelectuais, não é assim?

- É - respondeu Philip num tom de incerteza, pois pela feita daquela forma sua pergunta pareia impertinente.

- Santo Agostinho acreditava que a terra fosse chata e que o sol girasse em torno dela.

- Não vejo o que isso possa provar.

- Ora, prova que cada um tem as crenças de sua geração. Teus santos viveram numa era de fé, quando era praticamente impossível deixar de acreditar em coisas que hoje nos parecem positivamente inacreditáveis.

- Então, como sabes que agora estamos com a verdade?

- Mas eu não  o sei!

Philip refletiu um instante e volveu:

- Não vejo razão para que as coisas em que acreditamos presentemente não sejam tão errôneas como aquelas em que acreditavam no passado.

- Nem eu.

- Então como podes acreditar no que quer que seja?

- Não sei dizer.

Philip perguntou a Weeks o que achava da religião de Hayward.

- Os homens sempre imaginaram os deuses segundo sua própria imagem - disse Weeks. - Hayward acreditava no pitoresco.

Após pequena pausa, Philip observou:

- Afinal, não compreendo por que se deva acreditar em Deus.

Mal as palavras lhe haviam saído da boca, concluiu que não mais tinha fé. Perdeu o fôlego de repente, como se houvesse mergulhado em água fria. Voltou-se para Weeks, com olhos espantados, e de súbito teve medo. Na primeira oportunidade despediu-se do amigo. Queria estar sozinho. Era a coisa mais extraordinária que já lhe tinha acontecido. Tentou refletir; aquilo era emocionante, uma vez que o caso parecia interessar toda sua vida (julgava que qualquer decisão nesse terreno alteraria profundamente o curso de sua existência) e um erro poderia conduzir à condenação eterna. Quanto mais refletia, porém, mais reforçava a sua convicção, e embora durante as semanas que se seguiram devorasse livros de tendências céticas, não o fez senão para confirmar aquilo que sentia instintivamente. O fato é que cessara de acreditar não por esta ou aquela razão, mas porque lhe faltava o temperamento religioso. A fé lhe fora incutida do exterior. Era uma questão de ambiente e de exemplo. Novo ambiente e novo exemplo proporcionavam-lhe, agora, a oportunidade de encontrar-se a si próprio. Descartava-se facilmente da crena que alimentara em criança, como uma capa de que não mais necessitasse. A princípio a vida lhe pareceu estranha e solitária sem a fé que, embora nunca o tivesse percebido, representava um apoio infalível. Sentia-se como um homem que, acostumado a andar apoiado ao bastão, fosse de repente compelido a dispensá-lo. Parecia, realmente, que os dias eram mais frios e as noites mais tristonhas. A novidade da sensação animava-o, entretanto, pareia transformar-lhe a vida numa aventura emocionante. Em pouco tempo o bastão que jogara longe e a capa que lhe caíra dos ombros assemelhava-se a um fardo insuportável de que tivesse sido aliviado. As práticas religiosas que durante tantos anos lhe foram impostas afiguravam-se-lhe partes integrantes da própria religião. Lembrou-se das coletas e epístolas que fora obrigado a decorar, e dos prolongados ofícios na catedral, a que assistia sentado, com as pernas e os braços a ansiar por movimento. Lembrou-se das caminhadas à noite, através de estradas lamacentas, em demanda da matriz da Blackstable, austero e desolado edifício. Oh! como aquilo tudo entusiasmava! Seu coração saltava de alegria ao ver que agora estava livre daquelas maçadas.

Admirava-se de se ter desvencilhado da crença com tanta facilidade, e, ignorando que tudo tivera origem nos processos sutis de sua natureza íntima, atribuía à sua própria faculdade de raciocínio a convicção inabalável a que chegara. Experimentava grande contentamento. Com a falta de simpatia que a mocidade revela por atitudes diferentes da sua, Philip desprezava Weeks e Hayward por se contentarem com a vaga emoção a que davam o nome de Deus, sem coragem de darem o passo final que a ele parecia tão simples. Certo dia subiu, sozinho, a uma colina para descortinar uma vida que, não sabia por que razão, sempre o inundava de sensações eufóricas. Era então outono, mas os dias ainda se apresentavam quase sempre sem nuvens e o céu parecia com mais esplendor. Dir-se-ia que a natureza procurava aumentar a magnificência dos últimos dias de bom tempo. Olhou para a planície, lá embaixo, reverberando ao sol numa extensão infinita; a distância viam-se os telhados de Mannheim e muito além os contornos mal delineados de Worms. Aqui e ali o Reno cintilava num reflexo penetrante. Toda aquela vastidão estava impregnada de pura luz dourada. Com o coração a bater de alegria, Philip lembrou-se de como Satanás mostrara a Jesus, do alto de um monte, os reinos da terra. Inebriado pela beleza do cenário, parecia-lhe que o mundo inteiro se estendia diante dele; estava ansioso por descer e desfrutá-lo. Sentia-se livre de temores degradantes, livre de preconceitos. Poderia seguir o seu caminho sem o insuportável medo aos fogos do inferno. De súbito verificou haver-se também descartado daquela responsabilidade que transformava todas as ações de sua vida em questões de premente importância. Respirava mais livremente numa atmosfera menos carregada. Só a si mesmo tinha que dar satisfação do que fizesse. Liberdade! Era afinal, senhor de si próprio. Obedecendo ao velho hábito, agradeceu inconscientemente a Deus por não mais acreditar nele.

Embriagado de orgulho ante sua inteligência e destemor, Philip iniciou nova vida cheia de entusiasmo. Mas a perda da fé ocasionou, em sua conduta, uma mudança menor do que esperava. Embora tivesse repelido os dogmas cristãos, nunca lhe ocorreu criticar a ética cristã;  aceitava as virtudes cristãs e na verdade achava louvável praticá-las desinteressadamente, sem aspirar a recompensa ou castigo. Na casa de Frau Erlin havia pouca oportunidade para demonstrações de heroísmo, mas Philip tornou-se um pouco mais verídico do que costumava ser, mostrando-se, por outro lado, atencioso com as senhoras idosas e insípidas que às vezes travavam conversa com ele. Desprezava agora os adjetivos violentos e as imprecações eufemísticas que caracterizavam o idioma inglês e que ele cultivara antes como símbolo de masculinidade.

Após resolver satisfatoriamente a questão, procurou apagá-la da memória, o que não foi muito fácil, entretanto. Não podia esquivar-se às saudades nem sufocar as apreensões que por veze o atormentavam. Era tão jovem, e tinha tão poucos amigos, que a imortalidade não lhe parecia muito atraente, e por isso deixou também de acreditar nela. Havia, porém, uma coisa que o martirizava. Dizia consigo mesmo não estar sendo razoável e procurava afastar aquele estado de alma olhando-o pelo lado cômico. Mas as lágrimas rolavam-lhe dos olhos ao pensar que nunca mas veria sua linda mãe, cujo amor por ele, após a sua morte, se tornava mais precioso à medida que os anos corriam. Às vezes, como se sofresse inconscientemente a influência de inúmeros antepassados devotos, deixava-se tomar de grande pânico, receoso de que tudo fosse, afinal, verdadeiro e existisse mesmo lá em cima, por trás do céu azul, um Deus ciumento que punisse os ateus com as chamas eternas. Nessas ocasiões a razão não lhe vinha em socorro. Imaginava a angústia de um tormento físico interminável, sentia-se transido de medo e o suor brotava-lhe por todos os poros. Por fim, desesperado, exclamava consigo mesmo:

- Afinal de contas, não tenho culpa alguma. Não posso obrigar-me a crer. Se existe mesmo um Deus que queira punir-me pela falta de fé, paciência. Que hei de fazer? W. SOMERSET MAUGHAM. Servidão Humana. São Paulo. Abril Cultural. 1971. Capítulo XXIII. Páginas 106 - 111.