quinta-feira, 3 de junho de 2021

Textos de literatura. Aulas de filosofia. I. Servidão Humana. Somerset Maugham.

Vou iniciar uma nova empreitada. Ao ler Servidão Humana, com toda a certeza, um grande romance de formação, separei dois textos, que seriam perfeitas aulas de filosofia. Não vou fazer um trabalho sistemático, de busca de textos de literatura para aulas de filosofia, mas ao longo de minhas leituras, deixo-os em separado, para fazer posts sobre eles. Vou fazer isso ao longo de novas leituras, bem como retomar outras.

Hoje inicio com o capítulo XXIII do livro de William Somerset Maugham, Servidão Humana. Neste capítulo vamos encontrar o jovem PHILIP, com algo em torno de 18 anos, saindo de escolas religiosas da Inglaterra, onde, órfão de pai e de mãe, tivera uma educação religiosa extremamente severa sob a tutela de um tio seu, que era pastor. Ele vai para a Alemanha, para Heidelberg, a fim de estudar alemão. Lá entre em contato com outros jovens, com diferentes visões de mundo. Sua mente, movida por certezas absolutas, provindas do Absoluto, se abrem para a dúvida. Aí encontraremos um novo ser humano em formação. Rompe então com a formação familiar e se defronta com as interrogações fundamentais da vida.

Servidão Humana.  W. Somerset Maugham. Abril. 1971.

XXXXXXX

 CAPÍTULO XXIII.

Nem Hayward nem Weeks imaginavam que essas conversas em que se entretinham durante as noites de ócio eram depois esmiuçadas pelo cérebro ativo de Philip. Nunca lhe ocorrera, antes, ser a religião um assunto que comportasse discussão. Para ele a religião se resumia a Igreja Anglicana, e não acreditar nos seus ensinamentos era um sinal de capricho e teimosa que não podia deixar de receber o merecido castigo, neste mundo ou no outro. Alimentava, contudo, certas dúvidas quanto ao gênero de castigo que sofreriam os incrédulos. Podia ser que um juiz misericordioso, reservando as chamas do inferno para os pagãos - maometanos, budistas, etc. -, poupasse, no entanto, os dissidentes e os católicos romanos (embora viessem a sofrer horrível humilhação, mais tarde, ao reconhecerem o erro em que haviam caído!); era também possível que Ele se mostrasse condescendente para com aqueles que não tivessem tido ensejo de conhecer a verdade - se bem que o número de tais criaturas devesse ser muito reduzido, dado as atividades missionárias. Se tivessem tido esse ensejo, porém, e o tivessem desprezado - categoria essa em que estavam incluídos, é claro, os católicos romanos e os dissidentes -, o castigo seria inevitável e bem merecido. Era evidente que o incrédulo encontrava-se num estado perigoso. Talvez não lho houvessem dito ípsis verbis, mas o certo é que deram a Philip a impressão de que só os adeptos da Igreja Anglicana podiam aspirar a felicidade eterna.

Uma das afirmações categóricas que lhe fizeram foi a de que o descrente é um homem perverso e viciado. Weeks, entretanto, embora não depositasse fé em nada do que Philip acreditava, levava uma vida de pureza cristã. Philip raras vezes encontrara quem se mostrasse bondoso para com ele, e por isso o comovia o desejo que tinha o americano de auxiliá-lo. Certa vez, durante um resfriado que o prendeu na cama por mais de três dias, Weeks o tratou como o faria uma mãe. Não havia nele vício nem maldade: havia apenas sinceridade e amor ao próximo. Era possível, por conseguinte, ser-se virtuoso e descrente ao mesmo tempo.

Haviam dado a entender a Philip, igualmente, que as pessoas se faziam adeptas de outros credos apenas por obstinação ou interesse pessoal. Intimamente, todas tinham consciência da falsidade deles, procurando por todos os meios iludir os outros. Visando aperfeiçoar o seu alemão, Philip formara o hábito de assistir todos os domingos ao ofício luterano, mas com a chegada de Hayward passou a acompanhá-lo à missa. Observou que, enquanto a Igreja protestante se apresentava quase vazia e a congregação parecia desatenta, o templo dos jesuítas estava sempre apinhado de fiéis, que se entregavam com todo fervor às suas orações. Não tinham aparência de hipócritas. Esse contraste o surpreendeu bastante, pois sabia que os luteranos, cuja fé se assemelhava mais à da Igreja Anglicana, estavam, por essa razão, mais próximos da verdade que os católicos romanos. A maioria dos homens - a congregação era quase totalmente masculina - compunha-se de alemães do sul, e Philip pensava consigo que, se tivesse nascido no sul da Alemanha, seria naturalmente católico romano. Por outro lado, tanto podia ter nascido numa nação católica, como na Inglaterra. Na própria Inglaterra, tanto podia pertencer a uma família wesleyana, batista ou metodista, como à sua que felizmente professava a religião oficial. Sentia-se atemorizado ante o perigo que correra. Philip fizera amizade com o chinês que se sentava à mesa com ele, duas vezes por dia. Chamava-se Sung. Mostrava-se sempre sorridente, afável e polido. Era estranho que estivesse condenado a arder no inferno pelo simples fato de ser chinês. Mas se a salvação fosse possível independentemente da fé que o homem alimentasse, não haveria nenhuma vantagem especial em pertencer à Igreja Anglicana.

Cheio de perplexidade, Philip resolveu sondar Weeks. Teve de usar de cautela, pois era muito sensível ao ridículo e o humor acre com que o americano se referia à Igreja da Inglaterra o desconcertava sobremodo. Weeks confundiu-o ainda mais. Fez Philip reconhecer que aqueles alemães da Igreja dos jesuítas estavam tão firmemente convencidos da verdade do Catolicismo Romano quanto ele estava com relação à Igreja Anglicana, e daí levou-o a admitir que os maometanos e budistas estavam também convencidos da verdade de suas respectivas religiões. Dir-se-ia que a consciência da verdade nada significava: todos tinham a certeza de estarem com a razão. Weeks não pretendia destruir a crença do rapaz, mas sentia grande interesse pela religião e considerava-a um assunto absorvente. Descrevera acertadamente o seu ponto de vista quando afirmara não acreditar em nada daquilo que constituía a crença dos outros. De uma feita Philip fez-lhe uma pergunta que ouvira de seu tio, no vicariato, por ocasião de uma conversa sobre certa obra moderadamente racionalista que andava provocando discussões pelos jornais.

- Mas por que razão haverias tu de estar com a verdade, enquanto estariam erradas criaturas como Santo Anselmo e Santo Agostinho?

- Queres dizer que eles foram homens inteligentes e cultos, ao passo que alimentas grandes dúvidas quanto aos predicados intelectuais, não é assim?

- É - respondeu Philip num tom de incerteza, pois pela feita daquela forma sua pergunta pareia impertinente.

- Santo Agostinho acreditava que a terra fosse chata e que o sol girasse em torno dela.

- Não vejo o que isso possa provar.

- Ora, prova que cada um tem as crenças de sua geração. Teus santos viveram numa era de fé, quando era praticamente impossível deixar de acreditar em coisas que hoje nos parecem positivamente inacreditáveis.

- Então, como sabes que agora estamos com a verdade?

- Mas eu não  o sei!

Philip refletiu um instante e volveu:

- Não vejo razão para que as coisas em que acreditamos presentemente não sejam tão errôneas como aquelas em que acreditavam no passado.

- Nem eu.

- Então como podes acreditar no que quer que seja?

- Não sei dizer.

Philip perguntou a Weeks o que achava da religião de Hayward.

- Os homens sempre imaginaram os deuses segundo sua própria imagem - disse Weeks. - Hayward acreditava no pitoresco.

Após pequena pausa, Philip observou:

- Afinal, não compreendo por que se deva acreditar em Deus.

Mal as palavras lhe haviam saído da boca, concluiu que não mais tinha fé. Perdeu o fôlego de repente, como se houvesse mergulhado em água fria. Voltou-se para Weeks, com olhos espantados, e de súbito teve medo. Na primeira oportunidade despediu-se do amigo. Queria estar sozinho. Era a coisa mais extraordinária que já lhe tinha acontecido. Tentou refletir; aquilo era emocionante, uma vez que o caso parecia interessar toda sua vida (julgava que qualquer decisão nesse terreno alteraria profundamente o curso de sua existência) e um erro poderia conduzir à condenação eterna. Quanto mais refletia, porém, mais reforçava a sua convicção, e embora durante as semanas que se seguiram devorasse livros de tendências céticas, não o fez senão para confirmar aquilo que sentia instintivamente. O fato é que cessara de acreditar não por esta ou aquela razão, mas porque lhe faltava o temperamento religioso. A fé lhe fora incutida do exterior. Era uma questão de ambiente e de exemplo. Novo ambiente e novo exemplo proporcionavam-lhe, agora, a oportunidade de encontrar-se a si próprio. Descartava-se facilmente da crena que alimentara em criança, como uma capa de que não mais necessitasse. A princípio a vida lhe pareceu estranha e solitária sem a fé que, embora nunca o tivesse percebido, representava um apoio infalível. Sentia-se como um homem que, acostumado a andar apoiado ao bastão, fosse de repente compelido a dispensá-lo. Parecia, realmente, que os dias eram mais frios e as noites mais tristonhas. A novidade da sensação animava-o, entretanto, pareia transformar-lhe a vida numa aventura emocionante. Em pouco tempo o bastão que jogara longe e a capa que lhe caíra dos ombros assemelhava-se a um fardo insuportável de que tivesse sido aliviado. As práticas religiosas que durante tantos anos lhe foram impostas afiguravam-se-lhe partes integrantes da própria religião. Lembrou-se das coletas e epístolas que fora obrigado a decorar, e dos prolongados ofícios na catedral, a que assistia sentado, com as pernas e os braços a ansiar por movimento. Lembrou-se das caminhadas à noite, através de estradas lamacentas, em demanda da matriz da Blackstable, austero e desolado edifício. Oh! como aquilo tudo entusiasmava! Seu coração saltava de alegria ao ver que agora estava livre daquelas maçadas.

Admirava-se de se ter desvencilhado da crença com tanta facilidade, e, ignorando que tudo tivera origem nos processos sutis de sua natureza íntima, atribuía à sua própria faculdade de raciocínio a convicção inabalável a que chegara. Experimentava grande contentamento. Com a falta de simpatia que a mocidade revela por atitudes diferentes da sua, Philip desprezava Weeks e Hayward por se contentarem com a vaga emoção a que davam o nome de Deus, sem coragem de darem o passo final que a ele parecia tão simples. Certo dia subiu, sozinho, a uma colina para descortinar uma vida que, não sabia por que razão, sempre o inundava de sensações eufóricas. Era então outono, mas os dias ainda se apresentavam quase sempre sem nuvens e o céu parecia com mais esplendor. Dir-se-ia que a natureza procurava aumentar a magnificência dos últimos dias de bom tempo. Olhou para a planície, lá embaixo, reverberando ao sol numa extensão infinita; a distância viam-se os telhados de Mannheim e muito além os contornos mal delineados de Worms. Aqui e ali o Reno cintilava num reflexo penetrante. Toda aquela vastidão estava impregnada de pura luz dourada. Com o coração a bater de alegria, Philip lembrou-se de como Satanás mostrara a Jesus, do alto de um monte, os reinos da terra. Inebriado pela beleza do cenário, parecia-lhe que o mundo inteiro se estendia diante dele; estava ansioso por descer e desfrutá-lo. Sentia-se livre de temores degradantes, livre de preconceitos. Poderia seguir o seu caminho sem o insuportável medo aos fogos do inferno. De súbito verificou haver-se também descartado daquela responsabilidade que transformava todas as ações de sua vida em questões de premente importância. Respirava mais livremente numa atmosfera menos carregada. Só a si mesmo tinha que dar satisfação do que fizesse. Liberdade! Era afinal, senhor de si próprio. Obedecendo ao velho hábito, agradeceu inconscientemente a Deus por não mais acreditar nele.

Embriagado de orgulho ante sua inteligência e destemor, Philip iniciou nova vida cheia de entusiasmo. Mas a perda da fé ocasionou, em sua conduta, uma mudança menor do que esperava. Embora tivesse repelido os dogmas cristãos, nunca lhe ocorreu criticar a ética cristã;  aceitava as virtudes cristãs e na verdade achava louvável praticá-las desinteressadamente, sem aspirar a recompensa ou castigo. Na casa de Frau Erlin havia pouca oportunidade para demonstrações de heroísmo, mas Philip tornou-se um pouco mais verídico do que costumava ser, mostrando-se, por outro lado, atencioso com as senhoras idosas e insípidas que às vezes travavam conversa com ele. Desprezava agora os adjetivos violentos e as imprecações eufemísticas que caracterizavam o idioma inglês e que ele cultivara antes como símbolo de masculinidade.

Após resolver satisfatoriamente a questão, procurou apagá-la da memória, o que não foi muito fácil, entretanto. Não podia esquivar-se às saudades nem sufocar as apreensões que por veze o atormentavam. Era tão jovem, e tinha tão poucos amigos, que a imortalidade não lhe parecia muito atraente, e por isso deixou também de acreditar nela. Havia, porém, uma coisa que o martirizava. Dizia consigo mesmo não estar sendo razoável e procurava afastar aquele estado de alma olhando-o pelo lado cômico. Mas as lágrimas rolavam-lhe dos olhos ao pensar que nunca mas veria sua linda mãe, cujo amor por ele, após a sua morte, se tornava mais precioso à medida que os anos corriam. Às vezes, como se sofresse inconscientemente a influência de inúmeros antepassados devotos, deixava-se tomar de grande pânico, receoso de que tudo fosse, afinal, verdadeiro e existisse mesmo lá em cima, por trás do céu azul, um Deus ciumento que punisse os ateus com as chamas eternas. Nessas ocasiões a razão não lhe vinha em socorro. Imaginava a angústia de um tormento físico interminável, sentia-se transido de medo e o suor brotava-lhe por todos os poros. Por fim, desesperado, exclamava consigo mesmo:

- Afinal de contas, não tenho culpa alguma. Não posso obrigar-me a crer. Se existe mesmo um Deus que queira punir-me pela falta de fé, paciência. Que hei de fazer? W. SOMERSET MAUGHAM. Servidão Humana. São Paulo. Abril Cultural. 1971. Capítulo XXIII. Páginas 106 - 111.


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