sábado, 27 de fevereiro de 2021

A República das milícias. Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. Bruno Paes Manso.

Normalmente quando converso com o deputado Tadeu Veneri, trocamos ideias sobre livros que estamos lendo. Desta vez não foi diferente. Eu falava para ele do livro do Rubens Casara, Bolsonaro - o mito e o sintoma e ele me falou de A República das milícias - dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, de Bruno Paes Manso. Já conhecia o autor por outro livro seu, sobre a formação e ascensão do PCC, A Guerra - A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, escrito em parceria com Camila Nunes Dias. Deixo o link dos dois livros. Primeiro o de A Guerra - http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/06/a-guerra-ascensao-do-pcc-e-o-mundo-do.html e em segundo, o fantástico livro do Rubens Casara. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/02/bolsonaro-o-mito-e-o-sintoma-rubens.html. Na troca de leituras nunca se tem a perder.

A República das milícias. Bruno Paes Manso. todavia. 2020.

O livro de Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da violência da USP, é estarrecedor. Poucas vezes o título e o subtítulo de um livro conseguem expressar tão bem a síntese de uma obra: A República das milícias - dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. Na contracapa do livro temos dois depoimentos imperdíveis, junto com a recomendação de Fernanda Torres, de que a leitura do livro se constitui numa obrigação. Os depoimentos são de Luiz Eduardo Soares, autor de Meu casaco de general e de Paulo Lins, autor de A Cidade de Deus. Começamos com o ex-Secretário de Segurança do Rio de Janeiro:

"Esta obra rouba a inocência à boa consciência nacional. Ninguém mais poderá dizer que não sabia. A história da Nova República (após a Constituição de 1988) terá de ser contada de outro modo depois deste livro". Uma verdade. Já o autor de A Cidade de Deus, um dos palcos do livro de Manso, nos diz: "Com uma pesquisa primorosa, Bruno Paes Manso nos revela como o crime organizado chegou aos Poderes Legislativo e Executivo, tornando o Brasil um dos países mais violentos do mundo". Nada mais do que uma triste verdade.

Voltamos ao título e subtítulo, por outras palavras: Como as milícias, representadas por Bolsonaro, chegaram ao Poder. Uma longa história de violência. Tudo começou na ditadura militar, com a ala extremada das Forças Armadas, inconformada com a abertura política. A justificativa era a caça aos comunistas, para eles verdadeiros terroristas. Contra eles, toda a violência se justificaria. Violência, tortura e mortes seriam justificadas em nome da manutenção da ordem. Isso fez surgir os chamados esquadrões da morte, que rapidamente migraram para flagrar outros inimigos, que não os comunistas, mas todos os que perturbavam a ordem das "pessoas de bem". O livro se desenvolve, numa sequência lógica irretocável, ao longo de oito capítulos e uma conclusão, divididos entre as 302 páginas do livro. Eis os capítulos:

1. Apenas um miliciano; 2. Os elos entre o passado e o futuro; 3. As origens em Rio das Pedras e na Liga da Justiça; 4. Fuzis, polícia e bicho; 5. Facções e a guerras dos tronos; 6. Marielle e Marcelo; 7. As milícias 5G e o novo inimigo em Comum; 8. Cruz, Ustra, Olavo e a ascensão do capitão - e a conclusão sob o nome de Ubantu, a filosofia que inspirou Nelson Mandela e o bispo Desmond Tutu.

O primeiro capítulo é marcado por uma entrevista com um miliciano, que expõe toda a filosofia que inspira estes grupos de contravenção em nome da manutenção da ordem, da justificativa da violência para impor a ordem. Fala do nascimento das milícias, com a junção de alas ressentidas do exército com as bandas podres das polícias militares, de suas alianças no combate ao Comando Vermelho.  Também mostra as formas de arrecadação que dão sustentação à organização. Fala também da intervenção das Forças Armadas no Rio de Janeiro. O segundo capítulo é dedicado à formação das milícias na cidade do Rio de Janeiro, a partir da expansão da cidade para Jacarepaguá e Cidade de Deus. Mostra ainda os principais envolvidos, dando destaque para o clã familiar de Bolsonaro. A comoção pela morte de Tim Lopes cria um clima favorável à existência dos justiceiros.

No terceiro capítulo entra em cena a organização da entidade em torno de Rio das Pedras e da Liga da Justiça, como os embriões e cernes da organização. Mostra as formas da organização, da arrecadação e da sua "aliança" com o povo para lhe oferecer proteção. Invasão de áreas, transporte clandestino, construção de lajes, gatonet, venda de gás, achaques e subornos são as principais formas de arrecadação. Tudo em nome da autodefesa das comunidades, contra o poder dos traficantes. No quarto capítulo é mostrada a sua constituição com a união de militares ressentidos com os policiais da banda podre e o jogo do bicho e também com os traficantes não pertencentes ao Comando Vermelho. O pesado mercado de armas também entra em cena. É nesse tempo que nasce o bordão "Bandido bom é bandido morto", nem que seja morto por outro bandido.

No quinto capítulo são mostradas as principais organizações criminosas, como o Comando Vermelho, a ADA e o Terceiro Comando. Ao contrário de São Paulo, onde o PCC se tornou hegemônico no mundo do crime, no Rio de Janeiro nenhuma organização conseguiu se impor. Em meio a essas disputas surge a organização das milícias em aliança com os demais grupos, mais o jogo do bicho,. Todos contra o Comando Vermelho, o que é mostrado no sétimo capítulo. Nesse sétimo capítulo também são mostrados os traficantes evangélicos e os 'Bondes de Jesus', uma verdadeira e inimaginável história de horrores. Também é mostrada a relação com os governadores e as suas políticas de Segurança Pública. Voltando um pouco, o sexto capítulo é dedicado a Marielle e Marcelo, e por extensão, ao PSOL e Marcelo Freixo, em particular. Este sexto capítulo termina com as eleições de 2018 e a ascensão de Bolsonaro, Witzel, Flávio e, o hoje em evidência, Daniel Silveira.

O oitavo capítulo, creio que foi o motivo maior do comentário de Luiz Eduardo Soares, de que ninguém mais poderia se confessar inocente. São devassadas as vidas do entorno de Jair Bolsonaro, as bases de sua formação e o seu sujo e antidemocrático projeto político. No seu entorno estão o general Newton Cruz, Brilhante Ustra, Olavo de Carvalho e o general Mourão, uma síntese de Ustra e Olavo. Bem pior do que se imagina. 

De Ubantu tomo uma frase, entre as mais significativas: "Bolsonaro venceu a eleição em 2018 porque parte dos brasileiros foi seduzida pela ideia da violência redentora. Diante da crise econômica e da descrença na política, os eleitores escolheram um justiceiro para governá-los. Como se o país decidisse abandonar suas instituições democráticas para se tornar uma enorme Rio das Pedras gerida por princípios milicianos.

Sem dúvida, há espaço para aprender e amadurecer depois do surto bolsonarista. A tristeza e a depressão chegaram porque o Brasil prometido pela Nova República não aconteceu. Bolsonaro foi o sintoma dessa desesperança". Que sintoma! O momento final do livro é uma homenagem a Marielle: 'Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe'? "Bolsonaro veio com a proposta de acirrar a guerra. O surto que levou os eleitores a optar por essa via já faz parte da história brasileira, mas, se tudo der certo, será passageiro. Permanece a mensagem deixada por Marielle, a apontar o único caminho possível".

Concluo com a convocação de Fernanda Torres: "A República das milícias é leitura obrigatória" e a citação de uma frase de Leonardo Boff: "Se os pobres deste país soubessem o que estão preparando para eles, não haveria rua onde coubesse tanta gente para protestar". Este livro faz saber o que estão preparando.


 

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Admirável mundo novo. Aldous Huxley.

Quem lê Contraponto, de Aldous Huxley, também lê, do mesmo autor, Admirável Mundo Novo. Huxley é um dos mais refinados e eruditos escritores que a literatura universal conheceu. Há muito que eu pretendia lê-lo, mas sempre adiava o projeto. Desde os tempos da leitura do Érico Veríssimo eu me interessava no Contraponto, em virtude da tradução ser do próprio Veríssimo. Deixo a resenha. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/01/contraponto-aldous-huxley.html. Admirável mundo novo possivelmente seja a sua obra mais conhecida e famosa.

Admirável mundo novo. Biblioteca azul da editora Globo. Tradução de Vidal de Oliveira.

O livro é famoso e todos sabem que fala sobre a sociedade do futuro e sobre condicionamentos. Em geral o seu conhecimento para por aí. Não é leitura fácil. É obra para leitores. Descreve sim, a sociedade do futuro, mais precisamente, a sociedade a partir do ano de 632, depois de Ford. Ford, com certeza, é uma das inspirações maiores da obra, a linha de produção em série de seu Ford T. Creio ser fácil imaginar a associação dessa ideia para uma transposição para os humanos. É disso que se ocupam os primeiros capítulos, o centro de incubação e condicionamentos, a sala de decantação, aceitações por repetição à exaustão, uso de psicóticos para a felicidade, o onipresente soma.

O livro foi escrito no ano de 1931. Contraponto é anterior, de 1928. Que tempos! Um mundo entre duas guerras, a grande debacle econômica e a ascensão do nazi fascismo no seu entorno europeu. Vivia, nessa época, em Londres. Mais tarde irá morar nos Estados Unidos. Lembrando que O mal estar na civilização, de Freud, é de 1930. É o clima. Um mundo de automações, de mecanização, de massificação e padronização de comportamentos, que começam a ser ditados pelo famoso modo de viver dos Estados Unidos.

Para a presente resenha, apresento primeiramente três parágrafos da orelha da capa para depois apresentar alguns trechos que julguei mais relevantes para a compreensão do livro. Vamos à contracapa: "A terra agora se divide em dez grandes regiões administrativas. A população de dois bilhões de seres humanos é formada por castas com traços distintivos manipulados pela engenharia genética: nos laboratórios são definidos os pouco dotados, destinados aos rigores do trabalho braçal, e também os que crescem para comandar. Não há espaço para a surpresa, para o imprevisto. O slogan 'comunidade, identidade e estabilidade' sustenta a trama do tecido social. Estamos no ano de 632 depois de Ford - aquele da linha de produção de automóveis -, quando o amor é proibido e o sexo, estimulado.

Tais ingredientes levaram Admirável mundo novo a figurar ao lado de 1984, de George Orwell, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, como uma das principais obras antiutópicas do século XX, em que um futuro sombrio aguarda a humanidade. Alguns ainda veem a ficção de Huxley, esse inglês refinado e cultíssimo, uma crítica à crescente influência americana no período entreguerras, que trazia a reboque a cultura de massas e o american way of life.

Este é, acima de tudo, um romance de ideias, que descreve as formas mais sutis e engenhosas que o pesadelo do totalitarismo pode assumir, e que resiste inexpugnável às interpretações político-ideológicas de esquerda ou direita suscitadas desde seu lançamento. Mundialismo, controle genético, adestramento comportamental e intoxicação coletiva não são dados soltos para a mente construir com eles uma utopia: são os órgãos solidários e inseparáveis de um único sistema. Onde quer que apareça um deles, os outros seguirão, mais cedo ou mais tarde. A lógica deste romance imita e condensa a lógica da História. E Huxley, desenvolvendo a sensibilidade a ponto de criar esse retrato ainda hoje tão perturbador, tornou-se o autor de um dos grandes clássicos da literatura mundial".

Bem, vamos aos trechos selecionados, lembrando antes, alguns personagens centrais e uma pequena contextualização. Lenina e Bernard Marx. Estes tiram férias no Novo México e encontram Linda e o seu filho (uma palavra proibida) John e os levam para lhes apresentar o Admirável mundo novo (o termo aparece pela primeira vez na página 171). Destacaria ainda Helmholtz, o amigo de Bernard e Mustafá Monde, o administrador de Sua Fordeza. Eu diria que Ford ocupa, mais ou menos, a figura de Jesus, nessa nova civilização. A religião, como tudo o que é antigo, está condenado a desaparecer. Na página 284 encontramos uma explicação importante: "O cristianismo sem lágrimas, eis o que é o soma". Soma é o remédio que anestesia todos os problemas. Mas vamos aos trechos selecionados. No primeiro, Mustafá Mond explica ao selvagem John, o que é o admirável mundo novo:

"...Porque o nosso mundo não é o mesmo mundo de Otelo (Shakespeare - onipresente na obra). Não se pode fazer um calhambeque sem aço, e não se pode fazer uma tragédia sem instabilidade social. O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não tem medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não se acham sobrecarregados de pais e mães; não tem esposas, nem filhos, nem amantes por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem. E se, por acaso, alguma coisa andar mal, há o soma. Que o senhor atira pela janela em nome da liberdade, senhor Selvagem. Da liberdade! - riu. Espero que os Deltas saibam o que é a liberdade! E agora quer que eles compreendam Otelo! Meu caro jovem". p. 264.

Também há solução para os que não se adaptam ao sistema. Mustafá Mond conta ao Selvagem a experiência do Chipre: "Pois, se quiser, pode chamar-lhe de experiência de reenfrascamento. Começou no ano de 473 d.F. Os administradores fizeram evacuar a ilha de Chipre e, uma vez retirados todos os seus habitantes, recolonizaram-na com um lote especialmente preparado de vinte e dois mil Alfas. Entregaram-lhes todo um equipamento agrícola e industrial, e deixaram-lhes a responsabilidade de dirigir os negócios. O resultado correspondeu exatamente a todas as predições teóricas. A terra não era convenientemente trabalhada; houve greves em todas as fábricas; as leis eram desrespeitadas, as ordens, desobedecidas; todas as pessoas destacadas para um serviço inferior passavam o tempo fazendo intrigas para obter cargos mais elevados e todas as pessoas que ocupavam cargos mais elevados tramavam contraintrigas para, a qualquer preço, ficar onde estavam. Em menos de seis anos, viram-se às voltas com uma guerra civil de primeira ordem. Quando, dos vinte e dois mil, dezenove mil tinham sido mortos, os sobreviventes fizeram uma petição unânime aos Administradores Mundiais para que estes retomassem o governo da ilha, o que foi feito. E assim acabou a única sociedade de Alfas que o mundo viu. p.267-8.

Também a redução da jornada de trabalho não deu certo: "Que mais poderiam pedir? É verdade - acrescentou - que poderiam pedir uma jornada de trabalho mais curta. E, por certo, nós poderíamos concedê-la. Do ponto de vista técnico, seria perfeitamente possível reduzir a três ou quatro horas a jornada  de trabalho das castas inferiores.. Mas isso as faria mais felizes? Não, de modo algum. A experiência foi tentada há mais de século e meio. Toda a Irlanda foi  foi submetida ao regime de quatro horas de trabalho diário. Qual o resultado? Perturbações e um acréscimo considerável do consumo de soma, nada mais....p. 268-9.

Uma última observação. Os principais temas humanos são tratados ao longo dos 18 capítulos do livro. Temas como o amor, a família, o luto e a morte ganham capítulos inteiros. Seria este o motivo da onipresença de citações de Shakespeare ao longo da obra? Tudo a ver. Não foi Shakespeare o escritor que melhor retrata as emoções e os sentimentos humanos? Ainda em tempo. Em 1946 o livro ganhou um prefácio do próprio autor. Nele ele explica as razões pelas quais não iria reescrever essa história. Observem bem a data. 1946. Em suma, uma das obras primas da literatura universal, com a preocupação do humano no futuro da humanidade.

PS. No livro famoso de Yuval Noah Harari, Sapiens - uma breve história da humanidade, o capítulo 19 é dedicado à felicidade. Nele, o autor comenta o livro de Huxley, na relação drogas/felicidade. Vejamos:" No romance distópico de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, publicado em 1932, no auge da Grande Depressão, a felicidade era o valor supremo, e os medicamentos psiquiátricos substituíam a polícia e as eleições como a base da política. A cada dia, cada pessoa toma uma dose de 'soma', um medicamento sintético que torna as pessoas felizes sem prejudicar sua produtividade e eficiência. O governo mundial, que controla o mundo inteiro, nunca é ameaçado por guerras, revoluções, greves ou manifestações, porque todas as pessoas estão extremamente satisfeitas com sua situação atual, qualquer que seja. A visão de futuro de Huxley é muito mais perturbadora do que a de George Orwell em 1984.  O mundo de Huxley parece monstruoso para a maioria dos leitores, mas é difícil explicar por quê. Todo mundo está feliz o tempo todo - o que poderia haver de errado nisso?". pp.400-1. Em 07.03.2021.



sábado, 13 de fevereiro de 2021

Bolsonaro - O mito e o sintoma. Rubens Casara.

É impressionante o quanto o Rubens Casara se supera a cada livro que publica. Dele já li Estado Pós-democrático - neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis, livro de 2017 e Sociedade sem lei - pós-democracia, personalidade autoritária, idiotização e barbárie, de 2018. Deles fiz a resenha no blog. Agora, um pouco tardiamente, li Bolsonaro - o mito e o sintoma, uma publicação de 2020. Sob a luz da psicanálise e da teoria do neoliberalismo, redesenhado e reconfigurado aos tempos atuais, em seu mais elevado grau de perversidade, ele analisa o mito e o fenômeno Bolsonaro.

Bolsonaro - o mito e o sintoma. Contracorrente. 2020.

O neoliberalismo, na sua versão mais recente, alterou profundamente a subjetividade humana, fazendo uma verdadeira reconfiguração antropológica. Nela os seres humanos, as pessoas, ou de forma mais apropriada, os indivíduos se transformam em empresas, o "eu empresa" e a partir disso se lançam no mercado e praticam os seus valores, sendo a competição o mais elevado. É a barbárie sem nenhum limite. Nesse mercado concorrencial desaparecem todos os valores da boa convivência, a começar pelo destroçar da solidariedade, da afetividade, da compaixão, entre outros tantos valores humanos e humanizadores. São substituídos pelo ódio, pelos preconceitos enraizados em nossa formação histórica, preconceitos inconfessáveis, mas que se manifestam sorrateiramente e com orgulho incontido, pelo voto no "mito". 

Essa é a temática central do livro. Muita psicanálise, muita teoria econômica (neoliberalismo) e, acima de tudo, muita análise política, do triste momento que estamos vivendo. A obra obedece a uma lógica impecável, tanto na formal, pela sequência ordenada dos temas, quanto na dialética, pelas intricadas análises das contradições que o bolsonarismo apresenta. Isso nos explica, tanto a eleição, quanto a possibilidade de reeleição, que nos é indicada pelos permanentes 30% de aprovação, obtidos em qualquer circunstância, independentes de bom ou mau governo. Mito é a realidade fantasiosa, fora dos parâmetros da racionalidade.

Os livros anteriores aparecem, especialmente nos primeiros capítulos. Eles nos facilitam o entendimento do momento presente. Na sequência aparece a conjuntura, a análise da realidade que permitiu a ascensão do "mito", um personagem que permite a fantasia da realidade, para ao final, apresentar em dois capítulos a realidade do título, a do mito e a do sintoma. O livro termina com uma convocação para a luta em torno do "comum", palavra com a qual podemos reabilitar a convivência civilizada da humanidade. As grandes referências teóricas que perpassam o livro são os teóricos do neoliberalismo, Pierre Dardot e Christian Laval, Adorno quando se refere a questões do comportamento de massa e personalidade autoritária e Lacan, nos assuntos pertinentes à psicanálise.

Para oferecer um panorama provocativo para a leitura, apresento os títulos dos capítulos. Eles são bastante autoexplicativos. Ao final do post elenco algumas frases em destaque. Os capítulos são relativamente curtos e, como já frisamos, obedecem a uma extraordinária sequência lógica. São 20 capítulos, incluída a conclusão, que, por óbvio, é uma conclamação à reação. Os 20 capítulos estão alinhados ao longo de 157 páginas. Muitas das referências teóricas são de autores que a pouco desembarcaram no Brasil. Vamos aos capítulos, mas desde já, manifesto preferência pelo primeiro, que fala do empobrecimento subjetivo. (É uma questão particular minha, de reflexões sobre a educação em Paulo Freire, no ano de seu centenário. Reflexões sobre a construção do ser humano, pelo desvelar provocativo de todas as suas potencialidades, de uma eterna busca do "ser mais", que necessariamente passa pelo enriquecimento subjetivo, pela soma de alteridades). Mas voltemos à resenha, aos capítulos:

1.O empobrecimento do subjetivo; 2. Da "democracia de baixa intensidade" ao "Estado pós-democrático"; 3. O ponto zero: a criação do monstro Behemoth (personagem da mitologia judaica e explorado na obra de Thomas Hobbes); 4. O combate à corrupção; 5. Propaganda bolsonarista; 6. A nova obscuridade; 7. A paranoia como condição de possibilidade do bolsonarismo; 8. O desejo por autoritarismo; 9. Em busca de um líder; 10 A "nova" política.

11. A defesa do indefensável (o mito conflita com o real, com o racional e, por isso, negacionista); 11.A defesa do indefensável; 12. A autoridade populista; 13. A ignorância como matéria prima; 14. A naturalização das opressões; 15. A revolução cultural bolsonarista (uma naturalização do autoritarismo com muitas aproximações de teses nazistas. É estarrecedor); 16. O bolsonarismo judicial: a tradição autoritária e o modo neoliberal de julgar; 17. Um sub-Trump nos Trópicos; 18. Bolsonaro como mito (realizador dos sonhos infantis, ou infantilizados, de seus eleitores, sonhos fora do real, do racional - isso explica muito de sua aprovação); 19. Bolsonaro como sintoma ("A vitória eleitoral de Bolsonaro permite conhecer algo da sociedade brasileira que ela mesmo se recusa a reconhecer. A crença na violência, o racismo, o machismo, a homofobia, e o antiintelectualismo retornam na forma de voto e apoio a Bolsonaro" p. 147); 20. Conclusão: Pensar em alternativas. O governo Bolsonaro é ou não é um programa para a instauração da barbárie? Assustador.

Pelo fato de Rubens Casara ser mais conhecido no meio jurídico, apresento alguns traços biográficos que constam na orelha da contracapa do livro: "Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais. Estudos de pós-doutoramento na Universidade de Paris X. Professor universitário, Juiz de Direito do TJ do Rio de Janeiro e membro da Associação Juízes para a democracia "... Seleciono ainda três parágrafos do livro, transcritos na contracapa:

"O que há de novo, e revela a engenhosidade do modelo, é que essa nova forma de governabilidade que surge da crise produzida pelos efeitos do neoliberalismo (desagregação dos laços sociais, demonização da política, potencialização da concorrência/rivalidade, construção de inimigos, desestruturação dos serviços públicos etc.) promete responder a essa crise com medidas que não interferem no projeto neoliberal e, portanto, não alcançam a causa dos danos sociais que levam a cólera e ao ressentimento da população".

"Pode-se dizer que com ele (Olavo de Carvalho) nasce o 'intelectual orgânico' da ignorância. No lugar do 'marxismo cultural', Olavo faz surgir o oxímoro 'ignorância cultural'". E, "Bolsonaro é, de fato, um mito. Vota-se em Bolsonaro porque não se pode dizer o que se quer conseguir com esse voto. O apoio manifesto a Bolsonaro esconde o que não pode ser dito e justifica esse apoio".

E para concluir, tomo a convocação final: "Em suma, para superar o neoliberalismo é preciso construir uma racionalidade, uma normatividade e um imaginário do 'comum', daquilo que vale por ser construído 'por' e 'para' todos. Daquilo que, por ser comum, é inegociável. Por isso é preciso insistir na força do comum, desdemonizar a palavra e refundar o conceito de comum como objeto da política. Não é impossível". p.154. A leitura desse livre se constitui num verdadeiro ato político.

P.S. Eu iria abrir o post, com uma publicação atribuída a Emir Sader, mas não a localizei. Como a acabo de receber, a publico como um P.S. Ela nada tem a ver com o livro, mas bem reflete a irracionalidade do sistema capitalista em sua forma neoliberal: "Se um macaco acumulasse mais bananas do que pudesse comer, enquanto a maioria dos outros macacos morresse de fome, os cientistas estudariam aquele macaco para descobrir o que diabos estaria acontecendo com ele. Quando os humanos fazem isso, nós os colocamos na capa da FORBES".

Deixo também a resenha de A nova razão do mundo. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/02/a-nova-razao-do-mundo-ensaio-sobre.html Comum. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/03/comum-ensaio-sobre-revolucao-no-seculo.html


I


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Raízes do conservadorismo brasileiro. Juremir Machado da Silva.

Em novembro de 2020, o coletivo de formação da APP-Independente, em conjunto com o NESEF, da UFPR., deram início a mais um trabalho de formação. Dessa vez o curso se destinaria à formação de lideranças para a atividade sindical. O professor Gaudêncio Frigotto fez a palestra de abertura. O tema trabalhado foi "Estado, educação e sindicalismo no contexto da regressão social". Em sua fala, Frigotto fez uma série de recomendações de leitura e isso me fez retomar uma série delas. Já li e resenhei Octávio Ianni, Guido Mantega e o padre Joseph Comblin.

Entre as indicações, me chamou particular atenção a indicação de Raízes do conservadorismo brasileiro - A abolição na imprensa e no imaginário social, de Juremir Machado da Silva. Conhecia o autor pela sua biografia de Jango e pelas suas participações nos programas da Rádio Guaíba e artigos no Correio do Povo. Vi, agora, que ele não está mais na Rádio Guaíba, mas que continua no Correio do Povo. Depois que esses órgãos da imprensa gaúcha passaram a ser controlados pelo Edir Macedo, eu deixei de acompanhá-los. Vi também que ele é professor na PUC/RS, nos programas de pós-graduação nos cursos de Comunicação Social. É formado em História e em jornalismo pela mesma instituição. É mestre e doutor pela Sorbonne, tendo trabalhado sob a orientação do professor Edgar Morin.

Raízes do conservadorismo brasileiro. Juremir Machado da Silva. Civilização brasileira. 2018.


Na capa do livro, encontramos uma imagem que está no Instituto Moreira Salles - "Negra com criança nas costas", Bahia,c. 1870. Registro isso, para dizer que o tema central do livro é a escravidão, ou como lemos no subtítulo, mais precisamente a abolição. É um mergulho no antes, no fato em si da abolição e também um pouco no seu período posterior. Daí o belo título Raízes do conservadorismo brasileiro. Foram quatro anos de pesquisa, 38 capítulos, divididos entre as 446 páginas do livro. 

Ao longo da obra o autor examina essencialmente os discursos parlamentares e os artigos da imprensa que foram proferidos e escritos na época da abolição, começando pelas leis que a antecederam e que basicamente tinham o interesse em protelá-la. Foi um trabalho árduo. Entre os parlamentares o grande destaque - a favor da abolição - foram os discursos de Rui Barbosa e de Joaquim Nabuco. Já entre os contrários, vou me ater a três nomes, o escritor José de Alencar, o paulista Senador Paulino de Souza e o barão de Cotegipe. Nas atividades de imprensa o destaque vai para três personagens negros: Luiz Gama, André Rebouças e José do Patrocínio.

Perpassa todo o livro o desmonte do argumento principal em favor da escravidão, que é a defesa do "inviolável" direito de propriedade. Todos os protelamentos se basearam nessa argumentação. E, em seu nome, ainda lutaram até as últimas forças, pelo direito de indenização pelo Estado. Neste ato não foram bem sucedidos. O argumento em favor da abolição sempre foi o de que não pode haver "mercadorias humanas". Os horrores do tráfico e da escravidão estão bem presentes e ganha também destaque a atuação das forças institucionais como o exército e o Poder Judiciário a favor da manutenção de tão nefasto e imoral privilégio. Esse contexto todo merece muito a leitura do livro. É uma entrada nos meandros jurídicos.

Também a literatura ganha um capítulo, com atenção especial para Machado de Assis, José Lins do Rego e Josué Montello. É, como lemos no subtítulo, A abolição na imprensa e no imaginário social. Para uma melhor visão da obra, destaco um parágrafo da orelha do livro: "Ciente de que a liberdade não foi uma concessão, mas uma árdua conquista das pessoas negras, o autor demonstra como a estrutura do capitalismo comercial escravista se traduziu - e ressoa ainda hoje - numa intrincada legislação, elaborada para atender a determinados interesses, e num imaginário cultural e ideológico, edificado para justificar a manutenção de privilégios - mesmo que isso implicasse, na época, a desumanização e a coisificação das pessoas".

Para dar uma melhor ideia em torno do livro, dou o nome dos capítulos, embora eles sejam muitos: 1.  Manchetes da segunda feira, 14 de maio de 1888; 2. Parasitas pedem medidas contra a 'vagabundagem'; 3. Lei áurea - 'Inconstitucional, antieconômica e desumana'; 4. Como a cria de qualquer animal e cotas de negros para brancos; 5. Sofismas escravistas de José de Alencar, o escritor e político que votou contra o Ventre Livre; 6. O antiescravismo precoce de José Bonifácio, o velho; 7. A abolição na Câmara dos Deputados e no Senado: a vontade política contra as manobras regimentais; 8. A doença do imperador refém da imprensa; 9. Seis dias inesquecíveis em maio de 1888; 10. Seis senadores votaram contra a abolição.

11. Lenta, gradual e infame; 12. A retórica fulminante de Joaquim Nabuco; 13. Lenda da criação do preto; 14. O emancipacionismo temeroso de Perdigão Malheiro; 15. O grito de guerra de Rui Barbosa; 16. leis antiescravistas que nunca 'pegaram', projetos de abolição e africanos livres que não eram livres; 17. Direito à infâmia; 18.Não se nascia livre pela lei do ventre Livre; 19. Não se ficava livre aos 60 anos pela Lei dos sexagenários; 20. Lutas no campo jornalístico; 21. Jornais abolicionistas e jornais na abolição; 22. A hipótese radical: por que os escravos não mataram todos os seus donos; 23. Senhores e feitores assassinos, um crime exemplar.

24.Os caifazes de Antônio Bento; 25. Heróis negros da abolição (Luiz Gama, André Rebouças e José do Patrocínio); 26. Matar um senhor de escravos é sempre legítima defesa; 27. Províncias abolicionistas e tráfico interprovincial; 28. Tráfico na bolsa de valores; 29. Abolição, imigração e racismo; 30.Abolição com ou sem negros? 31. O 13 de maio na ficção ou como ficção; 32. Escravizar como missão sagrada e alforria para morrer pela pátria; 33. Commodities humanas e marfim; 34. A cerimônia da sanção da Lei Áurea; 35. Festa nas ruas; 36. Holocausto negro: raízes do racismo e do conservadorismo brasileiros; 37. O ponto de virada. 38. O papel de dom Pedro II na abolição. Acompanha ainda uma rica relação bibliográfica.

Do capítulo 36, escolhi uma frase que bem sintetiza o título do livro As raízes do conservadorismo: "Depois da explosão da alegria do dia 13 de maio de 1888, o pior aconteceu. A imprensa voltou a ser dominada pelo conservadorismo com horror das massas. O racismo espalhou-se com um novo impulso. A justiça retomou sua função ideológica tradicional e sua tarefa rasteira de punir as camadas menos favorecidas economicamente da população sem lhes conceder o benefício do desespero. Um setor do exército, no entanto, cumpriria, nos anos 1920, com o chamado tenentismo, um papel revolucionário, ajudando a abrir caminho para a ruptura institucional de 1930. Em 1932, porém, parte dessa força rebelde se enfileiraria com os 'saudosos do antigo regime', sob a cobertura de uma pretensa reconstitucionalização do país. Os revoltosos de 1932 gerariam os golpistas de 1964. A incorporação dos excluídos - os descendentes dos escravos transplantados de terras africanas - seria postergada a cada governo". pp. 418-9.

E o que dizer do Golpe de 2016? Sempre a presença dos mesmos, do golpe que sempre paira no ar. Sem dúvida, a leitura desse livro (Civilização Brasileira, 2018) é um ato de grandeza política.