quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Contraponto. Aldous Huxley.

Há muito que eu desejava ler Contraponto de Aldous Huxley. Esse desejo me veio especialmente ao ler Solo de clarineta, o notável livro de memórias de Érico Veríssimo. Nele o escritor fala de seu trabalho nas Livrarias e na editora do Globo (Porto Alegre) e dá uma especial atenção ao seu trabalho de tradução desse clássico ímpar do escritor inglês Aldous Huxley. Ao apagar-se o ano 2020 retirei o livro da estante, entre os livros da coleção "Os Imortais da Literatura Universal". A leitura sofreu alguns prejuízos em virtude de interrupções devidas às festas de final de ano. Isso não é bom, uma vez que o livro tem uma estrutura complexa e exige concentração total.


Contraponto. Da coleção "Imortais da literatura universal". Abril. Tradução de Érico Veríssimo e Leonel Vallandro.

A resenha desse livro, necessariamente começa por um olhar sobre o título - Contraponto. O termo deriva do mundo musical e na Wikipedia encontramos a seguinte explicitação: "O contraponto, na música, é uma técnica usada na composição onde duas ou mais vozes melódicas são compostas levando-se em conta, simultaneamente: o perfil melódico de cada uma delas; e a qualidade intervalar e harmônica gerada pela sobreposição das duas ou mais melodias". Daí para a literatura é fácil fazer a transposição, ainda segundo a enciclopédia: "Aquilo que, embora apresente contraste ou oposição, complementa um assunto ou texto. [Figurado] Tema que acrescenta, adiciona uma informação ao assunto, ou apresenta contraposições, opiniões opostas, em relação ao mesmo".

Aí está a chave para o início da leitura. Contraponto é um livro de ideias, de muitas ideias. Ideias essas apresentadas e entremeadas de muito pessimismo e ironia. Os principais contrapontos apresentados são os da aristocracia inglesa, os do mundo intelectual, os do mundo da arte e da ciência em evolução e dos que com ela trabalham e a dos Ingleses livres - os camisas negras da Inglaterra, representando o fascismo em ascensão. Esses ideais fascistas morrem assassinados, com Everard Webley. Longas e fantásticas discussões são apresentadas ao longo de 37 capítulos. O debate entre as diferentes ideias encontram um paralelo no famoso livro de Thomas Mann A Montanha Mágica (1924).

Já que localizamos a obra de Mann no ano de 1924, vamos a algumas contextualizações de Huxley e de seu grandioso livro. O escritor nasceu no Reino Unido no ano de 1894 e morreu na Califórnia nos Estados Unidos em 1963. A primeira edição de Contraponto é de 1928. O ano da escrita do livro -1928 - é extremamente significativo. A euforia inicial trazida pelo século XX com a ideia do progresso indefinido e pela evolução do mundo da ciência, da técnica e da diplomacia no mundo da política caíra por terra, com a eclosão da  Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e com as crises do entre guerras e o prenúncio das ascensões fascistas e dos regimes totalitários. A análise da cultura dominante que provocou esse mundo em ruínas é o grande teor do livro. Seguramente uma das preciosidades maiores da literatura universal.

Aldous Huxley se livrou da participação da guerra por ter sido acometido de uma cegueira passageira no tempo em que era para ser convocado. Tornou-se assim um observador extremamente atento e com um olhar profundamente investigativo. Moral, religião, economia, política, morte, arte, música, tecnologia, evolução, emancipação feminina, sexualidade, decadência são os temas onipresentes nessa polifonia de ideias. A primeira impressão que eu tive com a leitura foi a de estar lendo uma grande crônica da época.

No livro de biografias que acompanha a coleção lemos o seguinte sobre o livro: "Contraponto (1928) foi uma inovação saudada e combatida apaixonadamente em sua época, constituindo, de qualquer forma, um foco de discussão em todo o mundo literário. É uma descrição crua da vida de vários casais que se amam, mas não conseguem demonstrar o seu amor; que se detestam, mas não tem coragem de exprimir o seu ódio; que não se suportam, mas não ousam abandonar o comodismo e a rotina da existência que levam ao lado daquele - ou daquela - que um dia escolheram. Nem Philip Quarles consegue desligar-se de Elinor, apesar de não conseguir comunicar-se com ela, nem Walter Bidlake abandona Marjorie, a quem odeia.

Além do problema sexual e afetivo, que está no centro de cada um destes dramas conjugais, há o problema particular do artista, vivido por Philip, o escritor, e por John Bidlake, o pintor. São pessoas inteligentes, mas frias, incapazes de sentir - qualidades incompatíveis com as que um verdadeiro criador necessita para se comunicar com o seu público. Philip permanece um novelista medíocre, e o pintor só pode realizar obras de arte quando abandona o intelectualismo pedante e se faz um homem simples e despretensioso.

Contraponto transmite uma percepção da vida em geral, com o eterno problema da comunicação e do amor, os quais Huxley considera impossíveis na sociedade tal qual ela existe, excessivamente materializada, racionalizada, sofisticada. Neste ponto, a problemática de Huxley se particulariza, localizando-se no tempo e no espaço: o período entre duas guerras, numa sociedade decadente e pervertida, da qual escolhe a intelectualidade britânica, para dissecá-la até a alma, irônico, mordaz e implacável.

[...] Huxley, neste sentido, acompanha os escritores de sua época, passando do ceticismo e da angústia do pós-guerra ao desespero trágico por um mundo que a técnica e a guerra moderna tornaram impessoal. O autor, com a destruição das injustiças e da hipocrisia, postula desesperadamente um mundo melhor, onde o homem volte aos princípios básicos de sua natureza". Quatro anos depois, em 1932, aparece outra obra prima sua Admirável Mundo Novo. 

E um pequeno trecho selecionado - sem propósito: "Uma esquadra se compõe apenas de dez homens e é neutra sob o ponto de vista emotivo. O coração só começa a bater à vista de uma companhia. As evoluções dum batalhão são inebriantes. E uma brigada já é um exército com bandeiras, o que equivale - como sabemos pelo 'Cântico dos Cânticos' - a ficar apaixonado. A emoção é proporcional ao número. Admitindo-se o fato de termos mais de 1 metro e 75 de altura por dois pés de largura, e de sermos solitários, uma catedral é por força mais impressionante do que uma cabana e um quilômetro de homens em marcha é mais imponente do que uma dúzia de vagabundos numa esquina. Mas não é tudo. Um regimento é mais impressionante do que uma multidão.  O exército com bandeiras equivale ao amor apenas quando manobra impecavelmente. As pedras que constituem um edifício são mais belas do que umas pedras amontoadas à toa.. O exercício e o uniforme impõem uma arquitetura à turba. Um exército é bonito.. Mas não é ainda tudo; ele satisfaz instintos mais baixos que o instinto estético. O espetáculo de seres humanos reduzidos ao automatismo satisfaz o o desejo de força".  Página 349-350.

Ao fazer as resenhas eu não costumo ver ou ler comentários. Mas devido a complexidade extrema de Contraponto eu, em minhas buscas, encontrei esta preciosidade de comentário sobre a  memorável obra, que como está disponibilizada no Google, creio não ter problemas em ajudar na sua divulgação e por à sua disposição . Segue o link da entrevista de um grande professor de literatura - Jorge Almeida.

 https://www.youtube.com/watch?v=PrrvFKpzJdY

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