Este texto foi publicado originalmente na revista - JORNALISMO - reflexões, experiências, ensino, organizada por Alexandre Castro, Marcelo Lima e Tomás Barreiros, com apresentação de Marcelo Lima. A edição é de 2007. Os textos são escritos pelos professores do curso de jornalismo do então UNICENP, hoje Universidade Positivo. O ano da publicação foi o de 2007. Reli, gostei e estou publicando o meu texto para a revista. Que saudades da Academia, mas sem o stress da obrigação. Estou muito bem, administrando o meu tempo livre.
Cadernos Diplô Le Monde Diplomatique. nº 3 - Janeiro de 2002.
O JORNALISMO EM TEMPOS DE PENSAMENTO
ÚNICO.
A ditadura não me deixava escrever
aquilo que penso.
O pensamento único não me deixa pensar
o que escrevo.
Frase encontrada na sede do sindicato
dos jornalistas de Buenos Aires.
Pedro Elói Rech. Mestre em História e
Filosofia da Educação. - Professor de
Filosofia e Teoria Política no UNICENP.
Um
Plano de Trabalho.
Quando participava do primeiro Fórum
Social Mundial, realizado em janeiro de 2001, me detive, entre maravilhado pelo
encontro com os grandes personagens do pensamento mundial e perplexo diante das
novas realidades apresentadas pelo mundo, a pensar sobre todo este novo
cenário. No ano seguinte, de novo, no mês de janeiro e em Porto Alegre, comprei
o Cadernos Diplô – Le Monde Diplomatique,
onde me deparei com o artigo de Bernardo Kucinski intitulado Do Discurso da Ditadura à ditadura do
discurso (KUCINSKI, 2001), que passei a adotar em sala de aula.
Posteriormente me deparei com o mesmo texto, com algumas modificações e, em que
ele ganha um subtítulo – Dez paradoxos do jornalismo neoliberal (Kucinski,
2004). Numa página da revista, numa anotação minha está anotada a frase de
epígrafe, com a qual abrimos este texto e que está inscrita na sede do
sindicato dos jornalistas de Buenos Aires.
Encontrei nestes textos e nesta frase
o motivo para desenvolver algumas reflexões em torno do tema. Buscamos
inicialmente elucidar o conceito de fim de história para logo depois apresentar
o pensamento liberal, ou a democracia liberal, por ter sido este o único dogma
remanescente no mundo. Procuramos também elucidar alguns conceitos chaves neste
movimento como a crise da modernidade, a indústria cultural, a sociedade do
espetáculo, o pensamento único, a ressemantização das palavras, a razão
instrumental, o fundamentalismo e a pós-modernidade, que se conectam entre si e
nos dão o sombrio panorama do presente momento mundial. Concluímos com uma
aproximação do texto de Kucinski e da frase de Buenos Aires com as abordagens
do presente texto. Queremos também lembrar que este texto foi escrito entre
inúmeras aulas e correção de provas.
1. Os Dez
Paradoxos do jornalismo neoliberal.
Como o texto de Kucinski é o mote para estas reflexões, apresentamos
inicialmente uma pequena síntese dos dez paradoxos, apresentados no artigo – Do discurso da ditadura à ditadura do
discurso. E o faço numa interpretação livre destes textos, cujas
referências já apresentamos.
Primeiro
Paradoxo: Nunca houve tanta falta de pluralidade na mídia brasileira como nos
tempos atuais de hegemonia do neoliberalismo. Não há mercado de idéias no neoliberalismo brasileiro. Encontramos sempre
a mesmice jornalística.
Segundo
Paradoxo: Temos menos pluralismo hoje, sob o regime democrático, do que
tínhamos sob o regime ditatorial de 1964. Isto se deve a ditadura do discurso
único.
Terceiro
Paradoxo: Na era neoliberal não é preciso limitar a crítica dos jornais pela
mão militar porque nenhum jornal adota uma linha editorial crítica.
Quarto Paradoxo:
Enquanto assistimos a uma cada vez maior polarização na sociedade brasileira,
na mídia ocorre o oposto, com a completa ausência de polarização ideológica. As
teses neoliberais se constituem no único fundamento de todos os veículos de
comunicação de massa.
Quinto paradoxo:
A ética jornalística desapareceu das redações e a supressão da liberdade de
imprensa se banalizou como uma condição natural, e no entanto, quem mais se
identifica com os pressupostos neoliberais são os jornalistas jovens apesar de
serem os mais estressados em virtude dos processos de alienação em seus
ambientes de trabalho.
Sexto Paradoxo:
A concentração da mídia brasileira em monopólios ocorre em tal grau que viola
todas as leis anti-monopólio existentes.
Sétimo Paradoxo:
No jornalismo neoliberal a mídia fala em nome do interesse público, mas serve
ao interesse privado.
Oitavo Paradoxo:
A indústria da comunicação de massa está em profunda crise no Brasil, com a
queda nas tiragens dos jornais e revistas e a queda na publicidade. Encontra-se
fortemente endividada pelo estreitamento do mercado e pela invasão das multinacionais
e, mesmo assim, apoia entusiasticamente o projeto neoliberal.
Nono Paradoxo:
As empresas brasileiras de comunicação de massa planejam a sua própria absorção
pelos grandes grupos globais da comunicação. É o suicídio empresarial de uma
burguesia congenitamente entreguista e subserviente.
Décimo Paradoxo:
Existe um contraste entre a hegemonia completa do projeto neoliberal na mídia
brasileira e a total ausência destes padrões dominantes para os demais aspectos
da vida brasileira. Propõe a era da convivência dos contrários, da tolerância
étnica, enfim, do pluralismo em todas as suas formas, menos no modelo
econômico. Nesse o neoliberalismo se coloca como a última e a derradeira metanarrativa.
2. As Origens do
Fim da História.
Encontramos uma bela explanação do
conceito de fim da história no livro de Perry Anderson O Fim da História – De Hegel a Fukuyama. (ANDERSON, 1992). O livro
consiste essencialmente, ao menos na sua parte final, numa análise do livro de
Fukuyama, intitulado O Fim da História e
o Último Homem, datado de julho de 1989. Na introdução de seu livro,
Anderson afirma o caráter ideológico da obra de Fukuyama, escrita não a partir
da observação, real ou imaginária, mas de dentro do gabinete do Departamento de
Estado dos Estados Unidos e que ela não se constitui em qualquer lamento
pessimista mas, pelo contrário, ela se reveste de um confiante otimismo.
A tese central da obra é a de que a
humanidade atingiu o ponto final de sua evolução ideológica, com o triunfo da
democracia liberal ocidental sobre todos os seus concorrentes, ao final do
século XX. Esta vitória se deveu ao final dos regimes fascistas, destruídos na
segunda guerra mundial e com o descrédito do comunismo e a sua rendição final
ao capitalismo. Sobrariam apenas alguns bolsões nacionalistas e alguns fundamentalismos
religiosos, confinados porém, a áreas subdesenvolvidas do terceiro mundo.
A vitória do capitalismo liberal
seria assim um produto da desintegração do stalinismo, das transformações
ocorridas no Japão, a liberalização na Coréia e a mercantilização da China. Do
processo competitivo mundial teriam sido retiradas todas as toxinas ideológicas
e militarizantes, em favor de uma estrutura de colaboração dentro de um mercado
global, do qual o Mercado Comum Europeu já havia servido de modelo. Nesta
sociedade ainda emergiriam conflitos provocados por tensões étnicas, paixões
sectárias e terrorismos, mas que de forma nenhuma se contraporiam como
alternativa ao modelo liberal. Este modelo seria a forma final do governo
humano e cessaria assim, por completo, todo o movimento histórico.
Em seu livro Fukuyama afirma que
isto já fora antevisto por Hegel, com a vitória de Napoleão, - em Iena - sobre
o velho regime prussiano e a consequente universalização dos princípios da
Revolução Francesa. Anderson cita uma frase de Fukuyama em que este descreve o
estado final atingido: “O Estado que emerge no fim da história é liberal na
medida em que reconhece e protege, através de um sistema jurídico, o direito
universal do homem à liberdade, e é democrático na medida em que somente existe
com o consentimento dos governados” (apud ANDERSON.1995, p. 13).
Anderson na parte final da
introdução de seu livro afirma que a reação ao livro de Fukuyama foi
praticamente universal e lhe faz também as suas críticas. Aponta que a tese de
Fukuyama é fundamentalmente uma reafirmação dos direitos à propriedade privada
e às operações de uma economia de mercado e acrescenta que o fato de a história
ter chegado ao seu fim implica em altos custos. Vejamos Anderson enunciando
estes custos:
A conclusão da
história da liberdade humana tem seus custos. Ideais audaciosos, altos
sacrifícios, impulsos heroicos, tudo se dissipará em meio à rotina trivial e
monótona de fazer compras e votar; a arte e a filosofia definham, quando a
cultura é reduzida à função de curadora do passado; cálculos técnicos
substituem a moral ou a política. É lúgubre o pio noturno da coruja
(IBIDEM. p. 13).
Em 1999 escrevi um artigo com o
título O neoliberalismo: uma retomada dos
princípios da sociedade de mercado capitalista, em que fazia uma análise da
questão do fim da história e a apresentava nos seguintes termos:
O
neoliberalismo se propõe como alternativa única a todos os modelos que se
estabeleceram no século XX, com forte presença do Estado, como o socialismo, a
social democracia e o nosso modelo de substituição de importações. A derrocada
do socialismo teria ocorrido pela estagnação, a da social democracia, pela sua
crise fiscal e o modelo de substituição de importações, pelo endividamento externo.
A sua mais
recente configuração se assenta nos princípios da desestatização –
desnacionalização, da desregulamentação – desconstitucionalização e da
desuniversalização – desproteção, no que se refere aos direitos da cidadania.
(RECH, 199, p. 12).
Em palestra realizada na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em setembro de 1994, num seminário que
recebeu o título de - Pós-neoliberalismo
– As políticas sociais e o Estado
democrático, posteriormente organizado em livro, sob o mesmo título, Perry
Anderson, após fazer um balanço do neoliberalismo conclui que, economicamente
ele fracassou por não ter conseguido uma revitalização dos países capitalistas
avançados, que socialmente ele conseguiu bons resultados com a criação de
sociedades mais desiguais, para depois apontar que os seus maiores êxitos estão
localizados em sua parte política e ideológica. Vejamos a descrição:
Política e
ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual
seus fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples ideia de
que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou
negando, têm de adaptar-se a suas normas. Provavelmente nenhuma sabedoria
convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o início do século
como o neoliberal hoje. Este fenômeno chama-se hegemonia, ainda que,
naturalmente, milhões de pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a
seus regimes (ANDERSON, 1995, p.23).
Percebe-se que na formação do conceito de fim da história somam-se as
ideias de cessação do movimento histórico com o neoliberalismo triunfante que
se instaurou na Europa a partir dos anos 80 e no resto do planeta, com raras
exceções, a partir dos anos 90 e com grande destaque para a sua presença
ideológica.
2. A Essência do Pensamento
Liberal:
Mas o que é afinal de contas a
essência do pensamento liberal? O que ele tem de tão forte para ser a única
verdade que sobrou nos tempos do pensamento único? O que contém este credo e
que seduções ele apresenta para revestir-se como o último grande dogma da
humanidade?
O pensador e educador americano John
Dewey (1858 – 1952) atribui aos gregos, especialmente no que se refere ao livre
jogo da inteligência, as mais remotas origens do liberalismo, especialmente as
ideias contidas na oração fúnebre de Péricles. Afirma ainda, que a palavra
liberal e o liberalismo como uma filosofia social, surge apenas no início do
século XIX, mas que ela já vem, como tudo o que é histórico, precedida de um
longo processo.
Dewey, em seu livro, Liberalismo, Liberdade e Cultura (DEWEY,
1970) apresenta a sua história e a divide em dois grandes momentos: a do
liberalismo clássico ou ortodoxo e a do modificado ou heterodoxo. O divisor de
águas entre os dois é a função exercida pelo Estado, que é negativa no clássico
e que começa a admitir algumas funções positivas no heterodoxo. Apresenta John
Locke (1632-1704) e Adam Smith (1723-1790) como os grandes representantes do
liberalismo clássico e Bentham (1748-1832) e Stuart Mill (1806-1873) como os representantes
do heterodoxo. Enquanto Locke é apresentado como o seu estruturador político,
Smith é o seu grande pensador econômico.
Historicamente o liberalismo se
situa como o processo final do decadente modo de produção feudal e que se
constitui como o fundamento que legitima a ordem burguesa, que o substitui.
Neste seu esforço em legitimar a nova ordem ele se apresenta como uma ordem
natural e necessária e que irá permitir a construção de um mundo de progresso,
de liberdade e de grande desenvolvimento para a humanidade.
Luís Antonio Cunha em seu livro Educação e Desenvolvimento Social no Brasil
(1978) nos
apresenta, no primeiro capítulo deste seu livro, sob o título - a educação e a
construção de uma sociedade aberta, os princípios gerais do liberalismo, como
sendo o individualismo, ou mais propriamente uma concepção de indivíduo, a
liberdade, a propriedade, a igualdade e a democracia. No título deste capítulo
encontramos uma expressão chave para entender o mecanismo de seu funcionamento:
sociedade aberta. A sociedade aberta é a sociedade caracterizada pela
mobilidade social, promovida por indivíduos impulsionados por um desejo de
melhorar a sua condição (Smith) e que são detentores de liberdade (sem amarras
inibitórias do Estado), pela qual desenvolvem as potencialidades que trazem
consigo e atuam num mercado cada vez mais complexo e interdependente, no qual
todos têm a oportunidade de construírem o seu êxito, enquanto indivíduos, bem
como o de toda a sociedade, sendo esta uma soma da totalidade dos indivíduos.
Estes cinco princípios desentravam o
processo produtivo, antes enredado nas amarras do mercantilismo e das
corporações de ofício e que junto com a divisão do trabalho elevam os padrões
produtivos do mundo, com os quais até o próprio Marx se maravilhou, mas só com
isso. Este maravilhamento não se estendeu às relações sociais de produção que
se estabeleceram na base material deste modelo. Em suma, homens livres e iguais
disputariam as oportunidades num emergente mercado, em busca do seu sucesso ou
êxito pessoal, permitido por estes novos princípios de liberdade e de
igualdade.
Estes princípios formaram a grande base político-ideológica das
revoluções burguesas, com as quais a burguesia se transformou na nova classe
dominante. É preciso destacar que o êxito do modelo se deve muito ao caráter
universal e abstrato de seu discurso, em oposição ao particular e ao concreto
de cada indivíduo ou situação. Assim cada exemplo de sucesso pode ser alçado a
um sonho possível para cada indivíduo. Afinal, os homens não são livres e
iguais?
Para a estruturação política desta sociedade, novamente o indivíduo passa
a ser o seu elemento fundante e primeiro. Este indivíduo é visto como portador
de direitos naturais e inerentes à condição humana e que por causa de sua
precedência à sociedade, - esta sociedade em sua organização - deverá ser a
garantidora dos direitos individuais. Já apontamos para Locke como o grande
pensador político do liberalismo e toda esta visão que privilegia o indivíduo é
dele. Assim, os direitos naturais inerentes ao indivíduo são anteriores e
independentes a qualquer organização social e que em consequência disto, o
Estado emergente de um contrato entre os indivíduos, tem no dever de assegurar
os direitos destes indivíduos, a sua grande e principal função, para não dizer,
apenas a sua única função. Como consequência, toda a organização política
estará subordinada à ação econômica, que é o livre trânsito dos indivíduos no
mercado. Assim a economia passa a ser naturalizada, isto é, subordinada a
natureza. Este esforço da naturalização do mercado é um esforço para afastar
dele a mão cultural, que é a mão humana da ação política. É ainda importante
salientar que este Estado preconizado por Locke teria a sua legitimidade
assegurada pelo consentimento dos governados (um consenso entre os pactuadores
do contrato).
Um outro pensador, anterior a Locke, Thomas Hobbes previa que homens
livres e iguais, movidos pelo desejo das mesmas coisas seriam o homo homini lupus e que nesta sociedade
ocorreria a guerra de todos contra todos e que, para preservar a vida todos
deveriam se submeter a uma autoridade Leviatã,
a um Estado absoluto que limitaria as ações livres do mercado competitivo a
uma possibilidade de assegurar a vida. Parece que Hobbes, já nos alvores do
surgimento de uma sociedade de mercado, competitiva entre os indivíduos, entre
as empresas e posteriormente entre as nações, anteviu todas as contradições
deste sistema com a visão de que esta sociedade só encontraria freios no
monstro Leviatã. Quantas vezes já não imperou este monstro?
Será que a própria formação do pensamento único não é uma manifestação deste
monstro? Qual é o Estado que temos hoje?
Qual foi a teoria vencedora, a de Hobbes ou a de John Locke?
Ainda para melhor compreensão do paradigma do liberalismo vamos fazer uma
pequena incursão na visão ética deste sistema. Esta também se volta para o
indivíduo, anterior a sociedade e, por isso mesmo, o centro das atenções. Isto
já está presente em Locke e terá uma melhor explicitação em Adam Smith. Este
crê que o bem-estar resulta de um efeito cumulativo de esforços individuais, o
que implica na visão de que os indivíduos, dotados de um natural desejo de
melhoria em suas condições de bem-estar, se lançam efetivamente na sua busca e,
- estarão assim contribuindo com o bem-estar geral da sociedade - uma vez que
esta é vista sob sua forma reduzida, matemática - de soma de indivíduos. Assim
os outrora pecados do individualismo, do espírito competitivo e da ambição,
passam a ser agora transformados em virtudes.
A ética decorrente do espírito do
capitalismo ganhou um contorno mais elaborado com Bentham, ganhando o nome de
utilitarismo. Sua tese central situa-se mais uma vez no indivíduo, afirmando
que cada restrição a sua liberdade é fonte de sofrimento e em consequência
limite de prazer (hedonismo), que deve ser usufruído pelos indivíduos. Bentham
situa a esfera do comportamento humano, ou melhor, o reduz - ao impulso da
busca do prazer e da repulsa à dor. A ética capitalista ganha os seus contornos
de individualista, hedonista e materialista, quando o humano se caracteriza
muito mais como um ser que precisa atender ao mundo das suas necessidades
culturais uma vez que as materiais deveriam ser um pressuposto inerente ao
humano. Como não é este o objeto central deste trabalho, mas por considerá-lo
de extrema importância indico o livro de Comparato (2006) nas suas abordagens
sobre o pensamento de Hobbes, Locke, Adam Smith, Bentham e outros, bem como a
sua crítica, na elevação da ética ao humano em Kant, Hegel, Marx, especialmente
no contido entre as páginas 184-404. Encontrará aí o leitor o choque ou
confronto existente entre o Ser e o ter.
3. Criticas À
Modernidade e a Formação do Pensamento Único
O iluminismo é a doutrina da
modernidade que se constituía numa espécie de crença dogmática nos efeitos
luminosos ou esclarecedores da razão. Esta libertaria os homens das crendices e
superstições, em suma, no dizer de Kant, nos libertaríamos da ignorância
provocada por sua majestade (o poder absolutista) e por sua santidade (o poder
da Igreja). Ao mesmo tempo em que a razão nos libertaria da ignorância ela
também promoveria uma época de evolução científica e tecnológica, bem como o
entendimento político entre os homens, pondo fim às guerras. Surge uma nova era
de crenças e uma nova deusa, a deusa razão.
As primeiras suspeitas relativas aos resultados obtidos pela razão surgem
com os românticos e, posteriormente, de suspeitas passamos a ter certezas da
insuficiência da razão para a explicação do humano. Ao longo da modernidade,
várias feridas atingiram profundamente o ser humano como um ser racional e
consciente. Chauí nos sintetiza esta realidade ao falar de três feridas
narcísicas que desencantaram o homem moderno. Vejamos o seu relato:
A primeira
foi a que nos infligiu Copérnico, ao provar que a terra não estava no centro do
Universo e que os homens não eram o centro do mundo. A segunda foi causada por
Darwin, ao provar que os homens descendem de um primata, que são apenas um elo
na evolução das espécies e não seres especiais, criados por Deus para dominar a
natureza. A terceira foi causada por Freud com a psicanálise, ao mostrar que a
consciência é a menor parte e a mais fraca de nossa vida psíquica (CHAUÍ, 1997.
p. 167).
A estas três feridas, Chauí acrescenta uma quarta, trazida por Marx, que
é o conceito de alienação e de ideologia, ou a possibilidade de os homens serem
manipulados por outros, desconhecendo as condições históricas, sociais e
materiais que os condicionaram e que produziram as condições do seu ser. Esta
possibilidade de manipulação, de desconhecimento das origens de sua realidade e
de sua auto-compreensão, se situa obviamente para além da racionalidade. O
próprio Marx advertira de que - se a aparência não fosse igual à essência não
haveria a necessidade da ciência.
A modernidade sofrerá, no entanto os seus maiores ataques, ainda no final
do século XIX, com Nietzsche e o seu Super-homem. Este é o homem que vive o
sentido da terra, que reviverá o homem da tragédia grega, o instinto dionisíaco,
e que fora deformado pelo espírito da objetividade racional e metafísica, introduzidas
no mundo por Sócrates e Platão e massificadas pelo cristianismo. Este mundo é
um mundo anti-natural, fundado na dor e no sofrimento estoico e não na alegria
dionisíaca da vida. Este Super-homem de Nietzsche será um homem superior, na
exata medida em que se libertar de todos os vínculos produzidos pela racionalidade,
um homem livre, que superou as categorias do bem e do mal, introduzidas com a
racionalidade.
Outra crítica contundente à modernidade foi feita pelos pensadores da
Escola de Frankfurt, mais precisamente por Adorno e Horkheimer no livro Dialética do Esclarecimento, em que os
autores fazem a crítica ao iluminismo, em função dos desvios da racionalidade.
O livro é aberto com um conceito sobre o esclarecimento em que os autores
contrapõem os objetivos deste movimento com os seus resultados. O conceito de esclarecimento
nos é mostrado como o movimento que visava destruir os mitos e que queria
substituir a imaginação pelo saber e, que pretendia mostrar a superioridade do
homem exatamente através deste saber. Mas já na segunda página do seu primeiro
capítulo vem a crítica com a afirmação de que “a técnica é a essência desse
saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer e o discernimento, mas o
método, a utilização do trabalho de outros, o capital (ADORNO & HORKHEIMER,
1997. p. 20). Assim nos é apresentado o conceito da racionalidade, que se
desviou da sua função de estar a serviço do humano e da humanidade, para se
tornar um mero instrumento do capital e de sua acumulação. Vejamos isto com
maior ênfase:
O que os
homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente
a ela e aos homens. Nada mais importa. (...) Poder e conhecimento são sinônimos
(...). O que importa não é aquela satisfação que, para os homens, se chama
“verdade”, mas a “operation”, o
procedimento eficaz. (...) O que não se submete ao critério da calculabilidade
e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento (Ibidem, p.20-1).
A análise continua mostrando que os caminhos da ciência moderna, um dos
principais produtos do iluminismo, se pautaram exclusivamente em cima do
cálculo, que encontrou na lógica formal o caminho para a sua justificação,
mostrando também as implicações desta atitude com todo o sistema capitalista.
“A lógica formal era a grande escola da unificação. Ela oferecia aos
esclarecedores o esquema da calculabilidade do mundo (...). O número tornou-se
o cânon do esclarecimento. As mesmas equações dominam a justiça burguesa e a
troca mercantil” (IBIDEM, p.22).
Esta ideia da mistificação, abertura do caminho para o estabelecimento de
um pensamento único, se tornou possível em função da manipulação das pessoas e
que encontrou na instituição do positivismo, o derradeiro produto de todo este
movimento - a exigência de tudo submeter à lógica do estabelecido, em que o
poder está de um lado e a submissão do outro. Neste processo não sobra espaço
para o pensamento livre, uma vez que todas as decisões já estão tomadas de
antemão. Vejamos isto através dos autores:
O pensar
reifica-se num processo automático e autônomo, emulando a máquina que ele
próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo. O esclarecimento pôs
de lado a exigência clássica de pensar o pensamento (...). O procedimento
matemático tornou-se por assim dizer, o ritual do pensamento. Apesar da
autolimitação axiomática, ele se instaura como necessário e objetivo: ele
transforma o pensamento em coisa, em instrumento, como ele próprio o denomina
(IBIDEM, p. 37).
Assim todo o pensamento, reduzido a
sua lógica matemática instrumental, submete a própria razão ao fato dado, “o
factual tem a última palavra, o pensamento restringe-se à sua repetição, o
pensamento transforma-se na sua mera tautologia” (IBIDEM, p.39).
Não fica difícil estabelecer uma
relação da questão ética sob o capitalismo a este processo percorrido pela
razão calculadora e instrumental com as consequências gerais deste sistema na
estruturação da totalidade desta sociedade. Esta racionalidade é apontada pelos
autores com um sol com raios gélidos, sob os quais amadurece uma sementeira de
barbáries. Os autores ainda indicam que
o esclarecimento, ao ter abandonado o projeto de pensar o próprio pensamento,
abdicou também de suas realizações e impôs, de um lado, um progresso altamente
impiedoso e de outro, promoveu a total mistificação das massas.
Na continuidade da análise da obra
destes autores, encontraremos adiante, um outro capítulo de fundamental
importância sob o título A Indústria
Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. Já nas primeiras
páginas encontramos a essência deste conceito descrita como a uniformização de
tudo: “a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança” e “sob o
monopólio, toda cultura de massas é idêntica” (IBIDEM, 113-4).
Esta ideia persiste e é mostrada
basicamente como a produção e a disseminação de bens padronizados para a
satisfação de necessidades iguais. Sob este aspecto, já em tempos mais
recentes, sob o império da globalização, um outro autor - Frederic Jameson –
nos mostra uma importante aproximação da cultura com a economia, até a sua
fusão, em que a cultura cria as necessidades para o mundo do consumo. Estas
ideias estão contidas no livro A cultura
do dinheiro – Ensaios sobre a globalização, do qual apresentaremos apenas
este conceito, assim expresso na introdução do livro.
O capitalismo
tardio depende para o seu funcionamento de uma lógica cultural, de uma
sociedade de imagens voltada para o consumo. Por sua vez, os produtos culturais
são, para usar uma terminologia tradicional, tanto base como superestrutura,
produzindo significados e gerando lucros. A cultura de massa assim como o outro
lado da mesma moeda, a alta cultura transformada em grife, são também campos de
treinamento onde aprendemos as regras fundamentais do jogo contemporâneo, o
jogo do consumo (JAMESON, 2001, p. 9).
Voltando a Adorno e Horkheimer, estes autores, ainda no início do
capítulo sobre a indústria cultural nos apontam para a unidade existente entre
a racionalidade técnica e a indústria cultural, quando mostram que esta
racionalidade é a grande responsável pela mistificação das massas através da
indústria cultural. Mostram a íntima relação existente entre o poder econômico
e os instrumentos da manipulação, responsáveis por toda a coesão do sistema.
Vejamos os autores:
O que não se
diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o
poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A
racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o
caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma (ADORNO & HORKHEIMER,
1997, p.114).
A indústria cultural só alcança seus objetivos a partir do planejamento
dos mecanismos do seu funcionamento, através de uma rigorosa seleção do que
efetivamente será o conteúdo das mensagens que serão patrocinadas pelos
detentores do poder. Desta forma toda a seleção de talentos obedece a um mecanismo econômico, em que tudo é
rigorosamente pré-estabelecido. Desta forma não haverá nenhuma identidade entre
a arte e o talento, mas apenas a imposição do facilmente digerível, da arte
leve, para as massas consumidoras. Assim todos os produtos culturais veiculados
têm que ter necessariamente a característica da assimilação fácil e que não
exijam esforço por parte dos consumidores. Esta é a ocasião em que se
estabelece a relação entre a cultura e o entretenimento, até também chegar a
sua absoluta fusão. Assim a arte já não
pode ser veículo de ideias que possam promover mudanças nas estruturas
sociedade, para obter das massas uma absoluta adesão ao senso comum
estabelecido pela própria indústria cultural. Nenhum espaço poderá estar aberto
para a crítica, para a imaginação e para a criação. Só repetição, só
tautologia.
Cremos não ser necessário avançar na análise do conteúdo e dos mecanismos
de funcionamento da indústria cultural, uma vez que a explicitação da sua
função está clara - na manutenção das estruturas do poder existente, sendo
assim o maior instrumento do poder construído a partir do consentimento das
massas ao poder que as oprime. A isto se chama de construção de hegemonia.
Vejamos ainda uma última afirmação dos autores relativa a este processo de
dominação: “A vida no capitalismo tardio é um contínuo rito de iniciação. Todos
têm que mostrar que se identificam com o poder de quem não cansam de receber
pancadas” (IBIDEM, p. 144).
A história da indústria cultural
recebe um novo capítulo com a publicação em 1967 do livro de Guy Debord – A Sociedade do Espetáculo. Longe de
pretender fazer neste texto uma análise deste livro, queremos apenas anunciar
este conceito e estabelecer uma relação com a formação do pensamento único. Do
livro tomaremos partes da advertência à edição francesa de 1992, a frase de epígrafe,
que Debord tomou de Feurbach e a tese número 9.
Na procura de ilustrar o conceito de
sociedade do espetáculo, iniciamos com a epígrafe, tomada de Feurbach e
retirada do prefácio da segunda edição de A
Essência do cristianismo, livro que praticamente inaugura no mundo moderno
os estudos sobre a alienação e a ideologia, estudos que tiveram forte
influência sobre o pensamento de Marx. Vejamos a epígrafe:
E sem dúvida o
nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à
realidade, a aparência ao ser... Ele considera que a ilusão é sagrada e a verdade é
profana. E mais: a seus olhos o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce
e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o
cúmulo do sagrado (In: DEBORD, 2000, p. 13).
Consideramos esta frase
auto-explicativa, na medida em que ela deixa clara a inversão que se promove
entre a realidade e a ilusão, abrindo-se assim a possibilidade de transformar o
mundo das ilusões no mundo da realidade. Esta inversão ganha maior clareza com
o aforismo ou tese de número 9, onde lemos que “no mundo realmente invertido, a
verdade é um momento do que é falso” (DEBORD, 2000, p.16).
Esta inversão promovida pela
acumulação de espetáculos, que transformou o real em representação só foi
possível pelo mecanismo que descrevemos, da total mistificação das massas,
através da indústria cultural.
Na já mencionada advertência à
edição francesa de 1992, encontramos a análise que estabelece a vinculação
entre a sociedade do espetáculo e a formação do pensamento único e do fim da
história, quando Debord mostra que os
Comentários
sobre a sociedade do espetáculo, livro editado por Debord em 1988
,
“mostraram com clareza que a anterior ‘divisão mundial das tarefas
espetaculares’ entre os reinos rivais do ‘espetacular concentrado’ e do
‘espetacular difuso’ havia desaparecido em favor de uma fusão, sob a forma
comum do ‘espetacular integrado’” (IBIDEM, p.10).
Este comentário se refere aos fatos
ocorridos no império da União Soviética e em que o autor diz corrigir a tese
número 105, do livro de 1967, quando ainda considerava que havia um grande
cisma no mundo. Este cisma já não mais existe. Tudo terminou em reconciliação e
comenta que “se o mundo pode enfim proclamar-se oficialmente unificado, é
porque essa fusão já se realizara na realidade econômico-política do mundo
inteiro” (IBIDEM, p. 10), e continua:
Foi
também possível porque a situação à qual universalmente chegou o poder separado
era tão grave, que esse mundo sentiu a necessidade de se unificar rapidamente:
de participar como um bloco único da mesma organização consensual do mercado
mundial, falsificado e garantido pelo
espetáculo. (...) Essa vontade de modernização e unificação do espetáculo,
ligada a todos os outros aspectos da simplificação da sociedade, levou em 1989 a burocracia russa a
converter-se de repente, como um só homem, a presente ideologia da democracia: isto é, a liberdade ditatorial do Mercado,
temperada pelos Direitos do homem espectador (IBIDEM, p.10-1)
Debord conclui que, afinal o mundo
não se unificou e lança sérias advertências sobre a desintegração desta
sociedade, afirmando que o grande objetivo de seu livro é o de perturbar esta
sociedade espetacular.
Num dos últimos escritos do
sociólogo francês Pierre Bourdieu, A Nova
Bíblia do Tio Sam, escrito em conjunto com Loïc Wacquant, os autores
comentam esta realidade, que qualificam como um imperialismo cultural,
afirmando que os novos produtores culturais deste mundo criaram inclusive a
novilíngua, a qual Orwel se referia no seu 1984.
Vejamos a descrição:
Em todos os
países avançados, patrões, altos funcionários internacionais, intelectuais de
projeção na mídia e jornalistas de primeiro escalão puseram-se a falar uma
estranha nova língua cujo vocabulário,
aparentemente sem origem, está em todas as bocas: ‘globalização’,
‘flexibilidade’; ‘governabilidade’ e ‘empregabilidade’; ‘underclass’ e exclusão; ‘nova economia’ e ‘tolerância zero’;
comunitarismo’ e seus primos ‘pós-modernos’, ‘etnicidade’, ‘minoridade’, ‘identidade’,
‘fragmentação’ etc.
A difusão
dessa nova vulgata planetária – da qual estão notavelmente ausentes
capitalismo, classe, exploração, dominação, desigualdade e tantos vocábulos
decisivamente revogados sob o pretexto de obsolescência ou de presumida
impertinência – é produto de um imperialismo apropriadamente simbólico: seus
efeitos são tão mais poderosos e perniciosos porque ele é veiculado não apenas
pelos partidários da revolução neoliberal – que sob a capa da ‘modernização’,
entende reconstruir o mundo fazendo tabula rasa das conquistas sociais e
econômicas resultantes de cem anos de lutas sociais, descritas, a partir dos
novos tempos, como arcaísmos e obstáculos à nova ordem nascente -, porém,
também por produtores culturais (pesquisadores, escritores e artistas) e
militantes de esquerda que, em sua maioria, ainda se consideram progressistas
(BOURDIEU & WACQUANT, 2001, p. 156).
Assman, em texto sobre ‘Pedagogia
da Qualidade’ em Debate, chama atenção para um processo de apropriação,
ressignificação e ressemantização de linguagens, inclusive de palavras que
considerávamos de significado óbvio, como a palavra mote do texto – qualidade.
É até irônico falar em qualidade e muito mais, - em qualidade total na
educação, quando esta atinge os seus piores índices de qualidade, quando este
vocábulo é usado no seu significado original e óbvio.
Assman considera que essas palavras sofreram um aprisionamento e que por
muito tempo elas não estarão livres para dizer o que efetivamente desejaríamos
dizer e denuncia que este sequestro de linguagem faz parte de um jogo
descaradamente ideológico que, no entanto, possui impressionante força
mobilizadora. Denuncia que tudo isto faz parte de um macrocontexto mundial para
se chegar a um único discurso viável, que tem por finalidade a absoluta
sacralização do mercado. Vejamos:
A estridência
do discurso sobre a qualidade faz parte de uma intensa utopização da lógica do
mercado. Com o esfacelamento do ex-bloco socialista, que culminou em 1989, a messianização da
irrestrita economia de mercado adquiriu pretensões de único discurso viável.
Agudizam-se, desde então, as linguagens sobre a ausência de qualquer
alternativa econômica e política que não incorpore plenamente um sim decidido
ao livre jogo dos mecanismos de mercado (ASSMAN, 1988, p. 188).
Vimos assim uma série de fatos e de conceitos, em que todos têm em comum
a construção de um pensamento único que legitime a atual ordem existente. Mas,
temos ainda um objetivo a ser atingido neste texto, que é o de lançar uma ponte
entre este pensamento único e a construção do pensamento pós-moderno.
4. O Pensamento
Único e a Pós-Modernidade.
Quanto aos referenciais sobre a
pós-modenidade, mais uma vez recorremos a Anderson (1999 – b), ao seu livro As Origens da Pós-Modenidade. Nele faz
um inventário histórico e conceitual deste movimento e do qual, para efeitos
deste texto, nos ateremos ao pensamento de Lyotard, pelo seu caráter pioneiro e
a Jameson, que o examinará em maior profundidade.
Lyotard adota este conceito em - A Condição pós-moderna, livro publicado em 1979 e o liga fundamentalmente
ao evento da sociedade pós industrial, também chamada de sociedade do
conhecimento, uma vez que este se transforma na principal força econômica desta
nova ordem. Aponta para o fato de - o pensamento pós-moderno marcar o fim das
grandes narrativas, que simultaneamente eram portadoras de utopias e de
legitimação, como as da Revolução Francesa e as do Idealismo Alemão, que
colocavam a humanidade como o grande agente histórico em busca de libertação
pelo avanço do conhecimento e da formação de uma unidade consensual pela
evolução do espírito. O pós-moderno representa o fim de todas as grandes
narrativas, as assim chamadas metanarrativas. Esta perda de crédito tem origem
na própria evolução da ciência, dominada pelo capital e legitimada pela busca
de resultados e guiada pela eficiência do desempenho.
Lyotard percebe também uma mudança
geral na condição humana, marcada por uma “tendência para o contrato temporário
em todas as áreas da existência humana: a ocupacional, a emocional, a sexual, a
política – laços mais econômicos, flexíveis e criativos que os da modernidade”,
como nos mostra o texto de Anderson (ANDERSON, 1999 –b, p. 33).
Nas análises que Anderson faz da
obra de Lyotard e, ao fazer uma relação com os fatos históricos da década de 80
ele constata a nova grande ofensiva ideológica da direita triunfante, contestando
o fim das metanarrativas, mas constatando o seu contrário, de que tudo foi unificado
em torno de uma só, que é a da redução de todo o projeto humano à lógica do
mercado. “Longe de terem desaparecido as grandes narrativas, parecia que pela
primeira vez na história o mundo caía sob o domínio da mais grandiosa de todas
– uma história única e absoluta de liberdade e prosperidade, a vitória global
do mercado (IBIDEM, p.39).
Lyotard era um militante de
esquerda, do grupo socialismo ou barbárie, que logo percebeu que o pós-moderno
não oferecia nenhuma perspectiva de júbilo, mas sim um tom de mal-estar e de
profunda nostalgia e melancolia, diante do triunfo do mercado.
A outra referência, a buscamos em
Jameson, que inicialmente percebia a pós-modernidade como um movimento de
degeneração interna do moderno, em que uma nova percepção de mundo ocorria e
que nada mais tinha em comum com as percepções anteriores da realidade. Uma
multiplicidade de fatores são apontados como causas deste fenômeno. Jameson
assim descreve esta realidade:
O recuo do
conflito de classes na metrópole, enquanto a violência era projetada para fora;
o peso enorme da propaganda e da fantasia da mídia para toldar as realidades da
divisão e da exploração; a separação entre existência pública e privada – tudo
isso criou uma sociedade sem precedentes.
Em termos
psicológicos podemos dizer que, como economia de serviços, estamos doravante
tão afastados das realidades da produção e do trabalho que habitamos um mundo
onírico de estímulos artificiais e experiência via TV: nunca, em nenhuma
civilização anterior, as grandes preocupações metafísicas, as questões
fundamentais do ser e do significado da vida pareceram tão remotas de sentido
(Apud ANDERSON, 1999 –b, p. 62-3).
A análise mais aprofundada sobre o tema, Jameson a faz em conferência
proferida no Museu Whitney de Artes Contemporâneas em 1982, depois transformada
em ensaio – livro sob o título - Pós-
Modernismo – A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio (JAMESON, 1997). Neste
livro, segundo Anderson, são apresentados cinco lances decisivos para os
estudos e a configuração mais ou menos definitiva sobre o tema.
O primeiro lance e também o mais importante, enquanto fundamento de todas
as outras transformações, se refere às mudanças objetivas no movimento do
próprio capital. Chama a atenção para um novo momento na história da produção
existente, o novo momento do capitalismo internacional. Estas mudanças foram
protagonizadas por uma série de inovações tecnológicas e organizacionais, que
Anderson assim sintetiza:
Jameson
assinalou a explosão tecnológica da eletrônica moderna e seu papel como
principal fonte de lucro e inovação; o predomínio empresarial das corporações
multinacionais, deslocando as operações industriais para países distantes com
salários baixos; o imenso crescimento da especulação internacional; e a
ascensão dos conglomerados de comunicação com um poder sem precedentes sobre a
mídia e ultrapassando fronteiras (ANDERSON, 1999, p.66).
Jameson ainda apresenta as consequências desta nova realidade, que por
serem a essência do fenômeno, continuamos a apresentar, pela escrita de
Anderson, como as alterações “nos ciclos de negócio, nos padrões de emprego,
nas relações de classe, nos destinos regionais, nos interesses políticos”
(IBIDEM, p. 66), e que apontam para um novo horizonte existencial destas
sociedades. Cultura e economia passam a coexistir.
Deste primeiro lance surge o segundo e não menos importante, que Jameson
chama de - metástases da psique - e anuncia ainda a morte do sujeito. Neste
lance observa as modificações na paisagem psíquica a partir das agitações da
década de 60, as suas derrotas a partir dos anos 70 e o consequente expurgo,
com as derrotas de todos os resíduos de radicalidade. Anderson, interpretando
Jameson, apresenta esta nova subjetividade em que figurava “a perda de qualquer
senso ativo de história, seja como esperança, seja como memória. (...) e
desapareceu a intensa expectativa de futuro. (...) apagando-se num perpétuo
presente” (IBIDEM, p. 68). Aponta ainda para o satélite e a fibra ótica como os
instrumentos técnicos que tornaram possível a construção do novo imaginário,
atentando ainda para as consequências deste, ao assinalar as características do
novo sujeito emergente:
O resultado é
uma nova superficialidade do sujeito, não mais seguro dentro de parâmetros
estáveis nos quais os registros de alto e baixo são inequívocos. Mas em
compensação, a vida psíquica torna-se debilitantemente acidentada e espasmódica,
marcada por súbitas depressões e mudanças de humor que lembram algo da
fragmentação esquizofrênica. (...) Aí, ao contrário, as polaridades, típicas do
sujeito vão da exaltação da ‘corrida às mercadorias’, do eufórico entusiasmo do
espectador ou consumidor, para a depressão no ‘vazio niilístico’ mais profundo
do nosso ser, como prisioneiros de uma ordem que resiste a qualquer controle ou
significado (IBIDEM, p. 68-9).
No terceiro lance Jameson apresenta as mudanças na cultura, fazendo uma
incursão em todas as artes. No quarto assinala as novas bases sociais e para o
novo padrão geo-político, para finalmente, no quinto, entrar na questão da
valoração deste movimento, lances em que não vamos nos deter nesta análise,
remetendo esta para a leitura do próprio Jameson ou para as interpretações de
Anderson. O estudo desta questão também passa necessariamente pela leitura de
um outro livro, - Condição Pós-Moderna de
David Harvey (HARVEY, 1992), do qual também apenas sugerimos a indicação.
Quanto à questão da valoração do movimento, aponta para a necessidade da
compreensão, por dentro, do pós-modernismo como um sistema, do novo momento
histórico do capitalismo e não abre mão do que considera irrenunciável, o
projeto marxista quanto a uma mudança global das estruturas da sociedade.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS:
Como afirmamos no início, o artigo
de Kucinski foi o mote para este texto. Existe muito menos liberdade no
jornalismo hoje, em tempos de democracia do que existia nos tempos da ditadura
militar. Esta é a sua tese central, corroborada também com a frase inscrita na
sede do sindicato dos jornalistas de Buenos Aires, que afirma não poder se
pensar o que é escrito, nestes tempos dominados pelo pensamento único, ou da
democracia do mercado.
O que pretendemos apresentar ainda
nestas considerações finais é fazer um pequeno apanhado em torno da questão da
origem das ideias, para ver como foi construída esta ideia de um pensamento
único, bem como a forma pela qual ele foi construído.
Uma das mudanças fundamentais
relativa às origens das ideias ocorreu no início da Idade Moderna, quando a
construção do pensamento passa para a esfera do subjetivo. A verdade passa a
ser construída a partir do sujeito pensante. Até aí a verdade era de origem
metafísica, isto é, vinha do além, de fora deste mundo dos homens. Em suma,
estavam no campo religioso e, por estas concepções, a verdade foi revelada aos
homens por Deus e passava a ser guardada, custodiada, ou interpretada por
grupos, que se julgavam detentores do monopólio da representação de Deus no
mundo. No mundo ocidental e cristão isto foi basicamente uma construção de
Constantino e de Santo Agostinho. Muitas estruturas de poder foram postas a
serviço desta concepção.
Com a transferência do foco da
concepção das ideias para o sujeito pensante, com o Cogito, ergo sum de Descartes, toda uma nova concepção de ideias e
de luta por seu monopólio começou a ser construída. De uma maneira geral, a
razão passa a ser a fonte das ideias e estas, com a afirmação do positivismo,
passam a ser produzidas por uma elite pensante e que encontram a sua
justificativa na divisão social do trabalho. Por esta divisão alguns se dedicam
ao mundo do pensar e outros ao do fazer, com a marcada superioridade do
primeiro sobre o segundo. É esta uma das dicotomias fundamentais dos tempos
modernos.
Na evolução do pensamento racional
estava embutida uma ideia de progresso técnico e de avanços nas relações
humanas provocadas pelo entendimento mútuo de homens iguais. O mundo, no
entanto, pouco evoluiu neste segundo tópico e isto nos é atestado pelo
sangrento curso histórico do século XX e dos fundamentalismos com que
adentramos ao século XXI. O mundo concentrou as suas energias no primeiro
tópico e, a razão em vez de se centrar numa razão a serviço do homem, percorreu
o caminho de uma racionalidade técnica, instrumental e se rendeu a lógica
econômica do mercado, tida como uma avalanche espontânea e natural, impossível
de ser detida por qualquer força política, isto é, por qualquer força da ação
humana.
Esta força da ação humana, ensinada
ao mundo por Marx, o filósofo da ação transformadora do mundo, através da
continuidade dos processos revolucionários de seu tempo, com a doutrina do materialismo
histórico e dialético. Esta doutrina põe na própria ação humana, ou na ação
organizadora do homem nas estruturas da totalidade desta sociedade as
possibilidades da sua transformação. Por ela, a base material e econômica é que
determina a maneira de pensar desta sociedade. A partir de Marx tivemos uma
forte polarização de ideias, que acompanharam a humanidade em todo o curso
histórico do final do século XIX e por todo o século XX, ao menos até a sua
última década.
Com os fatos surgidos ao final do
século XX, especialmente aqueles promovidos na base econômica, nas relações
materiais e sociais da produção e as que afetaram as mudanças nas relações
políticas, com o colapso das experiências do socialismo real mudanças,
portanto, tanto na base material desta sociedade, quanto na superestrutura da
mesma, anularam as possibilidades do pensamento plural e crítico por um
processo de manipulação sem precedentes, como acabamos de ver. Construiu-se um
mundo unipolar. Esta unipolaridade longe está, no entanto, de ter eliminado as
contradições no mundo. Este pensamento unipolar se constitui na grande tentativa
de anular estas contradições, procurando construir uma nova hegemonia,
inclusive com o uso de muito poder na base da força e da violência e com o uso
das velhas categorias da separação entre o Bem e o Mal.
A construção desta unipolaridade,
sob os nomes de pensamento único, fim da história percorreu um longo caminho
que procuramos retraçar ao retomarmos a sua trajetória. Racionalidade técnica e
instrumental, indústria cultural, sociedade do espetáculo, formatação de uma novilíngua com a ressignificação da
linguagem e das palavras são alguns dos instrumentos utilizados para o
aprisionamento do pensar, por esta nova configuração do capitalismo em seu
imperialismo agora global.
Como última consideração, queremos
apontar para a forma que este pensamento procurou adquirir ao se transformar em
pensamento definitivo e para a forma autoritária que o mesmo tomou. O
pensamento único que determinou o fim da história, é segundo os seus autores
que serviram de referência para as nossas reflexões, a sobrevivência de um
único dogma, que é a afirmação do chamado mundo livre do mercado, da democracia
liberal e da sua superioridade sobre todas as outras visões de mundo ou
culturas, e que na sua condição de superiores, tem por dever, como recentemente
afirmou Berlusconi na tentativa de justificar as políticas de Estado de Bush,
de que a cultura superior tem o dever de lutar para a sua afirmação, impedindo
assim que culturas inferiores, que representam o atraso, se imponham. Volta
assim, junto com o pensamento único, e em grande estilo, o grande imperativo
das missões civilizatórias.
Tem razão, portanto, tanto Kucinski
ao apontar os paradoxos do jornalismo hoje, embutidos num invólucro mais
autoritário do que o era no regime militar, pela sua forma de pensamento único,
quanto os militantes do sindicato de jornalistas de Buenos Aires quando dizem
que este pensamento impede de pensar o que escrevemos nestes tempos de
pensamento único e uniformizado.
Os caminhos de reação, em favor da
manutenção da pluralidade e da riqueza da diversidade, do enriquecimento
cultural pelo cultivo das diferenças, está também dado pela afirmação das
contradições e pela necessidade de continuar pensando o pensamento, seguindo o
caminho apontado por Adorno e Horkheimer, da dialética negativa. Enquanto
houver contradições nas relações de produção haverá história porque haverá luta
pela superação das mesmas. Permanecem vivas assim as utopias e as ideologias e
o futuro poderá ser percorrido por diferentes trilhas e não apenas por um único
e monótono caminho.
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