sexta-feira, 23 de junho de 2017

A partir de Agamben - Reflexões em torno da delação premiada.

Sempre tive dúvidas com relação a qualquer tipo de delação. Não pertenço ao mundo dos crimes, mas com a minha formação, que compartilho com a maioria dos leitores, vivi acometido por culpas e remorsos. Coisas herdadas do cristianismo. Nem a confissão e a penitência me tranquilizavam. Mais do que as infrações cometidas, me arrepiava dividir as culpas com alguém. Sempre preferi assumi-las sozinho
O pequeno grande livro de Agamben Meios sem fim - Notas sobre a política. Coletânea de textos.

Gostei de uma das declarações de Marcelo Odebrecht que ia nesta direção e, alegava para isso, a formação recebida em família. Também sempre considerei que a investigação de crimes deve passar pela questão da investigação e da tecnologia e não por delações. A polícia deve estar aparelhada para o exercício de suas funções e isso requer o uso da técnica. As delações também trabalham com a questão do método, da forma dos interrogatórios. Não é nada confiável quando é possível imaginar que elas possam ser forçadas. Pensar isso em tempos em que o estado de exceção se transformou em regra, é apavorante, mas absolutamente possível.

Mas falar em estado de exceção é falar de Giorgio Agamben. E é exatamente este filósofo italiano que me leva a este post. Em seu livro Meios sem fim - notas sobre a política, encontramos já em suas reflexões finais um texto com o seguinte título. Neste exílio. Diário italiano 1992-1994. Nele encontramos uma interrogação, feita após uma série de reflexões sobre os acontecimentos da época. A interrogação é a seguinte: Do que se arrependem os italianos? A resposta é uma preciosidade e por essa razão a compartilho integralmente.

"Começaram como membros de brigadas e mafiosos, e, desde então, assistimos a um desfile interminável de rostos torvos em sua convicção, decididos no seu próprio vacilar. Às vezes, no caso dos mafiosos, o rosto aparecia na sombra para impedir que fosse reconhecido e - como da sarça ardente - escutávamos 'apenas uma voz'. Com essa voz profunda da sombra chama, nos nossos dias, a consciência, como se ele não conhecesse outra experiência ética fora do arrependimento. Precisamente aqui, no entanto, se trai a sua inconsciência, pois o arrependimento é a mais traiçoeira das categorias morais - aliás, não é nem mesmo certo se ela pertence à classe dos conceitos éticos genuínos. É conhecido o gesto decisivo com que Espinoza nega ao arrependimento todo direito de cidadania em sua Ética: quem se arrepende, escreve ele, é duas vezes infame, uma vez por ter cometido um ato do qual teve que se arrepender, e uma segunda vez porque se arrependeu dele. Mas quando, já no século XII, o arrependimento penetra com força na moral e na doutrina católica, logo se apresenta como um problema. Como provar, com efeito, a autenticidade do arrependimento?  Aqui o campo logo se divide entre quem, como Abelardo, exigia apenas a contrição do coração, e os 'penitenciais', para os quais importante não era, ao contrário, a insondável disposição interior do arrependimento, como o cumprimento de inequívocos atos exteriores. Toda a questão, portanto, se envolveu imediatamente em um círculo vicioso, no qual os atos exteriores deviam atestar a autenticidade do arrependimento e a contrição interior, garantir a genuinidade das obras, segundo a mesma lógica para a qual, nos processos atuais, denunciar os companheiros é garantia da veracidade do arrependimento e o arrependimento íntimo sanciona a autenticidade da denúncia.

Que o arrependimento tenha ido parar nas salas dos tribunais não é, de resto, um acaso. A verdade é que ele se apresenta desde o início como um compromisso equívoco entre moral e direito. Através do arrependimento, uma religião, que havia ambiguamente chegado a um acordo com o poder mundano, procura sem êxito dar razão ao seu compromisso, instituindo uma equivalência entre penitência e pena, entre delito e pecado, mas não há indício mais certo da ruína irreparável de toda experiência ética que a confusão entre categorias ético religiosas e conceitos jurídicos, que chegou hoje ao seu paroxismo. Atualmente, onde quer que se fale de moral, as pessoas têm categorias do direito na ponta da língua, e onde quer que  façam leis e processos, a serem manejados como obscuros feixes de lictor (Em italiano, fascio littorio: símbolo de origem etrusca, associado ao poder e à autoridade, que foi usado pelo Império Romano e pelo fascismo na Itália), são, ao contrário, conceitos éticos.

Tanto mais irresponsável é a gravidade com que os laicos se apressaram a cumprimentar a entrada do arrependimento - como ato incontestável de consciência - nos códigos e nas leis. Pois se realmente desventurado é quem é constrangido por uma convicção inautêntica a jogar toda a sua experiência interior em um conceito falso, para ele ainda há, talvez, uma esperança. Mas para os mediocratas que se vestem de moralistas e para os maîtres à penser televisivos, os quais em sua desventura edificaram vitórias pedantes, para estes, não, não há realmente esperança".  AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim - notas sobre política. Autêntica. Belo Horizonte - São Paulo. 2015. pp. 115-117. A edição brasileira é de 2015.

Se tivesse sido escrito por encomenda para a atual realidade brasileira da Lava Jato, não poderia ter saído melhor. Boas reflexões. Ouvi um amigo dizer que, como todos estão delatando todos, todos serão absolvidos. E felizes continuarão praticando os mesmos atos, pois não carregam a culpa cristã. Dela já conseguiram se libertar, embora se confessem extremamente religiosos.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

O que é ser socialista? Antônio Cândido responde.



Por ocasião da morte de Antônio Cândido, entre muitas coisas sobre ele, uma mais bonita que a outra, encontrei esta preciosidade. A resposta por ele dada, à pergunta sobre o que é ser socialista, que termina com a majestosa afirmação de que todas as conquistas que humanizaram, que deram uma fisionomia minimamente civilizada ao mundo, "tudo é conquista do socialismo". Não me recordo da fonte, mas a guardei em meus arquivos.

 Antônio Cândido (1918 - 12.05.2017). Um grande ser humano brasileiro. E socialista convicto.


Não vou aqui fazer uma elegia ao grande homem que ele foi. Estudar o seu legado é a maior homenagem que lhe podemos prestar. O que posso garantir é que ele interagiu ativamente com todos os intérpretes do Brasil, na qualidade de crítico literário. Ele está onipresente. Pretendo estudá-lo mais sistematicamente começando com o seu Literatura e Sociedade.

Mas vamos ao objetivo do post, que é ver a sua resposta para a pergunta - O que é ser socialista? Perguntado se ele era socialista assim ele respondeu:

"Ah, claro, inteiramente.
Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo.
E não é um paradoxo.
O que é o socialismo? É o irmão gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo.
Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo.
Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado.
Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo... tudo isso.
Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar  mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças.
Coisas que hoje são banais.
Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias... tudo é conquista do socialismo.

É, Antônio Cândido, onde quer que tu estejas, os tempos mudaram. Certamente te ausentaste deste mundo para não mais veres as injustiças deste mundo sob o espírito da acumulação capitalista, em seus tempos de capitalismo financeiro, mais voraz do que nunca. Tinhas idade para isso, nós o compreendemos. Mas nos deixaste as bandeiras para praticar o bom combate.

Dedico este post para as professoras e professores, funcionários e funcionárias das escolas do Núcleo sindical da APP-Sindicato de União da Vitória com os quais irei trabalhar no sábado, 24.06.2017. Também deixo uma frase que me há muito me acompanha, sobre a necessidade de que o educador tenha suas crenças, valores e convicções e assim dar validade e direção ao seu trabalho. É de Jean Claude Forquim, retirada de seu livro Escola e Cultura. "Ninguém pode ensinar verdadeiramente se não ensina alguma coisa que seja verdadeira ou válida a seus próprios olhos".










quarta-feira, 21 de junho de 2017

Meios sem fim - Notas sobre a política. Agamben.

Esta leitura é mais um fruto da palestra do professor Gaudêncio Frigotto que assisti recentemente. O livro é formado de uma série de pequenos ensaios publicados por revistas europeias no início dos anos 1990. Fazer uma resenha é uma tarefa difícil, embora todos os textos tenham entre si uma unidade. Assim seguirei o próprio livro, no qual a contracapa é usada para uma citação e a orelha contem uma pequena descrição do que é o livro.
Pequenos ensaios fundamentais para a leitura do mundo em dias atuais.


Tomo a íntegra desta descrição. "Publicado na Itália, em 1996, Meios sem fim é, segundo o próprio Agamben, um conjunto de textos (escritos entre 1990 e 1995) que se referem, cada um à seu modo, a um canteiro de obras cujo primeiro fruto tinha sido a publicação do primeiro volume do Homo Sacer (O poder soberano e a vida nua, Einaudi, 1995). Embora não se constituam propriamente como um dos volumes da série Homo Sacer, os breves ensaios de Meios sem fim antecipam os seus núcleos originais e apresentam alguns de seus 'estilhaços e fragmentos': a vida nua, a biopolítica; o estado de exceção; o campo de concentração; o refugiado; as sociedades democrático-espetaculares; a política como esfera dos meios puros ou dos gestos.

Mas Meios sem fim é também o exercício de um confronto visceral entre um filósofo vivo e os mais urgentes acontecimentos de seu tempo (o que se passou nos territórios da antiga Iugoslávia, a situação de um Estado sem povo, como o Kuwait, ou de povos sem Estado, como os curdos, os armênios, os palestinos e os judeus da diáspora; os eventos de Timisoara, na Romênia, que levaram à queda do ditador Nicolae Ceausecu; os protestos na China, na praça da Paz celestial, a Guerra do Golfo). Todos esses eventos pedem um novo pensamento que lhes dê inteligibilidade. E é esse novo pensamento que o leitor tem diante dos olhos nestes ensaios. Uma nova filosofia, como toda filosofia, surge somente no embate com o mundo que a cerca e que está aí para dar lições. Os filósofos são aqueles que sabem aprendê-los".

O trecho escolhido que figura na contracapa é retirado do ensaio O que é um povo?,logo em seu começo. "Toda interpretação do significado político do termo povo deve partir do fato singular de que este, nas línguas europeias modernas, sempre indica também os pobres, os deserdados, os excluídos. Ou seja, um mesmo termo nomeia tanto o sujeito político constitutivo como a classe a que, de fato se não de direito, está excluído da política. [...] Uma ambiguidade semântica tão difundida e constante não pode ser casual: ela deve refletir uma anfibologia inerente à natureza e à função do conceito de povo na política ocidental. [...] Mas isso significa, também, que a constituição da espécie humana num corpo político passa por uma cisão fundamental e que, no conceito de povo, podemos reconhecer sem dificuldade os pares categoriais que vimos definir a estrutura política original: vida nua (povo) e existência política (povo), exclusão e inclusão, zoé e bíos. Ou seja, o povo já traz sempre em si a fratura biopolítica fundamental. Ele é aquilo que não pode ser incluído no todo do qual faz parte e não pode pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído".

Pelo meu arbítrio busco mais duas citações. "Nada é mais nauseante do que o descaramento com que aqueles que fizeram do dinheiro a sua única razão de vida agitam periodicamente o fantoche da crise econômica, e os ricos vestem, hoje, roupas austeras para alertar os pobres de que sacrifícios serão necessários para todos. Igualmente estupefaciente é a docilidade com que aqueles que se tornaram totalmente cúmplices do desequilíbrio da dívida pública, cedendo ao Estado todas as suas economias em troca de BOT (título do tesouro), recebem sem pestanejar a adnominação e se preparam preparam para apertar o cinto. E, no entanto, qualquer um que tenha conservado alguma lucidez sabe que a crise está sempre em curso, que ela é o motor interno do capitalismo em sua fase atual, assim como o estado de exceção é hoje a estrutura normal do poder político". p.119-120.

E ainda mais uma última citação sobre o transigir, ou às concessões que fazemos. "... A Revolução tinha que transigir com o capital e com o poder, assim como a Igreja tinha precisado entrar em um acordo com o mundo moderno. Desse modo, foi tomando forma, aos poucos, o mote que guiou a estratégia ao progressismo em sua marcha rumo ao poder: é necessário ceder a tudo, reconciliar cada coisa com o seu oposto, a inteligência com a televisão e a publicidade, a classe operária com o capital, a liberdade de palavra com o Estado espetacular, o meio ambiente com o desenvolvimento industrial, a ciência com a opinião, a democracia com a máquina eleitoral, a má consciência e a abjuração com a memória e a fidelidade". p. 123-124.

Por falar em espetáculo, um dos pontos altos do livro é o ensaio Glosas à margem dos Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Senti uma ligeira necessidade de retomar este maravilhoso livro de Guy Debord. Mas o que segue, sob o nome de O rosto é mais do que extraordinário. Se constitui numa penetração no fantástico mundo da linguagem.

terça-feira, 20 de junho de 2017

Estado de exceção. Ausnahmezustand. Giorgio Agamben.

Um velho hábito meu. Ao assistir palestras, presto muita atenção nas referências bibliográficas trabalhadas. Posteriormente verifico-as mais de perto e procuro adquirir as obras referenciadas, quando elas interessam mais de perto. Assim, assistindo a uma fala do professor Gaudêncio Frigotto, adquiri duas obras de Giorgio Agamben. Estado de Exceção e Meios sem fim - Notas sobre política. Apresento hoje uma pequena resenha do primeiro destes livros.
O livro de Giorgio Agamben Estado de Exceção. Da Boitempo.

Estado de Exceção é uma obra do campo do Direito, com maior especificidade para a sua história. A atualidade deste estudo se deve ao verdadeiro estado de exceção que está sendo vivido mundo afora, nestes tempos tão conturbados, em que os alicerces econômicos do mundo estão se sobrepondo a todo e qualquer avanço político e anulando direitos que dariam para a sociedade os mínimos padrões de organização digna de um padrão civilizatório. Agamben mostra que se procura introduzir um estado de exceção dentro dos sistemas da própria legalidade constitucional.

Na contracapa do pequeno livro se a seguinte frase de Walter Benjamin, um dos autores que referencia o livro. "A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é criar um verdadeiro estado de emergência". Lembrando que Walter Benjamin morreu em 1940, enquanto empreendia fuga dos horrores do regime nazista em território espanhol, provavelmente, cometendo suicídio.

Na orelha do livro está a apresentação do mesmo, feita por Gilberto Bercovici. Ele assim apresenta a obra: "Neste livro, o filósofo italiano Giorgio Agamben nos mostra que os tempos atuais não são de normalidade, mas de consolidação do estado de exceção como paradigma de governo. Com as estruturas públicas ameaçadas ou em dissolução, a suspensão da ordem jurídica passa a ser encarada com naturalidade e a se tornar regra, trazendo de volta o pensamento de Carl Schmitt, intelectual alemão conservador que aderiu ao nazismo". E mais adiante, ele expressa o objetivo da obra.

"Para o autor, as democracias ocidentais vivem um processo de rompimento com o antigo nomos  da terra, levando à ruína o sistema de limitações recíprocas. O fundamento oculto desse rompimento é a exceção soberana, e o que presenciamos é a irrupção desse estado para além de seus limites. Estabelecendo uma relação entre o dinheiro e a violência, demonstra que o ordenamento jurídico contém em si o seu contrário: a suspensão dos direitos, que admite uma violência não regulada pela lei, na qual o estado de exceção se torna uma estrutura jurídico política estabelecida. Este é o prenúncio do novo nomos da terra".

O livro é formado por seis capítulos. Todo o destaque vai para o primeiro, O Estado de exceção como paradigma de governo. Nele Agamben faz uma análise das teorias de Carl Schmitt, o jurista que aderiu ao nazismo. Mas o mais interessante neste capítulo é todo um histórico do estado de exceção dentro do sistema capitalista. Ele é praticamente uma instituição permanente, desde a Revolução Francesa, passando pela guerras e nos períodos entre elas.

O segundo capítulo leva por título Força de lei, sendo que a palavra lei é cortada por um x, significando a inexistência da mesma. Analisa a simultaneidade entre estar dentro e fora da lei, o que obviamente se constitui numa aporia. O terceiro capítulo Iustitium abre uma nova discussão em torno deste termo do direito romano, que o autor considera como uma denominação técnica para o estado de exceção. Nos dois capítulos seguintes, segue a análise desta instituição, tendo o quatro como título Luta de gigantes acerca de um vazio e o quinto, Festa, luto e anomia. O livro volta no último capítulo aos romanos, buscando a distinção entre Auctoritas e Potestas, trazendo estas distinções até o presente.

É, seguramente um livro para especialistas. Especialistas da história do direito, da teoria política e também do direito constitucional, em seus fundamentos. Não deixa de ser também um livro para todos os que acompanham a política nestes tempos tão tenebrosos. No livro Meios sem fim - notas sobre política, Agamben define o estado de exceção como sendo a "suspensão temporária do ordenamento, que revela, ao contrário, constituir  a sua estrutura fundamental em todos os sentidos".


sábado, 17 de junho de 2017

O Jornalismo em tempos de pensamento único.



Este texto foi publicado originalmente na revista - JORNALISMO - reflexões, experiências, ensino, organizada por Alexandre Castro, Marcelo Lima e Tomás Barreiros, com apresentação de Marcelo Lima. A edição é de 2007. Os textos são escritos pelos professores do curso de jornalismo do então UNICENP, hoje Universidade Positivo. O ano da publicação foi o de 2007. Reli, gostei e estou publicando o meu texto para a revista. Que saudades da Academia, mas sem o stress da obrigação. Estou muito bem, administrando o meu tempo livre.
Cadernos Diplô Le Monde Diplomatique. nº 3 -  Janeiro de 2002.


 O JORNALISMO EM TEMPOS DE PENSAMENTO ÚNICO.

A ditadura não me deixava escrever aquilo que penso.
O pensamento único não me deixa pensar o que escrevo.
Frase encontrada na sede do sindicato dos jornalistas de Buenos Aires.

Pedro Elói Rech. Mestre em História e Filosofia da Educação. -  Professor de Filosofia e Teoria Política no UNICENP.

Um Plano de Trabalho.
            Quando participava do primeiro Fórum Social Mundial, realizado em janeiro de 2001, me detive, entre maravilhado pelo encontro com os grandes personagens do pensamento mundial e perplexo diante das novas realidades apresentadas pelo mundo, a pensar sobre todo este novo cenário. No ano seguinte, de novo, no mês de janeiro e em Porto Alegre, comprei o Cadernos Diplô – Le Monde Diplomatique, onde me deparei com o artigo de Bernardo Kucinski intitulado Do Discurso da Ditadura à ditadura do discurso (KUCINSKI, 2001), que passei a adotar em sala de aula. Posteriormente me deparei com o mesmo texto, com algumas modificações e, em que ele ganha um subtítulo – Dez paradoxos do jornalismo neoliberal (Kucinski, 2004). Numa página da revista, numa anotação minha está anotada a frase de epígrafe, com a qual abrimos este texto e que está inscrita na sede do sindicato dos jornalistas de Buenos Aires.

            Encontrei nestes textos e nesta frase o motivo para desenvolver algumas reflexões em torno do tema. Buscamos inicialmente elucidar o conceito de fim de história para logo depois apresentar o pensamento liberal, ou a democracia liberal, por ter sido este o único dogma remanescente no mundo. Procuramos também elucidar alguns conceitos chaves neste movimento como a crise da modernidade, a indústria cultural, a sociedade do espetáculo, o pensamento único, a ressemantização das palavras, a razão instrumental, o fundamentalismo e a pós-modernidade, que se conectam entre si e nos dão o sombrio panorama do presente momento mundial. Concluímos com uma aproximação do texto de Kucinski e da frase de Buenos Aires com as abordagens do presente texto. Queremos também lembrar que este texto foi escrito entre inúmeras aulas e correção de provas.

1. Os Dez Paradoxos do jornalismo neoliberal.

Como o texto de Kucinski é o mote para estas reflexões, apresentamos inicialmente uma pequena síntese dos dez paradoxos, apresentados no artigo – Do discurso da ditadura à ditadura do discurso. E o faço numa interpretação livre destes textos, cujas referências já apresentamos.

Primeiro Paradoxo: Nunca houve tanta falta de pluralidade na mídia brasileira como nos tempos atuais de hegemonia do neoliberalismo. Não há mercado de idéias no neoliberalismo brasileiro. Encontramos sempre a mesmice jornalística.
Segundo Paradoxo: Temos menos pluralismo hoje, sob o regime democrático, do que tínhamos sob o regime ditatorial de 1964. Isto se deve a ditadura do discurso único.
Terceiro Paradoxo: Na era neoliberal não é preciso limitar a crítica dos jornais pela mão militar porque nenhum jornal adota uma linha editorial crítica.
Quarto Paradoxo: Enquanto assistimos a uma cada vez maior polarização na sociedade brasileira, na mídia ocorre o oposto, com a completa ausência de polarização ideológica. As teses neoliberais se constituem no único fundamento de todos os veículos de comunicação de massa.
Quinto paradoxo: A ética jornalística desapareceu das redações e a supressão da liberdade de imprensa se banalizou como uma condição natural, e no entanto, quem mais se identifica com os pressupostos neoliberais são os jornalistas jovens apesar de serem os mais estressados em virtude dos processos de alienação em seus ambientes de trabalho.
Sexto Paradoxo: A concentração da mídia brasileira em monopólios ocorre em tal grau que viola todas as leis anti-monopólio existentes.
Sétimo Paradoxo: No jornalismo neoliberal a mídia fala em nome do interesse público, mas serve ao interesse privado.
Oitavo Paradoxo: A indústria da comunicação de massa está em profunda crise no Brasil, com a queda nas tiragens dos jornais e revistas e a queda na publicidade. Encontra-se fortemente endividada pelo estreitamento do mercado e pela invasão das multinacionais e, mesmo assim, apoia entusiasticamente o projeto neoliberal.
Nono Paradoxo: As empresas brasileiras de comunicação de massa planejam a sua própria absorção pelos grandes grupos globais da comunicação. É o suicídio empresarial de uma burguesia congenitamente entreguista e subserviente.
Décimo Paradoxo: Existe um contraste entre a hegemonia completa do projeto neoliberal na mídia brasileira e a total ausência destes padrões dominantes para os demais aspectos da vida brasileira. Propõe a era da convivência dos contrários, da tolerância étnica, enfim, do pluralismo em todas as suas formas, menos no modelo econômico. Nesse o neoliberalismo se coloca como a última e a derradeira metanarrativa.

2. As Origens do Fim da História.

            Encontramos uma bela explanação do conceito de fim da história no livro de Perry Anderson O Fim da História – De Hegel a Fukuyama. (ANDERSON, 1992). O livro consiste essencialmente, ao menos na sua parte final, numa análise do livro de Fukuyama, intitulado O Fim da História e o Último Homem, datado de julho de 1989. Na introdução de seu livro, Anderson afirma o caráter ideológico da obra de Fukuyama, escrita não a partir da observação, real ou imaginária, mas de dentro do gabinete do Departamento de Estado dos Estados Unidos e que ela não se constitui em qualquer lamento pessimista mas, pelo contrário, ela se reveste de um confiante otimismo.
            A tese central da obra é a de que a humanidade atingiu o ponto final de sua evolução ideológica, com o triunfo da democracia liberal ocidental sobre todos os seus concorrentes, ao final do século XX. Esta vitória se deveu ao final dos regimes fascistas, destruídos na segunda guerra mundial e com o descrédito do comunismo e a sua rendição final ao capitalismo. Sobrariam apenas alguns bolsões nacionalistas e alguns fundamentalismos religiosos, confinados porém, a áreas subdesenvolvidas do terceiro mundo.
            A vitória do capitalismo liberal seria assim um produto da desintegração do stalinismo, das transformações ocorridas no Japão, a liberalização na Coréia e a mercantilização da China. Do processo competitivo mundial teriam sido retiradas todas as toxinas ideológicas e militarizantes, em favor de uma estrutura de colaboração dentro de um mercado global, do qual o Mercado Comum Europeu já havia servido de modelo. Nesta sociedade ainda emergiriam conflitos provocados por tensões étnicas, paixões sectárias e terrorismos, mas que de forma nenhuma se contraporiam como alternativa ao modelo liberal. Este modelo seria a forma final do governo humano e cessaria assim, por completo, todo o movimento histórico.
            Em seu livro Fukuyama afirma que isto já fora antevisto por Hegel, com a vitória de Napoleão, - em Iena - sobre o velho regime prussiano e a consequente universalização dos princípios da Revolução Francesa. Anderson cita uma frase de Fukuyama em que este descreve o estado final atingido: “O Estado que emerge no fim da história é liberal na medida em que reconhece e protege, através de um sistema jurídico, o direito universal do homem à liberdade, e é democrático na medida em que somente existe com o consentimento dos governados” (apud ANDERSON.1995, p. 13).
            Anderson na parte final da introdução de seu livro afirma que a reação ao livro de Fukuyama foi praticamente universal e lhe faz também as suas críticas. Aponta que a tese de Fukuyama é fundamentalmente uma reafirmação dos direitos à propriedade privada e às operações de uma economia de mercado e acrescenta que o fato de a história ter chegado ao seu fim implica em altos custos. Vejamos Anderson enunciando estes custos:

A conclusão da história da liberdade humana tem seus custos. Ideais audaciosos, altos sacrifícios, impulsos heroicos, tudo se dissipará em meio à rotina trivial e monótona de fazer compras e votar; a arte e a filosofia definham, quando a cultura é reduzida à função de curadora do passado; cálculos técnicos substituem a moral ou a política. É lúgubre o pio noturno da coruja[1] (IBIDEM. p. 13).
           
            Em 1999 escrevi um artigo com o título O neoliberalismo: uma retomada dos princípios da sociedade de mercado capitalista, em que fazia uma análise da questão do fim da história e a apresentava nos seguintes termos:

O neoliberalismo se propõe como alternativa única a todos os modelos que se estabeleceram no século XX, com forte presença do Estado, como o socialismo, a social democracia e o nosso modelo de substituição de importações. A derrocada do socialismo teria ocorrido pela estagnação, a da social democracia, pela sua crise fiscal e o modelo de substituição de importações, pelo endividamento externo.
A sua mais recente configuração se assenta nos princípios da desestatização – desnacionalização, da desregulamentação – desconstitucionalização e da desuniversalização – desproteção, no que se refere aos direitos da cidadania. (RECH, 199, p. 12).

            Em palestra realizada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em setembro de 1994, num seminário que recebeu o título de - Pós-neoliberalismo – As políticas sociais e o Estado democrático, posteriormente organizado em livro, sob o mesmo título, Perry Anderson, após fazer um balanço do neoliberalismo conclui que, economicamente ele fracassou por não ter conseguido uma revitalização dos países capitalistas avançados, que socialmente ele conseguiu bons resultados com a criação de sociedades mais desiguais, para depois apontar que os seus maiores êxitos estão localizados em sua parte política e ideológica. Vejamos a descrição:

Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples ideia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas. Provavelmente nenhuma sabedoria convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o início do século como o neoliberal hoje. Este fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente, milhões de pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a seus regimes (ANDERSON, 1995, p.23).

Percebe-se que na formação do conceito de fim da história somam-se as ideias de cessação do movimento histórico com o neoliberalismo triunfante que se instaurou na Europa a partir dos anos 80 e no resto do planeta, com raras exceções, a partir dos anos 90 e com grande destaque para a sua presença ideológica.


2. A Essência do Pensamento Liberal:

            Mas o que é afinal de contas a essência do pensamento liberal? O que ele tem de tão forte para ser a única verdade que sobrou nos tempos do pensamento único? O que contém este credo e que seduções ele apresenta para revestir-se como o último grande dogma da humanidade?
            O pensador e educador americano John Dewey (1858 – 1952) atribui aos gregos, especialmente no que se refere ao livre jogo da inteligência, as mais remotas origens do liberalismo, especialmente as ideias contidas na oração fúnebre de Péricles. Afirma ainda, que a palavra liberal e o liberalismo como uma filosofia social, surge apenas no início do século XIX, mas que ela já vem, como tudo o que é histórico, precedida de um longo processo.
            Dewey, em seu livro, Liberalismo, Liberdade e Cultura (DEWEY, 1970) apresenta a sua história e a divide em dois grandes momentos: a do liberalismo clássico ou ortodoxo e a do modificado ou heterodoxo. O divisor de águas entre os dois é a função exercida pelo Estado, que é negativa no clássico e que começa a admitir algumas funções positivas no heterodoxo. Apresenta John Locke (1632-1704) e Adam Smith (1723-1790) como os grandes representantes do liberalismo clássico e Bentham (1748-1832) e Stuart Mill (1806-1873) como os representantes do heterodoxo. Enquanto Locke é apresentado como o seu estruturador político, Smith é o seu grande pensador econômico.
            Historicamente o liberalismo se situa como o processo final do decadente modo de produção feudal e que se constitui como o fundamento que legitima a ordem burguesa, que o substitui. Neste seu esforço em legitimar a nova ordem ele se apresenta como uma ordem natural e necessária e que irá permitir a construção de um mundo de progresso, de liberdade e de grande desenvolvimento para a humanidade.
            Luís Antonio Cunha em seu livro Educação e Desenvolvimento Social no Brasil
(1978) nos apresenta, no primeiro capítulo deste seu livro, sob o título - a educação e a construção de uma sociedade aberta, os princípios gerais do liberalismo, como sendo o individualismo, ou mais propriamente uma concepção de indivíduo, a liberdade, a propriedade, a igualdade e a democracia. No título deste capítulo encontramos uma expressão chave para entender o mecanismo de seu funcionamento: sociedade aberta. A sociedade aberta é a sociedade caracterizada pela mobilidade social, promovida por indivíduos impulsionados por um desejo de melhorar a sua condição (Smith) e que são detentores de liberdade (sem amarras inibitórias do Estado), pela qual desenvolvem as potencialidades que trazem consigo e atuam num mercado cada vez mais complexo e interdependente, no qual todos têm a oportunidade de construírem o seu êxito, enquanto indivíduos, bem como o de toda a sociedade, sendo esta uma soma da totalidade dos indivíduos.
            Estes cinco princípios desentravam o processo produtivo, antes enredado nas amarras do mercantilismo e das corporações de ofício e que junto com a divisão do trabalho elevam os padrões produtivos do mundo, com os quais até o próprio Marx se maravilhou, mas só com isso. Este maravilhamento não se estendeu às relações sociais de produção que se estabeleceram na base material deste modelo. Em suma, homens livres e iguais disputariam as oportunidades num emergente mercado, em busca do seu sucesso ou êxito pessoal, permitido por estes novos princípios de liberdade e de igualdade.
Estes princípios formaram a grande base político-ideológica das revoluções burguesas, com as quais a burguesia se transformou na nova classe dominante. É preciso destacar que o êxito do modelo se deve muito ao caráter universal e abstrato de seu discurso, em oposição ao particular e ao concreto de cada indivíduo ou situação. Assim cada exemplo de sucesso pode ser alçado a um sonho possível para cada indivíduo. Afinal, os homens não são livres e iguais?
Para a estruturação política desta sociedade, novamente o indivíduo passa a ser o seu elemento fundante e primeiro. Este indivíduo é visto como portador de direitos naturais e inerentes à condição humana e que por causa de sua precedência à sociedade, - esta sociedade em sua organização - deverá ser a garantidora dos direitos individuais. Já apontamos para Locke como o grande pensador político do liberalismo e toda esta visão que privilegia o indivíduo é dele. Assim, os direitos naturais inerentes ao indivíduo são anteriores e independentes a qualquer organização social e que em consequência disto, o Estado emergente de um contrato entre os indivíduos, tem no dever de assegurar os direitos destes indivíduos, a sua grande e principal função, para não dizer, apenas a sua única função. Como consequência, toda a organização política estará subordinada à ação econômica, que é o livre trânsito dos indivíduos no mercado. Assim a economia passa a ser naturalizada, isto é, subordinada a natureza. Este esforço da naturalização do mercado é um esforço para afastar dele a mão cultural, que é a mão humana da ação política. É ainda importante salientar que este Estado preconizado por Locke teria a sua legitimidade assegurada pelo consentimento dos governados (um consenso entre os pactuadores do contrato).
Um outro pensador, anterior a Locke, Thomas Hobbes previa que homens livres e iguais, movidos pelo desejo das mesmas coisas seriam o homo homini lupus e que nesta sociedade ocorreria a guerra de todos contra todos e que, para preservar a vida todos deveriam se submeter a uma autoridade Leviatã, a um Estado absoluto que limitaria as ações livres do mercado competitivo a uma possibilidade de assegurar a vida. Parece que Hobbes, já nos alvores do surgimento de uma sociedade de mercado, competitiva entre os indivíduos, entre as empresas e posteriormente entre as nações, anteviu todas as contradições deste sistema com a visão de que esta sociedade só encontraria freios no monstro Leviatã.  Quantas vezes já não imperou este monstro? Será que a própria formação do pensamento único não é uma manifestação deste monstro? Qual é o Estado que temos hoje?  Qual foi a teoria vencedora, a de Hobbes ou a de John Locke?
Ainda para melhor compreensão do paradigma do liberalismo vamos fazer uma pequena incursão na visão ética deste sistema. Esta também se volta para o indivíduo, anterior a sociedade e, por isso mesmo, o centro das atenções. Isto já está presente em Locke e terá uma melhor explicitação em Adam Smith. Este crê que o bem-estar resulta de um efeito cumulativo de esforços individuais, o que implica na visão de que os indivíduos, dotados de um natural desejo de melhoria em suas condições de bem-estar, se lançam efetivamente na sua busca e, - estarão assim contribuindo com o bem-estar geral da sociedade - uma vez que esta é vista sob sua forma reduzida, matemática - de soma de indivíduos. Assim os outrora pecados do individualismo, do espírito competitivo e da ambição, passam a ser agora transformados em virtudes.
 A ética decorrente do espírito do capitalismo ganhou um contorno mais elaborado com Bentham, ganhando o nome de utilitarismo. Sua tese central situa-se mais uma vez no indivíduo, afirmando que cada restrição a sua liberdade é fonte de sofrimento e em consequência limite de prazer (hedonismo), que deve ser usufruído pelos indivíduos. Bentham situa a esfera do comportamento humano, ou melhor, o reduz - ao impulso da busca do prazer e da repulsa à dor. A ética capitalista ganha os seus contornos de individualista, hedonista e materialista, quando o humano se caracteriza muito mais como um ser que precisa atender ao mundo das suas necessidades culturais uma vez que as materiais deveriam ser um pressuposto inerente ao humano. Como não é este o objeto central deste trabalho, mas por considerá-lo de extrema importância indico o livro de Comparato (2006) nas suas abordagens sobre o pensamento de Hobbes, Locke, Adam Smith, Bentham e outros, bem como a sua crítica, na elevação da ética ao humano em Kant, Hegel, Marx, especialmente no contido entre as páginas 184-404. Encontrará aí o leitor o choque ou confronto existente entre o Ser e o ter.

3. Criticas À Modernidade e a Formação do Pensamento Único

            O iluminismo é a doutrina da modernidade que se constituía numa espécie de crença dogmática nos efeitos luminosos ou esclarecedores da razão. Esta libertaria os homens das crendices e superstições, em suma, no dizer de Kant, nos libertaríamos da ignorância provocada por sua majestade (o poder absolutista) e por sua santidade (o poder da Igreja). Ao mesmo tempo em que a razão nos libertaria da ignorância ela também promoveria uma época de evolução científica e tecnológica, bem como o entendimento político entre os homens, pondo fim às guerras. Surge uma nova era de crenças e uma nova deusa, a deusa razão.
As primeiras suspeitas relativas aos resultados obtidos pela razão surgem com os românticos e, posteriormente, de suspeitas passamos a ter certezas da insuficiência da razão para a explicação do humano. Ao longo da modernidade, várias feridas atingiram profundamente o ser humano como um ser racional e consciente. Chauí nos sintetiza esta realidade ao falar de três feridas narcísicas que desencantaram o homem moderno. Vejamos o seu relato:

A primeira foi a que nos infligiu Copérnico, ao provar que a terra não estava no centro do Universo e que os homens não eram o centro do mundo. A segunda foi causada por Darwin, ao provar que os homens descendem de um primata, que são apenas um elo na evolução das espécies e não seres especiais, criados por Deus para dominar a natureza. A terceira foi causada por Freud com a psicanálise, ao mostrar que a consciência é a menor parte e a mais fraca de nossa vida psíquica (CHAUÍ, 1997. p. 167).

A estas três feridas, Chauí acrescenta uma quarta, trazida por Marx, que é o conceito de alienação e de ideologia, ou a possibilidade de os homens serem manipulados por outros, desconhecendo as condições históricas, sociais e materiais que os condicionaram e que produziram as condições do seu ser. Esta possibilidade de manipulação, de desconhecimento das origens de sua realidade e de sua auto-compreensão, se situa obviamente para além da racionalidade. O próprio Marx advertira de que - se a aparência não fosse igual à essência não haveria a necessidade da ciência.
A modernidade sofrerá, no entanto os seus maiores ataques, ainda no final do século XIX, com Nietzsche e o seu Super-homem. Este é o homem que vive o sentido da terra, que reviverá o homem da tragédia grega, o instinto dionisíaco, e que fora deformado pelo espírito da objetividade racional e metafísica, introduzidas no mundo por Sócrates e Platão e massificadas pelo cristianismo. Este mundo é um mundo anti-natural, fundado na dor e no sofrimento estoico e não na alegria dionisíaca da vida. Este Super-homem de Nietzsche será um homem superior, na exata medida em que se libertar de todos os vínculos produzidos pela racionalidade, um homem livre, que superou as categorias do bem e do mal, introduzidas com a racionalidade.
Outra crítica contundente à modernidade foi feita pelos pensadores da Escola de Frankfurt, mais precisamente por Adorno e Horkheimer no livro Dialética do Esclarecimento, em que os autores fazem a crítica ao iluminismo, em função dos desvios da racionalidade.
O livro é aberto com um conceito sobre o esclarecimento em que os autores contrapõem os objetivos deste movimento com os seus resultados. O conceito de esclarecimento nos é mostrado como o movimento que visava destruir os mitos e que queria substituir a imaginação pelo saber e, que pretendia mostrar a superioridade do homem exatamente através deste saber. Mas já na segunda página do seu primeiro capítulo vem a crítica com a afirmação de que “a técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer e o discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital (ADORNO & HORKHEIMER, 1997. p. 20). Assim nos é apresentado o conceito da racionalidade, que se desviou da sua função de estar a serviço do humano e da humanidade, para se tornar um mero instrumento do capital e de sua acumulação. Vejamos isto com maior ênfase:

O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa. (...) Poder e conhecimento são sinônimos (...). O que importa não é aquela satisfação que, para os homens, se chama “verdade”, mas a “operation”, o procedimento eficaz. (...) O que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento (Ibidem, p.20-1).

A análise continua mostrando que os caminhos da ciência moderna, um dos principais produtos do iluminismo, se pautaram exclusivamente em cima do cálculo, que encontrou na lógica formal o caminho para a sua justificação, mostrando também as implicações desta atitude com todo o sistema capitalista. “A lógica formal era a grande escola da unificação. Ela oferecia aos esclarecedores o esquema da calculabilidade do mundo (...). O número tornou-se o cânon do esclarecimento. As mesmas equações dominam a justiça burguesa e a troca mercantil” (IBIDEM, p.22).
Esta ideia da mistificação, abertura do caminho para o estabelecimento de um pensamento único, se tornou possível em função da manipulação das pessoas e que encontrou na instituição do positivismo, o derradeiro produto de todo este movimento - a exigência de tudo submeter à lógica do estabelecido, em que o poder está de um lado e a submissão do outro. Neste processo não sobra espaço para o pensamento livre, uma vez que todas as decisões já estão tomadas de antemão. Vejamos isto através dos autores:

O pensar reifica-se num processo automático e autônomo, emulando a máquina que ele próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo. O esclarecimento pôs de lado a exigência clássica de pensar o pensamento (...). O procedimento matemático tornou-se por assim dizer, o ritual do pensamento. Apesar da autolimitação axiomática, ele se instaura como necessário e objetivo: ele transforma o pensamento em coisa, em instrumento, como ele próprio o denomina (IBIDEM, p. 37).

            Assim todo o pensamento, reduzido a sua lógica matemática instrumental, submete a própria razão ao fato dado, “o factual tem a última palavra, o pensamento restringe-se à sua repetição, o pensamento transforma-se na sua mera tautologia” (IBIDEM, p.39).
            Não fica difícil estabelecer uma relação da questão ética sob o capitalismo a este processo percorrido pela razão calculadora e instrumental com as consequências gerais deste sistema na estruturação da totalidade desta sociedade. Esta racionalidade é apontada pelos autores com um sol com raios gélidos, sob os quais amadurece uma sementeira de barbáries.  Os autores ainda indicam que o esclarecimento, ao ter abandonado o projeto de pensar o próprio pensamento, abdicou também de suas realizações e impôs, de um lado, um progresso altamente impiedoso e de outro, promoveu a total mistificação das massas.
            Na continuidade da análise da obra destes autores, encontraremos adiante, um outro capítulo de fundamental importância sob o título A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. Já nas primeiras páginas encontramos a essência deste conceito descrita como a uniformização de tudo: “a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança” e “sob o monopólio, toda cultura de massas é idêntica” (IBIDEM, 113-4).
            Esta ideia persiste e é mostrada basicamente como a produção e a disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais. Sob este aspecto, já em tempos mais recentes, sob o império da globalização, um outro autor - Frederic Jameson – nos mostra uma importante aproximação da cultura com a economia, até a sua fusão, em que a cultura cria as necessidades para o mundo do consumo. Estas ideias estão contidas no livro A cultura do dinheiro – Ensaios sobre a globalização, do qual apresentaremos apenas este conceito, assim expresso na introdução do livro.

O capitalismo tardio depende para o seu funcionamento de uma lógica cultural, de uma sociedade de imagens voltada para o consumo. Por sua vez, os produtos culturais são, para usar uma terminologia tradicional, tanto base como superestrutura, produzindo significados e gerando lucros. A cultura de massa assim como o outro lado da mesma moeda, a alta cultura transformada em grife, são também campos de treinamento onde aprendemos as regras fundamentais do jogo contemporâneo, o jogo do consumo (JAMESON, 2001, p. 9).

Voltando a Adorno e Horkheimer, estes autores, ainda no início do capítulo sobre a indústria cultural nos apontam para a unidade existente entre a racionalidade técnica e a indústria cultural, quando mostram que esta racionalidade é a grande responsável pela mistificação das massas através da indústria cultural. Mostram a íntima relação existente entre o poder econômico e os instrumentos da manipulação, responsáveis por toda a coesão do sistema. Vejamos os autores:

O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma (ADORNO & HORKHEIMER, 1997, p.114).

A indústria cultural só alcança seus objetivos a partir do planejamento dos mecanismos do seu funcionamento, através de uma rigorosa seleção do que efetivamente será o conteúdo das mensagens que serão patrocinadas pelos detentores do poder. Desta forma toda a seleção de talentos obedece a um mecanismo econômico, em que tudo é rigorosamente pré-estabelecido. Desta forma não haverá nenhuma identidade entre a arte e o talento, mas apenas a imposição do facilmente digerível, da arte leve, para as massas consumidoras. Assim todos os produtos culturais veiculados têm que ter necessariamente a característica da assimilação fácil e que não exijam esforço por parte dos consumidores. Esta é a ocasião em que se estabelece a relação entre a cultura e o entretenimento, até também chegar a sua absoluta fusão.  Assim a arte já não pode ser veículo de ideias que possam promover mudanças nas estruturas sociedade, para obter das massas uma absoluta adesão ao senso comum estabelecido pela própria indústria cultural. Nenhum espaço poderá estar aberto para a crítica, para a imaginação e para a criação. Só repetição, só tautologia.
Cremos não ser necessário avançar na análise do conteúdo e dos mecanismos de funcionamento da indústria cultural, uma vez que a explicitação da sua função está clara - na manutenção das estruturas do poder existente, sendo assim o maior instrumento do poder construído a partir do consentimento das massas ao poder que as oprime. A isto se chama de construção de hegemonia. Vejamos ainda uma última afirmação dos autores relativa a este processo de dominação: “A vida no capitalismo tardio é um contínuo rito de iniciação. Todos têm que mostrar que se identificam com o poder de quem não cansam de receber pancadas” (IBIDEM, p. 144).
            A história da indústria cultural recebe um novo capítulo com a publicação em 1967 do livro de Guy Debord – A Sociedade do Espetáculo. Longe de pretender fazer neste texto uma análise deste livro, queremos apenas anunciar este conceito e estabelecer uma relação com a formação do pensamento único. Do livro tomaremos partes da advertência à edição francesa de 1992, a frase de epígrafe, que Debord tomou de Feurbach e a tese número 9.
            Na procura de ilustrar o conceito de sociedade do espetáculo, iniciamos com a epígrafe, tomada de Feurbach e retirada do prefácio da segunda edição de A Essência do cristianismo, livro que praticamente inaugura no mundo moderno os estudos sobre a alienação e a ideologia, estudos que tiveram forte influência sobre o pensamento de Marx. Vejamos a epígrafe:

E sem dúvida o nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... Ele considera que a ilusão é sagrada e a verdade é profana. E mais: a seus olhos o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado (In: DEBORD, 2000, p. 13).

            Consideramos esta frase auto-explicativa, na medida em que ela deixa clara a inversão que se promove entre a realidade e a ilusão, abrindo-se assim a possibilidade de transformar o mundo das ilusões no mundo da realidade. Esta inversão ganha maior clareza com o aforismo ou tese de número 9, onde lemos que “no mundo realmente invertido, a verdade é um momento do que é falso” (DEBORD, 2000, p.16).
            Esta inversão promovida pela acumulação de espetáculos, que transformou o real em representação só foi possível pelo mecanismo que descrevemos, da total mistificação das massas, através da indústria cultural.
            Na já mencionada advertência à edição francesa de 1992, encontramos a análise que estabelece a vinculação entre a sociedade do espetáculo e a formação do pensamento único e do fim da história, quando Debord mostra que os Comentários sobre a sociedade do espetáculo, livro editado por Debord em 1988[2], “mostraram com clareza que a anterior ‘divisão mundial das tarefas espetaculares’ entre os reinos rivais do ‘espetacular concentrado’ e do ‘espetacular difuso’ havia desaparecido em favor de uma fusão, sob a forma comum do ‘espetacular integrado’” (IBIDEM, p.10).
            Este comentário se refere aos fatos ocorridos no império da União Soviética e em que o autor diz corrigir a tese número 105, do livro de 1967, quando ainda considerava que havia um grande cisma no mundo. Este cisma já não mais existe. Tudo terminou em reconciliação e comenta que “se o mundo pode enfim proclamar-se oficialmente unificado, é porque essa fusão já se realizara na realidade econômico-política do mundo inteiro” (IBIDEM, p. 10), e continua:
           
            Foi também possível porque a situação à qual universalmente chegou o poder separado era tão grave, que esse mundo sentiu a necessidade de se unificar rapidamente: de participar como um bloco único da mesma organização consensual do mercado mundial, falsificado e garantido pelo espetáculo. (...) Essa vontade de modernização e unificação do espetáculo, ligada a todos os outros aspectos da simplificação da sociedade, levou em 1989 a burocracia russa a converter-se de repente, como um só homem, a presente ideologia da democracia: isto é, a liberdade ditatorial do Mercado, temperada pelos Direitos do homem espectador (IBIDEM, p.10-1)

            Debord conclui que, afinal o mundo não se unificou e lança sérias advertências sobre a desintegração desta sociedade, afirmando que o grande objetivo de seu livro é o de perturbar esta sociedade espetacular.
            Num dos últimos escritos do sociólogo francês Pierre Bourdieu, A Nova Bíblia do Tio Sam, escrito em conjunto com Loïc Wacquant, os autores comentam esta realidade, que qualificam como um imperialismo cultural, afirmando que os novos produtores culturais deste mundo criaram inclusive a novilíngua, a qual Orwel se referia no seu 1984. Vejamos a descrição:

Em todos os países avançados, patrões, altos funcionários internacionais, intelectuais de projeção na mídia e jornalistas de primeiro escalão puseram-se a falar uma estranha nova língua cujo vocabulário, aparentemente sem origem, está em todas as bocas: ‘globalização’, ‘flexibilidade’; ‘governabilidade’ e ‘empregabilidade’; ‘underclass’ e exclusão; ‘nova economia’ e ‘tolerância zero’; comunitarismo’ e seus primos ‘pós-modernos’, ‘etnicidade’, ‘minoridade’, ‘identidade’, ‘fragmentação’ etc.
A difusão dessa nova vulgata planetária – da qual estão notavelmente ausentes capitalismo, classe, exploração, dominação, desigualdade e tantos vocábulos decisivamente revogados sob o pretexto de obsolescência ou de presumida impertinência – é produto de um imperialismo apropriadamente simbólico: seus efeitos são tão mais poderosos e perniciosos porque ele é veiculado não apenas pelos partidários da revolução neoliberal – que sob a capa da ‘modernização’, entende reconstruir o mundo fazendo tabula rasa das conquistas sociais e econômicas resultantes de cem anos de lutas sociais, descritas, a partir dos novos tempos, como arcaísmos e obstáculos à nova ordem nascente -, porém, também por produtores culturais (pesquisadores, escritores e artistas) e militantes de esquerda que, em sua maioria, ainda se consideram progressistas (BOURDIEU & WACQUANT, 2001, p. 156).

Assman, em texto sobre ‘Pedagogia da Qualidade’ em Debate, chama atenção para um processo de apropriação, ressignificação e ressemantização de linguagens, inclusive de palavras que considerávamos de significado óbvio, como a palavra mote do texto – qualidade. É até irônico falar em qualidade e muito mais, - em qualidade total na educação, quando esta atinge os seus piores índices de qualidade, quando este vocábulo é usado no seu significado original e óbvio.
Assman considera que essas palavras sofreram um aprisionamento e que por muito tempo elas não estarão livres para dizer o que efetivamente desejaríamos dizer e denuncia que este sequestro de linguagem faz parte de um jogo descaradamente ideológico que, no entanto, possui impressionante força mobilizadora. Denuncia que tudo isto faz parte de um macrocontexto mundial para se chegar a um único discurso viável, que tem por finalidade a absoluta sacralização do mercado. Vejamos:

A estridência do discurso sobre a qualidade faz parte de uma intensa utopização da lógica do mercado. Com o esfacelamento do ex-bloco socialista, que culminou em 1989, a messianização da irrestrita economia de mercado adquiriu pretensões de único discurso viável. Agudizam-se, desde então, as linguagens sobre a ausência de qualquer alternativa econômica e política que não incorpore plenamente um sim decidido ao livre jogo dos mecanismos de mercado (ASSMAN, 1988, p. 188).

Vimos assim uma série de fatos e de conceitos, em que todos têm em comum a construção de um pensamento único que legitime a atual ordem existente. Mas, temos ainda um objetivo a ser atingido neste texto, que é o de lançar uma ponte entre este pensamento único e a construção do pensamento pós-moderno.

4. O Pensamento Único e a Pós-Modernidade.

            Quanto aos referenciais sobre a pós-modenidade, mais uma vez recorremos a Anderson (1999 – b), ao seu livro As Origens da Pós-Modenidade. Nele faz um inventário histórico e conceitual deste movimento e do qual, para efeitos deste texto, nos ateremos ao pensamento de Lyotard, pelo seu caráter pioneiro e a Jameson, que o examinará em maior profundidade.
            Lyotard adota  este conceito em - A Condição pós-moderna, livro publicado em 1979 e o liga fundamentalmente ao evento da sociedade pós industrial, também chamada de sociedade do conhecimento, uma vez que este se transforma na principal força econômica desta nova ordem. Aponta para o fato de - o pensamento pós-moderno marcar o fim das grandes narrativas, que simultaneamente eram portadoras de utopias e de legitimação, como as da Revolução Francesa e as do Idealismo Alemão, que colocavam a humanidade como o grande agente histórico em busca de libertação pelo avanço do conhecimento e da formação de uma unidade consensual pela evolução do espírito. O pós-moderno representa o fim de todas as grandes narrativas, as assim chamadas metanarrativas. Esta perda de crédito tem origem na própria evolução da ciência, dominada pelo capital e legitimada pela busca de resultados e guiada pela eficiência do desempenho.
            Lyotard percebe também uma mudança geral na condição humana, marcada por uma “tendência para o contrato temporário em todas as áreas da existência humana: a ocupacional, a emocional, a sexual, a política – laços mais econômicos, flexíveis e criativos que os da modernidade”, como nos mostra o texto de Anderson (ANDERSON, 1999 –b, p. 33).
            Nas análises que Anderson faz da obra de Lyotard e, ao fazer uma relação com os fatos históricos da década de 80 ele constata a nova grande ofensiva ideológica da direita triunfante, contestando o fim das metanarrativas, mas constatando o seu contrário, de que tudo foi unificado em torno de uma só, que é a da redução de todo o projeto humano à lógica do mercado. “Longe de terem desaparecido as grandes narrativas, parecia que pela primeira vez na história o mundo caía sob o domínio da mais grandiosa de todas – uma história única e absoluta de liberdade e prosperidade, a vitória global do mercado (IBIDEM, p.39).

            Lyotard era um militante de esquerda, do grupo socialismo ou barbárie, que logo percebeu que o pós-moderno não oferecia nenhuma perspectiva de júbilo, mas sim um tom de mal-estar e de profunda nostalgia e melancolia, diante do triunfo do mercado.
            A outra referência, a buscamos em Jameson, que inicialmente percebia a pós-modernidade como um movimento de degeneração interna do moderno, em que uma nova percepção de mundo ocorria e que nada mais tinha em comum com as percepções anteriores da realidade. Uma multiplicidade de fatores são apontados como causas deste fenômeno. Jameson assim descreve esta realidade:

O recuo do conflito de classes na metrópole, enquanto a violência era projetada para fora; o peso enorme da propaganda e da fantasia da mídia para toldar as realidades da divisão e da exploração; a separação entre existência pública e privada – tudo isso criou uma sociedade sem precedentes.
Em termos psicológicos podemos dizer que, como economia de serviços, estamos doravante tão afastados das realidades da produção e do trabalho que habitamos um mundo onírico de estímulos artificiais e experiência via TV: nunca, em nenhuma civilização anterior, as grandes preocupações metafísicas, as questões fundamentais do ser e do significado da vida pareceram tão remotas de sentido (Apud ANDERSON, 1999 –b, p. 62-3).

A análise mais aprofundada sobre o tema, Jameson a faz em conferência proferida no Museu Whitney de Artes Contemporâneas em 1982, depois transformada em ensaio – livro sob o título - Pós- Modernismo – A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio (JAMESON, 1997). Neste livro, segundo Anderson, são apresentados cinco lances decisivos para os estudos e a configuração mais ou menos definitiva sobre o tema.
O primeiro lance e também o mais importante, enquanto fundamento de todas as outras transformações, se refere às mudanças objetivas no movimento do próprio capital. Chama a atenção para um novo momento na história da produção existente, o novo momento do capitalismo internacional. Estas mudanças foram protagonizadas por uma série de inovações tecnológicas e organizacionais, que Anderson assim sintetiza:

Jameson assinalou a explosão tecnológica da eletrônica moderna e seu papel como principal fonte de lucro e inovação; o predomínio empresarial das corporações multinacionais, deslocando as operações industriais para países distantes com salários baixos; o imenso crescimento da especulação internacional; e a ascensão dos conglomerados de comunicação com um poder sem precedentes sobre a mídia e ultrapassando fronteiras (ANDERSON, 1999, p.66).

Jameson ainda apresenta as consequências desta nova realidade, que por serem a essência do fenômeno, continuamos a apresentar, pela escrita de Anderson, como as alterações “nos ciclos de negócio, nos padrões de emprego, nas relações de classe, nos destinos regionais, nos interesses políticos” (IBIDEM, p. 66), e que apontam para um novo horizonte existencial destas sociedades. Cultura e economia passam a coexistir.
Deste primeiro lance surge o segundo e não menos importante, que Jameson chama de - metástases da psique - e anuncia ainda a morte do sujeito. Neste lance observa as modificações na paisagem psíquica a partir das agitações da década de 60, as suas derrotas a partir dos anos 70 e o consequente expurgo, com as derrotas de todos os resíduos de radicalidade. Anderson, interpretando Jameson, apresenta esta nova subjetividade em que figurava “a perda de qualquer senso ativo de história, seja como esperança, seja como memória. (...) e desapareceu a intensa expectativa de futuro. (...) apagando-se num perpétuo presente” (IBIDEM, p. 68). Aponta ainda para o satélite e a fibra ótica como os instrumentos técnicos que tornaram possível a construção do novo imaginário, atentando ainda para as consequências deste, ao assinalar as características do novo sujeito emergente:

O resultado é uma nova superficialidade do sujeito, não mais seguro dentro de parâmetros estáveis nos quais os registros de alto e baixo são inequívocos. Mas em compensação, a vida psíquica torna-se debilitantemente acidentada e espasmódica, marcada por súbitas depressões e mudanças de humor que lembram algo da fragmentação esquizofrênica. (...) Aí, ao contrário, as polaridades, típicas do sujeito vão da exaltação da ‘corrida às mercadorias’, do eufórico entusiasmo do espectador ou consumidor, para a depressão no ‘vazio niilístico’ mais profundo do nosso ser, como prisioneiros de uma ordem que resiste a qualquer controle ou significado (IBIDEM, p. 68-9).

No terceiro lance Jameson apresenta as mudanças na cultura, fazendo uma incursão em todas as artes. No quarto assinala as novas bases sociais e para o novo padrão geo-político, para finalmente, no quinto, entrar na questão da valoração deste movimento, lances em que não vamos nos deter nesta análise, remetendo esta para a leitura do próprio Jameson ou para as interpretações de Anderson. O estudo desta questão também passa necessariamente pela leitura de um outro livro, - Condição Pós-Moderna de David Harvey (HARVEY, 1992), do qual também apenas sugerimos a indicação.
Quanto à questão da valoração do movimento, aponta para a necessidade da compreensão, por dentro, do pós-modernismo como um sistema, do novo momento histórico do capitalismo e não abre mão do que considera irrenunciável, o projeto marxista quanto a uma mudança global das estruturas da sociedade.   

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

            Como afirmamos no início, o artigo de Kucinski foi o mote para este texto. Existe muito menos liberdade no jornalismo hoje, em tempos de democracia do que existia nos tempos da ditadura militar. Esta é a sua tese central, corroborada também com a frase inscrita na sede do sindicato dos jornalistas de Buenos Aires, que afirma não poder se pensar o que é escrito, nestes tempos dominados pelo pensamento único, ou da democracia do mercado.
            O que pretendemos apresentar ainda nestas considerações finais é fazer um pequeno apanhado em torno da questão da origem das ideias, para ver como foi construída esta ideia de um pensamento único, bem como a forma pela qual ele foi construído.
            Uma das mudanças fundamentais relativa às origens das ideias ocorreu no início da Idade Moderna, quando a construção do pensamento passa para a esfera do subjetivo. A verdade passa a ser construída a partir do sujeito pensante. Até aí a verdade era de origem metafísica, isto é, vinha do além, de fora deste mundo dos homens. Em suma, estavam no campo religioso e, por estas concepções, a verdade foi revelada aos homens por Deus e passava a ser guardada, custodiada, ou interpretada por grupos, que se julgavam detentores do monopólio da representação de Deus no mundo. No mundo ocidental e cristão isto foi basicamente uma construção de Constantino e de Santo Agostinho. Muitas estruturas de poder foram postas a serviço desta concepção.
            Com a transferência do foco da concepção das ideias para o sujeito pensante, com o Cogito, ergo sum de Descartes, toda uma nova concepção de ideias e de luta por seu monopólio começou a ser construída. De uma maneira geral, a razão passa a ser a fonte das ideias e estas, com a afirmação do positivismo, passam a ser produzidas por uma elite pensante e que encontram a sua justificativa na divisão social do trabalho. Por esta divisão alguns se dedicam ao mundo do pensar e outros ao do fazer, com a marcada superioridade do primeiro sobre o segundo. É esta uma das dicotomias fundamentais dos tempos modernos.
            Na evolução do pensamento racional estava embutida uma ideia de progresso técnico e de avanços nas relações humanas provocadas pelo entendimento mútuo de homens iguais. O mundo, no entanto, pouco evoluiu neste segundo tópico e isto nos é atestado pelo sangrento curso histórico do século XX e dos fundamentalismos com que adentramos ao século XXI. O mundo concentrou as suas energias no primeiro tópico e, a razão em vez de se centrar numa razão a serviço do homem, percorreu o caminho de uma racionalidade técnica, instrumental e se rendeu a lógica econômica do mercado, tida como uma avalanche espontânea e natural, impossível de ser detida por qualquer força política, isto é, por qualquer força da ação humana.
            Esta força da ação humana, ensinada ao mundo por Marx, o filósofo da ação transformadora do mundo, através da continuidade dos processos revolucionários de seu tempo, com a doutrina do materialismo histórico e dialético. Esta doutrina põe na própria ação humana, ou na ação organizadora do homem nas estruturas da totalidade desta sociedade as possibilidades da sua transformação. Por ela, a base material e econômica é que determina a maneira de pensar desta sociedade. A partir de Marx tivemos uma forte polarização de ideias, que acompanharam a humanidade em todo o curso histórico do final do século XIX e por todo o século XX, ao menos até a sua última década.
            Com os fatos surgidos ao final do século XX, especialmente aqueles promovidos na base econômica, nas relações materiais e sociais da produção e as que afetaram as mudanças nas relações políticas, com o colapso das experiências do socialismo real mudanças, portanto, tanto na base material desta sociedade, quanto na superestrutura da mesma, anularam as possibilidades do pensamento plural e crítico por um processo de manipulação sem precedentes, como acabamos de ver. Construiu-se um mundo unipolar. Esta unipolaridade longe está, no entanto, de ter eliminado as contradições no mundo. Este pensamento unipolar se constitui na grande tentativa de anular estas contradições, procurando construir uma nova hegemonia, inclusive com o uso de muito poder na base da força e da violência e com o uso das velhas categorias da separação entre o Bem e o Mal.
            A construção desta unipolaridade, sob os nomes de pensamento único, fim da história percorreu um longo caminho que procuramos retraçar ao retomarmos a sua trajetória. Racionalidade técnica e instrumental, indústria cultural, sociedade do espetáculo, formatação de uma novilíngua com a ressignificação da linguagem e das palavras são alguns dos instrumentos utilizados para o aprisionamento do pensar, por esta nova configuração do capitalismo em seu imperialismo agora global.
            Como última consideração, queremos apontar para a forma que este pensamento procurou adquirir ao se transformar em pensamento definitivo e para a forma autoritária que o mesmo tomou. O pensamento único que determinou o fim da história, é segundo os seus autores que serviram de referência para as nossas reflexões, a sobrevivência de um único dogma, que é a afirmação do chamado mundo livre do mercado, da democracia liberal e da sua superioridade sobre todas as outras visões de mundo ou culturas, e que na sua condição de superiores, tem por dever, como recentemente afirmou Berlusconi na tentativa de justificar as políticas de Estado de Bush, de que a cultura superior tem o dever de lutar para a sua afirmação, impedindo assim que culturas inferiores, que representam o atraso, se imponham. Volta assim, junto com o pensamento único, e em grande estilo, o grande imperativo das missões civilizatórias.
            Tem razão, portanto, tanto Kucinski ao apontar os paradoxos do jornalismo hoje, embutidos num invólucro mais autoritário do que o era no regime militar, pela sua forma de pensamento único, quanto os militantes do sindicato de jornalistas de Buenos Aires quando dizem que este pensamento impede de pensar o que escrevemos nestes tempos de pensamento único e uniformizado.
            Os caminhos de reação, em favor da manutenção da pluralidade e da riqueza da diversidade, do enriquecimento cultural pelo cultivo das diferenças, está também dado pela afirmação das contradições e pela necessidade de continuar pensando o pensamento, seguindo o caminho apontado por Adorno e Horkheimer, da dialética negativa. Enquanto houver contradições nas relações de produção haverá história porque haverá luta pela superação das mesmas. Permanecem vivas assim as utopias e as ideologias e o futuro poderá ser percorrido por diferentes trilhas e não apenas por um único e monótono caminho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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1. A expressão refere-se a Hegel, ao final do prefácio à Filosofia do direito, onde afirma “quando a filosofia pinta cinzento sobre cinzento, envelheceu então uma forma de vida. A coruja de Minerva só abre suas asas com a chegada do anoitecer”. O Dicionário de Filosofia de Oxford nos dá a seguinte interpretação desta frase: “Hegel quer dizer que o gênero de reflexão autoconsciente que constitui a filosofia só pode ocorrer quando um modo de vida está suficientemente maduro para estar já no fim” BLACKBURN, 1997. p. 81).
[2]  No Brasil encontramos estes dois livros reunidos num só, sob o título A Sociedade do Espetáculo – Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo (DEBORD, 2000).