Fiz esta fala em junho de 2015, por ocasião do lançamento de um curso de formação. Como pretendo trabalhar com este texto, reproduzo a fala aqui no blog. Apenas quero reiterar a importância da formação permanente do professor, que, como está registrado no título, é um verdadeiro imperativo ético.
Construindo pensamentos. Homenagem do cartunista e professor Cyryllo Oliveira Jr. a mim e ao professor João Wanderley Geraldi.
“Sabes, pai, gosto de pensar que
nunca mais vou ficar sozinho e que alguém há de ficar comigo para sempre sem me
abandonar.
O Crisóstomo disse ao Camilo:
todos nascemos filhos de mil pais e de mais de mil mães, e a solidão é
sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que
nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se nossos mil pais e
as nossas mais de mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí
irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta
história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca
estaremos sós”. Valter Hugo Mãe, em O
Filho de Mil Homens.
Gostaria de começar, resgatando
um pouco da memória do nosso sindicato. Em 1992, eu estava na direção do Núcleo
Sindical de Umuarama, quando para lá levamos, para uma fala maravilhosa, o
professor Paulo Freire. 20 anos depois, ou seja, em 2012, a sua fala foi
transcrita para um caderno - Dialogando
com Paulo Freire. Paulo Freire nos fazia belíssimas exortações, sobre a
formação do professor e a necessidade de se ter clareza política. A clareza
política somada com os nossos sonhos e o compromisso com a lealdade a estes
sonhos. Só assim saberemos com quem eu trabalho e em favor de quem eu trabalho
e nunca para quem ou sobre quem eu trabalho.
Falava-nos também, já especificamente da
alfabetização, que o educador tem que ter a noção de consciência de classe e
noções básicas de linguagem, para entender e se fazer entender com os seus
interlocutores. E por fim nos exortava: “O educador da escola pública
brasileira não tem culpa, inclusive, de sua incompetência, mesmo quando ele não
é competente. A culpa é do Estado”. E ainda nos exortava para que não
deixássemos a nossa formação continuada e permanente, exclusivamente, nas mãos
do Estado, sob o risco de ela sofrer graves reduções. O sindicato deve e pode
assumir parte dessa formação. Ele deve testemunhar para a categoria que ele tem
essa possibilidade.
E nós estamos aqui, no lançamento
deste projeto, testemunhando que temos sim, a possibilidade de aceitar a
parcela que nos cabe. Nós, aqui hoje, estamos aceitando o desafio desta
exortação. É um tributo que lhe devemos.
Ainda na memória, quando em 1993,
lançávamos o grupo OPA para a direção estadual do sindicato, três núcleos
sindicais, que faziam oposição, já faziam trabalhos de formação. Eram os
núcleos de Curitiba, de Paranavaí e Umuarama. Inclusive, foi nestes trabalhos
que eu pessoalmente conheci o professor João Wanderlei Geraldy, hoje aqui
presente, nos falando da identidade do professor. Foi nestes trabalhos que se
fez a articulação da chapa que disputaria as eleições para a direção estadual. Este
grupo, de uma forma ou outra, com as fraturas ocorridas na última eleição,
ainda está na direção.
A natureza classista e
corporativista, porque não, ocupa muito tempo das atividades sindicais e muitas
vezes, isso faz com que as suas atividades sejam por demais envolvidas no
cotidiano e na sua burocratização.
Muitas vezes a práxis fica um
pouco esquecida e a reflexão sobre as atividades do cotidiano fica subsumida
pela rotina do ativismo.
Este dia de hoje é, para mim, um
dia de uma felicidade imensa. E também de perturbação. Articular orientação na
formação é tarefa gratificante, mas desde que vi em Freud o questionamento
sobre “o que este cara aí da frente quer da gente”, o meu sossego diminuiu
muito.
A questão da formação do ser
humano exige algumas reflexões de ordem ontológica, remetendo ao próprio
processo de humanização do ser humano. A principal característica do humano é
que, além de sermos animais, a nossa primeira natureza, somos seres
culturais. Sermos seres culturais é a
nossa segunda natureza e é o que, fundamentalmente, nos diferencia da ordem
natural. Gostaria de ter tempo para aprofundar e relativizar estas afirmações.
No que consiste essa nossa
segunda natureza, essa nossa marca de sermos seres culturais? É o fato de que
somos seres de relação. E disto segue outra questão fundamental. A pergunta
agora passa a ser - com quem nos relacionamos? A resposta é simples. Nossos
relacionamentos se dão com a natureza, com os outros e conosco mesmos. Outra
pergunta. Por que e como nos relacionamos e quais são as consequências desses
relacionamentos? Vamos por etapas.
Relacionamo-nos com a natureza,
assim como os animais e dela tiramos a nossa subsistência. A forma como fazemos
isso, e já diferentemente dos animais, é pelo trabalho. Pelo trabalho humano,
concebido como práxis, que poderia
ser assim definido com a frase de Marx: “Uma aranha executa operações
semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano
com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o
pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça antes
de construí-lo em cera”. O trabalho é uma construção da mente e da mão,
mediando a concepção com a execução. É trabalho criativo e não trabalho
mecânico e repetitivo. Esta também é uma questão fundamental na construção da
identidade do professor.
Relacionamo-nos com os outros. “Nós
somos as relações que estabelecemos com os outros”. Essas relações sempre vêm
mediadas por um coeficiente de poder. Sem a percepção da existência do outro
não teríamos nem sequer a percepção de nossa própria existência. Somando as
relações que estabelecemos com a natureza e com os outros, também estabelecemos
relações conosco mesmos, dando-nos a dimensão da subjetividade.
Da soma das três relações
formamos o mundo da cultura, e podemos buscar em Freud, em O futuro de uma ilusão, uma primeira definição: “Como se sabe, a
cultura humana – me refiro a tudo aquilo em que a vida humana se elevou de suas
condições animais e se distingue da vida dos bichos”. Cultura é, portanto, a soma de todas as
invenções ou criações humanas.
Creio que Brecht nos dá um belo
auxílio na compreensão do termo cultura.
Nós vos pedimos com insistência:
Nunca digam – Isso é natural!
Diante dos acontecimentos de cada
dia,
Numa época em que corre o sangue
Em que o arbítrio tem a força da
lei,
Em que a humanidade se
desumaniza,
Não digam nunca: Isso é natural.
A fim de que nada passe por
imutável.
Marquemos bem. A cultura é uma
invenção humana. Se ela é uma invenção humana, ela é passível de mudanças, de
transformações. Mas vamos ainda insistir nas relações que estabelecemos.
Primeiro com a natureza. Já vimos que, com ela nos relacionamos pelo trabalho,
para dela tirarmos a nossa subsistência. Também já vimos que o trabalho pode
ser concebido como práxis, mas que
também pode ser concebido como mecânico e repetitivo, ou alienado. O trabalho é
uma das principais categorias com as quais a filosofia trabalha.
Quando Marx investiga sobre a
origem das desigualdades sociais ele, fundamentalmente, aponta duas causas: A
propriedade privada e a divisão social do trabalho. É fácil a percepção de que
a propriedade se origina do trabalho. O trabalho é fundamental no
estabelecimento das relações sociais, que, como já vimos, sempre vêm mediadas
por um coeficiente de poder. Neste mundo das relações com a natureza e com os
outros se forma aquilo que Marx chamou de infraestrutura da sociedade. É nela
que se localizam as grandes contradições que geram os conflitos.
Numa de minhas recentes leituras,
Minha Paris – Minha memória - de
Edgar Morin, encontrei a seguinte frase: “Embora o conceito de complexidade
ainda não estivesse no meu horizonte, era um trabalho complexo que eu realizava
ali (Uma pesquisa sobre a morte): conexão entre conhecimentos distintos, em
geral compartimentados, identificação de contradições que meu espírito
hegeliano-marxista me levava a detectar em lugares onde são ignorados pelo
pensamento binário”. Por que trago esta frase? Porque a considero fundamental
para entender a formação da cultura ocidental, que se cristalizou nesta visão
binária, da separação entre o bem e o mal, entre o espírito e o corpo. E este
conceito impregnou também toda a moral ocidental.
Em Nietzsche, em O nascimento da tragédia, aprendi que
antes da racionalização do mundo, no tempo da tragédia grega, havia uma
interpretação unitária do ser humano. Bem e mal integravam uma única realidade,
eram os seus elementos constituintes. O apolíneo e o dionisíaco, as divindades
do bem e do mal, viviam em equilíbrio e não em conflito. Equilíbrio era a
palavra chave da moral.
Diz um dito famoso, que toda a
filosofia ocidental são notas de rodapé a Platão. Com Platão começamos a entrar
no mundo das simbolizações, no mundo da construção de valores, que tendem para
a universalização. Platão pode ser considerado o primeiro grande pensador
positivista do mundo. As mentes iluminadas dão a direção para o mundo. O que
são as mentes iluminadas senão a expressão viva da divisão social do trabalho,
que como vimos, é uma das causas da origem das desigualdades. Agora entramos
naquilo que Marx chamava de superestrutura da sociedade.
A modelação da cultura ocidental,
no entanto, não está completa. Existe uma religião que está em ascensão, fruto
de uma ruptura no judaísmo. O cristianismo. Quando este cristianismo deixa de
ser a igreja de Cristo para se tornar a religião do Estado, a religião do
Império Romano, sob Constantino, ela abraça Platão e o cristianiza. Institui-se a ortodoxia e lança-se o anátema a
toda a heterodoxia. Já no século IV se instituiu o pensamento único, sob a
égide de Constantino. E o pensamento único é o não pensar. A história nos conta sobre a Idade Média.
Havia então maior submissão, fato que gerava uma violência menor.
Com a afirmação do mundo da
modernidade, uma nova ordem econômica se estabelece. E esta nova ordem
econômica muda todas as estruturas de funcionamento da sociedade. Viagens
marítimas e descobrimentos, Humanismo e Renascimento, Reforma Protestante e
Contra Reforma e a afirmação da racionalidade. Esta nova organização sofre a
violenta repressão das antigas estruturas de poder que insistem em permanecer e
que são representadas, especialmente, pela igreja católica e o seu instrumento
do Santo Ofício e os autos de fé. Festas memoráveis levavam implacavelmente
para a fogueira, todos os que ousavam desafiar. Sob o símbolo da cruz e da
espada, novos povos foram dominados. Os negros serviram para a escravidão e as
populações indígenas sofreram seguidos genocídios, até praticamente serem
exterminadas. O Santo Ofício produziu muito sangue e nenhuma verdade.
O novo sistema econômico, o
capitalismo em seus alvores, precisava de “ordem”. Ao governante caberia
governar, isto é, manter a ordem em favor da nova classe protagonista das
transformações, a classe burguesa. Maquiavel
traça estruturas de poder ilimitado. Mas é Thomas Hobbes quem melhor define esse
novo quadro que se estabelece. Num sistema em que todos os indivíduos competem
entre si, gera-se a guerra de todos contra todos, expressa na famosa frase do homo homini lúpus. Seria a guerra total.
E esta guerra total só poderia ser evitada pela submissão total. É o Estado
Leviatã, o monstro bíblico que a todos apavora. Desde cedo Hobbes percebeu a
incompatibilidade entre o capitalismo que nascia, com a democracia, que a
racionalidade do iluminismo procurava afirmar.
O mundo ganha uma nova religião,
na qual a prosperidade passa a ser um valor absoluto e um sinal das
preferências divinas. Deus celebra uma nova aliança, não mais com Israel, mas
com os Estados Unidos, a terra da liberdade e da prosperidade. A estrutura
filosófica, religiosa e moral continuam binárias, separando mente e corpo,
supervalorizando a mente e menosprezando o corpo. Por esses dias ouvi Jessé
Souza (o autor de A Tolice da
inteligência brasileira) fazer um apêndice em sua fala para dizer que aí
está toda a raiz machista de nossa sociedade, porque o homem é visto como mente
e a mulher como corpo. Superioridade e inferioridade. O iluminismo, embora
gerando grandes pensadores e belos projetos, acaba sucumbindo àquilo que se
chamou de razão técnica ou instrumental. A razão passou a fazer cálculos em
favor da acumulação do capital.
O novo sistema, o do capitalismo,
se afirmou pelas revoluções burguesas e não por revoluções populares. Como ele
é um projeto alicerçado em classes sociais, ele precisou e precisa de
simulacros para chegar e se manter no poder. Mais uma vez ele recorre à divisão
social do trabalho para produzir ideologia, a ideologia da igualdade, da
meritocracia e da própria democracia, ou no dizer de Márcia Tiburi no seu
fabuloso Como conversar com um fascista, que
a sedução capitalista que escamoteia a opressão organiza-se por uma constelação
de palavras mágicas, pelas quais todos conseguem realizar os seus desejos.
“Palavras como felicidade, ética, liberdade, oportunidade, mérito, são todas
mágicas. Uma dessas palavras mágicas usadas pelo capitalismo é a palavra
‘democracia’. Antidemocrático, o capitalismo precisa ocultar sua única
democracia verdadeira – a partilha da miséria”. Um sistema de ocultamentos.
Como funciona este sistema de
ocultamentos? Trago aqui duas frases como ilustração. Uma é de Marx. “Se a
aparência fosse igual à essência não haveria a necessidade da ciência”. A outra
é do grande educador, Dermeval Saviani, quando fala dos objetivos da educação,
que se expressa mais ou menos assim: - Do pensamento sincrético se chega ao
pensamento sintético, pela mediação da análise. Se a aparência não é igual à
essência, se estamos todos imbuídos de um pensamento sincrético e precisamos
avançar para o pensamento sintético, para a essência, precisamos de formação,
precisamos de conhecimento, precisamos de teoria.
A razão calculista e instrumental
também nos trouxe a indústria cultural, nos propondo mais diversão e menos
reflexão, preenchendo o nosso tempo livre. A tecnologia, especialmente com a
chegada da televisão, subverteu o processo de comunicação, transformando-a em
meros comunicados, em espectadores passivos que não interagem. A cultura de
massas. Onde ficariam as singularidades?
Da fala de Paulo Freire, lá de
1992, em Umuarama, eu lembro quando ele falava da elite brasileira. Ele dizia
conhecer o mundo inteiro e que por isso podia afirmar, com toda a convicção,
que a elite brasileira é a elite mais perversa do mundo. Por esses dias vi o
vídeo do presidente da FIESP, falando do fim dos direitos trabalhistas. Foi um
dos mais violentos discursos de pregação de luta de classes que eu já vi. Se o
trabalhador quiser, perguntava ele, por que não mudar toda a legislação
trabalhista? Olhem a desproporção da relação. Em tempos de crise, nem mesmo a
simulações eles recorrem. Crise, afinal de contas, é uma invenção do capital,
para efeitos de acumulação.
Estando em Igarassu, cidade
pernambucana, onde o governador Duarte Coelho aportou e onde está a primeira
igreja do Brasil, ainda em funcionamento, o menino guia nos dizia. Aqui
Portugal ordenou a matança dos índios caetés, porque eles eram muito ferozes e
não se submetiam à escravidão. A igreja leva o nome de São Cosme e São Damião,
porque no dia destes santos (27 de setembro de 1535) ocorreu o massacre dos
indígenas. Certamente acreditaram que foram ajudados por estes santos e por
Deus.
A história do Brasil é uma
história de violência. Violência simbólica e real. A cruz e a espada. No
entanto, o que nos dizem os intérpretes de nossa história e cultura? Falam-nos
da comunhão pascal das raças, do povo cordial, do povo da alegria, do carnaval
e do futebol, da miséria lúdica, e disseminam uma estranha crença na infinita
possibilidade de conciliação de interesses entre as classes. Não teria sido
este o principal erro de Lula, nos seus anos no poder? Vejamos, neste sentido,
um trecho da crônica de Luís Fernando Veríssimo de 14 de abril de 2016:
“Mais...mais. Foi o fim de uma ilusão que qualquer governo com pretensões
sociais - poderia conviver, em qualquer lugar do mundo, com os donos do
dinheiro e uma plutocracia conservadora sem que cedo ou tarde houvesse um
conflito, e uma tentativa de aniquilamento da discrepância. Um governo para os
pobres, mais do que um incômodo político para o conservadorismo dominante, era
um mau exemplo, uma ameaça inadmissível para a fortaleza do poder real. Era
preciso acabar com a ameaça e jogar sal em cima. Era isso que estava
acontecendo”. No estudo das revoltas populares no Brasil, e da violência com a
qual eles foram exterminados, centraremos o nosso foco de estudo, num dos
próximos temas deste curso de formação.
Apenas para lembrar mais um fato, de muita
violência, próximo de nós. Neste ano de 2016 “celebramos” o centenário do fim
da Guerra do Contestado, que só terminou com a morte dos últimos colonos que
resistiram à abertura do Brasil aos interesses estrangeiros e do latifúndio. O
mesmo ocorrera alguns anos antes, num episódio mais conhecido, por causa da
brilhante pena de Euclides da Cunha, com o extermínio total e completo de
Canudos, da figura mística do beato Antônio Conselheiro. Aliás, a presença de
beatos em nossa história, também seria um belo objeto de estudo. A oposição
entre os padres e os beatos.
Recentemente eu li e ouvi uma
palestra de Jessé Souza. O seu livro recebe o título de - A Tolice da inteligência brasileira - ou como o país se deixa manipular
pela elite. Uma de suas expressões, que eu adorei, foi a de que no Brasil é
feito todo um esforço para intelectualizar o senso comum. Passando por todos os
intérpretes do Brasil, mostra as incoerências e os erros de alguns e a má fé de
outros. Qual é, segundo ele, o maior problema do Brasil. É de longe a sua
escandalosa distribuição de renda. 1% da elite tem a mesma riqueza que os
outros 99% da população. Qual é a origem desta acumulação. A apropriação
privada do Estado, por uma série de concessões, melhor, de apropriação de
privilégios. Mas os direitos não podem ser assim percebidos. Eles precisam ser
vistos sob a ótica dos direitos e da meritocracia.
Mais uma vez percebemos o jogo de simulações. Por isso, para as elites, a
intelectualização do senso comum se torna uma prioridade. As elites veem no
combate à corrupção, um desvio de foco dos verdadeiros problemas.
De Jessé Souza tomo também outra
expressão. “racismo cultural”. O que seria este racismo cultural? Seria um
transcender do elemento racial, para indicar um branco idealizado, não apenas o
negro, mas o homem idolatrado pelo sistema capitalista. O homem branco europeu
e norte americano, calvinista e empreendedor, que com a ajuda de Deus, recebeu
e ostenta os sinais da prosperidade. Assim o racismo atinge todos os povos
pobres, mesmo brancos, como todos os povos da América Latina. A dominação lhes
será benfazeja, uma vez que carecem de autodeterminação.
Este homem é o homem competitivo,
que reduziu a sua vida ao econômico, o homem da guerra de todos contra todos; o
homem que quer impor aos outros a figura do Estado Leviatã. Este é o homem que
carrega dentro de si, em potencial, a personalidade autoritária, pronta para explodir
e tão exaustivamente estudada por Adorno e sua equipe de pesquisadores, para
tentar encontrar explicações para o surgimento do nazismo fascista.
Este homem é absolutamente incapaz
de ter bons sentimentos. Este é um homem recluso, fechado em si mesmo, com um
potencial de ódio, sempre prestes a explodir. Pergunto. Este homem é bem
formado? Ou é a este homem que se aplica a teoria da semiformação, que como nos
alertava Adorno, não é o início da formação, mas o seu oposto.
Há muito trago comigo o livro de
Albert Jacquard, Filosofia para não filósofos. Nele lemos: “Eu sou os vínculos que
vou tecendo com os outros”. E, depois de constatar a impossibilidade da tomada
de consciência sem a presença do outro, Jacquard nos alerta: “É essa
coexistência que é fonte de tensão; ela inicia uma dinâmica, a da comunicação.
Comunicar é colocar em comum; e colocar em comum é o ato que nos constitui. Se
alguém considera esse ato impossível, recusa qualquer projeto humano”.
Em recente texto publicado no
blog O outro – Inferno ou paraíso, eu
faço mais algumas reflexões. Se colocar em comum é o ato que nos constitui e
que possibilita o humano, como são as relações entre os seres humanos? Elas
devem ser relações de verticalidade ou de horizontalidade? As leis morais e
éticas devem brotar da metafísica, hierarquicamente impostas pelos sacerdotes,
ou por aqueles que na divisão social do trabalho ocupam as funções mais
elevadas, ou elas devem brotar da convivência do cotidiano? Qual é palavra que
deve dominar as relações que se estabelecem? A palavra respeito ou tolerância?
Vejam bem as marcas da nossa cultura, da nossa sociedade, em que a palavra
tolerância é aceita como uma grande palavra. Pensem um pouco sobre o como foi o
nosso processo de formação. As primeiras lições que aprendemos, não foram, por
acaso, as da catequese? Discurso ou
diálogo?
Neste post eu também lembro D.
Hélder Câmara: “Se discordas de mim, tu me enriqueces”. E complementa: “Ter ao
próprio lado quem só sabe dizer amém, quem concorda sempre, de antemão e incondicionalmente,
não é ter um companheiro mas, sim, uma sombra de si mesmo”.
Aliás, dizer sempre amém, de
antemão e incondicionalmente, com a imersão em coletivos , segundo Adorno, em
seu clássico Educação após Auschwitz, quando
pergunta sobre as causas que geraram Auschwitz, ele certeiramente nos aponta
que é: “A identificação cega com o coletivo”. O sindicato não pode fugir do
debate deste tema.
Como preciso encerrar, vou
procurando alguns termos. Rubens Casara na apresentação do livro de Márcia
Tiburi, Como conversar com um fascista, nos
conta uma fábula oriental. Nela um homem teve a sua boca invadida por uma
serpente, enquanto dormia. A sua liberdade desapareceu, ele estava à mercê da
serpente. Ele já não mais se pertencia. Estava sob o domínio da serpente.
Figurativamente, esta serpente está entranhada, não no nosso estômago, mas em
nossa cultura, em nosso cotidiano do senso comum. Muito mais do que cultivar o
ovo da serpente, usando a imagem de Bergman, esta serpente já está muito viva e
entranhada em nós. Casara então nos convida para vomitar esta serpente e assim recuperarmos
o humano em nossas vidas.
De uma fala de Márcia Tiburi,
promovida pelo Núcleo de Criminologia e Política Criminal, do curso de Direito
da UFPR, depois de muito falar da importância da alteridade e da linguagem, ela
construiu um jogo dialético entre as palavras amor, ódio e inveja. O pior
sentimento humano não é o ódio, porque ele, pela dialética, é capaz, inclusive,
de suscitar o amor, o que jamais acontecerá com aquele que se nutre do
sentimento da inveja. O seu cotidiano será feito de humilhações e de
xingamentos. Depois dessa reflexão ela fez um grande convite ao congraçamento e
à aprendizagem com o outro. Nenhuma formação pode prescindir de ouvir o outro,
o diferente, o plural.
Quando falamos que o mundo do
iluminismo, da racionalidade se transformou numa racionalidade técnica e
instrumental a serviço do capitalismo, também temos que apontar para a sua
insuficiência para explicar a realidade complexa do humano. Há mais ou menos um
ano eu ouvia uma fala de Leonardo Boff. O tema era - O cuidado de si, do outro
e do mundo.
Nesta fala e em seu livro – Francisco de Assis e Francisco de Roma, ele
nos alerta que “toda a modernidade se construiu quase que exclusivamente sobre
a inteligência intelectual; ela nos trouxe incontáveis comodidades. Mas não nos
fez mais integrados e mais felizes porque colocou em segundo plano ou até
recalcou a inteligência emocional ou cordial e negou cidadania à inteligência
espiritual”. Esta seria uma grande indicação para uma formação em seu sentido
pleno: a integração entre estas três inteligências. A racional ou intelectual,
do mundo da ciência, a cordial para a afetividade das coisas do coração e a
espiritual para tudo aquilo que nos diz sobre a transcendência.
Por fim, retomo uma fala de Jessé
Souza. Na Aula Magna que ele proferiu na abertura do ano letivo de 2016, no
curso de Direito da UFPR, ele concluiu falando sobre a relação entre a mídia e
a democracia. Afirmou que a democracia não se dá pelo voto, mas sim, pelo voto
consciente. Para isso a mídia deve ser tão democrática para que na sua
comunicação ela permita aos leitores, ouvintes ou telespectadores a percepção
de que vivemos numa sociedade em que existem contradições. Quero acrescentar
dizendo, que a qualidade da educação também deve, além do conhecimento
específico das disciplinas, permitir que os educandos, pela formação de uma consciência
crítica, também possam flagrar as enormes contradições em que está mergulhada a
nossa sociedade. E a nossa formação de educadores deve transitar por esse
caminho.
É por essa razão que estamos aqui
reunidos, iniciando este programa de formação. Para que não mais vejamos
colegas nossos, muito queridos, assumir as lutas corporativas do sindicato, se
submeter a bombas e bombardeios, mas que, nas grandes causas, que exigem visões
de mundo mais abrangentes, eles abracem ideias contrárias às de sua classe,
abraçando, inclusive, autoritarismos absolutamente desumanizantes. Alguns lumpen são inevitáveis.
É nessa perspectiva que iniciamos
este curso. Pela nossa formação permanente recuperarmos a nossa identidade, e
essa identidade necessariamente passa pelo nosso trabalho como práxis, o que também mexe profundamente
com a nossa autoestima. Que tenhamos muito êxito neste empreendimento e que os
filhos e filhas dos trabalhadores, ou seja, os alunos da escola pública sejam
os grandes beneficiados deste nosso trabalho.
E para concluir, voltamos ao
nosso começo:
“Sabes, pai, gosto de pensar que
nunca mais vou ficar sozinho e que alguém há de ficar comigo para sempre sem me
abandonar.
O Crisóstomo disse ao Camilo:
todos nascemos filhos de mil pais e de mais de mil mães, e a solidão é
sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que
nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se nossos mil pais e
as nossas mais de mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos,
irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão
grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós”
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.