Sabe, aquele livro que, quando você termina, você fica meio triste por que você queria ainda muito mais? Pois é, isso aconteceu comigo na leitura de
O educador - Um perfil de Paulo Freire, de autoria de Sérgio Haddad. O livro foi lançado em 2019, pela Todavia. Na contracapa lemos: "Nada mais oportuno, portanto, do que um retrato ponderado do educador e da sua obra, em que pesquisa criteriosa fala mais alto do que o ódio e a ideologia". Foi o que o Sérgio Haddad fez, nesses tempos de ódios intempestivos e acirrados.
O maravilhoso perfil de Paulo Freire, traçado por Sérgio Haddad.
O livro de 251 páginas contém treze capítulos que seguem, mais ou menos, uma ordem cronológica de seu "andarilhar" pelo mundo. De seu nascimento na cidade de Recife à sua morte em São Paulo, passando pela Bolívia e Chile, logo após o exílio que duraria longos quinze anos, pelos Estados Unidos (Harvard) e por Genebra (Conselho Mundial de Igrejas), pelas andanças nas recém libertas colônias portuguesas na África e, na volta ao Brasil, pelas suas atividades acadêmicas na PUC/SP e UNICAMP, pela Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo, a escrita de seus últimos livros e o seu sofrimento final. Uma vida à serviço da emancipação humana, com certeza.
Vou dar o título dos capítulos e volver um breve olhar a cada um deles: 1. "Um cripto comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador". É uma contextualização das primeiras atividades de Paulo Freire em sua cidade natal e em Brasília, a sua prisão em Recife e Olinda, até o seu exílio, pelo crime que dá o título ao capítulo. Uma observação muito curiosa se encontra à pagina 23, quando na prisão, um tenente o interpela, lhe propondo alfabetizar um grupo de recrutas que acabava de chegar ao quartel. A resposta de Paulo: "Mas meu querido tenente, estou preso exatamente por causa disso!"
2. Elza Maia Costa Oliveira. Depois de narrar passagens de sua infância em Recife e das primeiras dificuldades na vida, em que a família passou da condição classe média para a pobreza, passa a lembrar fatos de sua adolescência e sobre a sua vida escolar. Termina com o encontro com Elza, a do título, com quem se casa, após rompidas as barreiras iniciais dada pelas diferenças sociais do casal.
3. "A dureza da vida não deixa muito para escolher". É o início de sua vida profissional, como professor de aulas particulares e de língua portuguesa num colégio de elite. Se emprega no SESI, passando a ter contato com os trabalhadores pobres. São as primeiras reflexões mais críticas sobre o significado de seu trabalho. Com eles passa a ter uma aproximação através da linguagem e passa a entendê-los melhor. Torna-se adepto do cristianismo que vai além do assistencialismo e da caridade, para afirmar direitos e justiça. Completa os seus estudos e leciona na Faculdade de Recife. As dificuldades financeiras foram agravadas pela falência de um tio, com a crise de 1929.
4. Uma enorme lata de Nescau. Paulo teve uma aproximação com o ISEB e os seus teóricos e passou a se interessar pelos temas brasileiros, objeto de seu doutoramento. Paulo, antes formara-se em direito, profissão que abandonou, já em seus primeiros passos. Passa a trabalhar com Miguel Arraes, tanto na prefeitura, quanto no governo de Pernambuco. A referência à lata de Nescau do título são os primeiros passos de seu método de alfabetização. Os temas de interesse e a associação com imagens. A observação do filho Lutgardes, diante de um cartaz com a lata de Nescau, o levou à descoberta.
5. "Hoje já não somos massa, estamos sendo povo". A frase é o depoimento de um dos participantes de sua famosa experiência em Angicos, em que o próprio presidente Jango foi participar da 40ª hora, das 40 horas, do curso de alfabetização. Desse capítulo quero destacar duas observações: a primeira é do presidente Jango: "Tanto quanto os coronéis udenistas e pessedistas, os comunistas não toleram o que foi feito em Angicos". A outra de Castelo Branco, então comandante do 4º Exército, é uma das mais emblemáticas, afirmando que o método só serviria "para engordar cascavéis no sertão" e que era uma "pedagogia sem hierarquia".
6. "Viva o oxigênio". Essa exclamação é de Paulo, quando ele chega a Arica, no Chile, vindo da Bolívia, o local de seu primeiro exílio. Paulo sofreu demais com a altitude de La Paz e com um golpe de Estado ocorrido no país logo após a sua chegada. Paulo se adaptou bem no Chile, com bom emprego e bom salário.
7. Ninguém educa ninguém. No Chile, irá trabalhar nos projetos de colonização e reforma agrária do governo Frei Montalva. Novas experiências e críticas aos trabalhos de extensão, ministrados por iluminados, sem o emissor/receptor da comunicação. São os anos de suas profundas reflexões, das quais nascem seus primeiros livros: Educação como Prática da Liberdade, certamente uma revisão de sua tese de doutorado e o seu livro mais conhecido, Pedagogia do oprimido. Um belo e fundamental capítulo para entender o mestre. O capítulo termina com a sua ida aos Estados Unidos, onde passará a lecionar em Harvard e a ida para Genebra, trabalhar no Conselho Mundial de Igrejas.
8. Uma caixa de Sonho de Valsa. O impossível também acontece. Paulo inicia seus trabalhos em Genebra, ligados à alfabetização. Lá participa do IDAC, com trabalhos de grande repercussão. A caixa do sonho de valsa é uma referência à enorme saudade que sentia do Brasil, na terra dos melhores chocolates do mundo. Recebia também dos amigos ingredientes para feijoada e cachaça, da qual era grande apreciador. Inicia os contatos com os recém libertos países africanos de língua portuguesa.
9. África: o limite da utopia. O capítulo é muito bonito, onde o pensamente e as experiências de Paulo passam a ser o fundamento de uma educação de países que buscam, efetivamente, construir a sua independência e sua autonomia. Novas amizades, influências e grande repercussão. Guiné Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Tanzânia, Botsvana e Zambia trabalham com o seu método. Em Moçambique as dificuldades foram grandes. Os comunistas... Elza se integra aos trabalhos.
10. "As universidades deveriam correr para contratá-lo". O capítulo narra sua volta ao Brasil, mediada pelo cardeal Arns. A PUC de São Paulo o acolhe como professor, bem a Unicamp, esta com grandes dificuldades. Com a anistia é reintegrado à Universidade do Recife, pela qual se aposenta. Foi um período de intensa atividade intelectual. A frase do título, pasmem, é de Fernando Henrique Cardoso.
11. Reaprender o país. Este também é um dos mais importantes capítulos do livro. Trata da formação de seu pensamento, das críticas negativas e positivas, à esquerda e à direita, de sua obra e a repercussão de seus trabalhos. No ano de 1986 perde Elza, que ao longo de toda a sua história de vida foi a companheira que garantiu a consistência familiar, por uma presença maior junto aos cinco filhos. Enfrentou dificuldades mil. A esta altura o livro é interrompido para 30 páginas de fotografias.
12. "Nós acreditamos na liberdade". É um relato de sua experiência administrativa à frente da prefeitura da cidade de São Paulo, na gestão de Luisa Erundina. Muitas dificuldades e muitas críticas. Ficou por dois anos e meio, para voltar a se dedicar à escrita de livros, fazer viagens e ter uma convivência familiar maior, agora com Nita, com quem se casara, embora resistências vindas de todos os lados. A liberdade referente ao título era a meta em sua experiência de gestão.
13. "Minhas reuniões com Marx nunca me sugeriram que parasse de ter reuniões com Cristo". É o lindíssimo capítulo final: os seus últimos livros e seus últimos trabalhos, bem como os seus problemas de saúde, a sua indisciplina alimentar e a não prática de atividades físicas, o adoecimento e morte. Termina por mostrar uma conjuntura do Brasil de hoje, onde é condecorado com o título de Patrono da Educação Brasileira, mas é também pesadamente insultado pelos seus insanos detratores. O título é retirado de sua última entrevista para a TV PUC/SP.
Pronto, se quiser mais, vamos ao livro e - boa leitura. Em 2021 estaremos comemorando o seu centenário de nascimento, ocorrido em 19 de setembro de 1921, no bairro da Casa Amarela, na sua querida cidade de Recife.