domingo, 15 de março de 2020

Paulo Freire: a essência de seu pensamento. Do livro: O educador - um perfil de Paulo Freire.

Este post tem a finalidade de apresentar três passagens do livro O educador - um perfil de Paulo Freire, de autoria de Sérgio Haddad, através de três episódios  narrados no livro, que bem sintetizam a grandeza de seu pensamento. Vamos a eles.
O traçado de um perfil maravilhoso.

O primeiro deles é retirado do capítulo 9, África: o limite da utopia. Mas o episódio ocorreu na França, na Universidade de Lyon II, em 1978, numa fala a professores e alunos. É uma bela síntese de todo o seu trabalho:

"A transformação de um sistema educacional elitista, reacionário, verbalista, para um tipo de educação em que a produção esteja casada com a educação, em que se busque pouco a pouco superar a dicotomia trabalho manual/trabalho intelectual, é uma coisa que a gente pode imaginar quão difícil é! Quanto mais me meto no esforço de reconstrução nacional desses países, quanto mais eu me molho das águas da reconstrução, tanto mais eu descubro o óbvio: quão difícil é realmente reconstruir uma sociedade! Criar uma sociedade nova, que vai gerar um homem novo e uma mulher nova! [...] Isso demanda uma consciência política clara, que vai clarificando mais na práxis política, fora da qual não há caminho, eu creio, não há solução. Como desenvolver um sistema educacional que estimule a criatividade, a inventividade, uma percepção crítica do momento mesmo em que se vive, o sentido da participação, a superação dos interesses individuais em função dos interesses coletivos? Como desenvolver uma nova pedagogia se as próprias estruturas das sociedades não foram total e radicalmente transformadas ainda? Mas exatamente porque isso não é mecânico, mas sim dialético, em certos casos a educação anuncia o mundo a transformar-se, mas é preciso que este mundo se transforme realmente para que o anúncio que a educação faz não caia no vazio. Isso tudo exige rigor nos estudos, capacitação de quadros, desenvolvimento econômico e social do país, tudo a um só tempo! Não é fácil".

O segundo deles, ocorre em Campinas, onde teve dificuldades para ser aceito como professor. As dificuldades de sua admissão tem causa específica, de um famoso personagem ligado umbilicalmente à ditadura civil/militar, Paulo Maluf, então governador do estado. Nas idas e vindas de sua admissão, um parecer foi solicitado ao professor Rubem Alves. Impossível ser mais genial: Um parecer sobre Paulo Reglus Neves Freire.

"O seu nome é conhecido em universidades através do mundo todo.
Não o será aqui, na Unicamp? E será por isso que deveria acrescentar a minha assinatura (nome conhecido, doméstico), como avalista?
Seus livros, não sei em quantas línguas estarão publicados. Imagino (e bem pode ser que esteja errado) que nenhum outro dos nossos docentes terá publicado tanto em tantas línguas. As teses que já se escreveram sobre o seu pensamento formam bibliografias de muitas páginas. E os artigos escritos sobre o seu pensamento e sua prática educativa, seriam livros.
O seu nome, por si só, sem pareceres domésticos que o avalizem, transita pelas universidades da América do Norte e da Europa. E quem quisesse acrescentar a este nome a sua própria 'carta de apresentação' só faria papel ridículo.
Não, não posso pressupor que este nome não seja conhecido na Unicamp. Isto seria ofender àqueles que compõem seus órgãos decisórios.

Por isso o meu parecer é uma recusa a dar um parecer.
E essa recusa vai, de forma implícita e explícita, o espanto de que eu devesse acrescentar o meu nome ao de Paulo Freire. Como se, sem o meu, ele não se sustentasse.
Mas ele se sustenta sozinho.
Paulo Freire atingiu o ponto máximo que um educador pode atingir.
A questão não é se desejamos tê-lo conosco.
A questão é se ele deseja trabalhar ao nosso lado.
É bom dizer aos amigos: Paulo Freire é meu colega. Temos salas no mesmo corredor da Faculdade de Educação da Unicamp.
Era o que me cumpria dizer".

O terceiro episódio é retirado do programa Memória Viva, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 1983. Fala da sua brasilidade, da sua vocação de educador e sobre a experiência de Angicos, obviamente:

"Foi tratando bem as minhas marcas locais, recifenses, o gosto do suco da pitanga, do caldo de cana, do mel de engenho, da batata-doce, da farinha, da feijoada, do peixe no leite de coco, da lagosta, do camarão, da cachacinha de cabeça. Tudo isto o que é, senão eu, senão nós, senão um pedaço deste país. É a nossa identidade, a nossa linguagem, é o meu gosto da comida, que é cultural. Foi cuidando bem destas coisinhas que andarilhei pelo mundo e virei cidadão do mundo, não porque Pedagogia do oprimido está em dezessete línguas.  Virei cidadão do mundo porque, profundamente, encontrei a minha recificidade, então por onde andei no mundo, andei cuidando das minhas marcas. Se eu não carregasse no meu corpo consciente, na minha capacidade de querer bem, na minha amorosidade as minhas marcas, a minha andarilhagem seria uma enfadonha viagem sem destino, seria um andar sem rumo".

Quando foi perguntado sobre Angicos e sobre seus resultados, assim respondeu, numa síntese feita por Sérgio Haddad:

"Paulo respondeu que a experiência não poderia ser avaliada apenas pelo olhar técnico da aprendizagem da leitura e da escrita. Era preciso ultrapassar esses limites e ver a importância de Angicos como uma ação, decisiva no Brasil e na América Latina, que conferiu cidadania  a pessoas até então destituídas dos direitos mais básicos, alunos que acolheram com entusiasmo uma oportunidade oferecida pelo poder público. Reafirmou a indispensabilidade de considerar o que 'transborda' os limites de uma experiência de alfabetização em si. Foi uma resposta velada às críticas sobre os resultados de suas ações de alfabetização, que Paulo acreditava que não deveriam ser avaliadas apenas do ponto de vista de objetivos técnicos. Era evidente que os processos como o de Angicos tinham limitações; as poucas horas de estudos não dariam conta de suprir todas as demandas educacionais de pessoas que não viviam em ambientes letrados".

Acrescento ainda um quarto episódio. Ele é retirado de um jantar festivo, realizado em Natal, no encerramento do programa de Angicos. Paulo Freire recebe de um detrator, no caso, o general Humberto de Alencar Castelo Branco, então comandante da 4ª  Região militar, uma prova cabal de que a sua pedagogia efetivamente era uma pedagogia igualitária, pois segundo o general, a pedagogia de Paulo é uma  "pedagogia sem hierarquia" e  que só serviria "para engordar cascavéis nesses sertões". Sem dúvida, um elogio.

Mais episódios? Vamos a leitura do livro. 

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