domingo, 30 de junho de 2019

História das lutas sociais no Brasil. Everardo Dias.

Lendo A classe média no espelho, de Jessé Souza, encontro a referência ao livro História das lutas sociais no Brasil, de Everardo Dias. outra grande referência apontada pelo Jessé, neste mesmo livro foi Homens livres na ordem escravocrata, de Maria Sylvia de Carvalho Franco. Jessé Souza, além de ele próprio ser uma grande referência, sempre nos remete a outras. O livro de Everardo Dias foi publicado originalmente em 1962. Já o que eu li, é da Editora Alfa-Omega, de 1977. É óbvio, que o título me provocou a busca do livro.
Da Alfa-Omega, de 1977.

O livro, escrito em 1961, é obra de um militante, um gráfico, que trabalhava no jornal Estado de S. Paulo. Esteve, assim, em contato com a mais alta intelectualidade deste país e com os comunistas, de modo particular, de acordo com as suas convicções, história de vida e de lutas. Everardo nasceu em Pontevedra na Espanha, em 1883 (1886 - no livro) e morreu em São Paulo, no ano de 1966. O foco maior de seu livro são os anos da virada do século XIX para o XX e as primeiras três décadas deste. Everardo é o narrador de seus sonhos, desejos e, especialmente, de suas lutas. Sempre protagonista.

Seu livro tem 330 páginas que estão divididas entre - Dados biográficos do autor, uma introdução e três partes, com os seguintes títulos: O Socialismo no Brasil; Organização Trabalhista e Lutas Sindicais e Primeiras Ideias Socialistas no Brasil. A primeira parte consta de 13 capítulos, a segunda, de três e a terceira, de apenas um. Nenhum dos capítulos leva título.

Na primeira parte temos a República e as primeiras frustrações com ela, o que só lhe fazia aumentar o desejo por justiça. São também tempos de forte imigração. Europeus vem, alguns com o sonho burguês do enriquecimento, e outros, com os ideais de justiça, de um socialismo já consolidado. Na organização sindical prevalece o anarco-sindicalismo. Embora as organizações ainda fossem fracas a repressão policial, ao contrário, já era extremamente forte e violenta. Em 1917 surge o grande alento, com a primeira greve geral. Acordos são celebrados. Mas bastou a volta ao trabalho para a violência ser redobrada. Os anos 1920 foram passados sob constante Estado de Sítio, mas também foram anos de muita movimentação. Alento enorme veio junto com a revolução bolchevique na Rússia, de 1917 e com a fundação do PCB no Brasil, em 1922. Chega também o trabalhismo, com a ascensão de Vargas. São estas as principais pinceladas da primeira parte.

Na segunda parte voltam as discussões em torno do marxismo, do socialismo reformista e, ainda, a doutrina dos anarquistas. Como novidade, chegam as ideias trabalhistas e a nomeação do primeiro ministro do trabalho do Brasil. Era Lindolfo Collor, que nada tinha a ver com os trabalhadores. O autor reconhece as conquistas da era Vargas, lembra de muitos aproveitadores e reconhece que a vida das lideranças dos movimentos teve melhoras, tudo se complicando, mais uma vez, com o Estado Novo. Também o cenário internacional merece suas análises. Aí seguem setenta páginas sob forma de enciclopédia, com a narrativa das principais lutas, desde 1798, quando da execução dos quatro líderes da revolta dos alfaiates na Bahia e chegando até 1934. São anotações que sobreviveram a todas as investigações a que o autor sempre esteve submetido. Uma bela narrativa.

Na terceira parte entram em cena os índios e os negros, até aqui ausentes em sua narrativa. Vejamos sobre o indígena: "O elemento proletário indígena, em sua imensa maioria analfabeto e inferiorizado, empregava-se em ocupações secundárias, não se lhe reconhecia valor mesmo que fosse um artista ou perito em algum mister. Podiam, quando muito, achar que era 'habilidoso'". E agora sobre o negro: "Quanto ao negro, saído poucos anos antes da escravidão, tinha apenas a missão de trabalho rude e pesado, tanto na lavoura como nas cidades, era um ser desprezível e humilhado" E arremata: "Esse o panorama do País, por essa década de 90 a 900". Ou seja, de 1890 a 1900.

Vejamos ainda a contra capa do livro: "Everardo Dias, é um dos raros sobreviventes daquela geração que, nas primeiras décadas do século, contribuiu para organizar e dar uma consciência de classe ao jovem proletariado brasileiro que então se formava no país.

Operário ele mesmo, participou da criação de muitas organizações sindicais e políticas do operariado, dirigiu greves, editou jornais e revistas de caráter classista e esteve integrado em todas as lutas políticas e sociais que se verificaram no Brasil, principalmente entre os agitados anos de 1910 e 1930.

Seu nome está hoje profundamente ligado à história das lutas sociais em nosso país. E este livro é a rememoração, aliás, bem documentada, dessas lutas, de que foi testemunha e quase sempre ator de primeira linha.

Preso inúmeras vezes, sempre ligado às massas operárias e consciente de sua posição social e seus deveres de membro da classe operária, ele acumulou um experiência valiosa para as novas gerações.

Autor de vários livros, e dono de um estilo claro e conciso, este seu último trabalho confirma suas qualidades de escritor popular que possui uma vivência e uma mensagem que deve ser acolhida com especial atenção, como valiosa contribuição para o conhecimento da história pátria".




segunda-feira, 24 de junho de 2019

Homens livres na ordem escravocrata. Maria Sylvia de Carvalho Franco.

Ao ler o livro A classe média no espelho, de Jessé Souza, deparo com uma citação de Maria Sylvia de Carvalho Franco. Verificando, nas referências bibliográficas, constatei que se tratava de Homens livres na ordem escravocrata. De imediato o livro me interessou, devido ao tema. Sempre quis aprofundar a questão de como os negros se inseriram na "sociedade livre", após a escravidão. Embora não seja este o tema - e sim, a constituição ou a formação mais geral da sociedade brasileira após a abolição, fiquei muito satisfeito com a sua leitura. Da mesma forma, o livro não se dedica especificamente à questão da imigração, pelos mesmos motivos.
Edição de 1997, da UNESP. A primeira edição foi de 1969.

A vontade da leitura do livro cresceu, ao ver que se tratava originalmente da defesa de tese de doutoramento na USP, no ano de 1964. O livro foi publicado primeiramente pela editora da USP em 1969, passando depois para outras editoras. A edição por mim lida é da UNESP, datada do ano de 1997. O primeiro relato que me impressionou fortemente foi a banca presente na defesa da tese: Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda,  Antônio Cândido de Mello e Souza, Francisco Iglesias e Octávio Ianni. Tremi só de imaginar. Todos intelectuais de primeira linha.

Confesso que não tenho grande afeição pela leitura de teses, em virtude da linguagem acadêmica, que não considero muito agradável devido a muitas amarras, mas a leitura fluiu  e os temas abordados são realmente interessantes. A própria autora situa o teor do seu trabalho: "A pesquisa refere-se à velha civilização do café que, no século XIX, floresceu nas áreas do Rio de Janeiro e de São Paulo pertencentes ao Vale do Paraíba". O foco maior da pesquisa é a cidade de Guaratinguetá. Ela revirou mundos em sua pesquisa. Documentos de cartórios, de câmaras municipais, relatos dos escritores viajantes e por aí vai. 

O livro consta de uma introdução, quatro capítulos, conclusões e uma valiosa preciosidade de referências bibliográficas. A historiografia agradece. Os capítulos tem os seguintes títulos: I. O código do sertão; II. A dominação pessoal; III. O homem comum, a administração e o Estado e IV. O fazendeiro e o seu mundo. Dou também os subtítulos de cada capítulo.

Em O código do sertão temos: 1. Vizinhança: a violência costumeira. 2. Trabalho e lazer: a violência institucionalizada. 3. Parentesco: a violência necessária. 4. Pobreza e individualização: a violência como moralidade. Impressiona como a violência fazia parte do cotidiano e se dava, sempre por motivos fúteis e banais. Os homens livres e pobres eram violentos e valentes. A valentia era o grande valor moral de uma sociedade hierarquizada em todas as suas possibilidades.

Em A dominação pessoal temos: 1. Tropeiros e vendeiros: a abertura do sistema social. 2 Sitiantes: os fundamentos da dominação pessoal. 3. Agregados e camaradas: necessidade e contingência da dominação pessoal. Trata das possibilidades de ascensão social às margens da lavoura cafeeira, como a dos tropeiros, negociadores de cavalos e as famosas vendas que surgiam à beira das estradas, que enriqueciam os seus donos. O foco maior está nas relações sociais que passaram a se estabelecer. Tanto os sitiantes, quanto os agregados e os camaradas vivam na dependência do fazendeiro e as relações teriam de ser "cordiais", senão a violência imperava.

Em O homem comum, a administração e o Estado temos: 1. A herança da pobreza. 2. Patrimônio estatal e propriedade privada. 3. Autoridade oficial e influência pessoal. 4. A construção do futuro e 5. As peias do passado. O público e o privado se confundiam. O poder emanava do proprietário, dono do latifúndio e as relações eram de pura e simples dominação. As condições de vida eram marcadas pela penúria e a alimentação se restringia ao feijão, à farinha, ao toucinho e à carne salgada. A frágil estrutura do Estado estava presente na infraestrutura e o seu poder se confundia com o do latifúndio. Também intervinha nas desavenças, quase sempre marcadas pelos conflitos de terras.

Em O fazendeiro e seu mundo temos: 1. A visão do antepassado. 2. Negócios: padrões costumeiros e práticas capitalistas. 3. Estilo de vida: produção e dispêndio. 4. Diferenciação social e participação na cultura e 5. Declínio. Predominou, neste período, o orgulho herdado dos bandeirantes, marcados pela intrepidez, brutalidade, ganância e impiedade. A truculência e a violência imperavam no cenário. As relações eram estabelecidas entre os fazendeiros, os comissários, os ensacadores e os exportadores. Quase todos os trabalhos de mediação eram feitos pelos comissários. A cultura era extensiva e pouco se ligava para a produtividade. Quem enriquecia permanecia um ser tosco, sem nenhum refinamento, apesar de títulos nobiliárquicos, que começavam a perder o significado. As terras se exauriram e as fronteiras agrícolas atingiram o fértil oeste paulista.

Em suma, na conclusão, a doutora nos apresenta a lavoura cafeeira como uma monocultura associada ao latifúndio e ao autoritarismo, que se tornou possível, primeiro por causa da escravidão e, depois pelo fato de ser uma cultura extensiva, marcada pelo latifúndio e pelas relações de trabalho sempre sob o domínio do poderoso senhor. O único critério de toda esta atividade era o enriquecimento, mesmo sem usufruir dos benefícios por ele trazidos, não impactando sobre o bem estar social e cultural. Permaneciam rudes e toscos. Com o declínio da lavoura cafeeira no vale do Paraíba, outra cultura extensiva tomou conta das terras já exauridas. O gado.

Deixo ainda um comentário, que creio ser próprio como uma conclusão estendida deste trabalho de 1964. É de Jessé Souza que, em seu livro A classe média no espelho afirma ter sido a lavoura cafeeira a cultura embrionária do agronegócio dos dias de hoje. As características das relações sociais permanecem praticamente inalteradas.



segunda-feira, 17 de junho de 2019

A formação escolar e acadêmica das pessoas que integram o "sistema" Justiça.

Como estamos trabalhando, junto a um grupo de educadores, com histórias de vida, privilegiando a percepção de como se formaram para serem profissionais comprometidos e com consciência clara para quem devem ser direcionados os os esforços de seu trabalho, me deparo, em minhas leituras, com um texto maravilhoso do notável jurista Rafael Valim, professor de Direito na PUC de São Paulo. O texto tem por título "O discurso jurídico brasileiro: da farsa ao cinismo. Ele integra o livro Resgatar o Brasil, coordenado por Jessé Souza e Rafael Valim e editado pela Contracorrente e Boitempo. O texto apresenta os passos da formação dos integrantes do sistema Justiça.  Simplesmente apresento o autor como um jurista, em meio a um mundo de operadores do Direito.
A prioridade número um. Um projeto para o país e para o seu povo.

O quadro é de uma ironia profunda, não deixando de constituir também uma bela peça de humor. Ao terminar a apresentação da "formatação" dos membros do sistema, faz as seguintes considerações: "A leitura deste retrato irônico, porém real, de parcela dos integrantes do sistema Justiça brasileiro aponta para a resposta que estamos buscando: é a mediocridade que levou estas pessoas a destruir os direitos fundamentais, a democracia e o patrimônio nacional. Neles não habita qualquer sentimento constitucional". Mas vamos ao "retrato", ressaltando que se trata de uma "parcela":

"... A esta altura muitos devem estar se questionando: o que motivou esta parcela do Judiciário a destruir, a um só tempo, a democracia, os direitos fundamentais e o patrimônio nacional? A resposta a esta pergunta passa por uma rápida descrição, ainda que caricatural, do padrão das pessoas que ocupam os cargos públicos no âmbito da Justiça brasileira.

Branco, nasce no seio da classe média. Os pais, trabalhadores, acreditam piamente na meritocracia, julgam que a pobreza é fruto da preguiça e que política é coisa de bandido. A referência familiar de cultura é o tio que lê todos os dias os jornalões e nos almoços de domingo regurgita, com ar professoral, alguma mentira publicada.

Desde a mais tenra idade, frequenta escolas particulares e logo irrompe o desejo de ir à Disney. Quando chega à "América", constata a superioridade moral do povo estadunidense. Não há corrupção nem pobreza, prevalecem os direitos humanos, os "serviços públicos" funcionam e há armas à vontade. Um paraíso!

Na adolescência, continua a frequentar escolas privadas onde, naturalmente, só convive com pessoas brancas e da mesma classe social. O oceânico conhecimento que passa a amealhar vem das apostilas e de resumos de alguns clássicos da literatura que nele não despertam o mínimo interesse. Já a tocante sensibilidade social começa a aflorar em "projetos" de distribuição de presentes no dia das crianças ou de entrega de cobertores à moradores de rua quando durante o inverno.

Logo se depara com o vestibular. Intensifica-se o uso das apostilas para ingressar, de preferência, em universidade com boa reputação. Não se pode, naturalmente, descartar os temas atuais, também exigidos nas provas, e, por isso, começa a ler uma revista semanal de grande circulação. Um novo mundo se descortina pelas mãos de notáveis jornalistas isentos e comprometidos com a democracia.

Ingressa na Faculdade de Direito. Entre uma festa e outra, começa a ter contato com professores extraordinários, cujas aulas se assemelham às apostilas que liam no Colégio. Uma didática exemplar e nenhuma crítica: uma maravilha! Professores de filosofia ou sociologia são evitados. Para aprofundar os estudos, adquire livros caríssimos em cujos títulos há presença obrigatória de expressões como "esquematizado", "descomplicado", "sistematizado", "resumido". Ora para que complicar?

É também durante a Faculdade de Direito que toma contato com o mercado de trabalho! Afinal, meritocracia é isso: só começar a trabalhar, ainda que como estagiário, aos 21 anos de idade.

No final do curso é confrontado com a realidade do concurso público. Coitado, terá de sofrer novamente agruras que remontam ao período tenebroso do vestibular. Para superar este desafio, matricula-se prontamente em um curso preparatório que oferece técnicas "ninja" de estudos. Dedica-se a memorizar Códigos e devorar, uma vez mais, apostilas com conteúdos sintetizados e questões de múltipla escolha.

O nosso herói não tem vida fácil. Para comprovar a experiência profissional exigida nos concursos públicos, insere o nome nas procurações outorgadas a uma tia que é sócia de um escritório de advocacia. Desta maneira pode, às expensas dos pais, dedicar-se integralmente aos estudos por vários anos até, finalmente, conquistar o tão sonhado cargo público na Justiça brasileira.

Após alguns anos de exercício do cargo, recebe em sua caixa de correio um convite para participar de um curso de formação em uma renomada Universidade estadunidense. Honrado, quase aos prantos, recorda-se dos dias na Disney e da indiscutível superioridade do gênio norte-americano. Apressa-se em aceitar o convite e, na sequência, matricula-se em uma escola de inglês onde poderá não só aprender a língua inglesa, por meio de maravilhosas apostilas, como também fazer uma "imersão" na cultura norte-americana.

Para arrematar esta história de sucesso, um belo dia recebe uma solicitação de entrevista de um jornalista que, coincidentemente havia sido seu "guru" no período de vestibular. Dias depois vê sua foto estampada na capa da revista semanal que outrora lhe servira de guia em matéria de "atualidades". É a consagração!

Deduções e conclusões por sua conta.

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Resgatar o Brasil. Jessé Souza e Rafael Valim (coordenadores).

Ao ler o livro de Jessé Souza, A classe média no espelho - sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade, deparei com uma citação de Maria Lúcia Fatorelli. A citação se refere a um texto seu, sob o título de "Sistema da dívida pública: entenda como você é roubado". O texto está inserido no livro organizado por Jessé Souza e Rafael Valim, Resgatar o Brasil. Ela é a Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida. Como há muito eu queria ler algo dela, comprei o livro. O tema é explosivo. Segundo Jessé é ela o grande instrumento da corrupção brasileira e é praticada dentro do Banco Central. A corrupção denunciada pela Lava Jato, é por ele considerada como a "corrupção dos tolos", de centavos, perto da real corrupção existente.
A força do pensamento de sete intelectuais brasileiros.
O livro é maravilhoso. Ele pensa o Brasil por inteiro, como um projeto de Nação, com inclusão social e cidadania, através de políticas públicas, para superar nossa perversa formação histórica, oriunda do sistema da escravidão, não superado.Trata fundamentalmente de política, passando necessariamente pela economia. Vários intelectuais brasileiros escreveram os textos, organizados por Jessé Souza e Rafael Valim. Ele foi editado pela Contracorrente e Boitempo em 2018.

Os textos são os seguintes, pela ordem: O engodo do combate à corrupção: ou como imbecilizar pessoas que nasceram inteligentes? de Jessé Souza; Viralatismo em marcha: golpe visa redefinir lugar do Brasil no mundo, de Gilberto Maringoni; O fim da farsa: o fluxo financeiro integrado, de Ladislau Dowbor; Sistema da dívida pública: entenda como você é roubado, de Maria Lucia Fatorelli; Imposto é coisa de pobre, de André Horta; Os grandes negócios que nasceram da cartelização da mídia, de Luis Nassif e O discurso jurídico brasileiro: Da farsa ao cinismo, de Rafael Valim. A maioria dos autores são bem conhecidos de quem, mesmo minimamente, vive informado.

O texto de Jessé retoma os seus livros, A tolice da inteligência brasileira, A elite do atraso e A classe média no espelho.  Vou traçar dois pontos: Somos guiados por ideias e, como estas ideias guia entram em nossas cabeças. O texto responde a estas questões, aplicando-as para o caso brasileiro. Ele parte de um pressuposto que eu sempre defendi, de que é impossível não aprender. Ele diz isto da seguinte forma: "Como sempre, o principal  desafio do conhecimento não é cognitivo. A grande maioria das pessoas pode compreender qualquer coisa dita de modo direto e sem floreios desnecessários. A grande dificuldade humana para aprender qualquer coisa  nova é emocional". O apego por quem colocou estas ideias em nossa cabeça. Me fez lembrar o texto de Kant O que é o esclarecimento? As pessoas não querem aprender. É cômodo ser de menor. Aí ele entra na formação histórica brasileira e nos apresenta a Santíssima Trindade do pensamento viralata conservador, fundado na escravidão: Sérgio Buarque de Holanda é o seu filósofo, Raimundo Faoro, o seu historiador e FHC o seu realizador. Genial, como sempre.

O texto de Gilberto Maringoni se centra no golpe midiático, jurídico e parlamentar de 2016 e, como o seu título enuncia, ele trata das consequências do golpe e da nova inserção do Brasil no mercado global. Esta inserção representa enorme atraso, fazendo o país voltar aos projetos da antiga UDN, de um país submisso e genuflexo na ordem internacional. Relembra a frase de Magalhães Pinto: "O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". Do texto anotei uma frase inicial: "Em dois anos de golpe e quatro da Operação Lava Jato, foram destruídos ou estão em processo de desnacionalização os setores de construção civil, estaleiros, carne e derivados, energia elétrica, petróleo e indústria da aviação". Mais claro é impossível. É apagar a memória de Vargas, como queria a terceira pessoa da  nada Santa Trindade, apontada pelo Jessé. Outra meta do golpe é a destruição dos direitos garantidos na CLT e na Constituição de 1988. Em outro post eu citava os quatro pilares da frágil cidadania brasileira: a CLT, o nosso sistema educacional, mesmo com toda a sua precariedade e a questão da Seguridade Social, implantada pelo SUS e pela Previdência, na Constituição de 1988. Tudo isso está sendo desmontado. São os temas de Maringoni.

Ladislau Dowbor nos dá a mais óbvia lição de economia, ao falar de seu círculo virtuoso, citando o New Deal e o Brasil de 2003-2013, como exemplos. Este círculo virtuoso também aumenta a arrecadação dos impostos, o que permite a melhora dos salários indiretos, representados pelos serviços públicos. Com esta lição visa combater o chamado nanny state, expressão que, confesso, não conhecia. Mas conheço muito bem os seus malefícios, as políticas de austeridade. Depois passa para análises econômicas, centrando suas críticas às estratosféricas taxas de juros que inviabilizam a nossa economia. Quando Dilma diminuiu a taxa de juros, o sistema financeiro patrocinou o golpe. Como alternativa ao modelo do nanny state, apresenta os modelos da economia alemã, da China e do Canadá. Aqui os créditos chegam a ser 1200% mais caros do que nos países da OCDE..

O texto de Maria Lucia Fatorelli é praticamente uma continuidade do de Dowbor, abordando a questão da dívida pública, paga pelo Estado, e que consome praticamente a metade de todos os impostos arrecadados. A dívida pública é o "veículo do roubo". Em meio ao seu texto aparece uma tabela em que compara a distribuição do arrecadado com uma pizza, cortada em pedaços. A pizza é desproporcionalmente cortada. A dívida pública ganha um pedação, que se destina ao improdutivo sistema financeiro. Não sobra para os serviços públicos. E como a economia se apropriou da categoria moral da palavra dívida, o seu pagamento ganha o caráter religioso de salvação. O Banco Central administra os pagamentos em nome do combate à inflação. Termina mostrando a fundamental contradição brasileira, de tanta pobreza em meio a tanta riqueza.

Com o sugestivo título de que imposto é coisa de pobre, André Horta nos mostra o nosso injusto sistema tributário, ao não aplicar um sistema de progressividade, em que os ricos pagariam mais do que os pobres. Aqui pagamos por igual. Os diferentes em riquezas pagam tributos por igual. A partir daí o texto converge com o de Dowbor, sobre o círculo virtuoso da economia, destacando que o bem estar social é a grande base para impulsionar o crescimento econômico. Algo elementar, que a nossa elite teima em não compreender. Com o sistema tributário progressivo seria possível fazer a revolução social silenciosa, lembrando, para terminar, que os privilégios é que foram a grande causa da Revolução Francesa. E esta, nada silenciosa.

O texto de Luís Nassif, sobre a mídia brasileira, mostra a sua concentração e, ao mesmo tempo, aponta para o surgimento de novas mídias. Como é um texto datado, por óbvio, não entrou na questão que hoje faz ferver o caldeirão político, com as revelações do The Intercept. Cita que hoje o Google já é dono da segunda receita publicitária brasileira. Mas o coração do texto é a concentração, ou a cartelização da mídia, num termo mais apropriado. Todos os meios estão nas mesmas e poucas mãos. Dá um belo panorama histórico do combate à cartelização nos Estados Unidos e apresenta outra perversa característica da mídia brasileira, que é a possibilidade de um mesmo grupo atuar em todos os sistemas de mídia, quando TV, jornais, revistas, rádio e sites atuam entrelaçados. Esta atuação permite a total manipulação da Opinião Pública, criando mitos como os da Petrobras quebrada, da Eletrobras quebrada e tantos outros, como também o maior de todos, de que a corrupção é o principal dos nossos problemas. Tudo motes para a privatização.

Confesso que sou fã incondicional do autor do último texto do livro, de Rafael Valim. Ele ganhou esta sua condição por força de um único artigo seu, que eu li no livro de entrevistas do Lula, A verdade vencerá. O texto tem por título, "O caso Lula e o fracasso da Justiça brasileira". Um jurista notável. Deixo o link. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/05/o-caso-lula-e-o-fracasso-da-justica.html Em seu texto nos apresenta uma retrospectiva histórica do Poder Judiciário, comprometido com as elites, uma classificação dos juízes e, uma ironia terrível de como ocorre a formação jurídica de quem integra o sistema Judiciário. Vou fazer um post em separado sobre esta formação, mas não resisto em apresenta a sua classificação. Com ela ele abre seu texto, antecedido de uma advertência:


"Sejamos francos, pois o momento não admite meias palavras.
Atualmente, a comunidade jurídica brasileira está dividida em certos grupos: os que integram o sistema de Justiça e, estão às expensas do povo, cometendo arbitrariedades inomináveis; os que tentam se aproveitar das circunstâncias para obter vantagens; os que, embora compreendam o grave estado de coisas atual, preferem se calar; os que, por um grave déficit cognitivo ou por uma cegueira ideológica incurável, julgam que está tudo em ordem e que o Brasil logo extirpará o 'lamaçal da corrupção'; e finalmente, os que, apesar do macarthismo implacável, não abdicaram do compromisso histórico de enfrentar o arbítrio, ainda que togado".

Creio que todos perceberam que se trata de mais um livro necessário. E eu, diante de tanta burrice, hoje cultivada, fico cá comigo, tentando metabolizar esta frase do Jessé: "Como sempre, o principal  desafio do conhecimento não é cognitivo. A grande maioria das pessoas pode compreender qualquer coisa dita de modo direto e sem floreios desnecessários. A grande dificuldade humana para aprender qualquer coisa  nova é emocional".







quarta-feira, 12 de junho de 2019

A Internacional. A oração leiga dos revolucionários de todo o planeta.

O hino - a Internacional - tem a sua origem na Segunda Internacional, reunida em Paris no ano de 1889, já sem a presença dos anarquistas. A letra é uma composição de Eugène Potier, em 1871. O poema ganhou a sua música em 1888, através do operário anarquista Pierre De Geyter, sob a inspiração da Marselhesa. Em 1889 passou a ser o hino dos trabalhadores de todos os povos e, por um certo tempo, o hino da União Soviética. Vejam o contexto da Segunda Internacional.

O motivo que me levou a este post foi a leitura de A greve de 1917 - Os trabalhadores entram em cena, de José Luiz del Roio. No quarto capítulo de seu livro, sob o título "Suada vitória" ele, num subtítulo fala  de uma determinada "oração leiga". Era o hino da Internacional, apresentado como "a oração leiga dos revolucionários de todo o planeta". Esta canção era cantada pelos grevistas em comemoração às conquistas da primeira grande greve geral havida no Brasil. Transcrevo na íntegra, o que vai pelas páginas 82 a 85.
Um livrinho simplesmente maravilhoso. A greve de 1917.

"A Internacional, canto dos trabalhadores de todo o mundo, traduzido em inúmeros países, tem letra do francês Eugène Pottier (1816-1887), que havia combatido na Comuna de Paris em 1871, e música do belga Pierre De Geyter (1848-1932). Adotada como hino pela Internacional Socialista, era usada também pelos anarquistas. Com a criação da Internacional Comunista, passou a ser também seu hino oficial.

As muitas traduções apresentam algumas variações. Em nosso caso, a versão mais conhecida é a do anarquista português Neno Vasco (1878-1923), de 1909. Ele viveu no Brasil de 1901 a 1910 e atuou decididamente na imprensa anarquista. Como alguns termos da letra são de difícil compreensão, pensou-se em algo mais leve e moderno. Porém, todas as tentativas falharam e seguimos com os versos de Neno Vasco há mais de um século. É sempre muito emocionante. Seguem seus versos:

De pé, ó vítimas da fome
De pé, famélicos da terra
Da ideia a chama já consome
A crosta bruta que a soterra
Cortai o mal bem pelo fundo
De pé, de pé, não mais senhores
Se nada somos em tal mundo
Sejamos tudo, ó produtores

Bem unidos façamos
Nesta luta final
Uma terra sem amos
A Internacional

Senhores, Patrões, chefes supremos
Nada esperamos de nenhum 
Sejamos nós que conquistemos
A terra mãe livre e comum
Para não ter protestos vãos
Para sair desse antro estreito
Façamos nós por nossas mãos
Tudo o que nos diz respeito

Bem unidos façamos
Nesta luta final
Uma terra sem amos
A Internacional

O crime do rico, a lei o cobre
O Estado esmaga o oprimido
Não há direitos para o pobre
Ao rico tudo é permitido
À opressão não mais sujeitos
Somos iguais todos os seres
Não mais deveres sem direitos
Não mais direitos sem deveres

Bem unidos façamos
Nesta luta final
Uma terra sem amos
A Internacional

Abomináveis na grandeza
Os reis da mina e da fornalha
Edificaram a riqueza
Sobre o suor de quem trabalha
Todo o produto de quem sua
A corja rica o recolheu
Querendo que ela o restitua
O povo só quer o que é seu

Bem unidos façamos
Nesta luta final
Uma terra sem amos
A Internacional

Nós fomos de fumo embriagados
Paz entre nós, guerra aos senhores
Façamos greve de soldados
Somos irmãos trabalhadores
Se a raça vil, cheia de galas
Nos quer à força canibais
Logo verás que as nossas balas
São para os nossos generais.

Bem unidos façamos
Nesta luta final
Uma terra sem amos
A Internacional

Pois somos do povo os ativos
Trabalhador forte e fecundo
Pertence a terra aos produtivos
Ó parasitas deixai o mundo´
Ó parasitas que te nutres
Do nosso sangue a gotejar
Se nos faltarem os abutres
Não deixa o sol de fulgurar

Bem unidos façamos
Nesta luta final
Uma terra sem amos
A Internacional

Durante décadas, inúmeros foram os mártires que a cantaram nas masmorras, nas salas de tortura e no patíbulo. Com a voz alta quando as forças permitiram ou apenas murmurando, num último fio de voz. Com força e ira marchando ao combate ou numa explosão de alegria nas vitórias. É a oração leiga dos revolucionários de todo o planeta".






segunda-feira, 10 de junho de 2019

A greve de 1917 - Os trabalhadores entram em cena. José Luiz Del Roio.

Ao ler o livro de Jessé Souza, A classe média no espelho, deparo com a indicação do livro A greve de 1917 - Os trabalhadores entram em cena, de José Luiz del Roio. Sempre alimentei o desejo de ler algo de maior profundidade a respeito e por isso comprei o livro. Na introdução o autor compara este movimento com a Comuna de Paris, tal a sua importância. São Paulo praticamente parou nestes meses de junho e julho de 1917. Os livros oficiais de história do Brasil não são nada generosos em mostrar esta realidade ao povo brasileiro. Esta greve foi fruto do chamado sindicalismo revolucionário, influenciado por anarquistas e comunistas, estes inspirados pelo 1917 da Rússia.
Simplesmente um livro necessário.

O livro é um primor, chamando a atenção o belo português do autor, bem como a sua exposição, extremamente didática. Poderíamos qualificá-lo como um pequeno grande livro. Possui apenas 129 páginas, com bons espaços e direito a fotos da época relacionadas ao triste evento. O livro tem um prefácio, escrito por Gilberto Moringoni, em que conta a história, tanto do livro quanto a de seu autor, lembrando também o esforço em reconstituir a memória desta greve. Os acervos de 1917.

O livro divide-se em introdução, cinco capítulos, indicação bibliográfica e 17 páginas de fotografias. Os capítulos tem os seguintes títulos: 1. Onde tudo começou; 2. Eles, os trabalhadores; 3. Braços cruzados; 4. Vitória suada e 5. O legado da greve. A publicação é de 2017, ano do centenário, pela editora Alameda e pela Fundação Lauro Campos.

Na introdução o autor nos brinda com uma bela contextualização da época, mostrando o Brasil do final do século XIX e início do XX, com acento nas transformações ocorridas na formação econômica e social brasileira, pelos fatores internos e externos. Sobra espaço, ainda, para a apresentação do sindicalismo revolucionário, de raiz anarquista.

No primeiro capítulo, Onde tudo começou, o autor aprofunda o tema da introdução, mostrando a incompatibilidade entre o trabalho escravo e a sociedade capitalista, mostrando a abolição da escravidão (mas não a de sua obra, lembrando Joaquim Nabuco), e a substituição pela "mão de obra" imigrante. Isso também fazia parte do branqueamento da raça, uma vez que teorias higienistas conspiravam contra a presença maciça de negros. Os negros foram, praticamente, empurrados para fora da economia brasileira. Apresenta também a característica dos imigrantes, italianos e católicos, obedientes e submissos, de preferência. A lavoura cafeeira se expandia e a elite se inspirava na vida burguesa de Paris e de Londres.

O segundo capítulo, Eles, os trabalhadores mostra que a incipiente industrialização brasileira já necessitava de trabalhadores mais especializados. Estes, como inconveniente, trouxeram também as bases de sua formação na "luta de classes". Surgiram os primeiros bairros industriais/operários em São Paulo, como o Brás, a Mooca e o Belenzinho. O patronato continuava absolutamente escravista e, agora, com o adendo de colonizados. São Paulo contava em 1890 com 65.000 habitantes, número que saltou para 500.000 em 1917. Surgem as primeiras associações das "classes laboriosas". Mostra a forte presença dos anarquistas, inclusive, os seus princípios educacionais das doutrinas de Francisco Ferrer. Mostra também a entrada do mundo na I Guerra Mundial, a revolução de 1917 na Rússia e a presença, no Brasil, do anarco sindicalismo.

No terceiro capítulo, Braços cruzados, o autor entra em cheio no tema do livro. Conta, em rápidos traços, a história da família Crespi, o seu envolvimento com o fascismo italiano e os seus métodos de trabalho aterrorizante em São Paulo. A sua fábrica de tecidos tinha mais de dois mil funcionários e  o trabalho era ininterrupto. A jornada de trabalho atingia 12 horas diárias para todos, homens, mulheres e crianças, acompanhadas de um forte esquema de vigilância e punições. Foi nesta fábrica, que em junho, a greve teve início. A narrativa da sua expansão, das passeatas, das mortes é de extraordinário vigor e constituem as páginas mais significativas do livro. O nome das lideranças ganha certo destaque, em especial o alemão Edgar Leunroth, além de Theodoro Monicelli, Gigi Damiani, Francesco Cianci, Antônio Candeias Duarte e  Rodolfo Felippe. Embora ele não cite nenhuma mulher, elas foram decisivas. A indústria têxtil sempre empregou muitas mulheres. Em julho São Paulo, literalmente parou. Surgem as mediações, sendo os Street a favor da mediação e os Crespi contra. Obviamente que os Street foram chamados de comunistas, apesar, também, de toda a sua dureza para com os trabalhadores. Elabora-se uma pauta mínima e forma-se um Comitê de Imprensa para a mediação.

No quarto capítulo, Vitória suada, mostra os trabalhadores em festa cantando "a oração leiga dos revolucionários de todo o planeta", a Internacional. Depois da pacificação vem a vindita patronal. Mortes, demissões e deportações. Todos os mecanismos de controle são reforçados em todo O Brasil. Pouco depois o anátema que se dirigia contra os anarquistas ganha o endereço dos comunistas. Em 1924 foi criado o DOPS.

No quinto capítulo, O legado da greve, são mostrados os limites do sindicalismo revolucionário e a crítica à sua recusa de participação política, além da não preocupação com a formação de um projeto para a nação brasileira. Mostra ainda a formação de um sindicalismo mais burocrático, com sedes e organização por categorias de trabalho, a partir da fundação do PCB, em 1922, na cidade de Niterói, sob a liderança de Astrogildo Pereira. Para combater a carestia são criadas as feiras populares livres.

As indicações bibliográficas são valiosas e as 17 páginas de fotografias se constituem numa rara preciosidade. Eu, numa fala de Paulo Freire, ouvi dele mais ou menos o seguinte: Conheço todas as elites do mundo. De longe, a elite brasileira é a mais perversa. Com a leitura, agora entendo melhor a afirmação de Paulo Freire. Ela não contém nenhum tipo de exagero. A elite é escravocrata e colonizada. Leitura necessária, inclusive, para entender o atual momento brasileiro, às vésperas de uma greve geral contra a destruição da previdência e da seguridade social.


sexta-feira, 7 de junho de 2019

Agosto. Rubem Fonseca. O romance da nossa desesperança.

Primeiramente quero expressar toda a minha satisfação com a leitura deste livro, Agosto, de Rubem Fonseca. Superou todas as minhas expectativas. Muito tinha ouvido falar do romance, especialmente, porque o mesmo foi transformado em minissérie pela Rede Globo de Televisão. As 366 páginas do livro foram transformadas em 16 capítulos televisivos. No livro são 26. Os três personagens centrais do livro foram interpretados por José Mayer, no papel do Comissário Mattos, sendo que as duas mulheres de sua vida, Salete e Alice receberam a interpretação de Letícia Sabatella e Vera Fischer, respectivamente. Mas quem me fez mesmo ler o livro, foi a insistente recomendação do meu amigo Sebastião Donizete Santarosa.
A história do Brasil resumida pelo mês de agosto de 1954.

Bem, creio que já entramos na resenha do livro ao enunciar o primeiro trio de personagens. Vamos começar pelos já citados. O Comissário ou delegado de polícia Mattos é uma figura que já não existe mais no serviço público. Ele era honesto e absoluto cumpridor da lei. No curso de direito sempre fora um aluno dedicado. Para conhecê-lo melhor, transcrevo um diálogo mantido junto a Paiva, um outro comissário:

"'O que você quer saber'? Pergunta Mattos para Paiva.

'Moralmente somos obrigados a sacrificar a própria vida, se necessário, para cumprir o nosso dever, que é impedir que se cometam crimes. Não é verdade? Por que não podemos, também para cumprir o nosso dever, matar um bandido para impedi-lo de cometer um crime?'

'Vou responder de maneira bem simples à sua pergunta simplória. Porque a lei não nos dá esse direito. E a lei é feita para todos, principalmente para pessoas que têm alguma forma de poder, como nós. Um policial pode morrer no exercício de seu dever, mas não pode desobedecer a lei'". Página 298-9.

Mattos investigava crimes pesados de toda a ordem. O romance começa exatamente com o assassinato de um empresário de nome Paulo Gomes Machado de Aguiar, o crime do edifício Deauville. O crime é de natureza político-econômica, com favorecimentos governamentais mediados por políticos. Esta investigação ocupa uma das linhas narrativas do romance. As sub tramas nos levam a uma crônica policial do Rio de Janeiro deste agosto de 1954. O comissário Mattos sofria de problemas estomacais, tomando muito leite e estava sempre acompanhado de cápsulas de Pepsamar, um anti ácido, que, por sinal, ainda existe nos dias atuais. As duas meninas do delegado são complicadíssimas e em muito agravavam os seus problemas estomacais.

Mas o mote principal do livro, que lhe dá, inclusive, o título de Agosto, é o suicídio do presidente Vargas, no dia 24 de agosto de 1954. O romance se ocupa exatamente desses dias que antecederam este suicídio. Aí aparece uma outra série de personagens, que são bem conhecidos para os que minimamente conhecem a nossa história. Carlos Lacerda e os políticos da UDN, que junto com os coronéis da aeronáutica tramam pela queda do presidente, políticos do PTB e PSD, a base de apoio do presidente, com destaque para o senador pernambucano Freitas, metido em todas as maracutaias da corrupção governamental. E obviamente o Gregório, o anjo negro de Getúlio, chefe da guarda presidencial. Esta linha de narrativa tornou o romance um romance histórico. É a parte real. A do comissário é a parte da ficção. 

Os destaques desta parte vão para o atentado da rua Tonelero, que era para ter vitimado Carlos Lacerda, o virulento jornalista que tirava o sossego do presidente. Mattos, inclusive, terá participação nos desvendamentos do crime. A outra parte vai para os movimentos finais que antecedem o suicídio. Os momentos da trama palaciana em que as forças militares, a partir da aeronáutica, abandonam o presidente. Não falta também a comoção popular pós suicídio.

Nunca tinha lido uma obra do escritor, por isso mesmo, me impressionou a sua extraordinária capacidade narrativa. Não tem como parar de ler. Várias tramas de investigação correm sempre paralelas e sempre em meio a muita ironia e extremado senso de humor. As frases são curtas e certeiras. Muitos diálogos entre os personagens tornam a leitura muito fluente. Um escritor de muitos méritos. É também um passeio, especialmente, pelas ruas centrais da cidade do Rio de Janeiro. Em suma, teremos três importantes assassinatos e o suicídio do presidente. Apenas para instigar a leitura.


Antes de terminar, recorro ao enunciado no título do post. "o romance da nossa desesperança". O comentário é de  Roberto Pompeu de Toledo, em resenha feita para o jornal do Brasil. Eis a sua justificativa: "Tudo somado, a visão que fica de Agosto é a do emparedamento histórico brasileiro". Sérgio Augusto, em comentário final, contido no próprio livro, assim justifica este qualificativo para o romance: "Nem antes, nem durante, nem depois do 24 de agosto de 1954 o país conseguiu romper com o ciclo do atraso e da violência, da corrupção e da injustiça, da miséria e da demagogia. Não estávamos melhor quando o livro foi lançado; muito pelo contrário: em novembro de 1990 o país atravessava uma das fases mais deprimentes de sua história moderna, daí por que Toledo qualificou Agosto de "o romance da nossas desesperança'". 

E o que dizer dos dias de hoje. O Fla-flu entre a UDN e o PTB continua a todo o vapor e, no atual momento, com ampla vantagem para as forças que levaram Vargas ao suicídio. O comissário Mattos continua sendo assassinada diariamente, várias vezes ao dia. E assim vamos nós, com a soma da voracidade econômica do capitalismo financeiro destroçando um mundo de direitos e o obscurantismo cultural que nos remate, de volta, à idade média.

terça-feira, 4 de junho de 2019

A Guerra. A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil.

Cheguei ao livro A Guerra - A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, de Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias, pela revista CULT, nº 244, na qual havia uma entrevista com Bruno Paes Manso, um dos autores do livro. O título da entrevista foi "Como atuam as milícias - suas origens, a infiltração no poder público e o seu modelo de negócios". Não é o tema do livro, mas é uma decorrência da organização do crime organizado no Brasil, a partir de sua organização maior, qual seja, O PCC, o Primeiro Comando da Capital.
Uma radiografia da organização do crime no Brasil, a partir da hegemonia do PCC.

O livro é impressionante e antes de mais nada deixo a autorizada voz de Drauzio Varella para tecer este comentário, que se encontra na contracapa do livro. "A guerra é um daqueles livros que a gente começa a ler e não consegue parar. Nunca vi descrição tão detalhada e análise tão profunda dos acontecimentos que levaram à formação das quadrilhas que hoje disputam a hegemonia no mundo do crime. É um livro essencial para entendermos a violência urbana que nos aflige e as contradições da sociedade brasileira".

O livro foi concluído em julho de 2018, sendo esta, portanto a data limítrofe dos acontecimentos. O livro foi editado no mesmo ano de 2018, pela Todavia. São 342 páginas, divididas em nove capítulos e uma espécie de conclusão sob o nome de Ubuntu, "filosofia sul-africana que em 1994 serviu de base para que Nelson Mandella e o bispo Desmond Tutu costurassem um novo pacto social para a reconstrução do país no pós-apartheid". Ubuntu emite a opinião dos autores sobre como a questão do crime deveria ser tratada e leva em conta também os estudos de Marielle Franco em sua dissertação de mestrado sobre as UPPs.

Antes de entrar nos nove capítulos deixo ainda a nota de Sergio Adorno, também da contracapa do livro. Síntese perfeita da obra: "Enquanto o crime organizado se modernizou, o Estado permaneceu atrelado ao passado. A expansão do PCC além das fronteiras, os rachas entre facções, a dinâmica dos negócios ilegais, a contabilidade dos mortos, as políticas de regulação e controle social - este livro é um retrato do Brasil contemporâneo sob chamas".

Vamos então aos títulos dos nove capítulos: 1. O racha; 2. As rebeliões; 3. O Projeto Paraguai; 4. O sistema; 5. A consciência; 6. A fronteira; 7. A expansão; 8. O novo mundo do crime; 9. Desequilíbrios e a conclusão sob o título de Ubuntu. Também existe uma radiografia do PCC, com mapas indicando posições do crime organizado e um preciosa indicação bibliográfica.

No primeiro capítulo é mostrada a ascensão do PCC à posição hegemônica do crime organizado, as tentativas de aproximação entre o PPC - Primeiro Comando da Capital (SP) e o Comando Vermelho (RJ), os fracassos destas tentativas e a nova organização do crime, a partir do sistema prisional, com a entrada em cena do telefone celular. Ainda ganha atenção o tema da expansão do PCC, para os estados do MS e PR, por suas posições estratégicas junto a fronteira. O segundo capítulo é uma decorrência da não conciliação entre as duas grandes organizações e o consequente surgimento de inúmeras outras facções, especialmente no norte e nordeste do país. As rebeliões carcerárias e as inúmeras mortes mostram as divergências entre estas organizações.

No terceiro capítulo vemos os avanços do PCC em sua estratégia de aumento de lucros com a eliminação de intermediários, nos caminhos entre a produção e o consumo da droga. Isso implica no domínio das fronteiras no Paraguai, na Bolívia e no Peru e em menor escala na fronteira norte do país. É de estarrecer, especialmente, o que é contado do que ocorreu nas cidades limítrofes entre Pedro Juan Caballero e Ponta Porã e entre Coronel Sapucaia e Capitan Bado. O PCC se torna uma organização criminosa internacional. O capítulo de número quatro conta sobre a organização do crime, a partir do PCC, sua origem e organização até a sua internacionalização, inspirados em grupos colombianos e mexicanos.

O quinto capítulo é dedicação a formação da consciência dos participantes e o sentido de grupo, de pertencimento dos integrantes para com a sua organização criminosa. São mostrados os seus códigos de conduta e de ética. Enfatiza muito os conceitos de hierarquia e de obediência. "O crime precisa se unir. O crime fortalece o crime. Os inimigos são as polícias e o sistema". São apontados também os motivos que levam os jovens ao mundo do crime. No sexto capítulo volta a questão das fronteiras, e mais uma vez, de forma mais específica, as fronteiras com o Paraguai. O sétimo capítulo é dedicado à expansão, com os avanços do PCC pelos estados do Nordeste e do Norte. Um interessante paralelo é traçado entre o PCC e as agências reguladoras. O PCC exerce ou procura exercer esta função no mundo do crime. Outro interessante paralelo traçado é o que mostra o PCC como o STF do mundo do crime.

O oitavo capítulo mostra a reorganização do crime com a entrada em cena do Sistema Prisional Federal, na tentativa de desmantelar o crime e também da formação das milícias e o seu confronto com o mundo do crime. É crime contra o crime. "Milícias e policiais engrossaram o caldo da opressão armada, sob o aplauso da população amedrontada, que também tinha raiva e aposta na violência para se proteger. Como se fosse impossível escapar desse ciclo autodestrutivo". O nono capítulo mostra divergências ou desequilíbrios do PCC no exercício do poder, por brigas na disputa pela liderança interna e a generalização da violência quando os grupos entram em conflito. São as inúmeras mortes nas prisões e fora delas.

No Ubantu lemos, na voz de Marielle Franco, em sua dissertação de mestrado: "O mais correto, se estivesse em jogo uma alteração qualitativa na política de Estado e de Segurança Pública, seria nominar as UPPs de Unidades de Políticas Públicas, por se tratarem de uma necessária mudança cultural em territórios nos quais a presença do Estado não ocorre na completude. [...] O que ocorre é uma propaganda geral pela paz, na qual a polícia, e não a política, ocupa lugar central. [...] A abordagem das incursões policiais nas favelas é substituída pela ocupação do território. Mas tal ocupação não é do conjunto do Estado, com direitos, serviços, investimentos, e muito menos com instrumentos de participação. A ocupação policial, com a caracterização militarista que predomina na polícia do Brasil".