segunda-feira, 24 de junho de 2019

Homens livres na ordem escravocrata. Maria Sylvia de Carvalho Franco.

Ao ler o livro A classe média no espelho, de Jessé Souza, deparo com uma citação de Maria Sylvia de Carvalho Franco. Verificando, nas referências bibliográficas, constatei que se tratava de Homens livres na ordem escravocrata. De imediato o livro me interessou, devido ao tema. Sempre quis aprofundar a questão de como os negros se inseriram na "sociedade livre", após a escravidão. Embora não seja este o tema - e sim, a constituição ou a formação mais geral da sociedade brasileira após a abolição, fiquei muito satisfeito com a sua leitura. Da mesma forma, o livro não se dedica especificamente à questão da imigração, pelos mesmos motivos.
Edição de 1997, da UNESP. A primeira edição foi de 1969.

A vontade da leitura do livro cresceu, ao ver que se tratava originalmente da defesa de tese de doutoramento na USP, no ano de 1964. O livro foi publicado primeiramente pela editora da USP em 1969, passando depois para outras editoras. A edição por mim lida é da UNESP, datada do ano de 1997. O primeiro relato que me impressionou fortemente foi a banca presente na defesa da tese: Florestan Fernandes, Sérgio Buarque de Holanda,  Antônio Cândido de Mello e Souza, Francisco Iglesias e Octávio Ianni. Tremi só de imaginar. Todos intelectuais de primeira linha.

Confesso que não tenho grande afeição pela leitura de teses, em virtude da linguagem acadêmica, que não considero muito agradável devido a muitas amarras, mas a leitura fluiu  e os temas abordados são realmente interessantes. A própria autora situa o teor do seu trabalho: "A pesquisa refere-se à velha civilização do café que, no século XIX, floresceu nas áreas do Rio de Janeiro e de São Paulo pertencentes ao Vale do Paraíba". O foco maior da pesquisa é a cidade de Guaratinguetá. Ela revirou mundos em sua pesquisa. Documentos de cartórios, de câmaras municipais, relatos dos escritores viajantes e por aí vai. 

O livro consta de uma introdução, quatro capítulos, conclusões e uma valiosa preciosidade de referências bibliográficas. A historiografia agradece. Os capítulos tem os seguintes títulos: I. O código do sertão; II. A dominação pessoal; III. O homem comum, a administração e o Estado e IV. O fazendeiro e o seu mundo. Dou também os subtítulos de cada capítulo.

Em O código do sertão temos: 1. Vizinhança: a violência costumeira. 2. Trabalho e lazer: a violência institucionalizada. 3. Parentesco: a violência necessária. 4. Pobreza e individualização: a violência como moralidade. Impressiona como a violência fazia parte do cotidiano e se dava, sempre por motivos fúteis e banais. Os homens livres e pobres eram violentos e valentes. A valentia era o grande valor moral de uma sociedade hierarquizada em todas as suas possibilidades.

Em A dominação pessoal temos: 1. Tropeiros e vendeiros: a abertura do sistema social. 2 Sitiantes: os fundamentos da dominação pessoal. 3. Agregados e camaradas: necessidade e contingência da dominação pessoal. Trata das possibilidades de ascensão social às margens da lavoura cafeeira, como a dos tropeiros, negociadores de cavalos e as famosas vendas que surgiam à beira das estradas, que enriqueciam os seus donos. O foco maior está nas relações sociais que passaram a se estabelecer. Tanto os sitiantes, quanto os agregados e os camaradas vivam na dependência do fazendeiro e as relações teriam de ser "cordiais", senão a violência imperava.

Em O homem comum, a administração e o Estado temos: 1. A herança da pobreza. 2. Patrimônio estatal e propriedade privada. 3. Autoridade oficial e influência pessoal. 4. A construção do futuro e 5. As peias do passado. O público e o privado se confundiam. O poder emanava do proprietário, dono do latifúndio e as relações eram de pura e simples dominação. As condições de vida eram marcadas pela penúria e a alimentação se restringia ao feijão, à farinha, ao toucinho e à carne salgada. A frágil estrutura do Estado estava presente na infraestrutura e o seu poder se confundia com o do latifúndio. Também intervinha nas desavenças, quase sempre marcadas pelos conflitos de terras.

Em O fazendeiro e seu mundo temos: 1. A visão do antepassado. 2. Negócios: padrões costumeiros e práticas capitalistas. 3. Estilo de vida: produção e dispêndio. 4. Diferenciação social e participação na cultura e 5. Declínio. Predominou, neste período, o orgulho herdado dos bandeirantes, marcados pela intrepidez, brutalidade, ganância e impiedade. A truculência e a violência imperavam no cenário. As relações eram estabelecidas entre os fazendeiros, os comissários, os ensacadores e os exportadores. Quase todos os trabalhos de mediação eram feitos pelos comissários. A cultura era extensiva e pouco se ligava para a produtividade. Quem enriquecia permanecia um ser tosco, sem nenhum refinamento, apesar de títulos nobiliárquicos, que começavam a perder o significado. As terras se exauriram e as fronteiras agrícolas atingiram o fértil oeste paulista.

Em suma, na conclusão, a doutora nos apresenta a lavoura cafeeira como uma monocultura associada ao latifúndio e ao autoritarismo, que se tornou possível, primeiro por causa da escravidão e, depois pelo fato de ser uma cultura extensiva, marcada pelo latifúndio e pelas relações de trabalho sempre sob o domínio do poderoso senhor. O único critério de toda esta atividade era o enriquecimento, mesmo sem usufruir dos benefícios por ele trazidos, não impactando sobre o bem estar social e cultural. Permaneciam rudes e toscos. Com o declínio da lavoura cafeeira no vale do Paraíba, outra cultura extensiva tomou conta das terras já exauridas. O gado.

Deixo ainda um comentário, que creio ser próprio como uma conclusão estendida deste trabalho de 1964. É de Jessé Souza que, em seu livro A classe média no espelho afirma ter sido a lavoura cafeeira a cultura embrionária do agronegócio dos dias de hoje. As características das relações sociais permanecem praticamente inalteradas.



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