É impossível não gostar dos livros da Lilia Moritz Schwarcz. Vou fazer referência apenas aos seus últimos livros e dos quais eu fiz a resenha. Brasil: uma biografia, escrito em parceria com Heloísa M. Starling e a majestosa biografia Lima Barreto - triste visionário. Hoje termino de ler Sobre o autoritarismo brasileiro, que ela terminou de escrever em março de 2019. Mais atual é impossível. Já ao final do livro lemos, sobre a função da história e, por consequência, também deste livro:"A função da história, é, assim, 'deixar um lembrete' sobre aquilo que se costuma fazer questão de esquecer". No caso, as origens, ou as raízes do autoritarismo brasileiro.
Só se muda aquilo que se conhece. As nossas raízes autoritárias.
Só se muda aquilo que se conhece. As nossas raízes autoritárias.
Embora, como a própria autora diz, trata-se de um pequeno livro (273 páginas) mas que vai a fundo no tema, além de uma vasta indicação bibliográfica. E as fontes! É toda uma vida de dedicação à história e à antropologia e todo um reconhecimento das universidades em que ela trabalha, na de São Paulo e na de Princeton, nos Estados Unidos. Não a conheço pessoalmente, mas com ela mantive contatos para agendamento de palestra, que, infelizmente, a sua agenda não permitiu. Mas preciso testemunhar, ela ela foi a gentileza feito pessoa.
Na abertura do livro temos duas epígrafes extremamente bem postas. A primeira é de seu triste visionário, o Lima Barreto: "Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou". O triste visionário bem que testemunhou, com o seu sofrimento, este país de Robinsons. A outra é de George Santayana, retirada do The Life of Reason (1905): "Um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la". Creio que podemos afirmar que a nossa, nós não a conhecemos, pois, estamos repetindo seus erros e parece que estamos distantes para a mudança de rumos. Bons momentos sempre foram seguidos de tormentos.
Por isso no corpo do livro, precedido de uma introdução, história não é bula de remédio, temos elencados oito temas, que são os pontos cruciais que fundamenta o autoritarismo brasileiro. São eles: 1. Escravidão e racismo; 2. Mandonismo; 3. Patrimonialismo; 4. Corrupção; 5. Desigualdade social; 6. Violência; 7. Raça e gênero; 8. Intolerância. Termina com uma espécie de conclusão, sob o título quando o fim é também o começo: nossos fantasmas do presente. Esta conclusão é antecedida de duas epígrafes magistrais. "O Brasil tem um enorme passado pela frente", de Millôr Fernandes e "Toda história é um remorso", de Carlos Drummond de Andrade. A minha formação cristã me obriga a uma pergunta. O remorso ou a culpa levam ao arrependimento? Creio que não.
Creio que Lilia também acredita que não. O seu livro é um mergulho nas nossas raízes históricas, todas, invariavelmente, ainda presentes. Vejam o primeiro parágrafo da conclusão.
"A história costuma ser definida como uma disciplina com grande capacidade de 'lembrar'. Poucos se 'lembram', porém, do quanto ela é capaz de 'esquecer'. Há ainda quem caracterize a história como uma ciência da mudança no tempo.Quase ninguém destaca, no entanto, sua genuína potencialidade para reiterar ambiguidades e repetir. E a história brasileira não tem como escapar a essas ambiguidades fundamentais: se ela é feita do encadeamento de eventos que se acumulam e evocam alterações substanciais, também anda repleta de seleções e lacunas, realces e invisibilidades, persistências e esquecimentos. Além do mais, enquanto na sucessão cronológica do tempo destacam-se as alterações cumulativas, marcadas por fatos e eventos isolados - alterações de regime, golpes, mudanças econômicas, sociais e culturais -, não é difícil notar a presença de problemas e contradições estruturais que continuam basicamente inalterados, e assim se repetem, vergonhosamente: a concentração de renda e a desigualdade, o racismo estrutural, a violência das relações, o patrimonialismo".
Nas interpretações de Brasil, costumamos ter uma visão edênica de nosso país. Os oito temas aqui tratados nunca foram problema. A começar pela nossa escravidão, que, ao contrário da dos Estados Unidos, foi branda, as nossas diferenças raciais sedimentaram a tolerância racial e promoveram harmoniosa miscigenação e até a nossa ditadura militar, mesmo sob brilhante Ustra e Fleury, foi uma ditabranda. Mascaramos a nossa história com o homem cordial e com o fato de 'sempre se encontrar um jeito', o jeitinho brasileiro. Com uma bela escrita Gilberto Freyre fala da formação brasileira a partir da integração harmoniosa de três raças e discursa euforicamente como deputado constituinte em 1946 que "O passado nunca foi, o passado continua". Em outras palavras, o nosso maravilhoso passado precisa continuar, ele não pode mudar. No horizonte, sempre a perspectiva da 'modernização conservadora', do mudar para não mudar.
É também preciso evidenciar que estes oito fatores agem em interação. Um provoca e reforça o outro, tudo principiando pela escravidão. Esta gera o racismo, o mandonismo, e fundamenta a sociedade patrimonialista, causa maior de toda a permissividade, responsável e legitimadora da corrupção, pela confusão entre o público e o privado. Como consequência temos a horrível desigualdade social, responsável pelos abismos sociais e pela violência descabida e que cria 'os marcadores sociais da diferença', como a raça e o gênero e que gera, para além da intolerância, um ódio de extermínio ao que se apresenta como diferente.
Todos estes temas são apresentados com profundo conhecimento das raízes históricas e das interpretações de Brasil, sob o olhar da possibilidade da transformação, na perspectiva da superação. Para que possamos, numa visão humanística, formar uma sociedade mais igualitária e justa em que todos possam viver melhor, sem a necessidade de conviver com tantos problemas que a todos afligem. A sociedade, um país ou uma nação, para ser boa, precisa ser, necessariamente, boa para todos.
Como interferi demais nesta resenha, volto ao texto original, para os dois últimos parágrafos do livro.
"Direitos conquistados nunca foram direitos dados, e os novos tempos pedem, de todos nós, vigilância, atitude cidadã e muita esperança também. A sociedade civil brasileira tem dado mostras de que sabe se organizar e lutar por seus direitos. As mulheres não vão voltar para o fogão, os negros e negras que completaram o ensino superior e hoje se encontram em lugares de liderança não recuarão de suas posições, a população LGBTTQ vai continuar a andar de braço dado pelas ruas, os indígenas lutarão e farão valer seus direitos às terras hoje invadidas, líderes de religiões de matriz muçulmana e afro-brasileira cultuarão seus deuses abertamente.
Toda crise pode ser deletéria quando produz um déficit não só econômico como social, político e cultural. Mas toda crise é capaz de abrir uma fresta, pequena que seja, de esperança. Foi Guimarães Rosa, em Grande sertão:veredas, quem explicou que 'O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem'. Uma maravilha de livro. E, para terminar, uma frase na qual acabo de tropeçar: "Tudo o que é já foi". Do livro de Eduardo Moreira, O que os donos do poder não querem que você saiba.
Creio que Lilia também acredita que não. O seu livro é um mergulho nas nossas raízes históricas, todas, invariavelmente, ainda presentes. Vejam o primeiro parágrafo da conclusão.
"A história costuma ser definida como uma disciplina com grande capacidade de 'lembrar'. Poucos se 'lembram', porém, do quanto ela é capaz de 'esquecer'. Há ainda quem caracterize a história como uma ciência da mudança no tempo.Quase ninguém destaca, no entanto, sua genuína potencialidade para reiterar ambiguidades e repetir. E a história brasileira não tem como escapar a essas ambiguidades fundamentais: se ela é feita do encadeamento de eventos que se acumulam e evocam alterações substanciais, também anda repleta de seleções e lacunas, realces e invisibilidades, persistências e esquecimentos. Além do mais, enquanto na sucessão cronológica do tempo destacam-se as alterações cumulativas, marcadas por fatos e eventos isolados - alterações de regime, golpes, mudanças econômicas, sociais e culturais -, não é difícil notar a presença de problemas e contradições estruturais que continuam basicamente inalterados, e assim se repetem, vergonhosamente: a concentração de renda e a desigualdade, o racismo estrutural, a violência das relações, o patrimonialismo".
Nas interpretações de Brasil, costumamos ter uma visão edênica de nosso país. Os oito temas aqui tratados nunca foram problema. A começar pela nossa escravidão, que, ao contrário da dos Estados Unidos, foi branda, as nossas diferenças raciais sedimentaram a tolerância racial e promoveram harmoniosa miscigenação e até a nossa ditadura militar, mesmo sob brilhante Ustra e Fleury, foi uma ditabranda. Mascaramos a nossa história com o homem cordial e com o fato de 'sempre se encontrar um jeito', o jeitinho brasileiro. Com uma bela escrita Gilberto Freyre fala da formação brasileira a partir da integração harmoniosa de três raças e discursa euforicamente como deputado constituinte em 1946 que "O passado nunca foi, o passado continua". Em outras palavras, o nosso maravilhoso passado precisa continuar, ele não pode mudar. No horizonte, sempre a perspectiva da 'modernização conservadora', do mudar para não mudar.
É também preciso evidenciar que estes oito fatores agem em interação. Um provoca e reforça o outro, tudo principiando pela escravidão. Esta gera o racismo, o mandonismo, e fundamenta a sociedade patrimonialista, causa maior de toda a permissividade, responsável e legitimadora da corrupção, pela confusão entre o público e o privado. Como consequência temos a horrível desigualdade social, responsável pelos abismos sociais e pela violência descabida e que cria 'os marcadores sociais da diferença', como a raça e o gênero e que gera, para além da intolerância, um ódio de extermínio ao que se apresenta como diferente.
Todos estes temas são apresentados com profundo conhecimento das raízes históricas e das interpretações de Brasil, sob o olhar da possibilidade da transformação, na perspectiva da superação. Para que possamos, numa visão humanística, formar uma sociedade mais igualitária e justa em que todos possam viver melhor, sem a necessidade de conviver com tantos problemas que a todos afligem. A sociedade, um país ou uma nação, para ser boa, precisa ser, necessariamente, boa para todos.
Como interferi demais nesta resenha, volto ao texto original, para os dois últimos parágrafos do livro.
"Direitos conquistados nunca foram direitos dados, e os novos tempos pedem, de todos nós, vigilância, atitude cidadã e muita esperança também. A sociedade civil brasileira tem dado mostras de que sabe se organizar e lutar por seus direitos. As mulheres não vão voltar para o fogão, os negros e negras que completaram o ensino superior e hoje se encontram em lugares de liderança não recuarão de suas posições, a população LGBTTQ vai continuar a andar de braço dado pelas ruas, os indígenas lutarão e farão valer seus direitos às terras hoje invadidas, líderes de religiões de matriz muçulmana e afro-brasileira cultuarão seus deuses abertamente.
Toda crise pode ser deletéria quando produz um déficit não só econômico como social, político e cultural. Mas toda crise é capaz de abrir uma fresta, pequena que seja, de esperança. Foi Guimarães Rosa, em Grande sertão:veredas, quem explicou que 'O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem'. Uma maravilha de livro. E, para terminar, uma frase na qual acabo de tropeçar: "Tudo o que é já foi". Do livro de Eduardo Moreira, O que os donos do poder não querem que você saiba.