sábado, 31 de dezembro de 2022

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 9. Sérgio Buarque de Holanda.

Antes do término do ano de 2022, vamos ainda ver um dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, renegados e rebeldes, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco. O intérprete da vez é autor de um dos maiores clássicos de nossa história, Sérgio Buarque de Holanda e o seu Raízes do Brasil. A erudita resenha é de autoria de Thiago Lima Nicodemo. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 autores/intérpretes, em resenhas apresentadas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.
Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

A resenha começa com os acontecimentos do ano de 1936 na vida de Sérgio Buarque de Holanda, quais sejam, a publicação de Raízes do Brasil, o seu casamento e o início de sua carreira como professor do ensino superior, na então recém criada Universidade do Distrito Federal. Três fatores extremamente marcantes em sua vida. A entrada na vida universitária, com historiadores franceses, marca profundamente a sua vida como historiador. Marca também o início da profissionalização da carreira dos historiadores.

Essa sua profissionalização e a visão de novos horizontes na carreira de historiador marcam as duas revisões de sua obra mais famosa, Raízes do Brasil. Lembrando que a primeira edição data do ano de 1936, sendo a primeira e mais profunda revisão do ano de 1948 e a terceira e definitiva, do ano de 1956. Segundo o resenhista, a marca fundamental dessas revisões é o abandono de uma visão mais espontânea e positiva nas transformações na formação da sociedade brasileira, por uma visão de uma maior intervenção nessas transformações, marcadas por uma visão progressista e democrática. Representa também um afastamento das influências de Gilberto Freyre. É o tempo em que participa da fundação da Associação Brasileira dos Escritores, na organização do movimento "Esquerda democrática" e na fundação do Partido Socialista Brasileiro em 1947. 

Essas revisões marcam também as transformações em sua vida pessoal e profissional. Logo após a Segunda Guerra e a redemocratização do Brasil ele se mudará do Rio de Janeiro para São Paulo, a sua cidade natal. Mais dois livros surgirão na sequência: Monções e Caminhos e fronteiras, sempre com o tema da formação da sociedade brasileira, da adaptação da colonização portuguesa na América colonial. Uma linha é constante nessa sua interpretação: a superação dos vícios da ordem colonial e patriarcal. Isso se daria por uma revolução, não violenta, mas progressista, democrática e gradual. 

Deixo registrada uma passagem sobre a presença de dois elementos presentes em sua análise, o espírito de aventura e a cordialidade: "Já foram adequadamente apontadas pela crítica as continuidades estruturais entre duas das figuras fundamentais de Raízes do Brasil: a aventura e a cordialidade. Enquanto a metáfora do aventureiro remete esquematicamente ao colonizador lusitano, em seu afã por riqueza fácil e lucro imediato, em seu desinteresse em deitar raízes na terra explorada, o homem cordial corresponde à herança de práticas patriarcais, ligadas ao meio rural, no desenvolvimento do Estado nacional no século XIX. Falando em termos que só ganham total clareza com a segunda edição de Raízes, a cordialidade é a herança, o produto da ação do espírito de aventura".

Deixo também o parágrafo final, para uma melhor compreensão da posição do resenhista: "A interpretação do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda não se perde ou se abranda na medida em que ele se torna um historiador profissional. Pelo contrário, apesar de menos explícito no texto, seu diagnóstico dos dilemas brasileiros se torna mais coeso e enfático. Do ponto de vista técnico - da escrita da história -, o intelectual reforça uma complexa interpretação do Brasil orientada por planos temporais articulados. Ao mesmo tempo, seus textos tornam-se também cada vez mais orientados por um horizonte político de mudança social de natureza inclusiva e democrática".

Recomendo também a resenha sobre o autor, retirada do livro Introdução ao Brasil - Um banquete no trópico, sobre Raízes do Brasil - http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-11-raizes-do.html e também de Visão do Paraíso. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-20-visao-do.html

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 8. Everardo Dias.

Dando continuidade na análise dos "intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincln Secco, vamos hoje trabalhar o pensamento e a ação de Everardo Dias, numa resenha de Marcelo Ridenti. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas apresentadas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

A resenha de Marcelo Ridenti começa com a obra de Leandro Konder A derrota da dialética, em que o autor fala da pouca e má interpretação do pensamento de Marx no Brasil, ao longo das primeiras décadas do século XX. Poucas traduções e o envolvimento direto nas lutas sociais da esquerda brasileira seriam as razões para essa má compreensão.  Marx era confundido com o evolucionismo, com o positivismo, com o anarquismo e, depois com a larga difusão do stalinismo. O livro de Leandro Konder recebeu amplas contestações.

Everardo Dias se enquadraria, assim mais no perfil das experiências de luta do que nas reflexões teóricas. Ele foi marcado pelo seu pensamento anticlerical, anarquista, positivista e comunista. Em registro nos arquivos do DOPS-SP se lê, sobre o ativo militante o que segue: "Anarquista. Comunista. Tem tido contínuo contato com a polícia, por efeito de suas ideias avançadas a cuja propaganda tem se dedicado com muito carinho. Tem prestado sua atividade intelectual a uma intensa propaganda comunista [...]. Seus discursos sempre foram contra os poderes constituídos [...]. É um propagandista ativo e perigoso".

Everardo Dias nasceu em Pontevedra, na Espanha, no ano de 1883, mas já em 1886 estava no Brasil, com a sua família, com o pai trabalhando em São Paulo como tipógrafo, profissão que depois ele
também seguiria. Cursou a Escola Normal da Praça da República, única escola do hoje denominado ensino médio existente. Por um breve tempo exerceu a função de professor em Monte Alto, no interior de São Paulo, voltando para a capital para exercer a profissão de tipógrafo e jornalista. Já em 1903 o encontramos à frente do jornal O Livre pensador, em que defendia o uso da razão contra o catolicismo conservador. É a sua fase acentuadamente anarquista, defendendo inclusive a ideia de que Jesus Cristo era um pensador anarquista.  

Por ter participado ativamente das greves de 1917 e 1919 foi preso, condenado a 25 chibatadas e deportado. Por influências maçônicas, recebeu indulto presidencial, mesmo condenado pelo STF da época. Ele pertencia a ordem maçônica. Em sua volta se estabelece no Rio de Janeiro. É também o momento de sua participação no recém fundado PCB. Escreve um de seus principais livros Memórias de um exilado, um relato das agitações sociais da década de 1910. Como se tornou bastante conhecido em função de sua deportação e anistia, escreve para jornais de vários estados brasileiros. Sua outra obra importante Bastilhas modernas, relata suas memórias das prisões (no plural, sim - várias e em vários lugares) que se constituiu num dos mais importantes documentos sobre o sistema prisional da época, um sistema de perseguições contra os deserdados, como o classificou.

Essa sua obra teria servido de inspiração para Graciliano Ramos escrever Memórias do cárcere. As prisões ocorreram sob o governo de Artur Bernardes (1922-1926). A obra é marcada por uma profunda indignação moral. A saída da prisão marca o seu retorno a São Paulo. A sua filiação ao PCB marca o seu afastamento da maçonaria, mas não de seus amigos maçons. No início dos anos 1930 é expulso do PCB, num expurgo dos intelectuais em favor dos obreiros. Em 1932 adere à rebelião paulista, volta à maçonaria, sem abandonar as suas convicções socialistas. Nos anos 1950 o encontraremos trabalhando na imprensa com os comunistas mais independentes do Partido, na Revista  Brasiliense. Os seus artigos resultarão no seu mais importante livro História das lutas sociais no Brasil, livro que já resenhei aqui no blog. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/06/historia-das-lutas-sociais-no-brasil.html

No encerramento da resenha Marcelo Ridenti volta ao livro de Leandro Konder, em defesa de Everardo Dias, e mostra também a sua importância pelas lutas das quais sempre foi ativo participante. Vejamos: 

"A natureza da obra de Everardo Dias - notadamente seus livros principais, Memórias de um exilado, Bastilhas modernas e História das lutas sociais no Brasil - não permitem falar em "derrota da dialética" do ponto de vista teórico, já que nunca se propôs a fazer uma análise dialética da sociedade brasileira. Não obstante, ajuda a compreender o período, marcado menos pelo esforço de teorização e mais pela ênfase na experiência prática de vida nos meios sociais de esquerda, em que atuavam as mais diversas correntes de livres-pensadores, anarquistas, positivistas, nacionalistas (tenentistas) e comunistas, enraizados socialmente em diferentes grupos e classes, entre operários, pequeno-burgueses, militares e intelectuais oriundos de setores oligárquicos dissidentes. Então, é o caso mais de constatar e compreender do que de criticar o ecletismo de Everardo Dias e de seus companheiros de geração à esquerda, que lutaram nas circunstâncias mais adversas e pagaram um preço alto por isso".

Deixo ainda a resenha anterior.http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/12/interpretes-do-brasil-classicos_23.html

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 7. Rui Facó

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, trabalhamos hoje Rui Facó, numa resenha de Milton Pinheiro. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são 25 intérpretes, em resenhas apresentadas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

Rui Facó nasceu em Beberibe, no Ceará. Nessa cidade fez também seus primeiros estudos, mudando-se depois para Fortaleza, onde fez o curso de Direito, conheceu Rachel de Queiroz e se filiou ao PCB. Ainda em Fortaleza, começa a trabalhar no jornalismo, profissão que não mais abandonaria. Salvador e Rio de Janeiro foram outros de seus destinos, como também Moscou. Durante o Estado Novo conheceu as amarguras da prisão política. O seu tema de estudos sempre foi a realidade brasileira.

Os seus estudos sobre a realidade brasileira tinham a clara intenção de conhecer a realidade para poder transformá-la. O pós moderno e o fim de um maior rigor na academia o transformaram num pensador "desaparecido" dos círculos universitários. O Brasil dos anos 1930 a 1960 mereceram sua atenção maior. O fato de ser do nordeste colaborou com o fato de voltar seu olhar para a questão agrária brasileira, bem como para as desigualdades regionais.  O seu principal livro foi Cangaceiros e fanáticos: gênese e luta, livro de 1963, livro póstumo, do mesmo ano de sua morte. O livro é um brado contra a opressão. Canudos, o cangaço, os beatos, a República, o latifúndio e o imperialismo estão sempre presentes em sua obra.

De acordo com o PCB, participou da visão de que a estrutura fundiária brasileira após a libertação dos escravos integrava uma estrutura semifeudal. Da mesma forma também era a favor de alianças estratégicas, defendendo as alianças com a burguesia brasileira progressista e democrática, na implantação de um capitalismo moderno, que após a sua superação levaria o país para o socialismo. A famosa teoria do etapismo, da sucessão dos diferentes modos de produção, após o esgotamento de suas contradições. O seu pensamento refletia as posições do Partido e da Terceira Internacional.

Facó nunca teve dificuldade em se posicionar dentro do processo histórico. Ele tinha muito claro de que lado se posicionar. A sua atividade jornalística e literária fizeram dele o típico intelectual orgânico, pela sua militância jornalística nos meios de comunicação vinculados com a esquerda. Via no Partido o organizador das massas populares oprimidas em busca de sua emancipação. Com entusiasmo viu o crescimento do PCB ao final da Segunda Guerra Mundial, possível com o soprar dos ventos da liberdade, ainda que por um breve tempo. O PCB, o primeiro partido brasileiro de massa se constituía na alma viva a impulsionar as transformações na sociedade brasileira.

Após as perseguições e a proibição do partido em 1947, em 1952 irá para Moscou. De lá continuou os seus estudos e as atividades jornalísticas, trabalhando na rádio Moscou. Lá também percebeu as contradições do comunismo soviético, como o culto à personalidade de Stalin e o tolhimento da liberdade para o desenvolvimento das potencialidades. De volta ao Brasil, aprofunda a sua visão de Brasil, cuidando de seus dois livros fundamentais: Brasil do século XX e Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas.

No período de 1958 a 1963, período dedicado ao aprofundamento de seus estudos, ele observa também a transformação brasileira pelo desenvolvimento industrial e pela formação de uma burguesia nacional. Também se envolveu nas lutas contra o racismo e por uma sociedade sem classes e culturalmente emancipada. Dedicou-se ao estudo de biografias, retratando Prestes, o "Cavaleiro da Esperança". Foi um grande "militante da pena", denominação que mereceu em função de sua cada vez maior e mais intensa atividade jornalística.

Em 1963 empreendeu a sua última batalha. Iniciou uma viagem pelos países da América Latina, para denunciar as mazelas do imperialismo que dominava o continente. A sua viagem de trabalho foi interditada por um acidente aéreo na Bolívia, no qual morreram as 39 pessoas que estavam no avião, 36 passageiros e três tripulantes. Para deixar clara a sua importância perante a história, transcrevo os dois últimos parágrafos da resenha de Milton Pinheiro:

"Homem de imensa modéstia, que não fazia jus à sua enorme capacidade intelectual, sempre dialeticamente envolvido na luta, pois pensava e agia na sociedade, estava o tempo todo a serviço da transformação social. Rui Facó morreu em 15 de março de 1963 em um desastre aéreo na Bolívia, numa viagem pela América Latina como correspondente do jornal Novos Rumos. Não obstante o prematuro desaparecimento, ele nos legou uma explicação sobre a realidade brasileira e sobre a história das lutas sociais desse breve século XX. Afinal, novos atores, trabalhadores do campo e da cidade, tiveram em Rui Facó o pesquisador participante, o cientista social que não foi leviano com a verdade.

Quando os tempos atuais encontrarem o seu caminho para uma nova sociabilidade, e a verdade sobre os acontecimentos sociais for escrita, lá teremos Rui Facó como historiador das lutas que construíram a nação no seu processo de emancipação".

 Deixo também a publicação anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/12/interpretes-do-brasil-classicos_21.html

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 6. Ignácio Rangel.

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos trabalhar hoje um de nossos intérpretes mais originais, Ignácio Rangel, numa resenha escrita por Ricardo Bielschowsky. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 intérpretes, em resenhas feitas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

Ignácio Rangel nasceu em Mirador, uma pequena cidade do interior do Maranhão, no ano de 1914. Na capital desse estado formou-se no curso de Direito. Mas a sua propensão sempre foi voltada para os estudos de história e economia. Na qualidade de assistente do presidente Vargas, nos anos 1950, tornou-se um privilegiado observador da economia brasileira, transformando-se assim num intérprete muito particular, não seguindo as diferentes correntes de interpretação. A sua marca particular lhe veio da chamada dualidade básica da economia brasileira. Isso significa dizer que no Brasil sempre houve dois modos de produção, simultaneamente. Um, movido pelos fatores internos, sempre atrasados e outro, movido por fatores externos, nos apontando para um modo de produção já superior.

Confesso que é pela primeira vez que me detenho com o estudo de Ignácio Rangel. O máximo que eu conseguia estabelecer era o seu vínculo com os pensadores do ISEB, com os quais ele também entrava em constantes divergências. Creio que para entender minimamente esse intérprete temos que recorrer a Marx e ver nele a evolução dos diferentes modos de produção e a sua superação ao se esgotarem todas as suas contradições. Assim ao longo a história tivemos os seguintes modos de produção: o comunismo primitivo, o escravista, o feudal, o capitalista e o socialista. Embora os ritmos históricos diferentes, passamos por esses modos de produção, com exceção do primeiro, ao menos em nosso período, a partir a colonização.

O que diferencia efetivamente a nossa história econômica é o seu caráter complementar e dependente das economias centrais e a ausência de qualquer determinação autônoma. Assim se estabeleceu a dualidade básica. Um fator interno, sempre atrasado e outro mais avançado, donde emanavam as diretrizes de comando. Assim, no Brasil colonial, no fator interno, estávamos vinculados ao latifúndio e à monocultura de exportação, comandados pelo fator externo, já no estágio do capital comercial e assim sucessivamente. Também a nossa superestrutura era dual. As de ordem interna e externa, determinadas pela infraestrutura.

O resenhista examina três fases distintas dessa dualidade e os seus momentos de ruptura. Assim a ruptura da primeira etapa veio com 1808 e 1822, a segunda com os acontecimentos de 1888 e 1989 e a terceira, a partir de 1930, com a industrialização, quando começamos a implantar um capitalismo industrial, moderno e que representava o último estágio de nossa economia dual, que seria superado com a implantação de um projeto socialista e com determinação autônoma. 

O segundo elemento que marca o pensamento de Ignácio Rangel é a defesa da necessidade do planejamento econômico, uma influência keynesiana. O planejamento é uma interferência estatal na indução do desenvolvimento, mirando sempre a expansão da industrialização. Como assessor do governo Vargas ele exerceu forte influência na criação das estatais como a Petrobras, a Eletrobrás e o então BNDE, hoje BNDES, no qual ele trabalhou até o fim de sua vida. Também apontou os erros do planejamento econômico brasileiro, determinado pelas diferentes correntes de pensamento.

Outro fator que lhe deixou marcas foi a sua visão sobre a questão agrária brasileira, marcada pelo latifúndio. Confiava, numa determinação histórica de sua modernização e que, por isso mesmo, não havia a necessidade de uma reforma agrária. O campo, por si só, se modernizaria. Nos anos 1960 também se debruçou sobre o tema da inflação, criticando monetaristas e estruturalistas e lhe apontando as causas.

Para superar a etapa capitalista e ingressar no modo definitivo, autônomo, socialista, o país precisaria formar um sistema financeiro nacional que permitiria ser a grande alavanca do desenvolvimento sem as contradições da dualidade. Ao Estado caberia toda a função da comercialização de nossa produção com o exterior, sendo a abertura dos mercados uma importante função sua. 

Já nos anos 1980, segundo o resenhista, Ignácio Rangel cometeria outra de suas 'heresias" ao defender as privatizações, para fortalecer o sistema financeiro, lhe dando mais possibilidades para alavancar novos investimentos e assim promover o desenvolvimento. Ignácio Rangel, o pensador da dualidade básica da economia brasileira, morre no Rio de Janeiro no ano de 1994.

Veja também a resenha anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/12/interpretes-do-brasil-classicos_19.html


segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. 5. Nelson Werneck Sodré.

Dando continuidade às "interpretações do Brasil", com base no livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, veremos hoje a figura singular de Nelson Werneck Sodré, militar e militante do Partido Comunista, numa resenha de Paulo Ribeiro da Cunha. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial, do ano de 2014. Ao todo são apresentados 25 autores/intérpretes, em resenhas apresentadas por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentes, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.
Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

Nelson Werneck Sodré tem uma peculiaridade que hoje é rara no Brasil. Ele foi um militar militante do PCB, portanto, um militar de esquerda. Para a sua época isso era normal. Depois de 1964, isso se tornaria praticamente impossível. A Guerra Fria e a Ideologia da Segurança Nacional, marcadas pelo anticomunismo tomaram conta de nossas forças armadas. Nelson Werneck Sodré nasceu em 1911, no Rio de Janeiro e morreu em Itu (SP) em 1999. A política desde cedo fez parte de sua vida. Vejamos uma afirmação sua: "Quem não tem posição política não tem alma". Ao todo escreveu 56 livros, além de inúmeros artigos nos órgãos de imprensa da esquerda.

Dentro de sua vasta obra, dois livros ganharam um destaque maior: Formação histórica do Brasil e História militar do Brasil. Esses livros estão praticamente ausentes nas escolas de formação militar. Ele é de origem pequeno burguesa e viu na formação militar uma das únicas possibilidades para se dedicar aos estudos. Desde a sua infância sempre foi um leitor voraz. 

Um dos elementos mais interessantes de sua obra é a que se refere à formação dos militares e o papel reservado ao exército. A sua importância e configuração se estabelece ao longo da Guerra do Paraguai, quando se torna necessário fazer um grande recrutamento, o que em muito contribuiu para uma imagem popular do exército brasileiro e bem menos nas outras armas. Esse caráter popular levou à politização e muitos se tornaram abolicionistas e republicanos. Temas como a democracia e o imperialismo faziam parte do currículo das academias. Isso explica a existência do movimento tenentista dos anos 1920. Era uma geração marcada pelas utopias e os sonhos de uma transformação da realidade brasileira. Eram uma forte expressão de inconformismo. Dois grupos se formaram, os de esquerda, que se vincularam ao PCB e os de direita, que optaram pelo fascismo que atendia pelo nome de integralismo. A Intentona de 1935 em muito contribuiu para a formação de uma mentalidade anticomunista. Os que optaram pela esquerda, de maneira geral, aderiram aos princípios da Terceira Internacional.

Apesar de todas as dificuldades de carreira para os que optavam pela esquerda, esta foi a escolha de Nelson Werneck Sodré. A sua opção se deu por princípios ético culturais e político morais. Na sua escolha também pesou muito a sua indignação com os rumos seguidos ao longo da República Velha. O conhecimento da dura realidade interiorana o fez abraçar a ideia de que no Brasil Colonial ainda vivíamos restos do regime feudal, que também foi uma bandeira do PCB. Essa visão lhe veio pelas suas observações ou através do partido? Uma bela discussão. A moral do compromisso o levou a duras críticas à instituição militar pela sua guinada conservadora, quando o exército se negou a incorporar negros e filhos de pais separados em suas fileiras.

Manteve contatos com Roberto Simonsen, a quem considerava um burguês progressista. Foi um duro crítico do Estado Novo de Vargas, não obstante ao apoio a algumas de suas políticas. Os anos de 1943 e 1944 o aproximaram da militância no Partido. Não o fez de forma isolada. O PCB praticamente se tornou o abrigo dos antigos tenentes. Além disso havia a vibração com o Exército Vermelho e as suas vitórias contra o nazismo, especialmente com a vitória na Batalha de Stalingrado e também com a volta de combatentes da FEB, da Itália. O fim da 2ª Guerra marcou o início da Guerra Fria e a cassação do Partido em 1947. 

Se manteve atuante ao longo dos anos da década de 1950, quando um forte grupo de militares lutava pela manutenção da democracia (A garantia da posse de JK). Nesse período também participou dos trabalhos realizados pelo ISEB. Foi preso em 1964, quando a militância política se tornou absolutamente impossível aos partidos de esquerda, ainda mais como membro da instituição militar. Nesse período se dedicou com mais afinco à sua produção teórica. De 1962 é o seu livro Formação histórica do Brasil, de 1965 o História militar do Brasil e de 1967 o Memórias de um soldado. Nesse período atuou na clandestinidade, sob uma vigilância extremamente severa. Assim se tornou um militante invisível, atuando na imprensa comunista, defendendo a redemocratização e a anistia. Procurou ainda estabelecer uma reaproximação das forças armadas com a sociedade civil.

Viu no avanço neoliberal dos anos 1990 uma nova forma de atuação do imperialismo. Vejamos a parte final do último parágrafo da resenha para mostrar os seus últimos combates e a sua importância perante a história. "O imperialismo, em sua versão neoliberal, era o inimigo maior que se fazia presente e o desafio estratégico a ser superado. Isso tudo, sem dúvida, tinha por desígnio a reafirmação de princípios ideológicos que nortearam as teses de Sodré, mas também significava sua revalidação sob outros pressupostos. Fica então a indagação: qual seria o espírito desse último desafio - missão ou tarefa - que norteou o general-de-brigada e historiador Nelson Werneck Sodré nessa fase final de sua longa trajetória militante?  Talvez não seja possível apreender, e nem seja o caso, mas seguramente foi o último combate. O bom combate de um dos últimos tenentes".

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 4. Leôncio Basbaum.

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o militante do Partido Comunista, Leôncio Basbaum, numa resenha escrita por Angélica Lovatto. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial, do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 autores/intérpretes, resenhados por especialistas. O foco do livro são os autores  que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentes, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial.

Angélica Lovatto inicia a sua resenha com uma bela frase em epígrafe, "Como, porém, há quatrocentos anos vem sendo o Brasil interpretado sem nenhum resultado prático para o seu futuro, resolvi levar minhas pretensões mais longe; quero também contribuir para transformá-lo. Para melhor, é claro". Referência explícita a Marx e Engels, à tese 11, contra Feuerbach, na Ideologia alemã.

Leôncio Basbaum nasceu na cidade de Recife no ano de 1907, vindo a morrer em São Paulo, em 1969, contando com apenas 61 anos de idade. Seus primeiros estudos ocorreram em Recife, mas a sua formação em medicina ocorreu no Rio de Janeiro. Mas a sua vida foi dedicada integralmente aos estudos de história e de militância no PCB, visando cumprir o enunciado na frase em epígrafe. Como militante viveu todas as contradições do seu partido, dele se afastando e se reaproximando, movido pela sua fé no socialismo, para além das questões da organização partidária.

O foco da resenha se centra na sua visão histórica, contando a sua versão de história do Brasil, nos quatro volumes da História sincera da República, inconformado com as interpretações correntes no período, que segundo ele, não incorporavam a história de lutas dos trabalhadores, levando em conta apenas as visões da classe dominante. A principal característica da obra está contida no título pela palavra sincera, isto é, pela sua visão de militante, recusando-se à objetividade fria dos fatos, preconizada pela postura de neutralidade.

Apresento primeiramente a periodização dos quatro volumes, para depois voltar à resenha e contextualizar a produção de cada um dos volumes. Assim temos História Sincera da república - Volume I. Das origens à 1889; Volume II. de 1889 a 1930; Volume III. De 1930 à 1960; Volume IV. De 1961 a 1967. E, lembrando que o autor morreu no ano de 1969, com apenas 61 anos. O Brasil caminhava em direção oposta aos seus sonhos e ações.

O primeiro volume surge em 1957. O livro se detém nas causas do atraso brasileiro, mesmo com a proclamação da República, um misto de latifúndio, feudalismo e escravismo. Observem a presença da palavra feudalismo, que mostra a sua fidelidade ao Partidão, que acolhia esse tipo de interpretação. Depois da República da espada, a República será totalmente dominada pela oligarquia cafeeira. Além dessa visão do atraso nota a total ausência da emergente classe trabalhadora na construção brasileira, contrapondo-se assim às interpretações conservadoras de nossa história.

O segundo volume se ocupa inteiramente da República Velha, sob o comando da oligarquia cafeeira paulista. Há forte presença do Estado em investimentos de infraestrutura, atendendo aos interesses do transporte e da comercialização do café, numa economia dominada pelo imperialismo inglês.  Analisa também a emergência e as lutas do proletariado desse período. Vê também as insurreições populares do período, verdadeiros atestados da insatisfação popular com os caminhos da República. Analisa Canudos, o Forte de Copacabana, os tenentes, Prestes, chegando até a crise de 1929 e a sua repercussão no Brasil. Critica a neutralidade de posicionamento dos intérpretes oficiais. É o período em que enfrenta problemas pessoais, que o levam a Salvador, para em breve voltar ao Rio de Janeiro.

Entre o primeiro e o segundo volume publica Caminhos brasileiros do desenvolvimento, livro em que indica que o caminho brasileiro para o socialismo se dá pela via da efetivação da revolução burguesa, mais uma vez sob a leitura oficial do Partidão, pela famosa via das etapas para se chegar ao socialismo. O desenvolvimento econômico, com democracia, necessariamente conduziria ao socialismo. Seria uma revolução pacífica que levaria a classe trabalhadora ao poder. A grande crítica é a ausência das questões agrárias e do desenvolvimento regional nas ações governamentais. Foi um tempo de grande aproximação com os pensadores do ISEB, a quem também não poupava críticas.

Esse período também foi marcado pela conclusão de seus estudos sobre a República e, em 1962 surge o volume III, de sua "História sincera", dividido em três partes: O Brasil Novo, o Estado Novo e a Nova Constituição (1946). Na primeira parte mostra o seu desencanto com Vargas. Na segunda mostra a força da industrialização, analisa os partidos políticos que surgem e critica, já na parte final, a desnacionalização da economia. E mais uma vez, nada de significativo ocorrerá no campo. Critica duramente o seu partido e a sua posição diante de Vargas. Vargas, em vida, é combatido e, após a sua morte passa a ser idolatrado. Como comunista, considera o XX Congresso do PCUs como um golpe de morte. 

O volume IV aparece no ano de 1968 e é escrito sob um enorme abatimento pessoal e de profunda expressão de suas decepções. É um livro de crônicas muito vivas, presenciais, de quem sofreu esse período de contenção das aspirações populares. O livro também pode ser visto e lido como independente de sua tetralogia, como "A fisiologia do golpe". A grande pergunta que ele faz é sobre o que sobrou dos apoiadores do governo de Jango. Por que foi tão fácil a aplicação do golpe? Jango também recebe duras críticas pela sua não resistência. É um belo livro para ser confrontado com as revelações posteriores sobre as raízes e origens do golpe. Quanto ao governo de Castelo Branco, o considerou como um terror político-econômico e cultural.

De sua formação em medicina, traça uma analogia ao diagnosticar o governo de Castelo Branco, como um agonizantezinho. "Parece claro que não basta mudar de médicos", pois, "os que temos à vista são todos parecidos, todos fardados, com o mesmo avental, todos armados, com o mesmo estetoscópio, e não querem ouvir palpites de estranhos". E conclama: "Mas é preciso fazer alguma coisa: mudar os médicos, mesmo que sejam mais caros, e também a terapêutica: o país não suporta mais óleo de rícino e sanguessugas. Não importa o preço. Custe o que custar, é preciso mudar".

Também nos legou o seu livro de memórias. Nele fez um balanço de sua vida, de seu legado. Vejamos algumas passagens de sua parte final. "A tranquilidade da minha vida presente, não foi a procurada por mim, mas a que a vida me impôs". "Não foi isso que desejei. Sonhei ser um militante de vanguarda que, pela sua ação, fosse capaz de contribuir para a transformação deste país, trazendo a felicidade, a liberdade, o bem-estar, para milhões de brasileiros. Não consegui". 

E, ainda: "Como um rio que se desvia de seu curso, porque encontrou obstáculos pela frente, mas acaba desembocando no mar por outras vias, também eu desviei-me sem querer, do meu curso, mas com certeza de que acabarei chegando ao destino traçado, ainda que por outros caminhos. E se não o fizer, pelo menos, e disso tenho certeza, abri um caminho que as águas que vêm atrás de mim, certamente seguirão". Conflitos entre a vida pessoal e a hierarquia de seu partido marcaram profundamente a sua trajetória.

Veja também a resenha anterior. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/12/interpretes-de-brasil-classicos.html


quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Intérpretes de Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 3. Astrojildo Pereira.

Na continuidade da análise dos "intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o militante anarquista, depois comunista, Astrojildo Pereira, num ensaio/resenha de Antonio Carlos Mazzeo. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 autores/ intérpretes, em ensaios apresentados por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes de Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial.

Astrojildo Pereira nasce na cidade de Rio Bonito (RJ), filho de comerciante bem sucedido. Já em Niterói inicia seus estudos mas os abandona bem cedo para ser autodidata. Também muito cedo empreende uma viagem à Europa, mantendo contato com a obra de pensadores anarquistas. Muito cedo também se apaixona pela obra de Machado de Assis.

Entre as suas primeiras preocupações estão as transformações brasileiras de sua época, como a República, as consequências da abolição da escravidão, a imigração, a industrialização e a urbanização e, de um modo todo especial, o surgimento de uma classe trabalhadora, tratada por patrões moldados e habituados com a escravidão. Também a análise política desse período merece a sua atenção. Um regime republicano autocrático, marcado por muita violência e nada de democracia. São os horríveis tempos da República Velha.

Também são os tempos do despertar de um intelectual comprometido com a causa dos trabalhadores e de busca de elementos teóricos para a sua emancipação. As primeiras perspectivas foram as do anarquismo. Nesse tempo manteve grande proximidade com os trabalhadores, participando de seus movimentos de organização. O irromper da Primeira Guerra o fez abraçar as causas pacifistas e internacionalistas, ainda dentro do movimento anarquista. Se revolta com a violência repressora contra os líderes da greve de 1917 e passa a se aproximar do marxismo-leninismo após a Revolução Russa de 1917. Rejeita os princípios da Segunda Internacional e tem dúvidas com relação à Terceira, à qual, mais tarde, irá aderir.

A medida que o tempo passa, após a Revolução Russa, as greves portuárias de Santos e do Rio de Janeiro, a sua aproximação com o comunismo se torna maior, e ele passa a trabalhar no movimento de fundação do Partido Comunista no ano de 1922. Busca a unificação de todos os trabalhadores, isto é, os da cidade e do campo, sendo um pioneiro na busca dessa aliança, de difícil efetivação. Será o primeiro Secretário Geral do Partido (PCB), após a sua fundação. Busca aliança com o movimento tenentista, especialmente com Prestes. Sofre pesadas críticas e é acusado de aliança com setores da pequena burguesia. É afastado do partido, sem jamais abandonar os seus princípios, passando a se dedicar à literatura. Volta aos estudos da obra de Machado de Assis. Deixo o parágrafo final da resenha para mostrar o seu legado:

"Astrojildo morre em novembro de 1965, aos 75 anos de idade. Sua importância na vida do PCB é reconhecida na década de 1980, exatamente em seu aspecto central, quer dizer, na sua concepção da necessidade da articulação da cultura  como fundamento da formação do militante comunista. Se valeu uma vida de muitas lutas pelo socialismo e pelo comunismo, essa lição continua acesa nas mentes e nos corações dos que pensam a "alma" de uma organização revolucionária é a capacidade de estruturar a política como meta de transformar cada militante do movimento operário em intelectual orgânico de sua classe".

A resenha anterior. Heitor Ferreira Lima. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/12/interpretes-do-brasil-classicos_7.html

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 2. Heitor Ferreira Lima.

Na continuidade da análise dos "Intérpretes do Brasil", a partir do livro Intérpretes do Brasil - Clássicos, rebeldes e renegados, livro organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, vamos hoje trabalhar o militante do partidão Heitor Ferreira Lima, num ensaio/resenha de Marcos Del Roio. O livro é uma publicação da Boitempo Editorial do ano de 2014. Ao todo são trabalhados 25 autores/intérpretes, em ensaios ou resenhas apresentados por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.
Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014. Páginas 27-38.

Heitor Ferreira Lima nasceu em Corumbá (MS) no ano de 1905 e morreu em São Paulo em 1989. Datas bem sugestivas. O início das revoluções na Rússia e a Queda do Muro de Berlim. Tudo a ver com a sua vida. Na sua apresentação inicial Marcos Del Roio o apresenta como um estudioso da ruptura colonial brasileira pelo processo de industrialização, mirando no horizonte a perspectiva da transformação socialista. Ocupou-se assim com os estudos da revolução burguesa no Brasil, ocorrida entre os anos de 1930 e 1980. Sua vida esteve envolvida em contradições entre a sua formação marxista e o seu entusiasmo com a transformação industrial do Brasil. Contradições profundas. Além do marxismo também um positivismo de esquerda entrou em sua vida.

Não pertenceu a uma família abastada, mas, aos 17 anos já se encontrava no Rio de Janeiro, dividindo a sua vida entre o trabalho e os estudos. Participou do movimento sindical e por ele foi levado ao Partido Comunista, fundado em 1922. O Partido o levará a Moscou para estudar na escola leninista, onde fez o seu "curso superior", entre os estudos de economia e de história. De volta ao Brasil, na qualidade de dirigente partidário, empreende viagens que o aproximam da realidade brasileira. Sente dificuldades dentro do Partido e a sua rígida hierarquia e a obediência às ordens do COMINTERN. Passa por prisões e por grandes dissabores. Encontra no jornalismo a sua atividade profissional, agora fixado na cidade de São Paulo. A sua primeira publicação será uma biografia de Castro Alves, que o levou ao tema da escravidão e do colonialismo. 

Entra em contato com o liberal Roberto Simonsen, presidente da FIESP e formulador da política de industrialização de Getúlio Vargas. Essa aproximação o tornou entusiasta do processo de industrialização, mais pelas suas transformações técnicas do que pelas relações sociais. Considerava Roberto Simonsen como o introdutor do fordismo na industrialização brasileira. Isso o aproximou com o positivismo de esquerda e até com a UDN, para se distanciarem do integralismo. Os seus estudos desse período o levaram ao seu livro Formação industrial do Brasil. A industrialização significava para ele a verdadeira ruptura com o colonialismo e as suas estruturas básicas do latifúndio e da escravidão. Aí vem a primeira grande crítica do resenhista. Vejamos:

"Sem negar o valor de autores como Caio Prado e Nelson Werneck Sodré, por exemplo, é inegável que na fase em que o marxismo se implanta no Brasil e que coincide com a revolução burguesa, de fins dos anos 1920 a meados dos anos 1970 do século XX, tanto o movimento operário quanto o marxismo aparecem como força secundária. O resultado é um marxismo vulgar e subalterno, embebido de economicismo, de positivismo, o qual, por um lado, teve enorme dificuldade de ver e fazer do proletariado um protagonista de uma revolução democrática, em virtude de dificuldades teóricas e práticas (que não cabe discutir agora), e, por outro, traduziu a ideologia burguesa ao modo, por exemplo, de industrialismo e industrialização para expressar o processo de revolução burguesa (sem democracia)". Problemas de ordem teórica e prática.

As suas observações sobre a industrialização, o fazem ver a inspiração alemã, de indução do processo a partir do Estado (Friedrich List), a chamada "via prussiana" de industrialização. Critica no entanto, a ausência de planejamento, afirmando que o processo se deu de uma forma meio espontânea, a partir das crises mundiais, que induziram a uma política de "substituição das importações". Criticou também a presença externa em nossa economia, mas, afirma o resenhista, que o seu entusiasmo prejudicou um senso crítico maior. A sua visão mais economicista do que marxista o levou a ser um intelectual mais orgânico à burguesia do que ao marxismo. Viu também, no processo de industrialização a nossa via de ruptura colonial e de afirmação nacional.

Em 1975 publica outro livro, dentro da mesma temática. História do pensamento econômico no Brasil, curiosamente editado pela FIESP, pela proximidade do autor com Roberto Simonsen, a quem tece rasgado elogio: "Roberto Simonsen foi o mais combativo e o mais coerente industrialista que o Brasil já teve". Na sua fase final volta-se, como no seu início, às biografias. O seu entusiasmo agora o leva a Silva Jardim (1860-1891), um personagem dentro da esquerda do positivismo. Ele batalhou pela abolição e pela República, mas a República não o entusiasmou. Preferiu um autoexílio, no qual encontrou a sua morte. Vejamos um parágrafo dedicado a Silva Jardim:

"A postura de Silva Jardim em defesa das ideias mais à esquerda que o embate político suportava formam as mesmas ideias que o fizeram angariar grande prestígio público e a marginalização política, logo que alcançado o objetivo da instauração da república. A morte o colheu em acidente no vulcão Vesúvio, em 1891, antes mesmo de completar 31 anos de idade, quando havia se imposto um exílio voluntário".  Consta que ele fora advertido da erupção iminente do vulcão. Curioso...

Quanto a importância de Heitor Ferreira Lima, vejamos o último parágrafo da resenha: "O interesse de Heitor Ferreira Lima pela biografia de Silva Jardim pode ter um significado esclarecedor do seu próprio pensamento e visão de Brasil. Silva Jardim foi um jovem intelectual positivista de esquerda, vertente que se alongou no tempo no Brasil e foi o tronco do qual se originaram as ideologias do movimento operário, inclusive o marxismo particular do Brasil, marxismo do qual foi Heitor Ferreira Lima um representante dos mais dignos e expressivos, ainda que não lhes tenha sido possível romper com a subalternidade ante a vanguarda do pensamento burguês brasileiro". 

Marcos Del Roio é autor do belo livro sobre as greves operárias do ano de 1917. Veja:

Veja também a publicação anterior - sobre Octávio Brandão: 


segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Intérpretes do Brasil. Clássicos, rebeldes e renegados. 1. Octávio Brandão.

Retomo hoje o tema dos "intérpretes do Brasil". O livro que tomo como referência é Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados, um livro organizado  por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco e publicado pela Boitempo Editorial. O ano da publicação é 2014. Ao todo são trabalhados 25 autores - intérpretes, em ensaios ou resenhas apresentados por especialistas. O foco do livro são os autores que resultaram das transformações brasileiras dos anos 1920 (tenentismo, semana da arte moderna, PCB), quando se inicia no Brasil a denominada modernização conservadora. São apresentados a primeira e a segunda geração desses intérpretes.

Intérpretes do Brasil - clássicos, rebeldes e renegados. Boitempo Editorial. 2014.

O primeiro deles é OCTÁVIO BRANDÃO, que é apresentado por João Quartim de Moraes. A sua apresentação ocupa as páginas 13 a 25. Octávio Brandão nasceu no interior de Alagoas, em Viçosa, no ano de 1896 e veio a falecer em 1980, na cidade do Rio de Janeiro. A sua história de vida é toda ela dedicada ao PCB, o chamado Partidão. 

Octávio Brandão, como já apontamos, nasceu em Viçosa - AL (hoje 26.249 habitantes). A família era proprietária de uma farmácia, fato que o encaminhou para esses estudos em Recife. Nasceu, segundo afirmação sua, em meio a latifúndios e, obviamente, a todas as suas consequências. Do pai, afirma também, que a maior herança recebida. foi a sua coragem moral. Os seus estudos o levaram ao gosto pelas ciências da natureza, mas, ele se destacou mesmo, foi como agitador social. Os fatos o levaram para esse lado. Já no Rio de Janeiro, na qualidade de pacifista, assina manifesto contra a primeira guerra mundial. O fato de ser pacifista e de se preocupar com a justiça social, o torna uma presença incômoda na sociedade carioca e um pensador marcado.

No Rio de Janeiro, os primeiros contatos serão com os pensadores anarquistas, mas deles, logo derivará para o comunismo. Pela não consideração do Estado, julgou o anarquismo como uma doutrina sem futuro. Os contatos com o pensamento de Marx o levaram à fundação do PCB, o partidão, em 1922. Os seus primeiros estudos o fizeram prever os conflitos brasileiros entre o setor agrário e a industrialização. Dedicou-se também aos estudos do imperialismo. Chegou a eleger-se vereador no Rio de Janeiro. A perseguição de Vargas aos comunistas o levou ao exílio na URSS. Em 1957 faz uma autocrítica de seus estudos sobre o agrarismo X industrialismo, numa questão complicada, interna às questões de hierarquia partidária centralizada. Da URSS, faz também o seu observatório sobre a segunda guerra. Antes já se envolvera em outra complicada questão que envolveu a (NÃO) libertação de Olga Benário.

Também continuou com a sua obra teórica, analisando quatro séculos de colonialismo, envolvendo a matança das populações indígenas e a escravidão. Não é nem um pouco conivente com a "hipocrisia" religiosa desse período, entrando em conflito, especialmente, com os padres jesuítas. Em 1947, o encontramos de volta ao Rio de Janeiro, mais uma vez como vereador da cidade. 

O seu pensamento, segundo o resenhista, foi recuperado dentro da história, a partir dos anos 1980, a partir das obras de Edgar Carone sobre a República Velha e de John Foster Dulles, sobre os anarquistas e comunistas no Brasil. O autor da resenha também é participante das pesquisas que resultaram na publicação dos seis volumes da História do marxismo no Brasil, dos quais João Quartim de Moraes é um dos autores e organizadores. Creio que podemos afirmar que Octávio Brandão se enquadra bem dentro dos autores do subtítulo do livro: clássicos, rebeldes e renegados, especialmente como rebelde e renegado.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Dom Helder: O artesão da paz. Raimundo C. Barros e Lauro de Oliveira.

Este livro ficou anos no aguardo de sua leitura. O comprei em 2009, na Primeira Bienal do livro de Curitiba. Sim, já tivemos uma Bienal do Livro em Curitiba. Estou falando de Dom Helder: O artesão da paz, livro organizado por Raimundo Caramuru Barros e Lauro de Oliveira e editado pelo Senado Federal. A edição é do ano de 2009. É o volume de número 120 das Edições do Senado Federal. O livro traz uma bela síntese biográfica de Dom Helder (as primeiras 80 páginas) e os seus principais discursos e pronunciamentos (o restante do livro de 391 páginas). Aqui vou me deter apenas na síntese biográfica.

Dom Helder: O artesão da paz. Raimundo C. Barros e Lauro Oliveira (organizadores).

Dom Helder Câmara nasceu na cidade de Fortaleza no ano de 1909 e veio a falecer na cidade de Recife em 1999. Iniciou os seus estudos em Fortaleza (uma formação absolutamente conservadora), onde também concluiu a sua formação para a ordenação sacerdotal. Posteriormente veio ao Rio de Janeiro, para trabalhar próximo ao cardeal Leme, onde, pelos trabalhos desenvolvidos, ganhou a sua grande notoriedade.

Depois de longos trabalhos desenvolvidos no Rio de Janeiro, foi nomeado bispo para a cidade de São Luís do Maranhão, onde nem mesmo chegou a tomar posse, sendo nomeado para a arquidiocese de Olinda e Recife, onde permaneceu até a sua aposentadoria compulsória, aos 75 anos. Depois ali permaneceu até o tempo de sua morte, no ano de 1999. A síntese biográfica é desenvolvida por sete tópicos, dos quais apresento, primeiramente os títulos, para depois, me deter um pouco neles. Eles tem um título geral: Perfil e trajetória de Dom Helder no século XXI. Vejamos os títulos:

I. Preâmbulo; II. Primeiros sinais de uma vida de fé em Cristo e na Igreja; III. Alargando os horizontes na dimensão do século XX; IV. Passos que marcaram a escalada ao Tabor e ao Getsemani; V. O idílio conciliar e o caldeirão brasileiro; VI. Igreja servidora e interlúdio espartano (1966-1985); Pós-escrito a Dom Helder Câmara. Observem a data que acompanha o tópico VI (1966-1985). São umas 20 páginas de rara preciosidade, por fazer toda a abordagem das relações entre a Igreja católica e o hiato espartano, como o autor denomina a ditadura militar que regia os destinos brasileiros desse período. São esses os anos do Getsemani de Dom Helder. 

I. PREÂMBULO. O preâmbulo é curto. Nele o autor procura mostrar a realidade brasileira e, a inserção nela, de Dom Helder. Em meados do século XX, a expectativa de vida no nordeste brasileiro era de apenas 40 anos. Dentro dessa realidade, qual foi o papel exercida pelo bispo, na sua transformação? É o que se busca nessa síntese biográfica.  São mostradas as diferentes etapas da vida de Dom Helder, que passam a ser analisadas nos tópicos seguintes. 

II. PRIMEIROS SINAIS DE UMA VIDA DE FÉ EM CRISTO E NA IGREJA. Nesse tópico é mostrada a sua infância, adolescência, anos de formação e as suas primeiras atividades. Abrange os anos de 1909, ano de seu nascimento em Fortaleza, até o ano de 1945. São os tempos da República Velha e do governo Vargas, incluindo aí o Estado Novo. São anos de ebulição em uma República nada democrática. Acompanhou os movimentos desse tempo, como o Movimento dos Tenentes, do Forte de Copacabana, da Semana da Arte Moderna. Tudo isso, ele acompanha, ainda morando no Ceará. No Estado Novo já o encontraremos no Rio de Janeiro, atuando junto ao cardeal Leme. No Rio de Janeiro ele assiste e é ator dos movimentos internos da igreja católica, procurando dar a ela a unidade e a centralidade para uma ação mais vigorosa em favor das populações mais necessitadas. Recebe influências de Jacques Maritain e de Alceu Amoroso Lima.

III. ALARGANDO OS HORIZONTES NA DIMENSÃO DO SÉCULO XX. O período de abrangência é a dos anos de 1946 a 1951. Nesses anos se iniciam os trabalhos pastorais na igreja, especialmente os voltados aos operários, aos migrantes e ao povo das favelas, pelo famoso método do padre belga Joseph Cardijin, do VER - JULGAR e AGIR. Três atividades são destacadas nesse período: 1. A preocupação da igreja com o desenvolvimento regional; 2. O olhar da igreja se volta para a questão da estrutura fundiária, inserindo-se nos movimentos em favor de uma reforma agrária; 3. O desenvolvimento de um colegiado episcopal, com a criação da CNBB. Esta foi fundada em 1952, sendo Dom Helder o seu secretário geral. Prenuncia-se a realização do Concílio Vaticano II, convocado em 1962.

IV. PASSOS QUE MARCARAM A ESCALADA AO TABOR E AO GETSEMANI. Os anos de abrangência são os de 1952 a 1962. São anos de intensa participação de Dom Helder no cenário brasileiro e início de sua projeção e reconhecimento internacional. Em 1952, ele é nomeado e sagrado bispo na igreja da Candelária no Rio de Janeiro. Houve resistências por causa de seu envolvimento, nos anos de formação, com o integralismo de Plínio Salgado. Organiza um Congresso Eucarístico e ajuda na criação do CELAM, uma espécie de CNBB latino americana. Organiza, no Rio de Janeiro, um Congresso Eucarístico Internacional. Dedica-se ao trabalho de orientação de catequistas. Ajuda a promover uma intensa relação entre Igreja e Estado, tanto no governo Vargas, quanto no de JK, quando houve grandes aproximações. Continuam as influências de Jacques Maritain em sua vida, acrescidas agora, com as do padre Lebret, que também inspirou o papa Paulo VI nas encíclicas de forte cunho social. A igreja brasileira passa a ter uma forte visão crítica da realidade brasileira e procura se inserir em seus movimentos de transformação. Jango assume o governo brasileiro e anuncia as Reformas de Base. A situação fica tensa, e Dom Helder inicia a subida ao Getsemani, recebendo ameaças por sua atuação comprometida com os pobres. Vejamos uma advertência que recebeu de Dona Ondina, dona do influente jornal carioca Correio da Manhã:

"Dom Helder, ainda está em tempo. Junte-se a nós; gostamos do senhor e muito o admiramos. Acabe com essa mania de denunciar injustiças sociais em favor dos pobres. Caso contrário, vão acabar com o senhor". Também vale a pena citar uma frase sua, muito conhecida, que não está registrada nessa síntese biográfica: "Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista".

V. O IDÍLIO CONCILIAR E O CALDEIRÃO BRASILEIRO. O período de abrangência são os anos 1962-1965. Como o título mostra, dois movimentos fortes ocorrem no período: a convocação do Concílio Vaticano II. e o ferver da política brasileira, com o golpe de Estado de 1964 que se instaura para deter as Reformas de Base do governo Jango. O padre Lebret é nomeado perito do Concílio e inspira os documentos progressistas da Igreja desse período. Dom Helder irá assumir a arquidiocese de Olinda e Recife, nesse período.

VI. IGREJA SERVIDORA E POBRE E INTERLÚDIO ESPARTANO. O período de abrangência são os anos de 1966 a 1985. É o mais profundo dos tópicos e mostra todo o envolvimento conflituoso entre a Igreja e o Estado, sob o período dessa longa ditadura. O tópico começa com uma belíssima reflexão sobre a Grécia Clássica, mostrando as diferenças entre Atenas e Esparta e a opção brasileira por Esparta nesse período. A análise do tópico passa por uma análise de conjuntura internacional e seus reflexos sobre o Brasil. São os tempos da Guerra Fria e da Ideologia da Segurança Nacional. Seus reflexos no Brasil se evidenciam por um regime de segurança interna, de alinhamento aos Estados Unidos e a manutenção de um Estado forte, isto é, um regime de Segurança Nacional, ditada pelas forças militares mundiais contra os avanços do comunismo, evidenciados pela revolução cubana e pelos fracassos dos Estados Unidos no Vietnã. Anos de terror e de relações tensas entre Igreja e Estado. A Igreja faz a defesa intransigente dos Direitos Humanos e se envolve nas questões fundiárias nas áreas novas de colonização. São criadas nesse período a CPT e o CIMI. 

Dom Helder nesse período passou a ser proscrito, com a proibição de ter o seu nome citado na imprensa brasileira. Restam-lhe as tribunas internacionais para fazer suas denúncias, o que ele faz com maestria. Recebe a indicação para o Nobel da Paz. A própria Igreja contribuiu para que não recebesse essa honraria. O regime militar começa a se deteriorar com as crises econômicas a partir de meados dos anos 1970 e a partir da sucessão do general Figueiredo a situação se torna insustentável, com a indicação de Paulo Maluf para a sucessão. Dom Helder atinge os  75 anos de vida e passa a viver a sua aposentadoria compulsória, vivendo em estrita pobreza e de mergulho profundo nos mistérios de uma vida coerente e condigna com a pregação dos Evangelhos. Dom Helder ajudou, e em muito, a reconfigurar a fisionomia da igreja católica brasileira. A sua morte ocorre no Recife no ano de 1999.

VII. PÓS-ESCRITO A DOM HELDER CÂMARA. Esse tributo de reverência a Dom Helder busca explicar a raiz da força espiritual que sustentou a vida do "santo". Recebeu as fortes influências de dois papas, João XXIII e Paulo VI, aos quais ele também influenciou. Buscou ainda inspiração nos antigos, em Inácio de Antioquia, Basílio da Cesareia, de Santo Agostinho e de São João Crisóstomo e das influências já assinaladas de Jacques Maritain e do padre Lebret. Como tributo a Dom Helder transcrevo o último parágrafo da síntese biográfica.

"Nesses quatro setores da vida da Igreja - colegialidade e comunhão, relações entre Igreja e Estado, testemunho de uma Igreja servidora e pobre, evangelização inculturada - a atuação daquele, que criou as condições para a fundação da CNBB e foi seu primeiro Secretário Geral durante doze anos, pode oferecer subsídios e inspiração para a Igreja no Brasil no alvorecer do século XXI. Mas antes de tudo é preciso reconhecer, que o mais importante legado, que deixa para as gerações futuras é o seu testemunho espiritual, vivido dentro das exigências do Evangelho e em consonância com a recomendação, que recebeu de João XXIII: 'É preciso permanecer sempre no Amor, para permanecer em Deus'".

O deserto é fértil. Dom Helder Câmara. Civilização Brasileira.


Termino com um testemunho meu. Meus anos de formação também foram profundamente marcados pelos papas João XXIII e Paulo VI e pelo Concílio Vaticano II e, depois, ao longo dos primeiros anos atuando como professor, a influência de Dom Helder Câmara. Muito utilizei em sala de aula o seu pequeno livro, de grandes ensinamentos O deserto é fértil. Dom Helder, pela Lei Federal 13.581 de 26 de dezembro de 2017 foi declarado Patrono Brasileiro dos Direitos Humanos.