sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Os Maias. Eça de Queirós. A minissérie.

Não quero aqui levantar grandes polêmicas sobre a adaptação de livros para o cinema ou para a televisão. Também, ao comentar a minissérie Os Maias, produzida pela TV Globo, não quero deixar passar a questão em branco. Tomo a referência de Jorge Amado, possivelmente o autor brasileiro que mais obras adaptadas teve. Ele fala sobre isso em seu maravilhoso Navegação de Cabotagem, e com um certo tom de nostalgia, de um certo desconforto. Vejamos algumas considerações suas. A primeira referência é sobre o ato de escrever, como um ato de artesanato:
Jorge Amado fala sobre a adaptação de obras literárias para a TV e para o cinema.

"Quando inicio um livro, somos apenas eu, a máquina de escrever, o papel em branco". Aí já entra o lamento: "Esse caráter artesanal desaparece quando o romance é adaptado: cinema, rádio, televisão são o oposto do artesanato, são indústria e comércio, o produto a ser oferecido, a ser visto ou ouvido (e não lido) deve corresponder às exigências do mercado". De produto artesanal vira o produto de uma verdadeira multidão e continua, ainda em tom de lamento: "O autor do romance sente-se agredido a cada instante, de repente não mais reconhece sua obra".

Seria de perguntar. Mas por que, então, o autor permite as adaptações? Jorge responde de pronto: "Sou um escritor que vive exclusivamente de direitos autorais [...]. Não tenho outra fonte de renda". Mas arremata, voltando ao tom de desconforto, recomendando ao autor "nunca acompanhar os trabalhos de adaptação e nem mesmo vê-los, isso para não se aborrecer". São palavras de Jorge Amado e que merecem muita consideração. E..., olha que Jorge Amado, normalmente, tem a sua obra muito bem adaptada.
O magnífico livro de Eça de Queirós. Os Maias - Episódios da Vida Romântica. Eça introduz o realismo em Portugal.
Li Os Maias de Eça de Queirós. Já tinha lido A Relíquia. Não tenho formação literária e nem fui estimulado à leitura em meus anos de formação. Apenas hoje me considero um leitor. Não sei porque, mas a leitura do livro me despertou um enorme desejo de ver a minissérie. Comprei o box com quatro discos, com 940 minutos de duração. Confesso... poucas vezes fiz um aquisição tão boa. Os recursos do ver, olhar e ouvir, somados aos da dramaturgia, da música e da reconstituição de época, produziram um espetáculo maravilhoso.  Uma obra profundamente romântica de um escritor que pertenceu ao realismo. Aliás o livro tinha um subtítulo: Episódios da vida romântica.
A adaptação de Os Maias, para a televisão. Uma obra prima segundo Maria Adelaide Amaral.

Houve a deformação da obra do autor? Ele se reconheceria em sua obra? Certamente se surpreenderia em algumas cenas, mas creio que, ao final, aplaudiria calorosamente o espetáculo e, nele se reconheceria. Maria Adelaide Amaral fez a adaptação e, ao final do segundo disco fala do seu trabalho. Ela estudou toda a obra do autor, sua literatura, sua correspondência, suas ideias políticas e a sua vida. Incorporou tudo na minissérie, com muita criação e imaginação. Farei um post a parte.

No post sobre o livro escrevi que a ironia que está escancarada em A Relíquia, é sutil, em Os Maias. No caso da minissérie a dramaturgia reforçou as características dos personagens. E os personagens, todos escolhidos para uma grande representação. D. Afonso da Maia (Walmor Chagas), a primeira geração Maia, é um liberal, anti religioso, mas acima de tudo, um profundo conservador dos valores da família e dos princípios da aristocracia. Por eles morrerá e, obviamente, também pela idade. Norteia a sua vida pela ciência, mas também crê em superstições e premonições. Uma atuação soberba.
Uma cena memorável. O único avô e o único neto se separam. Carlos Eduardo irá a Coimbra buscar a sua formação na ciência, na medicina.


Pedro da Maia (Leonardo Vieira), da segunda geração, e Maria Monforte (Simone Spoladore) estão muito bem. Maria Monforte é de uma beleza estonteante, que quebra todo e qualquer princípio da piedosa formação de Pedro, saído à imagem da mãe e do padre, não de D. Afonso e, portanto, fraco e, assim, a fortuna não o contemplará. Escolhe a morte aos sofrimentos da vida. Maria Monforte, (Marília Pera) terá uma volta na minissérie, o que não acontece no romance. Ela, em estado terminal, procura acertar a vida da filha, desvelando a sua condição de mãe, tanto de Maria Eduarda, quanto de Carlos Eduardo. Manuel Monforte (Stênio Garcia) será o pai de Maria Monforte. Ele é rico mas não aristocrata. Fora comerciante de escravos. Para a sociedade portuguesa, Maria será sempre a negreira.
Maria Monforte, a negreira. Não havia espaço para ela na aristocrática sociedade portuguesa. Mas será ela que dará a alegria do neto Carlos Eduardo para D. Afonso.

Carlos Eduardo (Fábio Assunção), a terceira geração descrita, e Maria Eduarda (Ana Paula Arósio) formam o par romântico. D. Afonso, já viúvo, cuida pessoalmente da formação do neto, que lhe é trazido por Pedro. Depois da tragédia, o Ramalhete é fechado e o avô com o neto se recolherão no Douro, em Santa Olávia. Longe dos padres, Carlos Eduardo terá um preceptor inglês. O neto recompõe o sentido da vida para o avô. Pela formação inglesa e a sua inclinação científica, Carlos irá para Coimbra, não para o curso de Direito, mas para o de medicina. O avô o estimula para viver as alegrias da juventude. A ausência da moral religiosa o livrará das culpas. É em Coimbra que encontrará João da Ega, o amigo de todas as horas e de sempre. Já em Lisboa, o destino unirá Carlos Eduardo a Maria Eduarda. Vivem uma bela paixão até se descobrirem irmãos. O romântico e o trágico fazem parte da mesma história.  Só restará a amargura do sofrimento e da separação.
Carlos Eduardo e Maria Eduarda são Maias. Formam o casal romântico e trágico da obra.
João da Ega (Selton Mello) é o anarquista satânico. Mefistófeles lhe inspira a forma de viver. Teve a sorte de uma mãe rica, o que lhe permitiu a eterna condição de estudante e de escritor sem obra. Arrasa as tradições, a moral e os bons costumes. É o personagem mais alegre e fantástico, já no livro. Imagina então, este personagem com os recursos da dramaturgia. No livro será sempre o portador das tragédias do destino. Isso lhe será poupado na minissérie. Maria Monforte cumprirá este papel. João da Ega contrasta maravilhosamente com Tomás Alencar (Osmar Prado), o grande poeta romântico e presença constante na vida cultural de Lisboa.

Darei ainda destaque a quatro outros personagens. A Joaquim Castro Gomes (Paulo Betti), o marido da bela Maria Eduarda. Marido não. Ele a mantém a soldo. As desventuras da infeliz vida de Maria Eduarda. Outra personagem fabulosa é Maria Gomes (Eva Vilma), uma espécie de amiga e confidente de D. Afonso. Pelo lado da safadeza e canalhice merece destaque o Dâmaso Salcede (Otávio Müller), fofoqueiro inconsequente e maldoso e Palma Cavalão (Antônio Colloni), jornalista venal, já naquela época.
O maravilhoso poeta romântico, Tomás de Alencar. Terá disputas literárias contundentes com João da Ega. São os grandes personagens cômicos e de certa forma anunciantes da tragédia.

Em suma, uma complementação extraordinária. Os recursos da dramaturgia abrilhantaram a obra. As características dos personagens e seus credos foram reforçados e creio que, também a interação entre Maria Adelaide Amaral e o diretor Luiz Fernando Carvalho foi um trabalho artesanal, feito com muito cuidado. Conseguiram transformar uma obra prima em outra obra prima, da qual Luís Fernando Veríssimo disse que "tudo contribuiu para o clima exato do começo ao fim". Foram 940 minutos de entretenimento, muito prazerosos e de muita aprendizagem. Gostaria de voltar a ser professor, mas não em escola de aulas cronometradas e obrigatórias para aproveitar todos esses ricos e maravilhosos recursos didáticos. Volto aos Maias com Maria Adelaide Amaral e alguns extras da minissérie.



quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Os Maias. Eça de Queirós. O livro.

Sempre é bom ler clássicos. Deve existir uma razão muito forte para eles sobreviverem ao tempo. Eles tem o que dizer. Terminei de ler Os Maias, de Eça de Queirós. Já tinha lido A Relíquia. Na verdade, foi este livro que me levou ao Os Maias. A qualidade que mais gostei deste escritor é, sem sombra de dúvida, a sua ironia, forte e escancarada em A Relíquia e bem mais sutil em Os Maias. Para situar e datar o livro, ele foi escrito em 1888 e o autor pertence à escola do realismo. Um retrato da segunda metade do século XIX. A edição brasileira, da Ateliê Editorial, tem 486 páginas. O livro está dividido em 18 capítulos, sendo que os primeiros e os últimos são os mais andantes e os mais reveladores.
Edição brasileira de Os maias. Reimpressão de 2012. Da Ateliê Editorial.

Das últimas páginas destaco algumas frases, ditas pelos dois grandes protagonistas da obra, Calos da Maia e João da Ega. Depois de todas as desventuras do destino, Ega assim se dirige a Carlos, o grande amigo: " - Falhamos a vida, menino"! Ao que Carlos responde: " - Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: 'vou ser assim, porque a beleza está em ser assim'. E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado...." Mais adiante os dois continuam:

"... Ega não se admirava. Só ali no Ramalhete ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida - a paixão. Muitas outras coisas dão valor à vida... Isso é uma velha ideia de romântico, meu Ega! - E que somos nós? - exclamou Ega. - Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão... Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim... [...] - Resumo: não vale a pena viver..." Mais adiante arrematam:

" - Que raiva ter esquecido o paiozinho!  Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma... Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras: - Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...". É bom dar uma conferida. Em que ano mesmo, o livro foi escrito? Em 1888. A segunda metade do século XIX. Certamente isso ajuda a entender muita coisa.
Eça de Queirós. Em Os Maias, três gerações da família são descritas. Junto com elas, também toda a sociedade portuguesa da época.


Em 18 capítulos estão contadas as histórias de três gerações dos Maias. A de Afonso, o avô, a de Pedro, que terá um relato muito breve, tão breve quanto o fora a sua infeliz vida e, a de Carlos, o neto adorado de Afonso. Se a passagem de Pedro é breve, as consequências de seus atos é que movem, em grande parte, toda a parte final da história. Pedro tivera um amor burguês, não nobre e aristocrático, portanto. Maria Monforte teve outros amores que levaram Pedro ao suicídio, deixando, porém, para Afonso o seu querido neto, Carlos. Soube-se vagamente que Carlos tivera uma irmã, falecida em Londres. Pedro era frágil. Fora educado pela mãe e pelo padre...

Carlos teve requinte em sua formação. Um preceptor inglês e nada de religião. Coimbra entrou em sua vida. Não o curso de direito, que seria a trajetória normal. Carlos optara pela medicina. Creio que dá para dizer que nunca a exerceu profissionalmente. Dinheiro nunca fora um problema para os Maias. Escola é lugar de formação de amizades. Em Coimbra Carlos encontrou o seu maior amigo, o amigo de toda uma vida. João da Ega, um personagem fabuloso e fantástico e de um humor extraordinário. Uma vida apimentada de amores. Os amores da juventude.

Tudo se desenvolvia num grande fausto. Em Santa Eulália, no Douro, uma espécie de refúgio. No Ramalhete, o palacete dos Maias em Lisboa, onde as delícias e o fado da vida aconteciam. Ali também ocorre a morte de Afonso, em parte pela idade, mas também com uma boa dose de armadilhas do destino e do desatino. Também existe a Toca, onde Carlos vive, tanto o seu grande amor, quanto a sua grande tragédia. Maria Eduarda.  Preocupações com trabalho e dinheiro, ao menos por parte dos Maias, nunca fizeram parte da vida destes felizes ou infelizes afortunados.
O autor junto com a sua obra. Eça de Queirós e Os Maias.


Muitas amizades, muitos jantares, muitas idas a Sintra. Muitos saraus literários, muita música e muito piano. Muitas queixas da vida cultural pobre de Lisboa. Sempre miravam Paris. A Europa acabava junto aos Pirineus. Muitas picuinhas e intrigas e até jornais da imprensa marrom, com tentativas de chantagens fenomenais também fazem parte da história. Ainda sobra para muita mesquinharia e covardia. Até um brasileiro, Castro Gomes, entra na história, com um papel, de certa forma, preponderante. Faz parte da trágica história de Maria Eduarda.

Todo o rico final do século XIX está presente, especialmente, nos debates dos jantares. Como viram nas frases  tomadas das últimas páginas do livro,o iluminismo e o racionalismo já está entremeado de pitadas de romantismo, nas discussões filosóficas, enquanto que o realismo e o naturalismo serve de cenário para os embates literários. Mas o que prevalece será a tragédia com os mistérios insondáveis, invariavelmente e implacavelmente impostos pelo destino e sempre presentes no Ramalhete.  Que Carlos e Maria Eduarda o digam e expliquem. Esta parte final fica como página em branco, no grande romance. Carlos...

A minha próxima tarefa, depois de ler, será a de ver Os Maias. A minissérie produzida pela Rede Globo, sob a direção de Maria Adelaide Amaral. Serão 940 minutos que, imagino eu, serão tão agradáveis, quanto as várias horas dedicadas a leitura do livro. Depois eu conto. Mas antes, deixo o registro do comentário de Luis Fernando Veríssimo.
A Rede Globo transformou Os Maias em uma minissérie. Minha próxima tarefa.

"[...] Durante todo o tempo em que assisti a "Os Maias" na televisão pensei no termo musical "andante majestoso",. Não que o andamento da ação fosse invariável e pesado. Pelo contrário, a câmera extraordinariamente móvel do Luiz Fernando Carvalho 'frequentou', mais do que retratou, a frívola Lisboa da época e todas as atmosferas do romance. Mas no fundo havia aquela progressão majestosa, desde a primeira cena, para o desenlace, a câmera andante nos levando como um lento tema trágico que repassa uma sinfonia. Nunca uma câmera de TV foi tão cúmplice e envolvente, nunca a TV foi tão romântica. Tudo contribui para o clima exato do começo ao fim, a começar pela adaptação habilíssima que Maria Adelaide Amaral fez dos "episódios da vida romântica do Eça, e incluindo as interpretações, todas perfeitas. Mas a estrela do espetáculo é o olhar do diretor Luiz Fernando Carvalho, que com "Os Maias" quase inaugura outra arte inédita".

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Nunca se roubou tão pouco. Ricardo Semler fala sobre corrupção.

Desde o final do processo eleitoral, nunca se ouviu falar tanto em corrupção no Brasil, do que agora. A operação "Lava Jato", desencadeada pela Polícia Federal trouxe fatos e, sobretudo imagens, absolutamente inéditas neste país. Foram mostradas cenas em que executivos das maiores empresas brasileiras e diretores da Petrobras estão sendo presos e se mostrando dispostos a devolver dinheiro e, dinheiro graúdo. Para o senso comum sobrou a imagem de que "nunca se roubou tanto neste país". Esta imagem foi construída, acima de tudo, pela mídia brasileira, inconformada com doze anos de PT no governo e, diante de mais mais quatro, conquistados agora, nestas eleições.
O artigo de Ricardo Semler contradiz o senso comum. Nunca se roubou tão pouco.

Marx, entre as suas frases famosas, nos deixou uma, muito a propósito, da formação do senso comum. "Se a aparência fosse igual à essência, não haveria a necessidade da ciência". Lembro de outra imagem, que é do Saramago. Ele, no documentário de João Jardim, Janela da Alma, mostrando um belo lustre do Teatro de Lisboa, o mostra visto de frente, assim como é visto pelo público. Ele está lindo e maravilhoso. Depois mostra o mesmo lustre, só que de outros ângulos e perspectivas. Ele já não é o mesmo. Até sujeira acumulada aparece. Diante do fato, Saramago conclui: "Para conhecer, há que dar a volta". Em outras palavras: "A aparência não é igual à essência". Conclusão: para conhecer efetivamente uma realidade, é necessário investigar, apresentar dados e estabelecer comparações. "Há que dar a volta".

Assim vive o Brasil, em seu quadro de aparências. E eis que no dia 21 de novembro, na coluna Tendências e Debates, da Folha de S.Paulo, o empresário Ricardo Semler, nos proporcionou um mergulho na "essência". Mas, poderia se fazer a pergunta, quem é Ricardo Semler? Qual é sua credibilidade para falar do assunto, falar com propriedade?  No próprio texto Semler nos dá algumas indicações. Apresento outras.
Ao final dos anos 1980, Ricardo Semler ficou muito conhecido no mundo da administração das empresas, afirmando os princípios da gestão democrática. Virando a própria mesa.


Ricardo Semler é proprietário da empresa SEMCO, uma empresa que está no mercado há mais de 60 anos. Ela atua, conforme o seu site no "desenvolvimento e fabricação de agitadores, misturadores, moinhos e equipamentos de refrigeração". Num parêntesis explica: "torres de resfriamento, condensadores e resfriadores de líquidos - circuito fechado". Ainda consta que já instalaram mais de 20.000 equipamentos pelo Brasil e pelo mundo afora. Em suma a SemcoEquimpamentos é uma grande empresa, gigante mesmo.

Ricardo Semler ficou muito conhecido ao final dos anos 1980, quando escreveu sobre as experiências da empresa e a sua gestão - no livro Virando a própria mesa. Foi um tremendo sucesso. Tenho em mãos uma edição de 1999 e consta que é a 51º. Foi leitura obrigatória em todos os cursos de administração. Afinal de contas, uma empresa brasileira, de origem familiar, se transformara numa grande empresa multinacional.

O artigo de Semler possui 18 parágrafos. Nos dois primeiros ele fala da sua empresa e da relação com a Petrobras. Afirma que deixaram de vender para a petrolífera, já nos anos 1970 e que tentaram de novo nos anos 1980  e 1990 e, ainda, mais recentemente e, nada feito. Categoricamente afirma que era impossível vender sem propina e, afirma mais: "Não há no mundo dos negócios quem não saiba disso".
O empresário Ricardo Semler em imagem recente.

No terceiro parágrafo vem a afirmação mais bombástica: "Os percentuais caíram. Apenas isso mudou". Cita até a importação francesa de petróleo e os cochons des dix pour cent. Os três parágrafos seguintes são dedicados ao quadro pós eleitoral brasileiro, ironizando as passeatas e os pedidos de volta dos militares. Santa hipocrisia, considera, - para logo depois perguntar - onde é que estavam estes envergonhados de hoje, nas décadas em que houve  evasão de divisas de mais de um trilhão de reais? E ironicamente constata que muitos dos que pretendem viver em Miami são aqueles que querem gastar lá, tudo o que sonegaram em impostos, aqui. Contesta ainda a vociferação contra os nordestinos afirmando ver com extrema simpatia o esforço empreendido em favor daqueles que historicamente sempre tinham sido preteridos. Orgulho para um bom brasileiro.

No sétimo parágrafo fala da sua condição de filiado ao PSDB, com ficha abonada por tucanos de alta plumagem como Franco Montoro, Mário Covas, José Serra e Fernando Henrique Cardoso. É nessa condição, afirma, que se sente muito à vontade para constatar que a prisão de executivos de grandes empresas representa um avanço histórico para o país e no parágrafo de número oito, credita os méritos desse fato para a presidente Dilma, por ter dado total autonomia para a Polícia Federal, mesmo que a corrupção tivesse lançado tentáculos para dentro do próprio Palácio do Planalto. Um fato inédito.

Segue afirmando que votou pelo fim do ciclo do PT no governo, por causa de sua conivência com a corrupção e por divergências na condução da política econômica, mas que agora, a presidente Dilma deve ser vista como a presidente de todos os brasileiros e que o momento representa muita esperança. Isto está dito nos parágrafos nove e dez. Já nos seguintes volta ao tema da corrupção. No de número onze afirma que a corrupção também está instalada em outras empresas estatais e que é difícil vender  ou construir qualquer obra sem os "tentáculos sórdidos das empresas bandidas". Continua, agora atingindo o setor privado, acusando que também é difícil vender para as montadoras e incontáveis multinacionais, sem propina para o diretor de compras.
Logomarca da SEMCO, a grande empresa de Ricardo Semler.


Já no parágrafo 13 afirma que estes diretores certamente serão soltos em breve, mas que foi dado um passo firme e em frente e, sem volta - como país. A prisão é um marco histórico. E no parágrafo 14 elucida o título de seu artigo apresentando dados de quem monitora a corrupção global, apresentando os seus índices. O índice brasileiro atual é de 0,8% do PIB. Este já foi de 3,1 e de 5% há algumas décadas. Muito deste dinheiro, há décadas, financia a compra de votos no Congresso Nacional, afirma ainda o empresário.

Nas suas conclusões, um chamado para a consciência. Acusa que todos temos um dedão enfiado na lama, numa alusão ao volume morto e barrento da Cantareira. O temos - quando fazemos um pagamento sem recibo, quando oferecemos uma cervejinha como suborno ou quando vendemos uma propriedade com escritura em que consta um valor menor. Pede para deixar o cinismo de lado e que é preciso saber que o remédio para uma doença sistêmica precisa ser aplicado homeopaticamente, para todos os contaminados e não para apenas um partido. Conclui que "cada um sabe o que fazer para além de resmungar".

terça-feira, 25 de novembro de 2014

O Capital no século XXI. Thomas Piketty.

É oportuno lembrar que em tempos de definição para a nova equipe econômica para o segundo governo da presidente Dilma, existem discussões mais profundas do que a mera ortodoxia liberal e a afirmação, ou melhor, a renovação da fé nos princípios neoliberais dos Chicago Boys. Novas ideias movimentam esta complicada área.  Como as forças que se opõem ao capitalismo são relativamente fracas, este caminha inexoravelmente para a sua autofagia, a menos que as forças de oposição se gestem e comecem a ganhar  força, com força no respaldo popular, para o seu enfrentamento.
O Capital no século XXI de Thomas Piketty. Um descompasso entre o rendimento do capital e o crescimento da riqueza.

Não sou ingênuo ao ponto de pretender fazer um post com uma resenha do recém lançado livro no Brasil, do Thomas Piketty, O Capital no século XXI. Também não quero deixar passar inteiramente em branco o seu lançamento. Quero ajudar na difusão do livro, com o objetivo de que mais gente o leia e para que se provoquem reflexões em torno do tema e, que assim, se possa contribuir para que este sistema provoque menos dor e sofrimento humano do que já está produzindo. No meu post vou apresentar o livro, a partir do que consta na orelha da capa do livro e apresentar as perguntas que moveram a pesquisa, que constam da introdução do livro. Farei ainda uma pequena apresentação do autor.
Thomas Piketty, 15 anos pesquisando a acumulação de capital X distribuição de renda.


 Uma pergunta abre a apresentação do livro. É a seguinte: "Que dinâmicas movimentam o acúmulo e a distribuição do capital"? A pergunta ganha uma primeira elucidação: "O tema da política econômica há muito suscita debates constantes sobre crescimento, concentração da riqueza e o aumento da desigualdade". Coletar dados a respeito é a grande proposta do livro. Mais de vinte países foram estudados ao longo dos últimos duzentos anos. Já soube que sobre o Brasil existem apenas alguns dados esparsos. Não um um estudo sistema´tico.

O autor irá demonstrar que o sistema só não se autofagiou, conforme as profecias de Marx, em função do crescimento econômico e da difusão do conhecimento, mas que, ao contrário do otimismo generalizado do após Segunda Guerra, "a estrutura básica do capital e da desigualdade permaneceu relativamente inalterada". E constata o pior e o mais preocupante: "que a taxa de rendimento do capital supera o crescimento econômico - e isso se traduz numa concentração cada vez maior da riqueza, num círculo vicioso de desigualdade que, a um nível extremo, pode levar a um descontentamento geral e até ameaçar os valores democráticos".
Do sumário - a primeira e a segunda parte do livro.


Mas o autor lembra também que "tendências econômicas não são forças da natureza: a intervenção política já foi capaz de reverter tal quadro no passado e poderá voltar  a fazê-lo". Toda a força do livro, portanto está posta no descompasso que existe entre o crescimento econômico e o rendimento do capital. Em outras palavras, é destinado mais dinheiro para a remuneração do capital do que para o crescimento econômico. Mas o mundo capitalista, em seu todo, é muito mais do que uma mera mão invisível. Ele se compõe também de forças políticas.

Depois de afirmar que a distribuição da riqueza é uma das questões mais vivas do debate econômico da atualidade, o autor lança as perguntas que movimentaram, conduziram e deram forma a sua pesquisa. E, perguntas bem feitas, geralmente, são indício de grandes pesquisas. Isso faz parte dos princípios da pesquisa. Vamos às perguntas.

"Mas o que de fato sabemos sobre sua evolução no longo prazo? Será que a dinâmica da acumulação do capital privado conduz de modo inevitável a uma concentração cada vez maior da riqueza e do poder em poucas mãos, como acreditava Marx no século XIX? Ou será que as forças equilibradoras do crescimento, da concorrência e do progresso tecnológico levam espontaneamente a uma redução da desigualdade e a uma organização harmoniosa das classes nas fases avançadas do desenvolvimento, como pensava Simon Kuznets no século XX? O que realmente sabemos sobre a evolução da distribuição da renda e do patrimônio desde o século XVIII, e quais lições podemos tirar disso para o século XXI?
Do sumário - a terceira e a quarta parte do livro.


Piketty tem formação sofisticada. É formado pela London School of Economics e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales na França. Foi professor do MIT e hoje leciona  na École d'Économie de Paris. O livro é resultado de quinze anos de pesquisa, dele, e de uma equipe de pesquisadores.

Dizer que a leitura é importante seria recorrer ao óbvio. Não resisto a duas observações. A primeira é a de que vivemos num país que está, por forças políticas, movimentando a sua economia para o crescimento econômico, com distribuição de renda e a segunda, retirada do livro de Zygmunt Bauman, Globalização - As consequências humanas, onde é mostrado este dado brutal da acumulação do capital. Os 358 maiores bilionários globais acumulam uma fortuna igual a riqueza (ou seria a pobreza) de 2,3 bilhões dos seres humanos mais pobres.
Neste livro de Bauman está a triste constatação de que os 358 bilionários globais tem a mesma riqueza que 2,3 bilhões de seres humanos.


Creio que a leitura será proveitosa. Particularmente tenho o maior interesse na quarta parte e, mais precisamente ainda, no capítulo 16, que trata da questão da dívida pública. Creio que entendem o meu interesse. Em tempos de definição da equipe que comandará a política econômica... ortodoxia... heterodoxia... Acabo de receber a revista CULT. Tem uma crítica do livro bem interessante. Pede para não esquecer de Marx.




sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Agamben. O capitalismo como religião. O deus dinheiro.

No Portal do Instituto Humanitas, da Unisinos está postada uma entrevista de Giorgio Agamben para Peppe Salva, de Ragura News de 16.08.2012. A entrevista foi feita na Sicília e recebeu por título - Deus não morreu. Ele tornou-se dinheiro. A tradução é de Selvino Jose Assmann, que foi meu colega, um ano à frente, no curso de filosofia, em Viamão. Hoje ele é professor universitário em Florianópolis. A entrevista mais do que merece uma leitura. Vou me deter nas duas primeiras perguntas. As demais abordam questões relativas ao principal livro do filósofo - Homo Sacer.

A primeira pergunta foi feita em cima da crise italiana, sobre o governo Monti e o verdadeiro Estado de necessidade vivido pelo capitalismo nos tempos atuais. A resposta a esta questão é que, certamente, deu a repercussão para a entrevista. Transcrevo a resposta: "'Crise' e 'economia' atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não tem motivo algum para aceitar. 'Crise' hoje em dia significa simplesmente 'você deve obedecer!' Creio que seja evidente para todos que a chamada  'crise' já dura decênios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que nada tem de racional". No passo seguinte da entrevista, o filósofo compara o capitalismo a uma religião:
O filósofo italiano, na capa da revista CULT, nº 180, de junho de 2013. Um dossiê especial sobre o pensador.


"Para entendermos o que está acontecendo, é preciso trazer ao pé da letra o que está acontecendo, é preciso trazer ao pé da letra a ideia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o  dinheiro. Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O Banco - com os seus cinzentos funcionários e especialistas - assumiu o lugar da igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gere a fé - a escassa, incerta confiança - que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o fato de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o título de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: 'salvar o euro a qualquer preço'. isso mesmo, 'salvar' é um termo religioso, mas o que significa ' a qualquer preço'? Só numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas".

A outra pergunta, - creio que dá para afirmar - girava em torno da identidade cultural. Na resposta vem uma comparação entre a Europa, particularmente a Sicília, os Estados Unidos e o Japão. Como a pergunta ainda girava em torno da crise, a resposta inicia por aí: "A crise atravessada pela Europa não é apenas um problema econômico, como se gostaria que fosse vista, mas é antes de mais nada uma crise da relação com o passado. [...] O passado não é, pois, apenas um patrimônio de bens e tradições, de memórias e de saberes, mas também e sobretudo um componente antropológico essencial do homem  europeu, que só pode ter acesso ao presente olhando, de cada vez, para o que ele já foi. Daí nasce a relação especial que os países europeus têm com relação às suas cidades, às suas obras de arte, à sua paisagem: Não se trata de conservar bens mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e disponíveis; trata-se, isso sim, da própria realidade da Europa, da sua indispensável sobrevivência". Quando destroem isso, continua o filósofo, "destroem a nossa própria identidade".
Giorgio Agamben, um dos intelectuais mais vigorosos da atualidade.


Depois contesta a própria expressão bens culturais, pois ela "sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser desfrutados economicamente e talvez vendidos, como se fosse possível liquidar e por à venda a própria identidade". Na continuidade da questão recorre ao filósofo Kojève, à sua afirmação sobre o fim da história, depois da qual sobrariam apenas duas alternativas: "o acesso a uma animalização pós-histórica (encarnado pelo American way of life) ou o esnobismo (encarnado pelos japoneses, que continuavam a celebrar as suas cerimônias do chá, esvaziadas, porém, de qualquer significado histórico). Entre uma América do Norte integralmente re-animalizada e um Japão que só se mantém humano ao preço de renunciar a todo conteúdo histórico, a Europa poderia oferecer a alternativa de uma cultura que continua sendo humana e vital, mesmo depois do fim da história, porque é capaz de confrontar-se com a sua própria história na sua totalidade e capaz de alcançar, a partir deste confronto, uma nova vida.

Termino o meu post pinçando uma frase da entrevista em que ele fala mais de sua obra - Homo Sacer. É uma frase de Marx, em que ele, em carta, se dirige a Ruge, enchendo-o de novo ânimo: "A situação desesperada em que vivo me enche de esperança". Tristes tempos de fera. Um único dogma. A religião do livre mercado, com o deus sanguinário, sanguinário de sangue humano, vertido no altar da eficiência do livre mercado.
358 pessoas tem a mesma riqueza do que 2,3 bilhões de pessoas. É preciso salvar a renda dessas 358 pessoas. Sacrifícios humanos sob a forma de ajustes, superávit primário...


Mais um dado estatístico. Quem o fornece é Zygmunt Bauman, no livro A globalização - As consequências humanas. É sobre a acumulação e a concentração de renda. "Comentando a descoberta feita no último Informe da ONU sobre o desenvolvimento - de que a riqueza total dos 358 maiores 'bilionários globais' equivale à renda somada dos 2,3 bilhões mais pobres (45% da população mundial), Victor Keegan chamou o reembaralhamento atual dos recursos mundiais de 'uma nova forma de roubo na estrada'. Com efeito, só 22 por cento da riqueza global pertencem aos chamados 'países em desenvolvimento', que representam cerca de 80 por cento da população mundial". E... o sistema precisa ser salvo. É preciso fazer superávit primário... Ou, quem sabe, aumentar impostos... E não será para pagar o "bolsa família" para os pobres.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

A Desumanização. Valter Hugo Mãe.

Não é fácil ler Valter Hugo Mãe. A sua leitura exige leitores. Não sei se o livro A desumanização é um romance ou um longo poema. Com certeza, o livro é de uma beleza extraordinária e rara. Dá até para perguntar: Não seria a ausência da beleza a própria desumanização. O livro tem muito pouco de história atraente a impulsionar para o final da história, mas a cada nova página se descortina um linguajar poético cada vez mais belo e questões de filosofia a provocar (pro- vocare - chamar para) para a reflexão e o debate. Um livro profundamente instigador.
A desumanização. Um longo poema e profundas instigações filosóficas. Beleza rara.

Ao final do livro tem uma nota do autor. Nela basicamente ele faz os agradecimentos. Mas antes deles tem uma nota explicativa que dá pistas para uma maior compreensão do livro. "Quando nasci já o meu irmão Casimiro havia falecido. Durante a infância imaginava-o à minha imagem, um menino crescendo como eu, capaz de conversar comigo partilhando os mesmos interesses. Sabia, embora, que estava deitado sob a terra, e pensava que a palavra coração era da família da palavra caroço, uma semente. Achava que os meninos mortos faziam nascer pessegueiros porque os pêssegos tinham pele. O primeiro pêssego que comi foi em idade adulta".

A desumanização tem como narrador a menina Halla. Ela é gêmea de Sigridur que morre na mais tenra idade e, a partir daí, tudo passou a se dividir pela metade. Halla imaginava a irmã plantada e ficava imaginando, em vez de adormecer. Desde cedo ela compreende que o inferno não são os outros. Pelo contrário, eles são o Paraíso. Desde cedo percebe que o homem sozinho seria apenas um animal e que a humanidade não começa exatamente em ti, mas naqueles que te rodeiam. Com a morte da irmã teve que apreender a conviver com a solidão.
Valter Hugo Mãe lançando A desumanização em Curitiba. Capela Santa Maria.


Estas primeiras provocações me levaram ao belo livro de filosofia, de Albert Jacquard, Filosofia para não filósofos, para o tema da alteridade, onde está dito: "Só consegui dizer 'eu', graças ao 'tu' que ouvi. A pessoa que sou não é o resultado de um processo interno solitário; só pôde construir-se encontrando-se no foco dos olhares dos outros. Não só essa pessoa é alimentada com todas as contribuições dos que me rodeiam, mas sua realidade essencial é constituída pelas trocas com eles". E aí vem a belíssima conclusão: "Eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros". Valter Hugo Mãe já tinha deixado este conceito muito claro no seu outro livro O filho de mil homens. Encontros são somas e multiplicações. Encontros são a humanização. Agora temos o oposto. Com a perda "tudo passou a se dividir pela metade". Os não encontros, as perdas da possibilidade do encontro com os outros são, assim, a desumanização.

Em A desumanização a perda maior se deu com a morte, a morte da irmã gêmea, ainda criança. Inimaginável haver perda maior. Outras mortes se dão pela ausência ou pelo simples distanciamento. Neste caso está a mãe e especialmente a tia. Seriam elas as desumanizadas? Os encontros se dão com o pai, com Thurid, a que toca o órgão na igreja, e com Einar, com quem, apesar das advertências da irmã, estabelece relações de amor. Sigridur queria que a irmã namorasse apenas príncipes imaginários, de rara beleza. Mas Halla descobriu que ela amava mesmo era Einar, mesmo não sendo príncipe, nem belo.
Valter Hugo Mãe. Beleza poética e provocações filosóficas.


A desumanização é representada também pela tristeza e pelos desgostos. "Talvez a tristeza fosse um modo de envelhecer. O tempo também se conta pelos desgostos". Rara sensibilidade.  A humanização mais bela se deu com o pai. Ele era um poeta e tinha livros. Os livros também seriam os outros com quem estabelecemos relações?  Sim. "Os livros eram ladrões. Roubavam-nos do que nos acontecia. Mas também eram generosos. Ofereciam-nos o que não acontecia".  Segundo o livro já citado de Jacquard os livros povoavam a sua solidão: "Mas tive a sorte de povoar essa solidão com todos os autores encontrados nas prateleiras das bibliotecas e que foram bastante amáveis comigo; nunca zombaram de mim, levaram-me a desejar contato com os seres de carne e osso...."

Não ler também representa a desumanização. "Não ler, pensei, era como fechar os olhos, fechar os ouvidos, perder sentidos. As pessoas que não liam não tinham sentidos. Andavam como sem ver, sem ouvir, sem falar". O não ler, ou o escrever também representa uma desistência, uma partida. Era o que estava acontecendo com o pai. "Sabes, acho que o meu pai vai desistindo porque já aceitou que parti. Fiquei com pena de não ter um poema para me dar. Significa que já não os escreve. Se não escrever, ele não falava nada do mundo. Fica perdido".
A Islândia serve de cenário para o livro A desumanização. A Islândia é Deus.

A humanização também ocorre pela música. Ela é representada por Thurid, quando ela variou com as variações, quando brincou. "A ridícula velha, gorda e obstinada, a ter visões noturnas, semelhantes aos mais imprestáveis lunáticos, tocava as variações de verdade [...]. Quando o fez a igreja estava habitada por Bach [...]. E a Thurid tocava e outra vez murmurava e, subitamente, entendemos muito bem. Dizia: azul, azul, negro, branco. A Thurid achava que pintava. Achava que as teclas eram pincéis e via, certamente nas costas dos olhos, telas grandes de caleidoscópios maravilhosos. Quando ouvimos claramente as cores que enumerava, vimos também. Pudemos fugazmente ver e fundimos a cor e o som num arrepio de grandeza que aconteceu a todos. Estávamos iguais".

Ao final uma cena de grandeza. Halla fugira para as montanhas, pensando em Einar: "Percebi absolutamente que o amava. E levava dúvida nenhuma de ser amada. Teria a vida inteira para para lidar com esse sentimento. Sabia que me perdoaria. Pensei. Quem não sabe perdoar, só sabe coisas pequenas". O cenário do livro é a Islândia e Islândia é Deus.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O Complexo de Portnoy. Philip Roth.

Iconoclastia total.  Se observarem bem a capa do livro Complexo de Portnoy de Philip Roth, verão nela um divã vazio. Quem o ocupará neste romance do consagrado escritor americano, escrito em 1969? Certamente não será apenas o jovem e talentoso advogado Alexander Portnoy, ou simplesmente Alex, embora seja ele o grande protagonista. Devem existir milhares de Portnoys dentro da cultura americana. O jovem advogado é apenas um exemplo desta cultura em geral e da cultura judaica, em particular. O seu processo de socialização e as suas instituições é que realmente estão sentadas, deitadas ou prostradas neste divã.
Capa bem ilustrada. Alexander Portnoy no divã da psicanálise. Ele, o processo de socialização e todas as instituições dos Estados Unidos. Iconoclastia total.
O livro começa com uma nota introdutória, explicitando o conceito de Complexo de Portnoy, como sendo um "quadro mórbido caracterizado por fortes impulsos éticos e altruísticos em constante conflito com anseios sexuais extremos, muitas vezes de natureza pervertida", e acrescenta: "muitos dos sintomas remontam aos vínculos que se formam no relacionamento entre mãe e filho". Neste livro ele faz um acerto de contas com a mãe. Mais tarde, em Indignação, o acerto será com o pai. O cenário de Newark será o mesmo em ambos os livros.

O livro está estruturado em cima da vida do talentoso Alex, de sua mãe Sophie, de Jack, o pai e de Hannah, a irmã e algumas namoradas do rapaz. Está dividido em seis partes, que marcam a sua evolução etária, os progressos nos estudos, a boa colocação profissional, mas acima de tudo a sua grande revolta. O narrador vai contando os dramas de sua formação a um psicanalista que, no entanto, permanece oculto ao longo da história. "Doutor, os outros pacientes sonham - mas, comigo, tudo acontece. Na minha vida não há conteúdo latente. As coisas oníricas acontecem". Mas, afinal de contas, o que de tão grave ocorreu?

A primeira parte é dedicada para o personagem mais inesquecível que já conheci e é dedicado a Sophie, a mãe e a relação que ela mantém com Alex. A vida em família é absolutamente normal. É, no entanto, uma verdadeira tragédia. Jack sofre permanentemente de prisão de ventre, enquanto que a mãe dedica todas as atenções ao Alex que, pela sua inteligência é apontado como a salvação da família. Alex não suporta a situação de patrulhamento da mãe com as suas atenções e admoestações. A eterna criança. Lembram: Portnoy - vínculos que se formam na relação entre mãe e filho.
Outra capa do livro de Roth, O Complexo de Portnoy.

A segunda parte recebe o título de Bronha. A bronha era a atividade principal do adolescente, que mesmo assim, continuava brilhante na escola. A descrição é hilariamente cômica e, irônica. A maior disputa da casa era pelo banheiro. O pai o queria e o ocupava por horas brigando com a sua prisão de ventre e ele, por motivos óbvios. Para a mãe, dava a desculpa de dores de barriga e diarreia, o que redobrava os seus cuidados e a sua vigilância com as comidas e sobre o cocô do menino. Mas ele jamais esquecia de dar a devida descarga, antes de abrir a porta. A sua fúria era incontrolável.

A terceira parte é melancolia judaica. A cultura judaica sobre a formação de um menino deve ser algo muito forte. A sua irritação era permanente contra o rabino ad-mi-ra-do pela mãe. Esta parte se constitui num dos maiores impropérios que eu já vi contra a cultura judaica. Pedia a Deus, embora já professasse o ateísmo, para que o livrasse, tanto dos rabinos, quanto da religião. O que ele não suportava era a exaltação de superioridade dos judeus, o seu enclaustramento e a sua permanente vitimização. Tenho vontade de ler uma biografia sua, pelo forte caráter autobiográfico de suas obras.

A quarta parte marca uma volta para a questão da sexualidade, agora num estágio mais avançado, louco por bocetas, embora isso não marcasse a superação da fase da bronha. Eram duas fases que ocorriam concomitantemente. A instituição do casamento começa a ser desancada. Todas as meninas passam a ser vítimas e o talentoso jovem parte para o front, para o desespero dos pais, que o queriam namorando e casando com uma menina de origem judaica. "Tenho desejos e estes são insaciáveis. É desejar... e desejar...", afirma. Pede insistentemente a Deus para libertá-lo do papel de filho. Faz referências pouco lisonjeiras à mãe. Ela precisa de refeição intravenosa por não parar de falar, queixava-se o jovem Alex. A sua insaciabilidade o leva a Roma, com a macaca, esta é a referência dada a Mary Jane, uma das namoradas mais constantes. Lá partem para um amor a três, juntando-se a uma prostitua de rua. Cadê o bom menino da mamãe?
Possivelmente O Complexo de Portnoy tenha sido o primeiro grande livro do laureado escritor americano, Philip Roth.


A quinta parte é uma ode ao casamento. A tendência universal à depreciação na esfera do amor. Alex chega a se encantar com algumas namoradas suas, para logo depois mostrar todo o seu desencanto e, se imagina enredado num casamento. Entra em cena também algo muito americano, a contradição entre o esforço dos pais na formação do filho e o fazer-se a si próprio, egoísta e individualista, quando o perguntam: "A culpa toda é dos seus pais, não é Alex? Tudo o que é ruim, a culpa é deles - tudo o que é bom, foi você que fez sozinho! Seu mentecapto! Seu bloco de gelo! Por que é que você está acorrentado a uma privada?  Vou dizer por quê: é o seu castigo ideal!  Para que você possa  ficar batendo bronha até o final dos tempos! Pegue no seu precioso peruzinho e fique punhetando ad infinitum! Pode mandar bala, comissário, é a única coisa que você amou na sua vida - esse seu putz (pênis - em iídiche) fedorento". O conflito também se estabelece entre as meninas judias e americanas. "...e agora vou ganhar o prêmio que mereço. Minha recompensa pelo esforço de guerra - uma boceta americana de verdade! A perereca da pátria! Xotas de sul a norte, de todos esses Estados Unidos da América".

O livro termina com o exílio de Alex em Israel. Um grande lamento em sua impotência. "que fim levaram meus ideais, aquelas metas decentes e dignas? Lar? Não tenho. Família? Também não! Não, em vez de pôr meus filhos em suas caminhas e me deitar ao lado de uma esposa fiel (a quem também sou fiel), levei para a cama, em duas noites diferentes - para uma suruba, como dizem nos puteiros - , uma putinha italiana gorda e uma modelo americana, analfabeta e desequilibrada". E com muita ironia e desfaçatez faz a grande pergunta. Por que virei tão mau? Iconoclastia total. Um destroçar das instituições e do processo de socialização, como já afiramos desde o começo.






segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Uma tarde com Sebastião Salgado.

Quinta feira, dia 6 de novembro de 2014.  Centro de Convenções de Curitiba. Uma tarde maravilhosa e inesquecível. Aquelas tardes de tomar novo fôlego. Estava marcado um encontro com o fotógrafo Sebastião Salgado.  Soube do encontro pelo rádio e pelo jornal. Seria as 16:30 horas, entrada gratuita. 1.700 lugares, por ordem de chegada. Como Curitiba não tem uma grande tradição cultural, calculei que chegar com uma hora de antecedência seria mais do que suficiente. A fila estava na esquina da outra rua e por muito pouco não desisti. Enquanto me lamentava interiormente, fui até o final da fila para dar uma conferida. Tinha uma mocinha distribuindo ingressos. Opa! a entrada estava garantida.
Lá do fundo do Centro de Convenções, acompanhando já a fase final do encontro, a das perguntas, com Sebastião Salgado.


Na sua fala simplesmente relatou a sua vida. A sua infância em Minas Gerais, na fazenda com os pais. A mata atlântica, os animais e os pássaro, as flores, a beleza das montanhas lhe deram a primeira bela paisagem. "Queria enxergar o que havia para além das montanhas", nos disse o fotógrafo. Depois dos primeiros estudos, Vitória foi o seu destino. O curso de direito estava na mira, não dele, mas de seu pai.

Sebastião Salgado, neste momento de sua formação, viveu um intenso debate de uma Nação querendo se constituir e buscando a sua identidade. O campo de estudo, agora escolha sua, foi a economia. Os estudos de Celso Furtado, a criação da SUDENE, os projetos da CEPAL o influenciaram na escolha. A continuidade em seus estudos o levou para São Paulo, para a USP, para o único curso de pós-graduação na área, nesta época. Foi também o período em que a democracia e as reformas estruturais, de base, foram travadas por um golpe civil militar, que redirecionou a sua vida. Ele integrava uma lista de indesejados do novo regime. Novos estudos o levaram a Paris, sempre na área de economia.
Na fase das perguntas, fui me movimentando. Cheguei na primeira fila. Deixo o registro.


Neste tempo viajou bastante pela Europa, ocasião em que comprou a sua primeira câmara fotográfica. Bendita compra. Nunca mais parou de fotografar. Tinha os seus 27 anos de idade e na mente uma forte imagem. As transformações no mundo da produção com as máquinas inteligentes e os processos de automação. Isso movimentou o mundo do trabalho e causou dores e sofrimentos aos trabalhadores. Outra imagem forte também o ocupou. A transformação do Brasil num país urbano.  Um mundo em transformação, com grandes movimentações sociais em busca de readequação de suas vidas, ou de simples sobrevivência. Estava escolhido o tema de suas fotografias. A movimentação dos trabalhadores em busca de uma sobrevida no sistema capitalista. A este projeto denominou de Trabalhadores.
Este quadro é da minha casa. É da fase Trabalhadores. O MST.


Novas viagens o levaram para a África, envolvida em guerras civis violentas, após o processo de descolonização. Outras guerras ocorreram na Europa e no oriente Médio. Tudo isso causou muito sofrimento e muita dor. Todas as guerras foram muito absurdas, como o são todas as guerras. Muito sofrimento humano. Massas em fuga e morte ou matanças em massa. Contou que chegou a presenciar 20.000 mortes e um único dia. O sofrimento dessas massas, ou morrendo ou em fuga, foram a nova temática de sua fotografia. O projeto se chamou de Êxodos.
O cenário para o encontro estava preparado.

A partir daí veio, para mim, a parte mais importante de sua fala. "Perdi toda a crença na humanidade. perdi toda vontade de fotografar", nos confidenciou ele. Foi ao médico. "O senhor não está doente, mas vai morrer", continuou a nos confidenciar. Precisaria de um novo projeto. Voltou para as suas origens, em Minas Gerais. A fazenda da família estava destroçada pelo desmatamento e pela erosão, quase sem vida, como ele também. Montou um grande projeto e andou mundo afora buscando financiamento para a recuperação ambiental. O crescimento das árvores, das flores e da volta dos pássaros devolveu a vida para a fazenda e, também, para ele. "O homem só vive em integração com a natureza". Esta foi a sua nova descoberta e se constitui no novo projeto de vida e, diga-se, com quanta vitalidade.

Nasce o projeto Gênesis. Fotografar as origens, o primitivo, o preservado, o inexplorado. Aquilo que ainda está como esteve em suas origens, em sua gênese. Viajei pelos pontos extremos do planeta, encontrei povos que ainda viviam no Antigo Testamento, outros em condições inimagináveis. Fotografei tartarugas gigantes, jacarés famintos e convivi com a fúria da natureza, em vingança pelo aquecimento global. Rastejei com as tartarugas e com os jacarés, compreendendo que a vida do homem é conviver com  a natureza, num grande projeto cósmico, numa grande harmonia com o universo. Prestou uma homenagem a Darwin, que, de acordo com a sua visão, foi o maior de todos os homens, por ter visto a evolução neste grande movimento cósmico do universo.
O livro do projeto Gênesis. Exposição homônima no MON até 15 de março de 2015.


Foi uma tarde maravilhosa, de total encantamento, uma tarde, como já falei, de tomar fôlego. As fontes da vida e da vitalidade. Nesta mesma quinta feira foi aberta a exposição Gênesis, no museu Oscar Niemeyer e lá permanecerá até 15 de março de 2015. As principais fotografias desta exposição também podem ser compradas com o livro Gênesis, de mais de 500 páginas de fotografias, acompanhadas de um encarte explicativo das mesmas. É uma edição primorosa da Taschen, ao custo de R$ 160,00.

  

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Processo Eleitoral 2014. O péssimo desempenho do PT- Paraná.

Logo após as eleições do primeiro turno no processo eleitoral de 2014, a Gazeta do Povo, do dia 9 de outubro, publicou bela matéria, assinada por Chico Marés, em que são analisados os erros fundamentais cometidos pelo Partido dos Trabalhadores, sete principais, aqui no Paraná. Como se sabe, Beto Richa, numa coligação de 17 partidos, venceu as eleições, ainda no primeiro turno, com 3.301.322 votos, que representaram 55,67% dos eleitores votantes. Apenas para registrar, Requião ficou em segundo, com 27,56%, ou seja, 1.634.316 votos e Gleisi ficou com apenas 14,87%, perfazendo um total de 881.857 votos. Com a finalidade de deixar um registro mais fácil de ser consultado, deixo aqui uma síntese da matéria, com alguns acréscimos.  Quais teriam sido então os erros cometidos?

1. Uma estrela solitária. Gleisi era a candidata oficial do governo federal aqui no Paraná. Isso lhe deveria dar força e grande capacidade de articulação política. Isso, no entanto, não ocorreu. Fez alianças com o PDT, com o PRB, com PCdoB e com o PTN. Essa falta de articulação lhe deu pouco tempo de TV, poucos parlamentares e especialmente poucos prefeitos em apoio a sua campanha. A estrela ficou isolada.
A senadora Gleisi, candidata a governadora em 2.014. 14,87% dos votos.

2. Inimigos Íntimos. O principal aliado foi o PDT. O PDT deu a Gleisi apenas o seu tempo de TV, mas não o seu apoio. A aliança com o PDT tem raízes históricas no apoio dado a Osmar Dias em 2010 e a Gustavo Fruet em 2012. Assim os deputados estaduais do PDT, ou apoiaram abertamente a reeleição do governador ou pouco empenho tiveram em favor de Gleisi. Os principais prefeitos do partido apoiaram escancaradamente a reeleição de Beto Richa. Rivalidades regionais contribuíram para a geração desta inimizade. Gustavo Fruet foi o único aliado leal, entre os prefeitos.

3. Os escândalos atingem o Partido. Dois escândalos atingiram o partido diante de seu eleitorado. A ligação entre o deputado federal André Vargas e o doleiro Youssef e o comportamento sexual, com envolvimento de menores, de seu ex assessor, Eduardo Gaievski. Além disso a campanha de Beto Richa apresentou a senadora como inimiga dos paranaenses, obstruindo os empréstimos para o governo do estado.

4. O senador Requião. O PT imaginava o senador Requião fora da disputa nas eleições para governador, por razões internas ao PMDM, mas não buscaram uma aliança. Requião no páreo, mostrou-se como a segunda força, quase dobrando os votos de Gleisi. Não foram, no entanto, suficientes para provocar um segundo turno. No início da campanha Gleisi chegou a trocar farpas com o senador.

5. Um partido popular impopular. Historicamente o Paraná é um dos estados mais conservadores do Brasil. A única vitória que o partido teve, foi na eleição de 2002, quando Lula venceu em 26 dos 27 estados brasileiros. O partido nunca chegou ao governo do Paraná. Os resultados de Dilma, no primeiro turno foram um desastre. Aécio teve a segunda maior vitória entre os estados e Dilma a quinta pior derrota. Forte classe média e administrações mal avaliadas em prefeituras ajudariam a explicar a impopularidade.
O deputado federal Zeca Dirceu, o único a melhorar a sua votação sobre 2010. 155.583 votos.


6. Chapa fria. O PT perdeu votos e deputados na Assembleia e na Câmara dos deputados. Na Câmara perdeu as candidaturas de André Vargas e do Dr. Rosinha. Na Assembleia, Enio Verri e Toninho Wandscheer disputaram a eleição na condição de candidatos a deputado federal. Os votos encolheram. Na Câmara os votos caíram de 700 mil para 677 mil e o partido perdeu uma cadeira. Apenas Zeca Dirceu aumentou o seu número de votos sobre a eleição anterior. Na Assembleia legislativa ocorreu o desastre maior. Seus votos minguaram de 626 mil para 488 mil. Mesmo assim, isso conferiria ao Partido cinco cadeiras. No entanto, levou apenas três. A coligação rendeu ao PDT, as outras duas. Em suma, as chapas para deputado também não contribuíram para um melhor desempenho de Gleisi.
Professor Lemos. 42.345 votos. O mais votado para a Assembleia Legislativa.


7. Uma ausência sentida. Osmar Dias foi apoiado pelo PT em 2010. Após a derrota levou importante cargo no governo federal, no Banco do Brasil, na área do financiamento rural, no agro negócio. Era o candidato natural da aliança para o Senado ou como vice-governador. No entanto, a presença do irmão, na outra banda, o fez silenciar por completo. Nenhuma aparição pública em apoio e nomes inexpressivos para o Senado e para vice-governador.

Além disso muitos fatores internos ao Partido poderiam ser apontados, principalmente com relação a atuação de seus principais dirigentes, assoberbados e encastelados no poder. Uma refundação com muito trabalho de formação política e organização, com vez para novas lideranças  e uma volta a sua origem de inserção entre as camadas populares e uma inflexão à esquerda certamente ajudariam um partido popular a conquistar novamente popularidade. Parece que muitos militantes antigos voltaram à militância por ocasião do segundo turno.



quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Nosso homem em Havana. Graham Greene.

Continuo com a lição recebida de Alberto Manguel. A leitura de um livro fica facilitada quando você passa a situar e datar o autor e a obra. Isso me leva a compartilhar com vocês que Graham Greene é um escritor inglês, nascido em 1904 e morto em 1991 e que o livro Nosso homem em Havana, foi escrito no ano de 1958, portanto, um ano antes da revolução que apeou do poder o ditador Fulgêncio Batista, que contava com o total apoio do governo dos Estados Unidos. Um ano antes, portanto, da revolução empreendida por Fidel Castro. O tema só poderia ser o serviço secreto, a espionagem e a contra espionagem.
Edição Biblioteca FOLHA, de Nosso homem em Havana, de Graham Greene.

Quando li O cerne da questão já fiquei impressionado com o autor, por este usar a conjuntura internacional para escrever os seus romances. No caso, o tema da colonização/descolonização da África era o cerne da questão. Agora, em Nosso Homem em Havana o grande tema passa a ser a bipolaridade e o clima da guerra fria, que se movimenta em Havana, cidade repleta de espiões, de contra espiões, de códigos a serem decifrados e, acima de tudo, de imaginação fértil para produzir relatórios, situações e inimigos. O serviço secreto da Inglaterra necessitava de um homem em Havana. Raras vezes um livro consegue ser tão irônico, tão inacreditável e tão sarcástico. Literatura de ficção e serviço secreto passam a ser atividades paralelas.

O inspetor Hawthorne recebe a difícil missão de encontrar o Nosso homem em Havana. A sua escolha recai sobre Wormold, um comerciante inglês de aspiradores elétricos, em dificuldades financeiras causadas pelos caprichos de sua bela filha Milly, a completar dezessete aninhos. Imagine uma garota ávida em gastar dinheiro. Wormold era companhia constante de um médico alemão, o Doutor. Hasselbacher, no Wonder Bar. O comerciante inglês vivia sozinho com a filha, uma vez que a sua esposa fugira com um americano para a cidade de Miami. Já naquele tempo se fugia para Miami.

O recrutamento de Wonder por Hawthorne me fez lembrar uma anedota de um cidadão de certa nacionalidade que, ao receber uma missão secreta, em que ninguém poderia saber nada sobre ele, nem mesmo o seu endereço, e que, ao tomar um táxi, dá ao taxista, que pergunta sobre o seu destino, a resposta de que isso não o interessava.  Preocupações, cautelas e códigos integravam a vida cotidiana. A remuneração era boa. Despesas para missões especiais eram facilmente aprovadas. Quanto maior o valor pedido, mais valor se dava à operação. A imaginação de Wormold o transformou num agente de sucesso. A sua remuneração satisfez os incríveis apetites consumistas de Milly.
Da coleção Os Imortais da Literatura Universal. Da Abril. Nosso Homem em Havana.


Wormold contrata agentes, monta um escritório, tem secretária, empreende missões, estuda códigos, fotografia e faz desenhos, utilizando os seus aspiradores, que se transformam num enorme sucesso. O seu imaginário passa a ser a sua vida real. A estrutura do livro é dividida em cinco partes, com interlúdios em Londres, onde os seus trabalhos são avaliados e valorados. Tudo anda muito bem. O livro Contos de Shakespeare, de Lamb se torna o grande livro de decifração de códigos. Isso é um perigo. O Dr. Hasselbacher poderá decifrá-los. Um capitão da polícia, o capitão Segura, conhecido por estar envolvido em torturas, se aproxima de Milly e a fazer parte da narrativa. Coisas do amor ou da paixão.

Alucinações, desconfianças, perseguições/proteções começam a ocorrer e que afetarão o círculo próximo ao inspetor. Até mortes passam a ocorrer, como a do próprio Dr. Hasselbacher. Até o assassinato de Wormold passa a ser planejado, num almoço em que seria homenageado e orador do evento. Competição comercial ou ações de geopolítica? A vida de Wormold se torna insustentável em Havana. Todos o aconselham a voltar para Londres. Afinal de contas, quatro mortes já haviam ocorrido e trabalho, que se possa assim chamar, nenhum.

Novas surpresas em Londres. Wormold espera ser punido, mas em vez disso, uma condecoração e um posto de trabalho em Londres lhe é oferecido. Quem será punido é a agente Beatrice, com quem trabalhou, que será transferida para Jacarta. Se existirem fracassos nos serviços secretos eles não podem se tornar públicos e nem mesmo do conhecimento a grupos internos, de oposição. Por isso o emprego e a condecoração com a Ordem do Império Britânico. Wormold, a sua filha Milly e Beatrice, ao que tudo indica, passam a ter uma tranquila vida na capital do Império, em que fora condecorado como um cidadão ilustre.

Gostaria de fazer dois destaques. O primeiro é a pergunta sobre a necessidade de um cidadão inglês em Havana? O próprio Wormold faz a pergunta e dá também a resposta: "Há acaso, em Havana, algo realmente importante, que possa interessar a um serviço secreto? - Somos, claro, um país pequeno, mas estamos muito perto da costa americana..." São velhas questões de geopolítica. A outra é o discurso feito por Beatrice em defesa dos relatórios vindos de Havana, que haviam sido acusados como destituídos de fundamento e em que foram confrontados com os interesses do país. Vejam parte do discurso e comentários:
O autor de Nosso Homem em Havana, escrito em 1958, um ano antes da revolução.


"Que é que o senhor entende por 'seu país'? Uma bandeira que alguém inventou há duzentos anos? [...] Oh, havia esquecido: há algo maior do que o próprio país a que se pertence, não há? É o que nos ensinaram com a sua Liga das Nações e com o seu Pacto Atlântico, com a OTAN, a ONU e a OTASO. Mas para a maioria de nós, isso não significa mais do que as outras letras, USA e URSS. E já não acreditamos mais nos senhores, quando dizem que desejam paz, justiça e liberdade? O que os senhores querem é garantir as suas carreiras. [...] Mas eles não nos deixaram muita coisa em que acreditar, deixaram? Nem mesmo na descrença".

Uma última observação. A edição que eu li é da Biblioteca Folha. Na contracapa existe um comentário de Clóvis Rossi, do Conselho Editorial da Folha. Nele existe uma comparação entre Wormold e  Donald Rumsfeld, além de uma pergunta intrigante: "O que pode haver de comum entre esse improvisado espião e o todo-poderoso secretário norte americano de Defesa? Simples: um e outro inventaram a existência de armas de destruição em massa, com a diferença, no caso irrelevante, de que Wormold jamais usa essa expressão (Não estava na moda há cinquenta anos). Rumsfeld o fez, pelo menos a julgar pelas informações disponíveis, para justificar a invasão do Iraque pelas forças norte americanas. Wormold, por uma razão bem mais prosaica: ganhar dinheiro para pagar os gostos da jovem e linda filha. [...] O que é certo é que as informações inventadas por Wormold causaram três ou quatro mortes apenas. Já no caso do Iraque..."

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

São Bento do Sul, no norte de Santa Catarina.

Há tempos tinha vontade de conhecer a cidade de São Bento do Sul, no norte de Santa Catarina. Não tinha um motivo especial, mas creio que a sua origem alemã e o fato de ser um caminho alternativo para ir a Guaratuba, embora aumentasse bastante a distância, foram alguns dos motivos. Fiz isso pela primeira vez, mas uma intensa chuva impossibilitou, por inteiro, qualquer passeio. Retomei o projeto na semana passada. Desta vez deu certo.
Do alto da colina, junto da igreja matriz, uma bela vista panorâmica da cidade.

São Bento do Sul está ligado a colonização da Colônia Dona Francisca, nos meados do século XIX, por uma empresa colonizadora da cidade de Hamburgo. A colônia Dona Francisca resultou na promissora cidade de Joinville. De Joinville foi feita a expansão. São Bento do Sul se protegia dos desbravadores, com a Serra Dona Francisca, mas nada que o agrimensor da companhia não resolvesse. O agrimensor tinha o pomposo nome de Carl August Wunderwald. São Bento do Sul inicia a sua colonização em 1873, quando ao longo do riacho São Bento, no vale do rio Negro se estabeleceram colonos oriundos da Bavária, da Prússia, da Polônia, da Rússia, bem como da Saxônia e da antiga Checoslováquia. A madeira se transformou na sua grande riqueza histórica. Sua evolução foi rápida. Em 1876 foi elevada a condição de distrito e já em 1883 a condição de município.
As escadarias, as estações da Via Crucis e lá no alto, a bela igreja da cidade.


A cidade é fortemente marcada pela sua tradição. Seus antepassados estão presentes no culto à música e ao folclore dos povos originários. Festas típicas e grupos que cultivam a tradição mantém viva a herança recebida. As festas populares relembram basicamente o tempo de fartura das colheitas. As grandes festas são a Sclachtfest, a festa da matança, tão típica das festas alemãs e o Bauerball, o famoso baile do colono. A música ganhou a sua festa típica com a Musikfest. A música, a dança e a fartura são os grandes componentes da alegria do seu povo.

Hoje São Bento do Sul é um próspero município, com IDH e renda per capita bem elevados. A transformação da madeira sempre foi a grande riqueza do município, mas a crise econômica iniciada em 2008, ainda se faz sentir. A metalurgia, a tecelagem e a fiação são outras grandes riquezas, além da indústria da cerâmica. Ali surgiram grupos econômicos de renome internacional, com destaque para a Rudnick, no setor moveleiro, da Oxford, na indústria cerâmica, do grupo Tuper, na metalurgia e da Buddemaeyer na tecelagem e fiação. A cidade tem hoje 80.000 habitantes.
A preservação histórica na cidade. A agência do banco Itaú.


A cidade se situa no alto da serra, numa paisagem magnífica. A sua igreja matriz é um verdadeiro cartão postal. Se situa no alto de uma colina e é alcançada por uma escadaria de muitos degraus, com as agora 16 estações da Via Sacra. A paisagem lá de cima compensa os degraus subidos. As escadarias e a Via Sacra me lembraram a cidade de Braga, aquela em que se reza, lá de Portugal. Só que lá tem um bondinho para subir. E as estações da Via Sacra são estátuas esculpidas. Muitas das casas foram reconstituídas, mantendo o caráter histórico da cidade. A agência do banco Itaú, merecidamente ganha um destaque. Artesanato típico também é abundante. Também tem cachaça produzida na cidade.
Uma vista da Serra Dona Francisca, vista do mirante da rodovia.

Como o nosso destino era Guaratuba, você sai de São Bento na direção de Joinville. Aí você ainda ganha um presente maravilhoso que é a descida da Serra Dona Francisca, com direito a um mirante para contemplar uma paisagem maravilhosa. Logo você chega em Joinville, na parte norte da cidade, já próximo de Garuva, ainda em Santa Catarina. Valeu muito a pena fazer uns cem quilômetros a mais para conhecer uma cidade e uma região de beleza rara. Um dia fico aí por mais tempo.
Uma cachaça extra produzida em São Bento do Sul. Pela Grosskopf&Schreiner.