sexta-feira, 26 de outubro de 2018

O Deserto dos Tártaros. Dino Buzzati.

Não tenho uma imagem precisa de como este livro chegou a mim. Provavelmente ele veio através de uma conversa sobre o filme, de uma adaptação do livro para o cinema. Ao final do livro, tenho o apontamento de que terminei a sua leitura em 18.03.2006. Sublinhei muitas coisas. Ele me impactou profundamente. Estou falando do livro O Deserto dos Tártaros, do escritor italiano Dino Buzzati. Fiz agora a sua releitura. Mais extraordinário ainda.
Edição brasileira de 2005. Da Nova Fronteira.


Dino Buzzati nasceu na cidade italiana de Belluno em 1906 e morreu em Milão em 1972. Viveu em um ambiente cultural intenso. O livro foi escrito em 1940. Seu pai era professor universitário em Milão. Buzzati trabalhou no renomado Corriere della Sera por toda a sua vida. Esse - por toda a sua vida - pode nos dar uma interessante pista sobre o seu livro, sempre apontado como um dos melhores da literatura italiana. Parece antever o seu próprio futuro. Nele é retratada a vida de um jovem oficial - Giovanni Drogo - que parte para o forte Bastiani - para ali permanecer por uns quatro meses e depois continuar a sua carreira militar, em busca de glórias, de reconhecimento na carreira e orgulhoso de seus feitos. Nada disso, porém, acontece.

O forte Bastiani fica numa área de fronteira, numa região montanhosa e distante de qualquer vida urbana. Ele fora construído no tempo em que os tártaros ameaçavam a paz na região. Apenas o passado justificava a sua manutenção. Ali Drugo deveria construir, ou começar a sua carreira militar. Por se tratar de uma região distante, certamente, acumularia alguns pontos para futuras promoções. Ficaria por quatro meses. Então arrumaria um atestado e se transferiria. Os quatro meses se transformaram em quatro anos, em trinta anos, em toda uma existência.

O imaginário alimentava o seu futuro de glórias. Sonhava com batalhas, contra os terríveis tártaros, nas quais mostraria toda a sua bravura militar. Via os inimigos. Os seus colegas também os viam. Uma rigorosa vida militar, de disciplina e de hierarquia, se repetia no eterno tempo presente do cotidiano sem novidades. A inexistência de inimigos era mortal para os seus sonhos de glória. Mas eles virão e isso não tardará. E o tempo vai passando.

Em raros momentos ele tira alguma folga. Volta à sua cidade. Nada mais lhe fará sentido, nem mesmo as doces e descontraídas conversas com Maria lhe tocam os afetos e os sentimentos. Elas se tornam burocráticas, medidas e calculadas. Ele opta por seguir no forte. Lá tudo será rigorosamente igual, do jeito que já está acostumado. O rigor dos regulamentos provoca até a morte de um soldado amigo, por esquecimento de senha. A burocratização da vida.

Depois de trina anos os inimigos vem. Drogo já é major. O segundo, na hierarquia do forte. Está doente. Os reforços estão chegando. O comandante precisa do seu quarto e o aconselha a se recuperar com tratamento longe do forte. Como ele não quer partir, o comandante ordena. A carruagem o leva até uma hospedagem, onde ele, no momento em que as batalhas o cobririam de glórias, morrerá em absoluta solidão, em absoluta solidão. Sem nenhum reconhecimento. Vivera uma vida inútil.

Creio que todos notaram o ano da escrita do livro. 1940. Influência total da filosofia do existencialismo. Antes, os enroscos na vida enredada e sem saídas de Kafka (1883-1924). Dois anos antes, Sartre e o seu Náusea. E, mais uma vez, a data. 1940. A Segunda Guerra Mundial. O jornalista Buzzati fora cobrir a guerra na Etiópia.

A edição brasileira apareceu apenas em 1984, pela Nova Fronteira. O argumento para a sua edição foi o de que Antônio Cândido o lia e relia a cada ano. Vi este dado em algum lugar. No Brasil, também a apresentação do livro ficou famosa. Ela é do cineasta Ugo Giorgetti. Vejamos a sua parte final:

"Romance alegórico? Romance de humor negro? Romance surrealista? Romance da vida militar?
São várias as possibilidades. O próprio Buzzati fornece a pista. 'De 1933 a 1939 trabalhei no Corriere della Sera no período noturno. Era um trabalho monótono e aborrecido, e os meses passavam, e passavam os anos e eu me perguntava se seria sempre assim, se as esperanças, os sonhos, inevitáveis quando se é jovem, iriam se atrofiar  pouco a pouco, se a grande ocasião viria ou não'.

É isso. Não é sobre a vida militar que fala o livro, mas sobre a vida de todos nós.
Fala da vida como uma aposta na imobilidade. Se não fizermos nada além de aceitar as coisas como são, um dia algo virá para redimir nosso pobre cotidiano, algo notável e brilhante que a vida nos reserva mais para frente.

Embora escrito quase setenta anos atrás o livro parece endereçar-se diretamente ao século XXI e nos atinge profundamente. Ou não é exatamente isso que diz a publicidade, a televisão, enfim, o pensamento médio reinante: seja disciplinado e trabalhador. Não mude sua vida. trabalhe infatigavelmente que um dia algo maravilhoso vai lhe acontecer. Algo glorioso, que vai justificar sua existência, não uma batalha, claro, mas talvez uma linda mulher inatingível, uma esperada promoção, uma casa cercada de árvores, ou muito dinheiro. Só que isso sempre virá mais adiante. Até que um dia nos damos conta que fizemos a aposta errada".

Eu fiz inúmeras anotações ao longo da leitura. Quero registrar apenas uma. "Ano após ano, aprendi a querer cada vez menos", diz Ortiz, um dos personagens do livro. Página 174. O memorável livro está dividido em trinta pequenos capítulos, ao longo de 221 páginas.

domingo, 21 de outubro de 2018

Orgulho e Preconceito. Jane Austen.

Um clássico sempre precisa de uma contextualização. Tempo e espaço sempre favorecem a compreensão. Jane Austen nasceu em 1775 em Steventon e morreu em Winchester em 1817, no Reino Unido. Era filha de um pastor e teve que se contentar com os afazeres domésticos. Foi uma escritora precoce. Escreveu os seus romances ainda menina. Orgulho e preconceito apareceu em 1813, antes que Jane completasse 21 anos.


O grande tema do livro não são as revoluções burguesas e suas transformações mas a vida familiar rural da Inglaterra, das famílias poderosas. Era o que Jane Austen, a escritora menina, tinha condições de observar. Ser mulher não era uma condição muito favorável para ser escritora.  Sobre a obsessão pelo tema da família, conta-se que ela teria afirmado, que para escrever, bastaria descrever três ou quatro famílias. O tema mais específico de Orgulho e preconceito é a família que tem filhas para casar. A família Bennet tinha cinco. Elizabeth, ou Lizzy, a segunda é a personagem central do romance.

A primeira frase do romance se tornou famosa e se constitui numa bela introdução ao livro: "É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro, possuidor de uma grande fortuna, deve estar em busca de uma esposa". A grande preocupação de uma família com filhas para casar era a de arrumar marido para elas. Esta tarefa cabia mais diretamente para a mãe. Era o caso específico da sra. Bennet.

A família Bennet, como já sabemos, tinha cinco filhas para casar, a saber: Jane, Elizabeth (Lizzy), Mary, Kitty e Lydia, a mais nova. A família tinha posses, mas essas eram asseguradas apenas enquanto o sr. Bennet estivesse vivo. Eles não filhos homens como herdeiros. Um primo, que seria o herdeiro, se interessou por resolver parte do problema, pedindo Lizzy em casamento. Para decepção e desespero da mãe, Lizzy não quer nem ouvir falar no sr. Collins, o pretendente. Este, incontinente, arruma outro casamento. Lizzy era geniosa.

Para promover os encontros dos quais os casamentos poderiam resultar, aconteciam muitas viagens de férias, chás, jantares e bailes. Assim, em viagem de férias a família Bennet, conheceu o sr. Bingley. Este estava acompanhado por seu amigo, o sr. Darcy. Jane parece ter tido alguma afinidade com Bingley, mas Lizzy detestou o sr. Darcy. O considerava superior e arrogante e dele falou horrores.

A história ganha um novo contorno com a chegada, à aldeia em que moravam, de jovens ligados ao exército. Um deles era o sr. Wickham, extremamente jovial e simpático. Apesar das antipatias, o sr. Darcy alertou Lizzy sobre o seu caráter. O inesperado acontece quando o sr. Wickham  foge com Lydia. A cidadezinha entra em polvorosa. A honra da família estaria manchada para sempre e adeus casamento para as demais filhas. A família se mobiliza em torno de sua busca para fazer os acertos do casamento e assim, salvar a honra. Por fim tudo foi acertado. Bem mais tarde, Lizzy soube da interferência do sr. Darcy, especialmente, na questão dos acertos financeiros.

A história termina com o casamento das duas filhas mais velhas, Jane com o sr. Bingley e de Lizzy com o sr. Darcy. Lentamente ela fora mudando a sua opinião com relação a ele. O sr Darcy explica para Lizzy, que ele, por longo tempo fora filho único, e que apenas bem mais tarde teve uma irmã e, ainda, que teve uma educação toda voltada para se fechar em torno de si mesmo e do poder de seu dinheiro, muito dinheiro. A felicidade sempre era vista como fator absolutamente secundário. Ou melhor, ela era unidimensional, ganhar dinheiro.

A narradora ficou conhecida como uma escritora que se especializou na caracterização dos personagens femininos, descritos em sua profundidade psicológica e com elevadas doses de ironia e sarcasmo. O livro é uma bela crônica dos costumes rurais da Inglaterra do início do século XVIII. Vejamos ainda uma pequena descrição da obra na contracapa do livro:

"O principal tema do livro é contemplado logo na frase inicial, quando Jane Austen menciona que um homem solteiro e de grande fortuna deve ser o desejo de (ter) uma esposa. Com esta citação Jane Austen faz três referências importantes: declara que o foco da trama será os relacionamentos e os casamentos; dá um tom de humor à obra ao falar de maneira inteligente acerca de um tema comum; e prepara o leitor para a caçada de um marido em busca da esposa ideal e de uma mulher perseguindo pretendentes.

O romance retrata a relação entre Elizabeth Bennet (Lizzy) e Fitzwilliam Darcy na Inglaterra do século XVIII. Lizzy possui outras quatro irmãs, nenhuma casada, o que a sra. Bennet, mãe de Lizzy, considera como um absurdo e fonte de grande preocupação. Quando o sr. Bingley, jovem bem sucedido, aluga uma mansão próxima à casa dos Bennet, a sra. Bennet enxerga a possibilidade de arrumar um marido para uma de suas filhas. Enquanto o vizinho é visto com bons olhos, o sr. Darcy é mal falado. Lizzy, em particular, desgosta imensamente dele por ter ferido seu orgulho na primeira vez em que se encontraram. A recíproca não é verdadeira".

O livro, apresentado em 61 pequenos capítulos, além do êxito editorial,foi também um sucesso no cinema. É fácil imaginar.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Como me tornei educador. Paulo Freire.

Tenho verdadeira obsessão pelo tema da formação. É enorme a minha curiosidade em saber como as pessoas se tornaram o que foram ou o que são. O que elas leram, que influências receberam, qual a influência das ideologias ao longo de seus anos de formação, onde estudaram e com quem conviveram.

Sempre  fui muito curioso com relação a Paulo Freire. Tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente e o privilégio de levá-lo a Umuarama, quando estive à frente do Núcleo Sindical da APP-Sindicato nesta cidade. Compartilhei também amizades com amigos muito próximos a Paulo Freire. Mas nenhum texto satisfez mais a minha curiosidade do que esta entrevista, concedida à revista italiana Terra Nuova, em seis de maio de 1989 e publicada no livro A Educação na Cidade. Como o livro se encontra esgotado, tomo a liberdade de copiar este pequeno trecho. Vejamos a pergunta que lhe foi formulada:
 A edição esgotada de Educação na Cidade.

Terra Nuova: Sua trajetória como educador - como surge - a época da ditadura, o exílio. Por que aceitou o convite para a Secretaria Municipal de Educação? (Paulo Freire foi Secretário de Educação da cidade de São Paulo, na gestão da prefeita Luíza Erundina entre os anos de 1989 e 1991. Dela se afastou para escrever os seus últimos livros).

Paulo Freire: Ninguém começa a ser educador numa certa terça feira às quatro horas da tarde. Ninguém nasce educador ou marcado para ser educador. A gente se faz educador, a gente se forma, como educador, permanentemente,  na prática e na reflexão sobre a prática.

É bem verdade que a gente tem, desde menino, certos gostos, certas preferências por coisas, ou formas de ser, ou de dizer, ou de fazer que, de vez em quando, ou quase sempre, coincidem com a natureza de certos quefazeres, como o educativo, por exemplo.

Por isso que, às vezes, em face de certos gostos, os mais velhos dizem de meninos ou de meninas que já nasceram médicos, educadoras ou artistas. Na verdade, porém, ninguém nasce feito.

Eu fui um menino cheio de certos anúncios pedagógicos, curiosidade, inquietação por saber, gosto de ouvir, vontade de falar, respeito à opinião do outro, disciplina, perseverança, reconhecimento de meus limites.

Minha carreira de educador começou exatamente na minha experiência de educando, quando, bem ou mal, aqueles gostos foram estimulados, atendidos ou recusados. Muito jovem ainda, e pouco tempo depois de haver entrado no curso ginasial, comecei a "ensinar" Língua Portuguesa. E foi ensinando os conteúdos gramaticais e sintáticos aos alunos que comecei a me preparar para entender que, como professor, se o meu papel não era, de um lado, propor aos alunos que refizessem toda a história do conhecimento do conteúdo de que eu lhes falava, não era, de outro, funcionar como puro perfilador do conteúdo que eu ensinava. O fundamental seria desafiar os alunos a perceber que aprender os conteúdos que lhes ensinava implicava que eles os apreendessem como objetos de conhecimentos. A questão que se colocava não era a de descrever o conceito dos conteúdos mas desvelá-los para que os alunos assumissem diante deles a curiosidade radical de quem busca e de quem quer conhecer. É bem verdade que, àquela época, a em quem este conhecimento do ato de ensinar, a que corresponde uma compreensão dinâmica e crítica do que é apreender, começava a se dar, não me era possível ainda, falar dele como falo agora.

Esta certeza gnosiológica, a de que apreender o objeto, o conteúdo, passa pela apreensão do objeto, pela assunção de sua razão de ser, me acompanha em todas as etapas de minha prática e de minha reflexão teórica sobre a prática. Na minha experiência de jovem professor, quase adolescente, de Português, no meu trabalho nos córregos e nos morros do Recife, no começo de minha juventude, como educador popular, na formulação dos princípios fundamentais do chamado Método Paulo Freire, designação de que não gosto, na minha atividade de professor universitário, no Brasil e fora do Brasil, e no esforço atual de formação permanente dos educadores da rede municipal de educação em que me engajo agora, à frente da Secretaria de Educação da cidade de São Paulo, ao lado de excelente equipe com que trabalho.

Para ser um pouco mais objetivo na resposta à sua pergunta em torno de minha trajetória de educador talvez pudesse fazer referência a momentos e pessoas que, direta ou indiretamente , me marcaram.

As dificuldades que vivi na infância, se não trágica, difícil e a forma como meus pais se comportaram na confrontação das dificuldades foram ambas - as dificuldades e a maneira como meus pais se moveram em face delas - importantes na minha formação como gente, a que se segue a minha formação como educador, sem nenhuma dicotomia entre elas. A morte de meu pai - quando eu tinha 13 anos, o trauma de sua ausência - a bondade de minha mãe, sua luta para que pudesse estudar. A figura de um excelente educador do Recife, Aluísio Araújo, pai de Ana Maria ou Nita, como costumo chamar minha segunda mulher e a quem devo o estudo gratuito em seu colégio, alguns professores como testemunho é lembrado hoje ainda por mim, a chegada à minha vida, quando recém começava meu curso jurídico na Faculdade de Direito do Recife, de Elza, extraordinária mulher e educadora, cuja falta quase me tirou do mundo para onde voltei trazido pelas mãos de outra não menos extraordinária mulher, Nita; dez anos de experiência político-pedagógica com trabalhadores de áreas urbanas e rurais de Pernambuco, meu trabalho acadêmico, leituras fundamentais, uma certa camaradagem com Cristo e com Marx, para espanto de certos cristãos e desconfiança de marxistas ingênuos. Tudo isso são sobretudo os ingredientes que permeiam, tudo isso tem que ver necessariamente com minha trajetória como educador. E a tudo isso, com importância não menos grande, se segue o impacto que me causaria a experiência rica, desafiante do exílio. Exílio que resultou da compreensão teórica da educação como ato político, da educação como processo de conhecimento, da educação democrática fundando-se no respeito ao educando, à sua linguagem, à sua identidade cultural de classe, da explicação teórica da defesa da educação que desoculta, que desvela, que desafia; exílio que resultou sobretudo da posta em prática de uma tal compreensão da educação. Foi a prática, obviamente, que assustou, nos anos 60, como assusta hoje, as classes dominantes autoritárias e perversas. Foi a posta em prática de uma educação assim que me levou à prisão, ao afastamento da universidade e, finalmente, aos quase 16 anos de exílio.

As oportunidades que tive de crescer, de aprender, de rever-me, no exílio, foram tais que, às vezes, Elza, com humor e sabedoria me dizia: "Tu devias telegrafar ao general que responde pela Presidência do Brasil agradecendo o ensejo que te deram de continuar apreendendo". Ela tinha razão.

Nos quase 16 anos de exílio estive fixado em três sítios. Santiago do Chile, Cambridge, Massachusetts e Genebra. Daí, como "andarilho do óbvio", corri mundo. Dei cursos, seminários, participei de conferências, de congressos, assessorei governos revolucionários na África, na América Central, no Caribe, assessorei movimentos de libertação, corri riscos, ganhei amizades, amei, fui amado, aprendi, cresci. E enquanto tudo isso fiz e tudo isso "sofri", no sentido de a mim incorporar o que fiz e o que vivi, jamais deixei de ter o Brasil como pré-ocupação. O Brasil nunca foi para mim uma saudade remota, amarga.

O Brasil de minha pré-ocupação era exatamente o Brasil submetido ao golpe militar, pitorescamente chamado de "revolução de 64" pelos seus executores. Era o Brasil silenciado, com seus intelectuais progressistas expulsos, com sua classe trabalhadora manietada com homens como Hélder Câmara, o profético arcebispo do Recife e Olinda, ameaçado e emudecido.

Todo tempo, porém, de exílio bem-vivido vira tempo de preparação para a volta. Assim, em junho de 1980 voltamos definitivamente para o Brasil, fixando-nos em São Paulo.

Num primeiro momento me dediquei ao que chamava  reaprender o Brasil. Revisitei o país todo. De norte a sul, falei sobretudo a jovens curiosos do que houve, do que fizéramos antes de 64. Sinto a obrigação de escrever ainda sobre isto. Não sei quando e se farei. Voltei à atividade docente. Tornei-me professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e na Universidade Estadual de Campinas. Escrevi, mas sobretudo falei muito nestes anos.

Há algo importante que fiz meses antes de voltar. Na Europa ainda me tornei membro-fundador do Partido dos Trabalhadores (PT), de cuja administração municipal em São Paulo sou hoje secretário de Educação. Era a primeira vez que me filiava a um partido, com ficha, nome, endereço. Tudo certo. Tudo legal. É que, pela primeira vez, na história política deste país, um partido nascia de baixo para cima. O Partido dos Trabalhadores nascia não recusando os chamados intelectuais por ser intelectuais, mas rejeitando os intelectuais elitistas e autoritários que se arvoram em donos da verdade da classe trabalhadora e da revolução. E, como jamais aceitei esse tipo de intelectual arrogante, me senti à vontade, desde o princípio, como militante modesto do PT.

E por que aceitei ser secretário de Educação da cidade de São Paulo?

Em primeiro lugar, porque sou secretário de uma administração do Partidos dos Trabalhadores e particularmente da Prefeita Luiza Erundina. Isto é, porque posso dizer, em programas de TV e aos jornais e rádios, que, na Secretaria de Educação, "cartão" e injunções políticas não se sobrepõem ao direito de ninguém. Em segundo lugar porque, se não tivesse aceito o convite honroso que fez Erundina, teria, por uma questão de coerência, de retirar todos os meus livros de impressão, deixar de escrever e silenciar até a morte. E este era um preço muito alto. Aceitar o convite é ser coerente com tudo o que disse e fiz, era o único caminho que eu tinha.

Aceitei, assim, a Secretaria e estou contente porque agi desta forma.
2018. 50 anos da Pedagogia do oprimido.


No mesmo livro encontramos uma entrevista dada a Carlos Alberto Torres, da UCLA. Nela, ele reitera esta questão de como se fez educador. Desta entrevista destaquei a sua curiosidade natural para o aprender, a sua necessidade de compreender a sua prática, fato que o levou à reflexão e da busca pela teoria e um encontro/reencontro com os trabalhadores rurais e urbanos na cidade de Recife. A partir das reflexões sobre este encontro é que surgiu a sua Pedagogia do Oprimido, que neste ano de 2018 completa 50 anos.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Fahrenheit 451. Ray Bradbury. Prefácio.

Entre os meus livros, tenho alguns pelos quais eu tenho uma estima especial. Eles figuram em local privilegiado em minha modesta biblioteca. Entre eles figura Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Ele foi meio eclipsado pela sua adaptação ao cinema, num filme genial de François Truffaut. Para quem não conhece, recomendo o livro e o filme.  Os dois nos dão uma das melhores visões sobre o que era e viria a ser a indústria cultural e, de uma forma facilmente compreensível. O grande tema é a queima de livros. Com 451 graus, pela escala Fahrenheit, começa a combustão.

A edição brasileira, da editora Globo, tem um prefácio primoroso. É de autoria do crítico literário Manuel da Costa Pinto. Uma vida dedicada à agitação cultural. O transcrevo em função da gravidade em que estamos vivendo. Escrevo na data de 10 de setembro, na cidade de Curitiba, entre as eleições de primeiro e segundo turno do ano de 2018 e diante de perspectivas sombrias. Mas vamos ao prefácio:
Entre a minha lista de preferidos.


Em 1933, quando os nazistas queimaram em praça pública livros de escritores e intelectuais como Marx, Kafka, Thomas Mann, Albert Einstein e Freud, o criador da psicanálise fez o seguinte comentário a seu amigo Ernest Jones: 'Que progressos estamos fazendo. Na Idade Média, teriam queimado a mim; hoje em dia, eles se contentam em queimar meus livros'.

Deixando de lado o fato de que a ironia de Freud logo se tornaria ingênua diante dos fornos crematórios de Auschwitz e Dachau, podemos nos perguntar: o que aconteceria se os livros fossem incinerados, varridos da face da terra até o ponto em que o único vestígio de milênios de tradição humanista estivesse alojada na memória de alguns poucos sobreviventes. Qual seria o próximo passo da barbárie? Queimar os próprios homens, para apagar de vez a memória dos livros?

É essa a pergunta que reverbera na mente no leitor após a leitura de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Pois esse romance visionário - cuja justa celebridade foi amplificada pela repercussão do filme homônimo de François Truffaut (com Oskar Werner e Julie Christie nos papeis principais) - trata justamente de uma sociedade em que os livros foram proscritos, em que o simples fato de manter obras literárias ou filosóficas em casa constitui-se num crime.

Fahrenheit 451 foi publicado em 1953, mas sua ação se passa num futuro não muito distante dessa época. Em uma passagem do livro, aliás, uma personagem comenta: 'Desde 1990, já fizemos e vencemos duas guerras atômicas!' - o que leva o leitor a deduzir que o futuro de Bradbury corresponde mais ou menos ao nosso presente (a 1ª edição brasileira é de 2003).

O enredo é ambientado numa cidade dos EUA, mas não há nada futurista em sua paisagem; não há grandes aparatos tecnológicos ou aquela assepsia que costuma cercar as narrativas localizadas num porvir em que a ciência transformou o habitat humano num grande laboratório. A cidade de Fahrenheit 451, em resumo, é apenas um pouco mais sombria e opressiva do que a maioria das metrópoles contemporâneas, com seu misto de progresso industrial e deterioração do tecido urbano, onde moderníssimos meios de transporte atravessam bairros decadentes.

Há, porém, uma grande diferença em relação às nossas cidades: as casas de Fahrenheit 451 são à prova de combustão. Por isso, os bombeiros desempenham agora uma nova função: em lugar de apagar incêndios, sua tarefa é atear fogo. Os bombeiros de Bradbury são agentes da higiene pública que queimam livros para evitar que suas quimeras perturbem o sono dos cidadãos honestos, cujas inquietações são cotidianamente sufocadas por doses maciças de comprimidos narcotizantes e pela onipresença da televisão.

Esse dado inverossímel, que imanta a sociedade fictícia de Fahrenheit 451, faz com que o relato de Bradbury seja incluído na categoria das "distopias". Em geral associados à "ficção científica", as distopias são "a descrição de um lugar fora da história, em que tensões sociais e de classe estão aplacadas por meio da violência ou do controle social" - segundo palavras de Roberto de Souza Causo (um importante estudioso do assunto e escritor de ficção científica). Como o próprio nome diz, a distopia é o contrário da utopia, ou uma "utopia negativa" - e vale a pena refletir um pouco sobre esse gênero, tão peculiar ao nosso tempo, antes de avaliar a importância de Fahrenheit 451.

As utopias surgiram como uma imagem invertida do real, como uma espécie de contrapartida positiva da razão crítica: se uma das atitudes filosóficas mais persistentes ao longo do tempo é o antidogmatismo e a denúncia de uma sociedade construída sobre um sistema de mistificações (o mito, a religião, a ideologia), a utopia seria o mundo possível a partir do momento em que todas essas crenças tivessem sido superadas.

Ressalta daí uma das características das utopias: elas parecem irreais porque são racionais em excesso, porque contrastam com a irracionalidade reinante nas relações sociais. A Cidade do sol de Campanella, o Eldorado de Thomas More (autor de Utopia ou sobre o último estado da república e sobre a nova Ilha Utopia) e o "falanstério" de Fourier criam em termos meramente hipotéticos uma idade de ouro do racionalismo. As utopias são constituídas por noções de cordialidade em meio a uma natureza dadivosa e domesticada, que serve de celeiro e jardim da humanidade. As utopias são, por assim dizer, o sonho da razão, além de uma vulgarização do humanismo - e por isso as grandes utopias ocidentais estão compreendidas entre o renascimento e o fim do século XIX.

Num século anti-humanista como o que acabamos de atravessar, porém, a razão deixou de ser antípoda da desrazão, da mitologia e da religião, para se tornar, ela mesma, um desdobramento dessa fúria dominadora. 'O esclarecimento, ou seja, a razão instrumental, é a radicalização da angústia mítica', escreveram Adorno e Horkheimer - e a imaginação literária do século XX foi pródiga em criar sociedades fictícias em que a racionalidade se transforma num fim em si mesma: abstrata, mecanicista, reduzindo o existente a um utensílio, alienando a consciência na linha de montagem e produzindo massacres com planejamento industrial. No século XX, como na famosa gravura de Goya, o sonho da razão produz monstros. Ou, em outras palavras, distopias.

Os universos opressivos descritos em romances distópicos  como Nós, de Ievguêni Zamiátin (também publicado no Brasil sob o título A Muralha Verde), Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, ou A revolução dos bichos e 1984, de George Orwel, seriam assim os antecedentes imediatos de Fahrenheit 451. A exemplo desses livros, encontramos em Bradbury uma sociedade policialesca, com propensões totalitárias, em que a individualidade é sacrificada a razões de Estado. Em certo sentido, porém, Fahrenheit 451 é bem mais realista - e isso não apenas no sentido da representação naturalista (o livro é muito mais rico em invenções de um mundo alternativo do que seus precursores), mas na estranha verossimilhança que esse livro adquiriu cinquenta anos após sua publicação.

A trama de Fahrenheit 451 é bastante simples e apresenta vários pontos de contato com as obras de Huxley e Orwell. O romance conta a história de Guy Montag, um bombeiro que, após várias incinerações de livros, começa a se perguntar sobre o fascínio que essas páginas impressas exercem sobre algumas pessoas obstinadas, que desafiam a ordem estabelecida pelo simples prazer de ler. Dois fatos são decisivos na urdidura do romance. Numa ação dos bombeiros, ele testemunha a auto-imolação de uma senhora (cujo sugestivo nome de família é Blake) que se recusa a abandonar sua casa, preferindo morrer no incêndio de sua biblioteca pessoal. Paralelamente, Montag conhece Clarice McClelland, uma jovem adolescente que instila nele o prazer de coisas simples e espontâneas - como a conversa entre amigos (coibida numa sociedade que administra o ócio por meio de atividades programadas) e a indagação sobre "o porquê" das coisas (uma excrescência no mundo utilitário de Fahrenheito 451, onde só importa "o como" de vivências protocolares.

Esses dois acontecimentos têm como pano de fundo o cotidiano asfixiante das demais personagens. Assim como em Admirável mundo novo (em que existe um narcótico, o soma, que provoca um bem-estar politicamente anestesiante), em Fahrenheit 451, a mulher de Montag, Mildred, vive à base de pílulas que embalam sua irrealidade cotidiana. E, como em 1984 (no qual a privacidade era devassada pela onipresença do Grande Irmão), as casas têm murais televisivos que transmitem ininterruptamente "novelas" com as quais os moradores podem interagir. A partir daí, toda a ação de Fahrenheit 451 vai se desenrolar no desafio de Montag às proibições vigentes e na sua tentativa de fuga da cidade, proporcionada pela amizade com Faber - um professor que ele outrora investigara e que agora se torna seu cúmplice.

O que interessa aqui, porém é frisar a singularidade da distopia de Bradbury. Pois enquanto Huxley e Orwell escreveram seus livros sob o impacto dos regimes totalitários (nazismo e stalinismo), Bradbury percebe o nascimento de uma forma mais sutil de totalitarismo: a indústria cultural, a sociedade de consumo e seu corolário ético - a moral do senso comum.

A ideia de que existe uma ditadura da maioria, que pune o diverso, aparece em vários momentos do romance, quase sempre personificado em Beatty, o chefe dos bombeiros. No momento em que está prestes a incendiar os livros da senhora Blake, por exemplo, ele diz: 'Não há o menor acordo entre esses livros. Você ficou trancada aqui durante anos com essa malfadada Torre de Babel. Saia dessa situação! As pessoas nesses livros nunca existiram'. Essa intolerância diante do que é complexo, do que é desviante, do que é problemático ou contraditório perpassa a narrativa de Bradbury e corresponde a uma antiga desconfiança em relação ao ficcional, ao poder desestabilizador da literatura e do imaginário (diga-se entre parênteses, que Fahrenheit 451 poderia ilustrar perfeitamente a ideia do "controle do imaginário" desenvolvida por um ensaísta como Luiz Costa Lima, que em diversas obras - Vida e mímesis, Limites da voz e Mímesis: desafio ao pensamento - descreve o processo pelo qual a literatura foi constituída, enquanto discurso autônomo, como um espaço circunscrito e limitado do imaginário social e individual, de modo a subordinar o ficcional - e sua criticidade implícita - aos discursos dominantes da religião, da filosofia ou da ciência).

Beatty é a personagem mais fascinante de Fahrenheit 451.  Como chefe dos bombeiros, ele desempenha o papel de inquisidor-mor; ao mesmo tempo, conhece profundamente aquilo que quer esmagar, sendo capaz de citar Shakespeare de cabeça. Não seria exagerado fazer um paralelo entre essa figura contraditória e o Grande Inquisidor de Os irmãos Karamazov. No romance de Dostoiévski, Cristo retorna à terra e é preso pela igreja católica espanhola porque, segundo o Grande Inquisidor, sua mensagem de liberdade seria insuportável para o homem. Da mesma maneira, o chefe dos bombeiros procura mostrar ao hesitante Montag que os livros são "o caminho da melancolia", da incerteza. Os livros, enfim são um convite à transcendência, ao desvario, à errância, ao desvio em relação ao destino bovino da humanidade conformada. 'Sempre se teme o que não é familiar' diz Beatty - e conclui: 'Um livro é uma arma carregada na casa vizinha'.

E é justamente aí que surge o aspecto mais inquietante de Fahrenheit 451. Bradbury não imaginou um país de analfabetos, mas diagnosticou um mundo em que a escrita foi reduzida a um papel meramente instrumental e no qual a literatura e a arte tem função "culinária" (segundo a expressão de Adorno). As personagens sabem ler, mas só querem ler a programação de suas televisões ou o manual técnico que lhes permitirá ter acesso a um entretenimento que preenche seu vazio - como está magistralmente sintetizado por essa fala de Beatty:

'Todo homem capaz de desmontar um telão de tevê e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. Eu sei porque já tentei. Para o inferno com isso! Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a ver com reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada, estimulem-me com o teremim, com muito barulho. Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de uma reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo o que peço é um passatempo sólido'.

É difícil avaliar o quanto a descrição de um mundo assolado pela indústria do entretenimento soava caricatural quando Bradbury publicou Fahrenheit 451. Atualmente, porém, nenhum leitor do romance terá dificuldade em ver nesse quadro desolador um instantâneo de nossa realidade mais cotidiana. Os monitores de televisão onipresentes nesse livro, podem ter sido inspirados no Grande Irmão de Orwell; hoje ironicamente, se parecem mais com os reality shows. Em Fahrenheit 451, não há um poder central que tudo vigia (como acontecia em 1984), mas um ressentimento geral que produz "bombeiros" - essa corporação de censores com mandato popular para representar "o rebanho impassível da maioria".

Sob certo aspecto, portanto, Fahrenheit 451 não é uma distopia, mas um romance realista, que flagra a dialética demoníaca da sociedade de massas, em que as massas parecem ser títeres das elites, mas na qual as elites só existem em função das massas. Como lembra Faber, em um diálogo com Montag, a sociedade do espetáculo é uma espécie de servidão voluntária:

'Os bombeiros raramente são necessários. O próprio público deixou de ler por decisão própria. Vocês, bombeiros, de vez em quando garantem um circo no qual multidões se juntam para ver a bela chama de prédios incendiados, mas, na verdade, é um espetáculo secundário, e dificilmente necessário para manter a ordem. São muito poucos os que ainda querem ser rebeldes'.

Ao final do romance, Montag se refugia em uma comunidade de homens que vivem à margem da sociedade e que, para escapar à ameaça dos juízes e dos censores, decoram livros. Eles podem, assim, apagar os perigosos vestígios materiais de sua devoção, ao mesmo tempo que preservam a memória da escrita. Entretanto, esse pequeno gesto de rebeldia estará sempre ameaçado pelo veredicto de Heine: 'Onde se lançam livros às chamas, acaba-se por queimar também os homens'.

Espero que este prefácio tenha conseguido instigar o suficiente para provocar a leitura deste livro, que você esteja no rol destas pessoas que "ainda querem ser rebeldes".

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

O Vermelho e o Negro. Stendhal.

Quando li a bela biografia de Napoleão, escrita por Pascale Fautier, editado pela LPM, me deparei com a enorme devoção que Stendhal devotava ao general. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/12/napoleao-bonaparte-pascale-fautrier.html Imediatamente separei o número 23 da minha coleção Os Imortais da Literatura Universal, mas ele ficou na fila por um longo tempo. Como estamos vivendo um tempo de profunda atribulação política (Escrevo no dia 8 de outubro de 2018, dia posterior ao primeiro turno das eleições presidenciais) eu me refugiei na leitura deste clássico. Um refúgio seguro. O tema é político. Não é um livro assim tão simples..
O vermelho e o negro. Stendhal.

Vamos primeiramente situar e datar o autor para depois procurar entender o que ele nos quis dizer. Stendhal (1783 - 1842) é o pseudônimo de Henry Bayle, nascido no interior da França, em Grenoble, e que, ainda jovem, irá morar em Paris. Parentes o ajudam a alistar-se junto às forças de Napoleão Bonaparte, mas será a escrita que lhe irá fascinar. É também evidente o seu gosto pela arte, o que o leva a escrever biografias de artistas, que foram tomadas por plágios. Outro de seus gostos era pelas mulheres, muitas mulheres. Inversamente, não gostava mesmo era dos padres, do clero. O Vermelho e o Negro é uma grande crônica dos costumes da França revolucionária. Acabo de ver que o livro tinha um subtítulo: Crônica do XIX.

Assim como Henry Bayle, ou Stendhal, o jovem Julien Sorel, protagonista de O Vermelho e o Negro, deixa o interior buscando aventuras e poder na cidade de Paris. A vida de  Napoleão o ensina que, mesmo sendo filho de camponês e carpinteiro, isso é possível. Julien escolhe as mulheres para esta busca de ascensão. Se relaciona, sempre se expondo perigosamente, com mulheres muito poderosas, expondo-as também e procurando tirar vantagens. Sem escrúpulos. Muitos ciúmes e poucos remorsos.

Julien tivera um pai horroroso, camponês e marceneiro, sempre tão violento quanto avarento. Julien o odeia. O jovem tinha uma memória fantástica. Sabia de cor todos os textos sagrados. Isso lhe granjeou o emprego de preceptor dos filhos do sr. de Rênal, o prefeito da cidade. Ele tinha três filhos e uma esposa de beleza de escultura grega. A sra. de Rênal irá conhecer as doçuras do amor, não conhecidas em seu casamento formal movido a interesses. A mediocridade humana. Esta foi concedida aos homens com grande generosidade, como afirma uma das frases em epígrafe, ao início de um dos muitos capítulos do livro.

Essa é a primeira parte do livro que consta de trinta pequenos capítulos. O cenário é a cidade de Varrières. Ajudado por um velho padre e um comerciante ele irá para o seminário em Besançon, onde permanece por pouco tempo. Em Paris chega à casa do senhor de la Mole, que se encanta com a sua inteligência e o introduz na alta sociedade e lhe confia missões. Julien logo percebe Mathilde, a filha do rico, nobre e poderoso senhor. Mas Julien também percebe uma outra mulher, viúva, rica e poderosa. Julien, mesmo em Paris, não esquece da senhora de Rênal  de sua cidade natal. E a crônica vai se desenvolvendo.

Em meio a uma missa, bem na hora da elevação, Julien desfere dois tiros na sra. de Rênal. Os tiros  não a ferem mortalmente, para o desespero dela, louca de amor e que preferia ter morrido do que viver sem o amado. Ele será preso, julgado e condenado. Essa parte ocupa toda a segunda parte, desta vez em 45 pequenos capítulos. Em meio a estas narrativas é que vai descrendo a época. O ano de lançamento do livro foi o ano de 1830. É o período das revoluções e contra revoluções.

Destaquei algumas partes que envolvem especialmente as questões dos padres e as suas desavenças nas disputas pelo poder. Mas lendo o livro de biografias que acompanha a coleção, destaquei algumas informações que considero mais interessantes. Primeiro sobre o título: "O significado do título suscitou muita discussão. Segundo alguns críticos, Stendhal quis representar o jogo da roleta. Outros veem no vermelho o Exército, o sangue das batalhas, e o negro a Igreja, o sangue das batinas. Há também os que consideram o negro uma alusão ao estado de seminarista do herói, e o vermelho o sangue que o embebe no cadafalso. Numa quarta interpretação, o vermelho representaria a época da Revolução Francesa e do Império, com suas oportunidades de vencer pelas armas e pela coragem, enquanto o negro simboliza a época da restauração da monarquia (1814-1830), quando as possibilidades de ascender através do exército eram diminutas"

Uma segunda observação seria sobre as intenções do autor, sobre o que ele quis efetivamente dizer: "Mais do que um romance de costumes, uma crônica política, ou uma crítica à sociedade, O Vermelho e o Negro é um romance psicológico da ambição, um estudo profundo 'sobre os motivos secretos dos atos e a qualidade interior das almas, na sociedade criada pela Revolução', como diz o crítico Gustave Lanson".

Termino com uma última observação sobre os seus dados biográficos: "O amigo Romain Colomb providenciou os serviços fúnebres, realizados na igreja da Assunção. Com mais duas pessoas apenas - Mérrimée e Abraham Constantin - acompanhou o féretro até o cemitério de Montmartre. Ali repousa o homem ambicioso e ávido de amor, o escritor orgulhoso que escrevia para gerações futuras. Em vida não conhecera a glória. Após a morte, consagrou-se como um dos maiores autores franceses do século XIX". O Vermelho e o Negro é profundamente autobiográfico e revelador do humano, do sombrio que nele existe.

Adendo em 29/07/2020. Como contraponto a Stendhal - a crítica que Tolstói faz a Napoleão, no volume IV de Guerra e Paz, no epílogo - Primeira parte - capítulo III. Páginas 1377 a 1381. L&PM.

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Se os tubarões fossem homens. Bertolt Brecht.

Nos trabalhos de abertura de um dos grupos de leitura da obra de Paulo Freire, em comemoração aos 50 anos da publicação da Pedagogia do oprimido, foi sugerida a leitura deste poema do Brecht. Achei muito oportuno, como também, a sua publicação neste espaço. É uma parábola perfeita. E as parábolas são de fácil compreensão. Vamos lá.


Se os tubarões fossem homens, perguntou a filha de sua senhoria ao senhor K., seriam eles mais amáveis para com os peixinhos?

Certamente, respondeu o Sr. K. Se os tubarões fossem homens, construiriam no mar grandes gaiolas para os peixes pequenos, com todo tipo de alimento, tanto animal quanto vegetal. Cuidariam para que as gaiolas tivessem sempre água fresca e adotariam todas as medidas sanitárias adequadas. Se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana, ser-lhe-ia imediatamente aplicado um curativo para que não morresse antes do tempo.

Para que os peixinhos não ficassem melancólicos haveria grandes festas aquáticas de vez em quando, pois os peixinhos alegres têm melhor sabor do que os tristes. Naturalmente haveria também escolas nas gaiolas. Nessas escolas os peixinhos aprenderiam como nadar alegremente em direção à goela dos tubarões. Precisariam saber geografia, por exemplo, para localizar os grandes tubarões que vagueiam descansadamente pelo mar.

O mais importante seria, naturalmente, a formação moral dos peixinhos. Eles seriam informados de que nada existe de mais belo e mais sublime do que um peixinho que se sacrifica contente, e que todos deveriam crer nos tubarões, sobretudo quando dissessem que cuidam de sua felicidade futura. Os peixinhos saberiam que este futuro só estaria assegurado se estudassem docilmente. Acima de tudo, os peixinhos deveriam rejeitar toda tendência baixa, materialista, egoísta e marxista, e denunciar imediatamente aos tubarões aqueles que apresentassem tais tendências.

Se os tubarões fossem homens, naturalmente fariam guerras entre si, para conquistar gaiolas e peixinhos estrangeiros. Nessas guerras eles fariam lutar os seus peixinhos, e lhes ensinariam que há uma enorme diferença entre eles e os peixinhos dos outros tubarões. Os peixinhos, proclamariam, são notoriamente mudos, mas silenciam em línguas diferentes, e por isso não se podem entender entre si. Cada peixinho que atacasse alguns outros na guerra, os inimigos que silenciam em outra língua, seria condecorado com uma pequena medalha de sargaço e receberia uma comenda de herói.

Se os tubarões fossem homens haveria arte entre eles, naturalmente. Haveria belos quadros, representando os dentes dos tubarões em cores magníficas, e as suas goelas como jardins onde se brinca deliciosamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam valorosos peixinhos a nadarem com entusiasmo rumo às gargantas dos tubarões. E a música seria tão bela, sob os seus acordes, todos os peixinhos, como orquestra afinada, a sonhar, embalados nos pensamentos mais sublimes, precipitar-se-iam nas goelas dos tubarões.

Também não faltaria uma religião, se os tubarões fossem homens. Ela ensinaria que a verdadeira vida dos peixinhos começa no paraíso, ou seja, na barriga dos tubarões.

Se os tubarões fossem homens também acabaria a ideia de que todos os peixinhos seriam iguais entre si. Alguns deles se tornariam funcionários e seriam colocados acima dos outros. Aqueles ligeiramente maiores até poderiam comer os menores. Isso seria agradável para os tubarões, pois eles, mais frequentemente, teriam bocados maiores para comer. E os peixinhos maiores detentores de cargos, cuidariam da ordem interna entre os peixinhos, tornando-se professores, oficiais, polícias, construtores de gaiolas, etc.

Curto e grosso, se os tubarões fossem homens, só assim haveria uma civilização no mar.

Se Brecht vivesse hoje entre nós, certamente acrescentaria um parágrafo para dizer que também haveria um sistema judiciário se os tubarões fossem homens. E uma declamação do poema, na voz do Antonio Abujamra.


quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Os 25 melhores romances do século XXI. Bula Revista.

Apesar de seus limites, eu gosto de rankings. Seus limites são as classificações e os ordenamentos, mas eles nunca deixam de ter os seus fundamentos. O seu grande valor está em nos situar, em nos mostrar evidências, que poderiam nos passar despercebidas. O ranking da vez nos é apresentado pela revista Bula e a sua pesquisa ou levantamento é bem limitado. Apenas seus colaboradores e leitores foram consultados. A consulta envolve livros. Os livros preferidos. Como critério, apenas os escritos a partir de 2001. Apenas novos escritores, portanto.

Considero este o aspecto mais importante. Ao menos para mim, que tenho dificuldades em conhecer até os clássicos, foi uma oportunidade de conhecer novos escritores e escritoras. Alguns me eram ou são totalmente desconhecidos. Os livros que receberam mais de 20 indicações estão relacionados. Os escritores comparecem na lista, também uma única vez. Também há a classificação pelo número de indicações. O ano da publicação do livro também pode produzir viés, tanto positivo como negativo pelo distanciamento ou proximidade com o tempo. Mas vamos a lista. Ao final eu passo o link da revista, para verem a capa dos livros e as pequenas resenhas feitas pelas editoras.



Livros com mais de 100 indicações:

1. Pornopopeia  (2009). Reinaldo Moraes.
2. O filho eterno (2007). Cristóvão Tezza.

Com mais de 80 indicações:

3. Cinzas do Norte (2005). Milton Hatoum.
4. Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios (2005). Marçal Aquino.

Com mais de 60 indicações:

5. Barba ensopada de sangue (2013). Daniel Galera.
6. O drible (2013). Sérgio Rodrigues.
7. Sinfonia em branco (2001). Adriana Lisboa.

Com mais de 40 indicações:

8. Nove noites (2002). Bernardo Carvalho.
9. O amor dos homens avulsos (2016). Victor Heringer.
10. Como se estivéssemos em Palimpsesto de Putas (2016). Elvira Vigna.
11. Eles eram muito cavalos (2001). Luiz Rufatto.
12. Budapeste (2003). Chico Buarque.

Com mais de 30 indicações:

13. O azul do filho morto (2002). Marcelo Minisola.
14. O cheiro do ralo (2002). Lourenço Mutarelli.
15. O albatroz azul ( 2009). João Ubaldo Ribeiro.

Com mais de 20 indicações:

16. Vermelho amargo (2011). Bartolomeu Campos de Queirós.
17. Noite dentro da noite (2017). Joca Reiner Terron.
18. Naqueles morros depois da chuva (2011). Edival Lourenço.
19. A máquina de madeira (2012). Miguel Sanches Neto.
20. K: Relato de uma busca (2014). Bernardo Kucinski.
21. Fé na estrada (2012). Dodô Azevedo.
22. Antiterapias (2012). Jacques Fux. 
23. Presos no Paraíso (2017). Carlos Marcela.
24. Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite (2008). Fal Azevedo.
25. Pelo fundo da agulha (2006). Antonio Torres.

Na certeza de que a divulgação ajuda na busca de leitores, deixo o link da matéria. 

terça-feira, 2 de outubro de 2018

A política pública entre os muros da democracia representativa. Um manifesto do NESEF.


O NESEF (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Ensino da Filosofia), ligado à Universidade Federal do Paraná, lançou neste final de setembro de 2018, mais um documento manifesto em favor do ensino e da educação pública paranaense e brasileira. O manifesto contém denúncias e anúncios. Denúncia das mazelas da política educacional posta em prática pelos governos federal e estadual e o anúncio é - muito mais - uma proposta de luta por aquilo que historicamente são os componentes de uma educação pública a serviço da humanização e da cidadania. Tenho enorme satisfação em ser um pequeno meio para a sua divulgação. O documento/manifesto contém também uma bela análise de conjuntura, uma contextualização das nefastas políticas educacionais que estão sendo postas em prática. Um documento para alicerçar os debates pedagógicos nas escolas.
Foto de uma das atividades desenvolvidas pelo NESEF. A filosofia e a sociologia no currículo do ensino médio.

A POLÍTICA PÚBLICA ENTRE OS MUROS DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

O NESEF-UFPR, atuante há duas décadas na defesa da educação pública, gratuita, laica, socialmente referenciada e norteada pelo ideal da emancipação social, política e cultural dos sujeitos, vem a público: (a) demarcar seu posicionamento quanto aos recentes ataques desferidos no ensino de Ciências Humanas nas escolas de Educação Básica e Superior do Brasil, especialmente do Paraná; (b) repudiar a política de precarização do ensino expressa na Lei 13.415/2017 e na versão preliminar do texto da BNCC do Ensino Médio (2018), e rechaçar a prática do denuncismo contra professores/as que fazem uso da razão pública para se manifestarem em relação à conjuntura político-educacional de nosso país. 

Há, no Paraná, 10.270 trabalhadores da área da educação desempregados, pois nos últimos dois anos 3.630 docentes se aposentaram e 6.640 professores temporários (PSS) viram os seus contratos virarem pó na fogueira neoliberal de eliminação de direitos e postos de trabalho. O governo do estado do Paraná – em nome do capital financeiro, através das diversas figuras que hoje se apresentam como arautos em defesa da educação –, saqueou a previdência dos professores; massacrou-os em praça pública (massacre pelo qual, até o momento, ninguém foi responsabilizado); estimula a perseguição e a denúncia de professores por “doutrinação ideológica”; fomenta e fortalece práticas fascistas como o Programa Escola sem Partido; reduziu nominalmente o salário de professores contratados pelo PSS e a hora-atividade estabelecida por lei; fechou mais de 2.000 turmas de Ensino Médio, remanejando alunos; ameaçou, inclusive, fechar escolas; está sendo investigado, via processo instaurado, por desvio de verbas destinadas a obras nas escolas públicas.

Essa política educacional, praticada no estado do Paraná, está em perfeita sintonia com os ditames do governo federal. A Lei 13.415/2017, que trata da reforma do Ensino Médio, a BNCC e todos os documentos que o governo federal e seus parceiros vêm produzindo sobre a educação se voltam para a federalização enganosa do Ensino Médio. Como consequência desse nefasto processo, observa-se a desvalorização dos conhecimentos, das metodologias, da formação, da carreira e da profissão das professoras e dos professores. No plano econômico, o desmonte da educação brasileira busca transformar a educação pública em um balcão de negócios, liberando, desse modo, a verba destinada constitucionalmente à educação pública para empresas privadas.

O MEC repassou, como exemplo, 250 milhões de dólares para instituições financeiras e institutos ligados a grandes organizações. Esse empréstimo, recebido do Banco Mundial, será utilizado na ampliação de recursos tecnológicos em escolas públicas e na formação de novos institutos para a implementação da BNCC. Destarte, um governo que repassa mais de 1 bilhão de reais de dinheiro público para empresas privadas não tem legitimidade para cortar minguados 500 milhões de reais destinados para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia.

A reforma do Ensino Médio, ao propor manter apenas a matemática e a língua portuguesa como disciplinas “essenciais” na proposta da BNCC, faz uma avaliação falha e insuficiente do problema da organização curricular. Dessa forma, não só a reforma do Ensino Médio mas também a BNCC ignoram a importância das demais disciplinas que, de igual forma, trabalham com o desenvolvimento da capacidade de leitura, interpretação e cálculo (filosofia, sociologia, história, geografia, artes, educação física, física e química). Ao ser apresentado um currículo fragmentado, voltado unicamente aos interesses imediatos do mercado de trabalho, descaracteriza-se a formação humana, crítica, estética, ética e política. Desconsideram-se, assim, as contradições que subjazem aos processos mais amplos do modelo social e econômico vigente, o que fere diretamente os direitos de acesso das e dos jovens estudantes à educação pública de qualidade e socialmente referendada.

A BNCC visa estabelecer, em grandes áreas de conhecimento, o desenvolvimento de habilidades e competências, retirando, simultaneamente, as especificidades dos conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos, essenciais para o processo integral de formação humana. Objetiva-se, com isso, ministrar capacidades que, segundo o relatório do Banco Mundial – que pautou até agora todas as medidas de desmonte da educação, inclusive a redução salarial e o saque previdenciário dos professores –, são economicamente valorizáveis, transformando nossa juventude num objeto atrativo para o mercado de trabalho. 

Tudo isso sob a justificativa de transformar a educação considerada maçante, que apenas transmite conteúdos recortados, rígidos e estritos, numa educação atrativa e lúdica para os estudantes. Por meio dessa educação “transversal” e “interdisciplinar”, que possibilita aos alunos escolher o que desejam estudar, promove-se, com as habilidades e competências da reforma do Ensino Médio e da BNCC, a destruição dos recortes epistemológicos disciplinares. Equivalentemente, as perspectivas epistemológicas e metodológicas, construídas empírica e historicamente na constituição da nossa humanidade, serão substituídas pela aglomeração de habilidades e competências em grandes áreas do conhecimento, por recortes epistemológicos abstratos, arbitrários e incoerentes. Esses recortes não projetam o desenvolvimento humano, cognitivo e crítico das e dos estudantes, e sim promovem apenas o necessário para formar uma massa amorfa e acéfala, que servirá de mão de obra barata para o mercado de trabalho.

Por tudo isso, nós do NESEF realizamos há anos inserções de debate e disputa em todo espaço possível (grupos de estudo, encontros temáticos, sessões de cineclubismo, produções acadêmicas, Olimpíadas Filosóficas, publicações da Revista do NESEF e do jornal O Sísifo...). Essas inserções são formas de defender a filosofia como disciplina, preservando o ensino das humanidades e, por conseguinte, a formação cultural (Bildung) e política; a fim de levar informações, pesquisas e análises críticas sobre a BNCC e sobre a reforma do Ensino Médio para estudantes e profissionais da educação, tanto básica quanto superior. Participamos desses espaços criticamente, tencionando os debates, influenciando as decisões e exigindo posicionamentos claros. Porque resistência não se faz com luto. Resistência se faz com luta! 

Todo esse pacote de maldades do teto de gastos, da reforma do Ensino Médio, da BNCC, da reformulação dos currículos, dos programas de iniciação à docência – como a residência pedagógica e a atual proposta do PIBID – não passa de uma orgia seletiva do capital financeiro. Visto esse infeliz panorama, gostaríamos de saber das universidades públicas e, em especial, da UFPR quais serão as ações práticas de enfrentamento a reforma do Ensino Médio e a BNCC? Serão ações de luto? Ou ações de luta?

Não bastasse tudo isso, os profissionais de educação das escolas públicas brasileiras de Ensino Médio, sobretudo no estado do Paraná, vêm sofrendo com processos administrativos por parte do Estado, frutos de uma onda de denuncismo daqueles que não consideram a escola como espaço para a construção da emancipação política e cultural dos sujeitos. Para estes, a escola é vista como local de mera transmissão mecânica de conhecimentos e instrução funcional. Nessa concepção, não há espaço para o exercício crítico do pensamento e da razão pública dentro da escola. 

A repressão e as atrocidades praticadas pelas forças policiais do governo paranaense contra as/os professoras/es e muitos estudantes no confronto de 29 de abril de 2015, em frente do Palácio do Governo, marcaram o início de uma onda de autoritarismo, arbitrariedade e denuncismo que passou a fazer parte do cotidiano das nossas escolas. Lamentavelmente, a figura do “capitão do mato” parece tomar conta dos estabelecimentos de ensino, de forma que os olhos e a voz do governo se multiplicaram através de colegas e de estudantes impulsionados, em especial, pelas mesmas forças que motivaram a repressão em 2015 (e o golpe em 2016). Mais de três mil profissionais da educação foram envolvidos em sindicâncias e processos administrativos no estado do Paraná, desencadeando muitas punições ainda em curso, a despeito das indicações do Conselho do Magistério. 

O denuncismo não só corroí os princípios da democracia como a liberdade, legitimando o estado de exceção que se localiza no limiar do fazer político e do direito público, pois é no fato político que se encontra a sustentação necessária para a manutenção do sistema. Quando existem denúncias sem fundamentos legais, ou ainda, quando o denunciante é o próprio estudante ou colega de profissão, o denuncismo fica travestido num ato de perseguição política. O que torna ainda mais grave a atual conjuntura, porque a não aceitação do diferente e da pluralidade de pensamento consiste, de igual modo, em não aceitar o outro. Estende-se, assim, à ética, visto que o que se deseja é a anulação das contradições, instaurando a desconfiança e posteriormente o medo, na tentativa de silenciar a reflexão crítica e o pensamento, pois sem essas duas bases serão formados sujeitos conformados e passivos, colocando em risco o futuro da democracia.

Observa-se, diante disso, uma parte significativa da comunidade escolar que parece estar inclinando-se à tendência nefasta de se submeter ao poder e com ele à autoridade, que traz em seu bojo a pretensão de alimentar o ódio contra quem lhe é diferente, propagando uma discriminação social. O que subjaz o denuncismo é o estabelecimento de um tipo autoritário que dissemina um padrão comportamental apresentado de forma coerente e racional, mas que, por seu turno, é irracional e nefasto à democracia. 

Faz-se necessário, considerando a atual conjuntura política brasileira – diante dos ataques que as disciplinas das humanidades, especialmente a filosofia e a sociologia, vêm sofrendo por causa de pesquisas infundadas e de discursos neoliberais e fascistas –, lutar pela sua manutenção, não só nas escolas como também nas ruas e nas praças públicas. É imprescindível mantê-las no espaço público como exercício de negatividade, para análise crítica da sociedade. Neste momento histórico, resistir significa, sobretudo, contra-atacar!

“Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência” (Marx).

O Coletivo do NESEF
Curitiba, 26 de setembro de 2018.

Aparelhos de reprodução da sociedade. Louis Althusser.

Althusser tem um belo livrinho sob o título - Aparelhos ideológicos de Estado. Nele, divide estes aparelhos em repressivos e ideológicos. Os professores do Paraná bem entendem como funcionam os aparelhos repressivos, pois foram empregados pelos governadores Álvaro Dias (30 de agosto de 1988) e Carlos Alberto Richa (29 de abril de 2015). As feridas, física ou simbolicamente ainda doem, e muito. Já os aparelhos ideológicos são mais sutis e, muitas vezes, nem mesmo são sequer percebidos. O livro tem um belo prefácio, uma introdução crítica do professor Guilhon Albuquerque, que de certa forma também representa um resgate do pensador francês.
Um belo livrinho e uma maravilhosa introdução.

Mas não vou me deter neste livro. O deixo sim, como uma grande recomendação. Vou reverenciar um outro pequeno livrinho, que eu usei à exaustão em minhas aulas de sociologia. Trata-se de Sociologia Crítica - Alternativas de mudança, de Pedrinho Guareschi. Conheci pessoalmente o autor e dele também recebi um exemplar da 45ª edição. A edição é da Edipucrs. Um livrinho poderoso. Lá pela metade deste livro, Pedrinho nos apresenta os aparelhos de reprodução da sociedade e se detém na análise de cada um dos aparelhos ideológicos: Assim os do direito, da escola, da família, das igrejas, dos sindicatos, das cooperativas e o da comunicação. Sobre a comunicação, o AIE hoje dominante ele tem mais três capítulos: Os meios de comunicação e o massacre da cultura. - Notícias: as belas mentiras  e propaganda/publicidade.
Um livro que sempre me acompanhou.

Mas vamos ao capítulo XII, onde é dada a introdução sobre os Aparelhos de Reprodução da Sociedade:

"Após termos ampliado a visão do que seja uma sociedade, com sua infra-estrutura e superestrutura e suas influências mútuas, passaremos a analisar, pormenorizadamente, os diversos mecanismos superestruturais que se criam nas diversas sociedades para reprodução e manutenção dessa própria sociedade. Nessa primeira discussão vamos examiná-los e classificá-los de modo geral. Posteriormente vamos discutir alguns deles individualmente e mostrar como eles se comportam, quais as estratégias que usam, quais seus mecanismos claros e ocultos.

Entre outros, veremos o papel das leis (O aparelho ideológico do Direito), o papel da escola, das igrejas, da família, dos meios de comunicação, dos sindicatos, das cooperativas.

Que são aparelhos de reprodução?

Todo agrupamento humano, toda sociedade necessita assegurar sua sobrevivência e sua permanência, sua reprodução. A sobrevivência é assegurada pela produção e a reprodução é assegurada por diversos aparelhos, ou mecanismos, que a sociedade cria, como já vimos no capítulo anterior, para se fortificar e legitimar, podendo assim garantir sua continuidade.

Quais são eles?

Diversos pensadores que discutiram esse problema classificaram os aparelhos de reprodução em duas categorias fundamentais:

1º. Os aparelhos repressivos: são aqueles aparelhos que na sua função de manutenção e reprodução da sociedade usam a força, a violência, ou a coação-repressão. Eles não escondem seu papel, mostram-se como são, são claramente estruturados e organizados. Entre outros, podemos identificar os seguintes:
- O exército, que muitas vezes tem a tarefa de defender a sociedade contra agressões externas, mas algumas vezes passa a exercer funções dentro da própria nação;
- As companhias de segurança que estão proliferando por toda parte (a concentração, com consequente exclusão, produz uma sociedade cada vez mais violenta e insegura);
- As polícias de todos os tipos: sua função é garantir a ordem interna, em geral;
- As prisões, onde são colocados os que não se enquadram dentro das normas estabelecidas pela sociedade. Essas prisões são de diversos tipos e categorias. Há prisões para menores de 18 anos, prisões para mulheres, prisões para presos comuns, para presos especiais e entre os especiais, há algumas prisões para as pessoas que possuem certo grau de saber ou prestígio na sociedade:
- Os tribunais, encarregados de julgar e decidir o que é certo ou errado, quem é culpado ou inocente. Os tribunais remetem as pessoas às prisões, quando julgadas culpadas.
- O direito, que em sua parte penal passa a pertencer às instituições repressivas.

Não analisaremos especificamente nenhum dos aparelhos acima nos capítulos posteriores, pois preferimos dar maior atenção aos aparelhos ideológicos, que usam a persuasão e que são mais sofisticados. Os aparelhos repressivos são fáceis de serem analisados.

Além disso, os aparelhos repressivos só são usados em último caso, isto é, quando as pessoas não se conformam mesmo com o que os dirigentes da sociedade querem. Primeiro as pessoas são tratadas duma maneira pacífica, persuasiva, através de conselhos. Só depois, quando esses remédios estiverem esgotados, passa-se a usar a coação e a repressão. Por isso, na nossa análise das relações de dominação, discutiremos as instituições que usam a repressão duma maneira mais sutil e elegante.

Você pode, contudo, fazer-se diversas perguntas com respeito aos aparelhos repressivos. Pode-se perguntar, por exemplo: a quem se destina realmente a polícia? Talvez você vá descobrir que a polícia, na realidade só cuida dum determinado tipo de gente, que são os trabalhadores. No papel, a polícia deveria ter o mesmo tratamento com todos. Mas, na prática, de quem a polícia cuida? E quem a polícia defende?

Ainda mais, você poderia se perguntar: qual o papel dos tribunais e das prisões? Quem chega a ser condenado? Quem chega a ir para a prisão? Você já chegou a ver algum dono dos meios de produção na prisão? E por que existem prisões especiais para certos tipos de pessoas que possuem mais estudo ou mais prestígio, prestígio este trazido, em geral, pelo dinheiro?

Você vai dar-se conta de que, na prática, os aparelhos repressivos estão a serviço dum tipo de gente, duma classe que são os donos do capital, e atuam, na maioria quase absoluta das vezes, contra a outra classe, que são os trabalhadores. As raras exceções são para confirmar a regra. Mas no discurso, isto é, quando se fala ou se escreve, se diz que esses aparelhos repressivos são para proteger e defender todos os cidadãos. procure estar atento e prestar atenção ao papel real desses aparelhos coercitivos.

2º. Os aparelhos ideológicos: são aqueles aparelhos, ou mecanismos, que na sua função de manutenção e reprodução das relações numa sociedade usam a persuasão, a cantada, isto é, a ideologia. Eles são bem mais difíceis de serem identificados, pois é necessária certa astúcia, certa perspicácia para poder perceber seu papel. Como dizíamos antes, eles são muito mais sofisticados em sua ação.

Entre os aparelhos ideológicos poderíamos citar os seguintes:

- a escola (ou educação), família, as diversas igrejas, as leis (o direito), os meios de comunicação social (rádio, TV, jornais, revistas, filmes, teatros), as entidades assistenciais (INSS, "Comunidade Solidária, Febem,etc.), os sindicatos (pelegos), as cooperativas dependentes do estado, os partidos políticos dominados pelo capital, e outros.

Nos capítulos posteriores vamos fazer uma análise específica de alguns dos aparelhos ideológicos acima mencionados. Essa discussão será apenas para poder realçar seus pontos principais, mas cada grupo de trabalho que se defrontar com esses aparelhos deve, ele mesmo, discuti-los na prática e identificar os mecanismos e estratégias que são usadas em cada situação concreta".

Fonte: GUARESCHI. Pedrinho. Sociologia Crítica. Porto Alegre. Edipucrs. 1999. Páginas 89-92. Este tema deve necessariamente conduzir a Gramsci, ao estudo da categoria hegemonia.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Relatos de uma viagem 2. City tour por João Pessoa, litoral sul da Paraíba e um por do sol.

O city tour da Luck Receptivo por João Pessoa é fantástico. Ele começa pelo recolhimento do pessoal nos hotéis da orla marítima e, hoje, também dos flats e apartamentos alugados. Muitas voltas em torno da região do hotel Tambaú, o centro de expansão da orla costeira da cidade. Recolhido o pessoal, já se vai ao encontro da primeira atração, que não é uma atração qualquer. Trata-se do ponto mais oriental do Brasil, o local brasileiro onde o sol nasce por primeiro.
Farol do cabo Branco e o marco do oriente extremo brasileiro.

Tomando o hotel Tambaú como referência, rumamos em direção ao sul, ao Farol do Cabo Branco e a Ponta do Seixas, que é exatamente o ponto mais ao extremo do oriente brasileiro. Pelo caminho, passa-se pelo bairro dos poucos novos e velhos muitos ricos, chamado de altiplano. Os prédios buscam encostar no céu. A guia nos contava que ali os negócios são feitos no cash, à vista. Nada porém é feito fora dos padrões da normalidade brasileira.
Espaço cultural. Cultura, arte e ciência.

Logo a seguir passa-se por um Espaço Cultural, um complexo composto de estação ciência, cultura e artes, desenhado pelo gênio da mente e mão de Oscar Niemeyer. A elevação do mar faz com que o mesmo avance e as suas águas se agitarem na busca por novos espaços. A situação preocupa.Nota-se a presenças de artistas e de obras por toda a parte.
 
Ali fizemos a nossa primeira parada, quero dizer, o ônibus, Nós continuamos a pé, em busca do Farol e do ponto extremo. Na subida um belo parque, onde se vende de tudo, em meio a um belo bosque e estátuas de artistas populares. Ali estão, já repetindo, o Farol do Cabo Branco e o marco do ponto que indica o extremo oriente brasileiro. Um solo de concreções lateríticas está simplesmente ruindo. Vejam bem concreções lateríticas. Eu anotei.
Ponta do Seixas. O ponto extremo, onde o sol nasce por primeiro.

A partir daí, retrocedemos até 1585, ano dos primórdios da cidade. O seu começo não se deu na orla marítima protegida por belas falésias, mas pela entrada dos rios. Do rio Paraíba e pelo seu afluente, o Sanhauá. Às margens deste, tudo começou. Apenas, bem mais tarde, já no século XX, houve a expansão para a costa litorânea. Ali se situa a parte baixa, a região comercial da cidade. Ali fizemos outra parada para visitar o primeiro hotel de luxo da cidade e os seus arredores. Trata-se do hotel Globo, onde se hospedaram ilustres personalidades. Apesar de ser de luxo, os banheiros eram coletivos e se situavam numa área externa. Ali está também a igreja São Frei Pedro Gonçalves.
O Hotel Globo e a igreja de São Frei Pedro Gonçalves. Parte baixa da cidade.

Embarcamos novamente e fomos para a parte alta da cidade, onde se situavam os poderes, com destaque para o grande poder que emanava das igrejas. A parte alta tem o formato de uma cruz. Aos pés desta cruz estavam os padres jesuítas. O seu colégio e instalações são hoje a sede do poder executivo e da Faculdade de Direito. Ali também estão os palácios dos outros poderes, tudo em torno da Praça João Pessoa, o nome mais consagrado no estado e que deu o nome definitivo para a cidade, que começou Nossa Senhora das Neves, depois com um Filipeia anteposto à Nossa Senhora, mais tarde ainda, Frederica e Parahiba para, definitivamente, ser João Pessoa. Na cabeça da cruz está o Centro Cultural São Francisco e nos braços, o convento dos beneditinos e dos carmelitas, este ladeado pelo Palácio Episcopal. Próximo está a Catedral Metropolitana de Nossa Senhora das Neves.
Palácio do Governo e Faculdade de Direito e o Teatro Santa Roza.

No Centro Cultural São Francisco, mais uma parada e visita guiada, sendo o guia do próprio centro. Um mergulho no barroco, mas um barroco brasileiro, com direito a abacaxis e cajus. Seguramente o maior monumento da cidade, patrimônio histórico cultural nacional. Em frente está a sede da Academia Paraibana de Letras, com homenagem aos seus grandes representantes: José Lins do Rego, Ariano Suassuana, Ciro dos Anjos, entre outros.
O Centro cultural São Francisco.

Depois de um almoço num restaurante comum, não de comida regional, paramos no ponto definitivo do dia. No Mercado de artesanato.

No dia seguinte, de novo com O Luck Receptivo, um passeio pela orla sul. Três paradas. Na praia do Coqueirinho, Tambaba e Praia Bela. Elas se destacam pela beleza natural, com grande destaque para Tambaba, onde se situa a primeira praia naturista do Brasil. Em Praia Bela, deparei com a maior lagosta que já vi ser servida e, por incrível que pareça, também a mais barata. Com os acompanhamentos, a R$ 80,00. Um dia de muita beleza.
Praia do Coqueirinho e Tambaba.

O passeio para ver o por do sol, na praia do Jacaré, teve começo as 14h00 horas. Estranhei. Mas logo compreendi. É uma questão comercial. No pacato se vende um sub pacote de um passeio de catamarã, pelo rio Paraíba, que navega até a chegada do por do sol. Vejam a descrição desta atração, num informe turístico local. "Todos os dias, ao por do sol e sobre uma canoa que flutua nas águas do rio Paraíba, o saxofonista Jurandy do Sax homenageia o crepúsculo tocando o 'Bolero' de Ravel. O espetáculo acontece há mais de 20 anos, a partir das 17h, na praia fluvial do Jacaré, na cidade portuária de Cabedelo, a 18 quilômetros da capital. O local possui bares e restaurantes à beira do rio, além de um centro de artesanato". Jurandy figura no Guinness book.
Jurandy e o bolero de Ravel, violino/sacks e Ave Marias, ao por do sol, na Praia do Jacaré.


João Pessoa tem algo em torno de 800.000 habitantes e muito se orgulha de sua preservação ambiental e bem estar. Destaque ainda para o Parque Sólon de Lucena, o popular e belo Parque da Lagoa, um dos cartões postais da cidade. A cidade merece a sua visita.