O NESEF (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Ensino da Filosofia), ligado à Universidade Federal do Paraná, lançou neste final de setembro de 2018, mais um documento manifesto em favor do ensino e da educação pública paranaense e brasileira. O manifesto contém denúncias e anúncios. Denúncia das mazelas da política educacional posta em prática pelos governos federal e estadual e o anúncio é - muito mais - uma proposta de luta por aquilo que historicamente são os componentes de uma educação pública a serviço da humanização e da cidadania. Tenho enorme satisfação em ser um pequeno meio para a sua divulgação. O documento/manifesto contém também uma bela análise de conjuntura, uma contextualização das nefastas políticas educacionais que estão sendo postas em prática. Um documento para alicerçar os debates pedagógicos nas escolas.
Foto de uma das atividades desenvolvidas pelo NESEF. A filosofia e a sociologia no currículo do ensino médio.
A POLÍTICA PÚBLICA ENTRE OS MUROS DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
O NESEF-UFPR, atuante há duas décadas na defesa da educação pública,
gratuita, laica, socialmente referenciada e norteada pelo ideal da
emancipação social, política e cultural dos sujeitos, vem a público: (a)
demarcar seu posicionamento quanto aos recentes ataques desferidos no
ensino de Ciências Humanas nas escolas de Educação Básica e Superior do
Brasil, especialmente do Paraná; (b) repudiar a política de precarização
do ensino expressa na Lei 13.415/2017 e na versão preliminar do texto
da BNCC do Ensino Médio (2018), e rechaçar a prática do denuncismo
contra professores/as que fazem uso da razão pública para se
manifestarem em relação à conjuntura político-educacional de nosso país.
Há, no Paraná, 10.270 trabalhadores da área da educação
desempregados, pois nos últimos dois anos 3.630 docentes se aposentaram e
6.640 professores temporários (PSS) viram os seus contratos virarem pó
na fogueira neoliberal de eliminação de direitos e postos de trabalho. O
governo do estado do Paraná – em nome do capital financeiro, através
das diversas figuras que hoje se apresentam como arautos em defesa da
educação –, saqueou a previdência dos professores; massacrou-os em praça
pública (massacre pelo qual, até o momento, ninguém foi
responsabilizado); estimula a perseguição e a denúncia de professores
por “doutrinação ideológica”; fomenta e fortalece práticas fascistas
como o Programa Escola sem Partido; reduziu nominalmente o salário de
professores contratados pelo PSS e a hora-atividade estabelecida por
lei; fechou mais de 2.000 turmas de Ensino Médio, remanejando alunos;
ameaçou, inclusive, fechar escolas; está sendo investigado, via processo
instaurado, por desvio de verbas destinadas a obras nas escolas
públicas.
Essa política educacional, praticada no estado do Paraná,
está em perfeita sintonia com os ditames do governo federal. A Lei
13.415/2017, que trata da reforma do Ensino Médio, a BNCC e todos os
documentos que o governo federal e seus parceiros vêm produzindo sobre a
educação se voltam para a federalização enganosa do Ensino Médio. Como
consequência desse nefasto processo, observa-se a desvalorização dos
conhecimentos, das metodologias, da formação, da carreira e da profissão
das professoras e dos professores. No plano econômico, o desmonte da
educação brasileira busca transformar a educação pública em um balcão de
negócios, liberando, desse modo, a verba destinada constitucionalmente à
educação pública para empresas privadas.
O MEC repassou, como
exemplo, 250 milhões de dólares para instituições financeiras e
institutos ligados a grandes organizações. Esse empréstimo, recebido do
Banco Mundial, será utilizado na ampliação de recursos tecnológicos em
escolas públicas e na formação de novos institutos para a implementação
da BNCC. Destarte, um governo que repassa mais de 1 bilhão de reais de
dinheiro público para empresas privadas não tem legitimidade para cortar
minguados 500 milhões de reais destinados para o desenvolvimento da
ciência e da tecnologia.
A reforma do Ensino Médio, ao propor manter
apenas a matemática e a língua portuguesa como disciplinas “essenciais”
na proposta da BNCC, faz uma avaliação falha e insuficiente do problema
da organização curricular. Dessa forma, não só a reforma do Ensino
Médio mas também a BNCC ignoram a importância das demais disciplinas
que, de igual forma, trabalham com o desenvolvimento da capacidade de
leitura, interpretação e cálculo (filosofia, sociologia, história,
geografia, artes, educação física, física e química). Ao ser apresentado
um currículo fragmentado, voltado unicamente aos interesses imediatos
do mercado de trabalho, descaracteriza-se a formação humana, crítica,
estética, ética e política. Desconsideram-se, assim, as contradições que
subjazem aos processos mais amplos do modelo social e econômico
vigente, o que fere diretamente os direitos de acesso das e dos jovens
estudantes à educação pública de qualidade e socialmente referendada.
A BNCC visa estabelecer, em grandes áreas de conhecimento, o
desenvolvimento de habilidades e competências, retirando,
simultaneamente, as especificidades dos conhecimentos científicos,
artísticos e filosóficos, essenciais para o processo integral de
formação humana. Objetiva-se, com isso, ministrar capacidades que,
segundo o relatório do Banco Mundial – que pautou até agora todas as
medidas de desmonte da educação, inclusive a redução salarial e o saque
previdenciário dos professores –, são economicamente valorizáveis,
transformando nossa juventude num objeto atrativo para o mercado de
trabalho.
Tudo isso sob a justificativa de transformar a educação
considerada maçante, que apenas transmite conteúdos recortados, rígidos e
estritos, numa educação atrativa e lúdica para os estudantes. Por meio
dessa educação “transversal” e “interdisciplinar”, que possibilita aos
alunos escolher o que desejam estudar, promove-se, com as habilidades e
competências da reforma do Ensino Médio e da BNCC, a destruição dos
recortes epistemológicos disciplinares. Equivalentemente, as
perspectivas epistemológicas e metodológicas, construídas empírica e
historicamente na constituição da nossa humanidade, serão substituídas
pela aglomeração de habilidades e competências em grandes áreas do
conhecimento, por recortes epistemológicos abstratos, arbitrários e
incoerentes. Esses recortes não projetam o desenvolvimento humano,
cognitivo e crítico das e dos estudantes, e sim promovem apenas o
necessário para formar uma massa amorfa e acéfala, que servirá de mão de
obra barata para o mercado de trabalho.
Por tudo isso, nós do NESEF
realizamos há anos inserções de debate e disputa em todo espaço
possível (grupos de estudo, encontros temáticos, sessões de
cineclubismo, produções acadêmicas, Olimpíadas Filosóficas, publicações
da Revista do NESEF e do jornal O Sísifo...). Essas inserções são formas
de defender a filosofia como disciplina, preservando o ensino das
humanidades e, por conseguinte, a formação cultural (Bildung) e
política; a fim de levar informações, pesquisas e análises críticas
sobre a BNCC e sobre a reforma do Ensino Médio para estudantes e
profissionais da educação, tanto básica quanto superior. Participamos
desses espaços criticamente, tencionando os debates, influenciando as
decisões e exigindo posicionamentos claros. Porque resistência não se
faz com luto. Resistência se faz com luta!
Todo esse pacote de
maldades do teto de gastos, da reforma do Ensino Médio, da BNCC, da
reformulação dos currículos, dos programas de iniciação à docência –
como a residência pedagógica e a atual proposta do PIBID – não passa de
uma orgia seletiva do capital financeiro. Visto esse infeliz panorama,
gostaríamos de saber das universidades públicas e, em especial, da UFPR
quais serão as ações práticas de enfrentamento a reforma do Ensino Médio
e a BNCC? Serão ações de luto? Ou ações de luta?
Não bastasse tudo
isso, os profissionais de educação das escolas públicas brasileiras de
Ensino Médio, sobretudo no estado do Paraná, vêm sofrendo com processos
administrativos por parte do Estado, frutos de uma onda de denuncismo
daqueles que não consideram a escola como espaço para a construção da
emancipação política e cultural dos sujeitos. Para estes, a escola é
vista como local de mera transmissão mecânica de conhecimentos e
instrução funcional. Nessa concepção, não há espaço para o exercício
crítico do pensamento e da razão pública dentro da escola.
A
repressão e as atrocidades praticadas pelas forças policiais do governo
paranaense contra as/os professoras/es e muitos estudantes no confronto
de 29 de abril de 2015, em frente do Palácio do Governo, marcaram o
início de uma onda de autoritarismo, arbitrariedade e denuncismo que
passou a fazer parte do cotidiano das nossas escolas. Lamentavelmente, a
figura do “capitão do mato” parece tomar conta dos estabelecimentos de
ensino, de forma que os olhos e a voz do governo se multiplicaram
através de colegas e de estudantes impulsionados, em especial, pelas
mesmas forças que motivaram a repressão em 2015 (e o golpe em 2016).
Mais de três mil profissionais da educação foram envolvidos em
sindicâncias e processos administrativos no estado do Paraná,
desencadeando muitas punições ainda em curso, a despeito das indicações
do Conselho do Magistério.
O denuncismo não só corroí os princípios
da democracia como a liberdade, legitimando o estado de exceção que se
localiza no limiar do fazer político e do direito público, pois é no
fato político que se encontra a sustentação necessária para a manutenção
do sistema. Quando existem denúncias sem fundamentos legais, ou ainda,
quando o denunciante é o próprio estudante ou colega de profissão, o
denuncismo fica travestido num ato de perseguição política. O que torna
ainda mais grave a atual conjuntura, porque a não aceitação do diferente
e da pluralidade de pensamento consiste, de igual modo, em não aceitar o
outro. Estende-se, assim, à ética, visto que o que se deseja é a
anulação das contradições, instaurando a desconfiança e posteriormente o
medo, na tentativa de silenciar a reflexão crítica e o pensamento, pois
sem essas duas bases serão formados sujeitos conformados e passivos,
colocando em risco o futuro da democracia.
Observa-se, diante
disso, uma parte significativa da comunidade escolar que parece estar
inclinando-se à tendência nefasta de se submeter ao poder e com ele à
autoridade, que traz em seu bojo a pretensão de alimentar o ódio contra
quem lhe é diferente, propagando uma discriminação social. O que subjaz o
denuncismo é o estabelecimento de um tipo autoritário que dissemina um
padrão comportamental apresentado de forma coerente e racional, mas que,
por seu turno, é irracional e nefasto à democracia.
Faz-se
necessário, considerando a atual conjuntura política brasileira – diante
dos ataques que as disciplinas das humanidades, especialmente a
filosofia e a sociologia, vêm sofrendo por causa de pesquisas infundadas
e de discursos neoliberais e fascistas –, lutar pela sua manutenção,
não só nas escolas como também nas ruas e nas praças públicas. É
imprescindível mantê-las no espaço público como exercício de
negatividade, para análise crítica da sociedade. Neste momento
histórico, resistir significa, sobretudo, contra-atacar!
“Não é a
consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu
ser social que lhe determina a consciência” (Marx).
Curitiba, 26 de setembro de 2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.