sexta-feira, 26 de outubro de 2018

O Deserto dos Tártaros. Dino Buzzati.

Não tenho uma imagem precisa de como este livro chegou a mim. Provavelmente ele veio através de uma conversa sobre o filme, de uma adaptação do livro para o cinema. Ao final do livro, tenho o apontamento de que terminei a sua leitura em 18.03.2006. Sublinhei muitas coisas. Ele me impactou profundamente. Estou falando do livro O Deserto dos Tártaros, do escritor italiano Dino Buzzati. Fiz agora a sua releitura. Mais extraordinário ainda.
Edição brasileira de 2005. Da Nova Fronteira.


Dino Buzzati nasceu na cidade italiana de Belluno em 1906 e morreu em Milão em 1972. Viveu em um ambiente cultural intenso. O livro foi escrito em 1940. Seu pai era professor universitário em Milão. Buzzati trabalhou no renomado Corriere della Sera por toda a sua vida. Esse - por toda a sua vida - pode nos dar uma interessante pista sobre o seu livro, sempre apontado como um dos melhores da literatura italiana. Parece antever o seu próprio futuro. Nele é retratada a vida de um jovem oficial - Giovanni Drogo - que parte para o forte Bastiani - para ali permanecer por uns quatro meses e depois continuar a sua carreira militar, em busca de glórias, de reconhecimento na carreira e orgulhoso de seus feitos. Nada disso, porém, acontece.

O forte Bastiani fica numa área de fronteira, numa região montanhosa e distante de qualquer vida urbana. Ele fora construído no tempo em que os tártaros ameaçavam a paz na região. Apenas o passado justificava a sua manutenção. Ali Drugo deveria construir, ou começar a sua carreira militar. Por se tratar de uma região distante, certamente, acumularia alguns pontos para futuras promoções. Ficaria por quatro meses. Então arrumaria um atestado e se transferiria. Os quatro meses se transformaram em quatro anos, em trinta anos, em toda uma existência.

O imaginário alimentava o seu futuro de glórias. Sonhava com batalhas, contra os terríveis tártaros, nas quais mostraria toda a sua bravura militar. Via os inimigos. Os seus colegas também os viam. Uma rigorosa vida militar, de disciplina e de hierarquia, se repetia no eterno tempo presente do cotidiano sem novidades. A inexistência de inimigos era mortal para os seus sonhos de glória. Mas eles virão e isso não tardará. E o tempo vai passando.

Em raros momentos ele tira alguma folga. Volta à sua cidade. Nada mais lhe fará sentido, nem mesmo as doces e descontraídas conversas com Maria lhe tocam os afetos e os sentimentos. Elas se tornam burocráticas, medidas e calculadas. Ele opta por seguir no forte. Lá tudo será rigorosamente igual, do jeito que já está acostumado. O rigor dos regulamentos provoca até a morte de um soldado amigo, por esquecimento de senha. A burocratização da vida.

Depois de trina anos os inimigos vem. Drogo já é major. O segundo, na hierarquia do forte. Está doente. Os reforços estão chegando. O comandante precisa do seu quarto e o aconselha a se recuperar com tratamento longe do forte. Como ele não quer partir, o comandante ordena. A carruagem o leva até uma hospedagem, onde ele, no momento em que as batalhas o cobririam de glórias, morrerá em absoluta solidão, em absoluta solidão. Sem nenhum reconhecimento. Vivera uma vida inútil.

Creio que todos notaram o ano da escrita do livro. 1940. Influência total da filosofia do existencialismo. Antes, os enroscos na vida enredada e sem saídas de Kafka (1883-1924). Dois anos antes, Sartre e o seu Náusea. E, mais uma vez, a data. 1940. A Segunda Guerra Mundial. O jornalista Buzzati fora cobrir a guerra na Etiópia.

A edição brasileira apareceu apenas em 1984, pela Nova Fronteira. O argumento para a sua edição foi o de que Antônio Cândido o lia e relia a cada ano. Vi este dado em algum lugar. No Brasil, também a apresentação do livro ficou famosa. Ela é do cineasta Ugo Giorgetti. Vejamos a sua parte final:

"Romance alegórico? Romance de humor negro? Romance surrealista? Romance da vida militar?
São várias as possibilidades. O próprio Buzzati fornece a pista. 'De 1933 a 1939 trabalhei no Corriere della Sera no período noturno. Era um trabalho monótono e aborrecido, e os meses passavam, e passavam os anos e eu me perguntava se seria sempre assim, se as esperanças, os sonhos, inevitáveis quando se é jovem, iriam se atrofiar  pouco a pouco, se a grande ocasião viria ou não'.

É isso. Não é sobre a vida militar que fala o livro, mas sobre a vida de todos nós.
Fala da vida como uma aposta na imobilidade. Se não fizermos nada além de aceitar as coisas como são, um dia algo virá para redimir nosso pobre cotidiano, algo notável e brilhante que a vida nos reserva mais para frente.

Embora escrito quase setenta anos atrás o livro parece endereçar-se diretamente ao século XXI e nos atinge profundamente. Ou não é exatamente isso que diz a publicidade, a televisão, enfim, o pensamento médio reinante: seja disciplinado e trabalhador. Não mude sua vida. trabalhe infatigavelmente que um dia algo maravilhoso vai lhe acontecer. Algo glorioso, que vai justificar sua existência, não uma batalha, claro, mas talvez uma linda mulher inatingível, uma esperada promoção, uma casa cercada de árvores, ou muito dinheiro. Só que isso sempre virá mais adiante. Até que um dia nos damos conta que fizemos a aposta errada".

Eu fiz inúmeras anotações ao longo da leitura. Quero registrar apenas uma. "Ano após ano, aprendi a querer cada vez menos", diz Ortiz, um dos personagens do livro. Página 174. O memorável livro está dividido em trinta pequenos capítulos, ao longo de 221 páginas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.