segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Como me tornei educador. Paulo Freire.

Tenho verdadeira obsessão pelo tema da formação. É enorme a minha curiosidade em saber como as pessoas se tornaram o que foram ou o que são. O que elas leram, que influências receberam, qual a influência das ideologias ao longo de seus anos de formação, onde estudaram e com quem conviveram.

Sempre  fui muito curioso com relação a Paulo Freire. Tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente e o privilégio de levá-lo a Umuarama, quando estive à frente do Núcleo Sindical da APP-Sindicato nesta cidade. Compartilhei também amizades com amigos muito próximos a Paulo Freire. Mas nenhum texto satisfez mais a minha curiosidade do que esta entrevista, concedida à revista italiana Terra Nuova, em seis de maio de 1989 e publicada no livro A Educação na Cidade. Como o livro se encontra esgotado, tomo a liberdade de copiar este pequeno trecho. Vejamos a pergunta que lhe foi formulada:
 A edição esgotada de Educação na Cidade.

Terra Nuova: Sua trajetória como educador - como surge - a época da ditadura, o exílio. Por que aceitou o convite para a Secretaria Municipal de Educação? (Paulo Freire foi Secretário de Educação da cidade de São Paulo, na gestão da prefeita Luíza Erundina entre os anos de 1989 e 1991. Dela se afastou para escrever os seus últimos livros).

Paulo Freire: Ninguém começa a ser educador numa certa terça feira às quatro horas da tarde. Ninguém nasce educador ou marcado para ser educador. A gente se faz educador, a gente se forma, como educador, permanentemente,  na prática e na reflexão sobre a prática.

É bem verdade que a gente tem, desde menino, certos gostos, certas preferências por coisas, ou formas de ser, ou de dizer, ou de fazer que, de vez em quando, ou quase sempre, coincidem com a natureza de certos quefazeres, como o educativo, por exemplo.

Por isso que, às vezes, em face de certos gostos, os mais velhos dizem de meninos ou de meninas que já nasceram médicos, educadoras ou artistas. Na verdade, porém, ninguém nasce feito.

Eu fui um menino cheio de certos anúncios pedagógicos, curiosidade, inquietação por saber, gosto de ouvir, vontade de falar, respeito à opinião do outro, disciplina, perseverança, reconhecimento de meus limites.

Minha carreira de educador começou exatamente na minha experiência de educando, quando, bem ou mal, aqueles gostos foram estimulados, atendidos ou recusados. Muito jovem ainda, e pouco tempo depois de haver entrado no curso ginasial, comecei a "ensinar" Língua Portuguesa. E foi ensinando os conteúdos gramaticais e sintáticos aos alunos que comecei a me preparar para entender que, como professor, se o meu papel não era, de um lado, propor aos alunos que refizessem toda a história do conhecimento do conteúdo de que eu lhes falava, não era, de outro, funcionar como puro perfilador do conteúdo que eu ensinava. O fundamental seria desafiar os alunos a perceber que aprender os conteúdos que lhes ensinava implicava que eles os apreendessem como objetos de conhecimentos. A questão que se colocava não era a de descrever o conceito dos conteúdos mas desvelá-los para que os alunos assumissem diante deles a curiosidade radical de quem busca e de quem quer conhecer. É bem verdade que, àquela época, a em quem este conhecimento do ato de ensinar, a que corresponde uma compreensão dinâmica e crítica do que é apreender, começava a se dar, não me era possível ainda, falar dele como falo agora.

Esta certeza gnosiológica, a de que apreender o objeto, o conteúdo, passa pela apreensão do objeto, pela assunção de sua razão de ser, me acompanha em todas as etapas de minha prática e de minha reflexão teórica sobre a prática. Na minha experiência de jovem professor, quase adolescente, de Português, no meu trabalho nos córregos e nos morros do Recife, no começo de minha juventude, como educador popular, na formulação dos princípios fundamentais do chamado Método Paulo Freire, designação de que não gosto, na minha atividade de professor universitário, no Brasil e fora do Brasil, e no esforço atual de formação permanente dos educadores da rede municipal de educação em que me engajo agora, à frente da Secretaria de Educação da cidade de São Paulo, ao lado de excelente equipe com que trabalho.

Para ser um pouco mais objetivo na resposta à sua pergunta em torno de minha trajetória de educador talvez pudesse fazer referência a momentos e pessoas que, direta ou indiretamente , me marcaram.

As dificuldades que vivi na infância, se não trágica, difícil e a forma como meus pais se comportaram na confrontação das dificuldades foram ambas - as dificuldades e a maneira como meus pais se moveram em face delas - importantes na minha formação como gente, a que se segue a minha formação como educador, sem nenhuma dicotomia entre elas. A morte de meu pai - quando eu tinha 13 anos, o trauma de sua ausência - a bondade de minha mãe, sua luta para que pudesse estudar. A figura de um excelente educador do Recife, Aluísio Araújo, pai de Ana Maria ou Nita, como costumo chamar minha segunda mulher e a quem devo o estudo gratuito em seu colégio, alguns professores como testemunho é lembrado hoje ainda por mim, a chegada à minha vida, quando recém começava meu curso jurídico na Faculdade de Direito do Recife, de Elza, extraordinária mulher e educadora, cuja falta quase me tirou do mundo para onde voltei trazido pelas mãos de outra não menos extraordinária mulher, Nita; dez anos de experiência político-pedagógica com trabalhadores de áreas urbanas e rurais de Pernambuco, meu trabalho acadêmico, leituras fundamentais, uma certa camaradagem com Cristo e com Marx, para espanto de certos cristãos e desconfiança de marxistas ingênuos. Tudo isso são sobretudo os ingredientes que permeiam, tudo isso tem que ver necessariamente com minha trajetória como educador. E a tudo isso, com importância não menos grande, se segue o impacto que me causaria a experiência rica, desafiante do exílio. Exílio que resultou da compreensão teórica da educação como ato político, da educação como processo de conhecimento, da educação democrática fundando-se no respeito ao educando, à sua linguagem, à sua identidade cultural de classe, da explicação teórica da defesa da educação que desoculta, que desvela, que desafia; exílio que resultou sobretudo da posta em prática de uma tal compreensão da educação. Foi a prática, obviamente, que assustou, nos anos 60, como assusta hoje, as classes dominantes autoritárias e perversas. Foi a posta em prática de uma educação assim que me levou à prisão, ao afastamento da universidade e, finalmente, aos quase 16 anos de exílio.

As oportunidades que tive de crescer, de aprender, de rever-me, no exílio, foram tais que, às vezes, Elza, com humor e sabedoria me dizia: "Tu devias telegrafar ao general que responde pela Presidência do Brasil agradecendo o ensejo que te deram de continuar apreendendo". Ela tinha razão.

Nos quase 16 anos de exílio estive fixado em três sítios. Santiago do Chile, Cambridge, Massachusetts e Genebra. Daí, como "andarilho do óbvio", corri mundo. Dei cursos, seminários, participei de conferências, de congressos, assessorei governos revolucionários na África, na América Central, no Caribe, assessorei movimentos de libertação, corri riscos, ganhei amizades, amei, fui amado, aprendi, cresci. E enquanto tudo isso fiz e tudo isso "sofri", no sentido de a mim incorporar o que fiz e o que vivi, jamais deixei de ter o Brasil como pré-ocupação. O Brasil nunca foi para mim uma saudade remota, amarga.

O Brasil de minha pré-ocupação era exatamente o Brasil submetido ao golpe militar, pitorescamente chamado de "revolução de 64" pelos seus executores. Era o Brasil silenciado, com seus intelectuais progressistas expulsos, com sua classe trabalhadora manietada com homens como Hélder Câmara, o profético arcebispo do Recife e Olinda, ameaçado e emudecido.

Todo tempo, porém, de exílio bem-vivido vira tempo de preparação para a volta. Assim, em junho de 1980 voltamos definitivamente para o Brasil, fixando-nos em São Paulo.

Num primeiro momento me dediquei ao que chamava  reaprender o Brasil. Revisitei o país todo. De norte a sul, falei sobretudo a jovens curiosos do que houve, do que fizéramos antes de 64. Sinto a obrigação de escrever ainda sobre isto. Não sei quando e se farei. Voltei à atividade docente. Tornei-me professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e na Universidade Estadual de Campinas. Escrevi, mas sobretudo falei muito nestes anos.

Há algo importante que fiz meses antes de voltar. Na Europa ainda me tornei membro-fundador do Partido dos Trabalhadores (PT), de cuja administração municipal em São Paulo sou hoje secretário de Educação. Era a primeira vez que me filiava a um partido, com ficha, nome, endereço. Tudo certo. Tudo legal. É que, pela primeira vez, na história política deste país, um partido nascia de baixo para cima. O Partido dos Trabalhadores nascia não recusando os chamados intelectuais por ser intelectuais, mas rejeitando os intelectuais elitistas e autoritários que se arvoram em donos da verdade da classe trabalhadora e da revolução. E, como jamais aceitei esse tipo de intelectual arrogante, me senti à vontade, desde o princípio, como militante modesto do PT.

E por que aceitei ser secretário de Educação da cidade de São Paulo?

Em primeiro lugar, porque sou secretário de uma administração do Partidos dos Trabalhadores e particularmente da Prefeita Luiza Erundina. Isto é, porque posso dizer, em programas de TV e aos jornais e rádios, que, na Secretaria de Educação, "cartão" e injunções políticas não se sobrepõem ao direito de ninguém. Em segundo lugar porque, se não tivesse aceito o convite honroso que fez Erundina, teria, por uma questão de coerência, de retirar todos os meus livros de impressão, deixar de escrever e silenciar até a morte. E este era um preço muito alto. Aceitar o convite é ser coerente com tudo o que disse e fiz, era o único caminho que eu tinha.

Aceitei, assim, a Secretaria e estou contente porque agi desta forma.
2018. 50 anos da Pedagogia do oprimido.


No mesmo livro encontramos uma entrevista dada a Carlos Alberto Torres, da UCLA. Nela, ele reitera esta questão de como se fez educador. Desta entrevista destaquei a sua curiosidade natural para o aprender, a sua necessidade de compreender a sua prática, fato que o levou à reflexão e da busca pela teoria e um encontro/reencontro com os trabalhadores rurais e urbanos na cidade de Recife. A partir das reflexões sobre este encontro é que surgiu a sua Pedagogia do Oprimido, que neste ano de 2018 completa 50 anos.

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