segunda-feira, 30 de junho de 2014

Circuito mineiro. 3. Outras atrações turísticas. São João Del Rei.

No post anterior eu falei das muitas igrejas de São João Del Rei. Com isso eu quero dizer que o turismo em São João Del Rei está quase todo ele relacionado com a religião e a religiosidade de seu povo. Também já falamos um pouco do histórico da cidade, bem como de suas riquezas. Hoje eu vou falar de outras atrações, mas muitas delas ainda continuam no campo da religião. São muito famosos os Passos da Paixão. Eles são oratórios, semelhantes aos pórticos das igrejas coloniais, entre as fachadas dos casarios. Só abrem na quaresma e na semana santa. Ali são feitas procissões e vias sacras, com muitos cantos e muitas orações. São cinco os Passos da Paixão: O da rua da Prata, o do Largo do Rosário, o do Largo da Cruz, o da Rua Direita e o do Largo da Câmara.
 Um dos Passos da Paixão. São famosas as procissões e vias sacras ali realizadas durante o período da quaresma.

Ainda no campo religioso existe o Museu de Arte Sacra, o Memorial Cardeal Dom Lucas Moreira Neves, filho ilustre da cidade, mas enterrado em Salvador, o cemitério Nossa Senhora do Carmo, com o seu célebre portão de ferro fundido, que data de 1836. Existe ainda o Cruzeiro das Mercês, onde são celebradas grandiosas missas campais. Existe ainda uma estátua do Cristo Redentor.
D. Lucas Moreira Neves. Um filho ilustre da terra, da família dos Neves. Chegou a Cardeal.

Certamente a família Neves é a família mais famosa do lugar. Tancredo Neves é o personagem mais ilustre, da sua história recente. O mais famoso mesmo é Tiradentes, mas com este ninguém compete. Se tivéssemos um Panteon Nacional, Tiradentes seria o seu personagem número um. Tancredo tem sepultura, junto com Risoleta, no cemitério da igreja de São Francisco de Assis, tem o Solar da família Neves, nas proximidades da igreja de Nossa Senhora do Rosário e tem o Memorial Tancredo Neves. Como tenho admiração pela sua história vou dedicar um post a Tancredo e a este memorial. Do seu sobrinho eu não quero falar. Não aprecio os políticos neoliberais.
Sentado com Tancredo Neves, em frente ao memorial a ele dedicado.

Entre o casario se destaca o Solar da Baronesa de Itaverava, o maior da cidade, que hoje abriga o Centro Cultural da Universidade Federal de São João Del Rei. Esta mesma universidade também tem um campus junto à igreja de São Francisco de Assis. Ali, bem pertinho, também está a casa de Bárbara Eliodora. Meu Deus do céu, eu fiz uma confusão com esta mulher, que eu tenho até vergonha de dizer com quem a confundi. Para que esta confusão não se repita eu dou alguma referência desta grande mulher. Ela nasceu em 1759, foi poetisa, participou ativamente da Inconfidência mineira e foi casada com José de Alvarenga Peixoto, o ouvidor da Comarca do rio das Mortes e deportado para a África, pela Coroa portuguesa. A casa mais antiga da cidade também é atração. Ali funciona hoje o Instituto Histórico e Geográfico. Como é bom isso. Órgãos governamentais fazendo a preservação histórica e da memória.
O Solar da Baronesa de Itaverava, o maior de todos em São João Del Rei.

O Teatro Municipal de São João Del Rei data de 1893. Foi totalmente reformado e reinaugurado em 2003 e mantém ativa programação voltada ao próprio teatro, como também para a música. É considerado um dos mais belos teatros do interior do Brasil.  Outra atração é a estação ferroviária e o seu museu, ao lado. A ferrovia foi inaugurada em 1881, contando com a presença do imperador, D. Pedro II. O museu preserva a memória ferroviária. O trem ainda funciona, de sexta feira a domingo, com finalidades exclusivamente turísticas, fazendo passeios entre São João Del Rei e a vizinha Tiradentes. O museu abre diariamente.
O Teatro Municipal da Cidade. Está voltado ao teatro e a música.

Como já falei em outro post, a cidade é dividida pelo Córrego Lenheiros, afluente do rio das Mortes. O córrego é canalizado e divide a cidade ao meio. Ele tem duas pontes famosas, a Ponte do Rosário e a Ponte da cadeia. Ao seu longo também existe um coreto. outra atração é também o Museu Regional de São João Del Rei, sobre o qual também falarei mais. Ele abre diariamente.
A cachaça Alferes de São João Del Rei e a Jacuba e a Século XVIII de Coronel Xavier Chaves.

Também o mercado municipal merece uma visita. Ele está bem localizado, nos fundos e bem próximo à igreja de Nossa Senhora do Carmo. Não tem muitos produtos regionais, o que eu gosto de ver muito, mas tem as cachaças produzidas, ou na cidade ou nas cidades próximas. São João Del Rei produz a cachaça Alferes e o município vizinho de Coronel Xavier Chaves produz a cachaça Jacuba, bem como uma das mais famosas do Brasil, que é a Século XVIII. Esta é produzida no Engenho Boa Vista, onde também é produzida a cachaça Santo Grau. Também vale muito a pena visitar as lojas que comercializam produtos em estanho, a grande riqueza mineral que sobrou para a cidade.


sexta-feira, 27 de junho de 2014

O Brasil tem um Plano Nacional de Educação. 2014-2024.

Ontem, 25 de junho de 2014, foi mais uma grande data para a educação brasileira. A presidente Dilma Rousseff sancionou o Plano Nacional de Educação, aprovado pelo Congresso Nacional, sem nenhum veto. O Plano tem como marca principal o investimento de 10% do PIB em educação, até o final de sua vigência, isto é, em 2024, uma vez que ele terá validade para os próximos dez anos. Ele compõem-se de dez diretrizes, 20 metas e 253 estratégias. O relator do projeto, na Câmara dos Deputados, foi Ângelo Vanhoni, que ouviu mais de cem entidades e promoveu mais de 60 audiências públicas.
O deputado Ângelo Vanhoni (PT- PR.) foi o relator do Plano, na Câmara dos Deputados. Teve muitos méritos em sua aprovação.

A fixação de um Plano é uma determinação do artigo 214 da Constituição de 1988, que assim reza: "A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades, por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a:
I - erradicação do analfabetismo;
II - universalização do atendimento escolar;
III - melhoria da qualidade do ensino;
IV - formação para o trabalho;
V - promoção humanística, científica e tecnológica do país;
VI - estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.

O primeiro Plano Nacional de Educação, aprovado no governo Fernando Henrique Cardoso, com vigência entre 2000 e 2010, foi letra morta. O Congresso Nacional chegou à meta de gastar o equivalente a 7% do PIB em educação, mas sob a ótica neoliberal, de que o Estado não deve nada a ninguém e que a responsabilidade da educação pertence prioritariamente ao indivíduo e à sua família, vetou os 7%, bem como todos os ítens que envolviam dinheiro, tido como custo e não como investimento. FHC simplesmente seguia as orientações que tinham origem no FMI e no Banco Mundial. A finalidade da educação se resumia em aliviar à pobreza.

A possibilidade de termos um Plano Nacional de Educação ocorreu com a Emenda Constitucional nº 59, que pôs fim à desvinculação dos recursos constitucionais direcionados para a educação e que estendeu a universalização do ensino básico, público e gratuito, entre 4 e 17 anos. O Plano teve longa discussão, tanto na Câmara, quanto no Senado, perdendo-se assim um tempo muito precioso. Mas foi finalmente aprovado em noite memorável, no dia 28 de maio. Não vou entrar hoje em grandes debates. Farei apenas uma síntese de suas diretrizes e de suas 20 metas, pois, aí está o seu essencial. vejamos então as suas dez 10 diretrizes:

1. Erradicação do analfabetismo;
2. Universalização do atendimento escolar;
3. Superação das desigualdades educacionais;
4. Melhoria da qualidade do ensino;
5. Formação para o trabalho;
6. Promoção da sustentabilidade sócio-ambiental; 
7. Promoção humanística, científica e tecnológica do país;
8. Recursos Públicos para a educação. 10% do PIB.
9.Valorização dos profissionais da educação;
10. Equidade, respeito à diversidade e gestão democrática da educação.

O ítem nº 10 deu muita polêmica com a questão do respeito à diversidade, onde entram os problemas de gênero, raça e orientação sexual. Vou tentar fazer uma síntese das 20 metas, ou ao menos indicar o campo a que se referem. Vejamos:
Os sonhos de uma revolução pela educação. Muitos consideram uma loucura aplicar 10% do PIB em educação.

1.Educação infantil de 0 a 3 anos. 50% em cinco anos e universalizar ao final do plano. De 4 e 5 anos, universalizar ao final de cinco anos;
2. Universalizar o ensino fundamental de 9 anos - dos 6 aos 14 anos;
3. Universalizar o ensino médio, dos 15 aos 17 anos, ao final dos 5 primeiros anos de vigência;
4. Educação Especial: Promover a sua universalização, na idade entre 4 e 17 anos;
5. Ao final do 3º ano do Ensino Fundamental, concluir a alfabetização de todas as crianças;
6. Educação em tempo integral - em no mínimo 50% na educação básica;
7. Definir as metas para o IDEB, buscando melhoria gradativa;
8. Educação de Jovens e Adultos. Combater a desigualdade. !8 a 24 anos.
9. Analfabetismo absoluto e funcional. Em cinco anos atingir a taxa de 93,5% de alfabetização e ao final do plano a sua erradicação total. Erradicar em 50%  o analfabetismo funcional.
10. Educação de jovens e Adultos: Articular 25% das matrículas com o ensino profissional;
11. Triplicar a oferta de ensino profissional;
12. Elevação da inclusão escolar entre 18 e 24 anos em 50%, dos quais 40% no ensino público;
13. Ensino Superior: Exigir titulação de no mínimo 75% de seu quadro docente;
14. Ensino Superior: Atingir a meta de formar 60.000 mestres e 25.000 doutores a cada ano;
15. Todos os professores da educação básica deverão ter formação superior específica;
16. 50% dos professores do ensino básico com formação em nível de pós-graduação;
17. Elevação salarial. No mínimo, no mesmo nível de outras profissões de nível superior;
18. Plano de Carreira com Piso Salarial Nacional para todos os professores, após dois anos de vigência do plano;
19. Gestão democrática - com critérios técnicos;
20. Financiamento da Educação, com o investimento equivalente a 10% do PIB, até o final da vigência do Plano. Os setores mais progressistas queriam estes 10%, exclusivamente para a educação pública, mas acabou prevalecendo, para a educação. Assim os programas do PROUNI, do PRONATEC,  e do Ciência sem Fronteira também acabaram contemplados.

O próximo passo deverá ser a elaboração de um Sistema Nacional de Educação, especialmente, para que estas políticas sejam efetivamente programas de Estado e não de governo. Duas outras questões também são importantes. A forte organização da categoria para o acompanhamento de sua implementação e a eleição de um governo que efetivamente tenha vontade política para implementá-lo. Isto necessita de uma concepção de Estado que vislumbre o acesso à cidadania como um direito e que a sua concretização se dê através de políticas públicas. Não adianta votar em concepções de Estado, em que ele se omita, por completo, das funções públicas como acesso à cidadania. Isto nós já tivemos e conhecemos bem os seus efeitos.


quinta-feira, 26 de junho de 2014

Circuito mineiro. 2. As igrejas de São João Del Rei.

Visitei as igrejas de São João Del Rei, no mínimo, algumas três, outras quatro vezes. Numa primeira incursão, de forma espontânea, depois, junto com o Alemão, o meu guia e, ainda, para rever detalhes e fazer outras observações. Antes de falar das igrejas, darei alguns dados gerais da cidade. A sua origem histórica está ligada aos bandeirantes, que ali chegaram, ainda no final do século XVII, estabelecendo um porto de passagem, o Porto Real da Passagem. Depois, paulistas de Taubaté ali se estabeleceram a partir de 1701, para explorar o ouro, ali existente em abundância. A chegada dos portugueses não tardou, provocando um primeiro grande conflito entre os paulistas e os portugueses, na famosa Guerra dos Emboabas, vencida pelos colonizadores portugueses. Ali também estão plantados os primeiros sonhos da emancipação, com Tiradentes e os seus inconfidentes. Vejam a presença da história oficial, da história do vencedor.

O marco da fundação é o ano de 1705, com a fundação do Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar. A elevação à vila se deu em 1713 e em 1838 foi elevada à condição de cidade.  Conta hoje, com 88. 405 habitantes. A cidade é essencialmente turística, sendo que igrejas, ladeiras, casarios históricos, museus e os Passos da Paixão são as grandes atrações. A cada feriado religioso a cidade recebe milhares de visitantes. A cidade também possui uma universidade federal, criada em 2002 e que está vivendo uma grande expansão. A sua sede administrativa se localiza no mais famoso casarão da cidade, o Solar da Baronesa de Ituverava. A sua riqueza se complementa com a agricultura e o comércio e a sua riqueza histórica da exploração mineral ainda se faz presente. O destaque não é mais o ouro, mas o estanho.
A bela igreja de São Francisco de Assis, certamente a mais famosa da cidade. Em frente tem enormes palmeiras. Em seu cemitério, nos fundos está enterrado Tancredo Neves.

As igrejas históricas, datadas do século XVIII, são a sua grande riqueza. Em várias delas está presente a arte do Aleijadinho. Quatro de suas igrejas estão muito próximas uma da outra. Mas certamente a mais famosa, a de São Francisco, fica do outro lado do córrego Lenheiros, que divide a cidade. Sua construção data de 1749. Foi erguida pela Ordem Terceira de São Francisco. A organização em ordens religiosas era forma encontrada para se obter os recursos necessários para a construção. A igreja de São Francisco possui um altar central, seis laterais e os púlpitos para a pregação. O teto da igreja tem a forma do casco de um navio. Também é famosa pela presença de um lustre de cristal Bacarat, do qual existe apenas mais um outro, no museu do Louvre. Em toda a igreja é forte a presença do Aleijadinho. Conta-se até de um cano que ele recebeu e a sua revolta com o fato estaria cravada no frontispício da igreja, como procurarei mostrar numa foto.
Duas gravações na parte frontal da igreja de São Francisco. 1774, o ano do término da igreja e um J, que simbolizaria Judas e um $, simbolizando dinheiro. Não teriam pago o trabalho do Aleijadinho.

Outra igreja famosa é a catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar. Foi construída em 1721, em substituição à capela do Morro da Forca, incendiada por ocasião da guerra dos Emboabas. A irmandade do santíssimo Sacramento foi a responsável por sua construção. O seu interior é barroco e a sua parte externa já obedece ao estilo neoclássico. Tem, além do altar mor, seis altares laterais. No altar mor está o Pai Eterno, a Pomba do Espírito Santo e uma imagem da padroeira. Tem duas pinturas essencialmente famosas, vindas de Portugal, em 1732, representando a Última Ceia e Jesus em casa de Simão Cirineu.
A catedral basílica de Nossa Senhora do Pilar, a padroeira de São João Del Rei.

No final da rua direita está outra igreja maravilhosa, a de Nossa Senhora do Carmo, a igreja toda de branco. A construção foi iniciada em 1732 e concluída apenas em 1787. A sua construção ficou a cargo da irmandade de Nossa senhora do Carmo. Uma de sua torres teve que ser reconstruída, após ser destruída por um raio. No seu entorno estão os casarões históricos mais refinados da cidade. Foi nessa igreja que eu assisti a missa. Também é famoso o portão de ferro da entrada do cemitério desta igreja, que foi trazido da Inglaterra.
A igreja de Nossa Senhora do Carmo.

Uma das igrejas mais cheias de detalhes é a Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Ela foi construída quando São João Del Rei ainda era um arraial, em 1708. A atual começou em 1719, quando já havia sido constituída a irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Negros. Por ser uma igreja de Nossa Senhora ela tem dela três imagens com muita história: de Nossa Senhora do Rosário, de Lourdes e de Fátima. Como é uma irmandade de negros ela tem também duas estátuas de santos negros, a de São Benedito e de Santo Antônio de Catalagirona. É uma das igrejas mais ricas em pequenos detalhes.
A magnífica igreja de Nossa Senhora do Rosário, construída pela irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Dois santos negros. São Benedito e Santo Antônio de Catalagirona.

Depois que você sobe uma grande escadaria, lá no alto você encontra outra igreja fabulosa, a de Nossa Senhora das Mercês. Dela merece um destaque todo especial o campanário incorporado ao corpo da igreja e dando uma bela e diferente configuração. No altar mor existem dois santos, lateralmente colocados, São Pedro Nolasco e São Raimundo Nonato e a imagem central só poderia ser a de Nossa Senhora das Mercês, com seus braços abertos, distribuindo as suas mercês. Em suas escadarias celebra-se em suas escadarias, a descida da cruz, uma das grandes festas da cidade. Ela está situada num lugar bem alto, donde se tem uma bela vista panorâmica da cidade.
Depois de uma escadaria, no alto de uma colina, a igreja de Nossa Senhora das Mercês.

 Neste lado esquerdo do córrego Lenheiros ainda existem duas igrejas não tão famosas, melhor dizendo, duas capelas, a de Santo Antônio e a do Divino Espírito Santo.

No outro lado do córrego, além da igreja de São Francisco encontramos ainda outras duas, também não tão famosas. A de São Gonçalo Garcia e a capela da santa casa, esta em estilo gótico. Ainda existe, fora do perímetro central da cidade, a capela Senhor dos Montes e um Cristo Redentor, com mirante para a cidade. Como podem perceber, a cidade está totalmente voltada para a sua religiosidade. creio que o meu panorama sobre as igrejas esteja mais ou menos completo.

  


quarta-feira, 25 de junho de 2014

Circuito Mineiro. 1. São João Del Rei, Tiradentes e Coronel Xavier Chaves.

Há muito eu alimentava o sonho de conhecer todas as cidades históricas de Minas Gerais. Conhecia vagamente Ouro Preto e Mariana, mas a minha vontade de conhecer Diamantina, Tiradentes e São João Del Rei sempre foi muito grande. Esta minha vontade ganhou mais intensidade com a leitura de Darcy Ribeiro, O povo brasileiro - a formação e o sentido de Brasil, onde ele afirma que não existe, entre as cidades dos Estados Unidos, alguma que seja, ao menos comparável às cidades históricas brasileiras, como Salvador e Ouro Preto.
A igreja de São Francisco de Assis. Obras do Aleijadinho e os funerais de Tancredo Neves lhe deram muita fama. Em frente existem belíssimas palmeiras.

Como agora eu disponho de tempo livre, me pus na estrada. Passei primeiramente por São Paulo. Isso contarei em separado, mas logo segui o meu destino. Desembarco em São João Del Rei num final de tarde, com o entardecer bem antecipado. Seis horas da tarde, praticamente tudo escuro. Mal e mal me acomodei e já fiz a primeira incursão pela cidade, andando a esmo. Logo vi que a cidade é dividida por um rio, que depois vi ser um córrego, que tem história, muita história, e, igrejas..., nos dois lados do córrego.  Tive direito até a missa na igreja do Carmo. Depois fiquei sabendo que havia ainda mais missas. A religiosidade, a musicalidade e o bater dos sinos marcam a vida da cidade, que ainda continua com aspectos de povoado.

Um caldo e o descanso, pois os sonhos ficariam para o dia seguinte. Este começou cedo. No hotel, de nome histórico e geográfico, Lenheiros, me fizeram a indicação de um guia. Após uma rápida negociação, sem contrapropostas, o popular Alemão, já me explicava das igrejas, das ruas e alamedas e da história de São João Del Rei, de Tiradentes e, de bônus, de Coronel Xavier Chaves. A primeira observação do Alemão foi sobre o rio que divide a cidade. Ele está canalizado e, por assim estar meio comprimido, de vez em quando ele enfurece, recebendo um espaço mais alargado. O rio é o marco da cidade. De acordo com a direção de suas águas, na busca do famoso rio das Mortes, o Lenheiros nos indica que na sua margem esquerda está a parte mais antiga da cidade, enquanto que à sua direita está a mais nova, embora o antigo domine em ambas as margens.
Catedral de São João Del Rei, a igreja de Nossa Senhora do Pilar.

Caminhamos pelo lado mais antigo. Quatro igrejas dominam o cenário: A catedral basílica de Nossa Senhora do Pilar, a igreja de Nossa Senhora das Mercês, a igreja de Nossa Senhora do Carmo e a que não poderia faltar, a igreja de Nossa Senhora do Rosário, a preferido dos escravos negros. A mais generosa destas Nossas Senhoras deve ser a das Mercês, pois, de um local mais alto, está com os seus braços abertos, espalhando as mercês de sua bondade. As outras três, se situam na mesma rua, onde moravam os graúdos da cidade. Sobre as duplas calçadas desta rua, falarei em outro post, como também falarei, em particular, de cada uma destas igrejas. Nesta rua está o solar dos Neves, gente importante do lugar.

Do outro lado do rio está a igreja de São Francisco, talvez a mais famosa de todas, pela presença nela de obras do Aleijadinho e envolvimentos mais recentes, como os cerimoniais fúnebres de Tancredo Neves, que repousa junto com Risoleta, no cemitério nos fundos da igreja. Coisas da irmandade. Tancredo também tem um belo memorial, lembrando a sua trajetória histórica, em outro local da cidade. Ao redor da igreja de São Francisco se concentram as lojinhas e as informações turísticas, bem como, segundo informação do Alemão, os 30 guias turísticos da cidade.
Uma das mais ricas igrejas do Brasil. Ela tem 482 quilos de ouro. É a igreja de Santo Antônio, no estilo barroco, na cidade de Tiradentes.
Depois rumamos para Tiradentes. Esta pequena cidade, de apenas 7.000 habitantes, é só história e turismo. É a cidade das pousadas e dos fins de semana, repleta de turistas. Ela tem um rica moldura, a Serra de São José. A igreja de Santo Antônio, possivelmente seja uma das mais ricas igrejas do Brasil. A preservação está fortemente presente. Não se permitem fotografias. Os finais de semana também são animados pela presença do trem que liga a cidade com São João Del Rei. Tem também a presença de charretes para os tours e restaurantes com boa comida mineira. Quando propus ao Alemão uma foto junto a uma igreja ele me propôs tirá-la em outro local e me anunciou um bônus.
 O Engenho Boa Vista, onde se produz a cachaça Século XVIII. Segundo informações da Embratur é o engenho, em funcionamento, mais antigo do Brasil.

Aí andamos e, pelas conversas que tivemos, eu já tinha a certeza de qual seria o destino. A minha certeza se confirmou quando chegamos ao Engenho Boa Vista. Lá se produz a cachaça Século XVIII, e como diz o seu folheto publicitário, que "ao beber da cachaça Século XVIII, está se bebendo um pouco da história do Brasil". Este folheto termina com a associação a uma outra imagem: "É a história do Brasil que desce redondo". Assim se passou o primeiro dia. O meu segundo dia foi dedicado apenas a São João Del Rei.
A cachaça Século XVIII, produzida no Engenho Boa Vista. A cachaça é hoje produzida como era há 250 anos atrás. A de rótulo vermelho é envelhecida, produto guardado desde 2002.

Peguei um folheto turístico, refiz os caminhos do dia anterior e acrescentei novos, como o memorial Tancredo Neves e o Museu Regional de São João Del Rei. Só não visitei o que está fora do centro da cidade. Também adquiri algo a recordar a cidade, algo de sua riqueza típica. Não em ouro, a sua grande riqueza e o seu mote histórico, mas em estanho, que continua a sua grande riqueza dos dias de hoje. Nos próximos posts, estarei detalhando um pouco desta rica história do povo brasileiro, desta terra que nos deu o seu antepassado mais ilustre, o sonhador pioneiro de nossos ideais de liberdade, sonho que lhe ceifou a própria vida, o nosso heroi fundador, Tiradentes.






terça-feira, 17 de junho de 2014

Contos do nascer da terra. Mia Couto.

Dispondo de tempo livre, posso hoje transitar por todos os gêneros literários. Sem tempo livre, praticamente, só fazia leituras obrigatórias, leituras determinadas pelo exercício da atividade profissional. Confesso, que ao longo da minha vida, tive pouco contato com contos e, ainda menos, com a poesia. Tenho dificuldades com a sua leitura até hoje. Poesia mesmo, só em voz alta. Por isso mesmo, dei vez para os contos de Mia Couto. Os Contos do nascer da terra simplesmente me encantaram. 

Vejam só a apresentação deste livro, na sua contra capa. É uma espécie de apresentação do título: "Não é da luz do sol que carecemos. Milenarmente a grande estrela iluminou a terra e, afinal, nós pouco aprendemos a ver. O mundo necessita ser visto por outra luz: a luz do luar, essa claridade que cai com respeito e delicadeza. Só o luar revela o lado feminino dos seres. Só a lua revela intimidade da nossa morada terrestre. Necessitamos não do nascer do sol. Carecemos do nascer da terra". Embora o alerta de Platão de que a luz do sol ofusca, a humanidade foi cegada pelas luzes da racionalidade. Da racionalidade técnica e instrumental que nos conduziu a uma desumanização. Talvez é por tudo isso que eu  gosto tanto de músicas compostas em clave de lua.
Contos do nascer da terra, de Mia Couto é mais um trabalho de resenha que eu faço, na parceria com a Companhia das Letras.

Mia Couto diz preferir o conto, pois "num flash, pode estar ali tudo: a poesia, o romance condensado, a capacidade de surpreender e de construir o inesperado". Isto são os contos do nascer da terra. Se já considero difícil a leitura de contos, imagina então fazer a sua resenha. O livro consta de 35 contos e, ao que parece, quanto menores, mais bonitos eles são. Expressar beleza com poucas palavras é a essência de uma obra de arte. Busquei até a definição do que é um conto. O Aurélio sempre me ajuda. velhos hábitos adquiridos ao longo do tempo. Assim vi que um conto é uma "narrativa pouco extensa, concisa, e que contém unidade dramática, concentrando-se a ação num único ponto de interesse". satisfeito, mas não por inteiro.

Mia Couto é de Moçambique, aquele país de colonização portuguesa que dá para o Oceano Índico. Isso, obviamente influencia a sua literatura, e, de um modo muito positivo. Tem uma forma muito bela de expressão, sem esconder as dores deste povo, talvez porque as dores são uma das mais fortes manifestações do humano. Até anotei no meu caderno. Ele usa de uma linguagem metafórica, cheia de contraposições e um profundo olhar humano.

Também anotei algumas frases esparsas, que anoto sem explicações: "nada mais triste que caixão pequenino". - "A vida não tem metades. É sempre inteira". - "Estou a insistir, patrão. O senhor entrou na vida por caminho de mulher. Chame outra mulher para entrar de novo". - "Que o amor é como o mar: sendo infinito espera ainda em outra água se completar". - "Asfixiação boca a boca: isso é o beijo". - "Minha filha, não deixe o corpo lhe nascer antes do coração". E assim por diante. Mas se isso não basta, tem muito mais.

Tem um conto, o último vôo do tucano que, embora eu não goste de tucanos, gostei. Sempre ouvi dizer que os tucanos são extremamente predadores, mas neste conto eu aprendi com a pergunta que a mulher fez ao marido: "você conhece a maneira dos tucanos ninharem"? Ao responder que sim, veio a proposta, "Por que não fazemos igual como eles"? A explicação vem logo a seguir: "Imitavam a tucana que se depena para construir o ninho." Mas neste conto também tem uma das mais belas imagens que já vi, ao longo de toda a minha vida. A imagem de um amor que se foi, que está distante. Até já fiz um certo ensaio no uso desta imagem. "Você, marido (assim está no original - mas dá para substituir), sempre há-de voltar. Você tem doença da água: mesmo da nuvem sempre regressa".

Mas o encanto e a ternura crescem em dois contos dedicados para a filha: "A luavezinha" e "A menina sem palavra". Vejam só o começo de "A luavezinha": "Minha filha tem um adormecer custoso. Ninguém sabe os medos que o sono acorda nela. Cada noite sou chamado a pai e invento-lhe um embalo. Desse encargo me saio sempre mal. Já vou pontuando fim na história quando ela me pede mais: - E depois? E depois, pai"? Em "A menina sem palavra" aparece essa mesma ideia da história, de que "sua filha só podia ser salva por uma história! E, presto, lhe inventou uma. Companhia, presença e cuidado são resgatados numa cidade que "quanto mais urbana, menos humana".

O escritor nascido em Moçambique, Mia Couto. É detentor do maior prêmio da língua portuguesa, o prêmio Camões.

Deixo ainda a ficha do livro: COUTO, Mia. Contos do nascer da terra. São Paulo; Companhia das Letras. 2014. Uma observação. Os contos são mais antigos. Foram escritos para periódicos em 1996 e foram agrupados para o livro ao longo de 1997 e que agora chegam ao Brasil. Mas antes ainda uma definição de conto que me satisfez. É do próprio Mia Couto, quando ele fala de sua predileção pelo conto: "Num flash, pode estar ali tudo: a poesia, o romance condensado, a capacidade de surpreender e de construir o inesperado". Coisa de verdadeiro artista.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

A História de Tugater.

"Pai, é fácil! Diga a Tugater que para uma moça é proibido, é pecado: viajar, caçar, casar ou pescar". Esta é uma história que envolve a educação. Eu gosto muito do verbo formar e do substantivo formação e, as coisas começam a ficar complicadas quando você acrescenta alguns prefixos: de, con, in, re... Assim teríamos deformação, conformação, informação, reformar... Eu não falei que as coisas começariam a complicar.

Estes dias, preparando uma fala que teria bastante ressonância, procurei uma frase numa velha agenda minha. A encontrei na de 1995, uma bela agenda, do PT - 15 anos, trabalhada pelo Henfil. Encontrei outras coisas interessantes, sobre as quais falarei numa outra oportunidade. Hoje eu quero falar sobre a história de Tugater, que estava na agenda, com fonte e tudo. Naquele tempo a gente estudava interdisciplinaridade e, conforme indica a fonte desta história, lemos o livro de Regina Bochniak, Questionar o conhecimento. Digo, lemos, porque fazíamos isto num coletivo da APP-Sindicato, do qual eu era dirigente neste ano. Mas vamos à história:


"Num lugar e num tempo não muito distantes daqui, viviam, em uma fazenda de gado leiteiro, um senhor de idade avançada e seus cinco filhos. Quatro deles eram homens, e a moça, todos chamavam de Tugater, expressão holandesa que significa "irmã".
Conta-se que num belo dia, reuniram-se os quatro rapazes para conversar sobre seus planos de vida, quando o mais velho, pedindo a palavra, falou aos demais:

- Aprendi com meu pai como fazer oco o tronco de uma árvore, colocá-lo no leito de um rio, para que possa servir de transporte. Quero conhecer outros lugares, outros povos, outras gentes, por isso vou ter com o meu pai para dizer-lhe que pretendo deixar a fazenda para me tornar um grande viajante.
Diante do exposto, tomou-lhe a palavra o segundo dos irmãos, dizendo o seguinte:

- E eu aprendi com meu pai como escolher galho, fino e resistente, de árvore, para, com a corda encerada, transformá-lo em um arco-instrumento que pode, com firmeza, impulsionar uma flecha na direção de um animal que eu queira abater. Tenho muita habilidade, portanto, também pretendo falar com o pai para dizer-lhe que vou sair da fazenda a fim de tornar-me um grande caçador.
Chegada a vez do terceiro, ele explicou aos irmãos:

- Aprendi com meu pai que, quando o menino chega, como nós, à idade adulta, pode pensar em constituir sua própria família, casando-se. Conheci, na cidade, a loura Guiné, por quem me apaixonei profundamente. Quero com ela ter meus próprios filhos, motivo pelo qual, também, pretendo falar com meu pai; dele obter consentimento, sair da fazenda e construir meu próprio lar.
Finalmente, o mais moço, tomando a palavra, expôs em seguida:

- De minha parte, aprendi com meu pai como, em haste de bambu, prender uma linha resistente e, nesta, atar um anzol, para com este instrumento fisgar, no rio, os mais belos peixes. Gosto deste ofício e, como vocês, pretendo deixar a fazenda, à procura de rios mais piscosos, para tornar-me um grande pescador.
Diante do comum dos propósitos, combinaram então os irmãos, ir ter com o velho para falar-lhe.
Isto posto, isto feito, expostas ao pai as intenções, este entretanto objetou:

- nada tenho contra os vossos planos, senão o fato de, na minha idade, estar impossibilitado de substituir a todos, em seus afazeres, razão pela qual pergunto a meus filhos: se vocês partirem, quem cuidará da fazenda?

Surpreendidos com o impasse, voltaram a confabular os irmãos, no propósito de encontrar solução para o problema, o que não lhes pareceu de todo difícil.
Retornando ao pai, propuseram-lhe:
Pai, nós vamos embora, mas Tugater fica e cuida da fazenda para o senhor.
Isto posto, respondeu-lhes o velho:

- É possível... Mas quem poderá garantir que Tugater não venha, um dia, a ter comigo para dizer-me que, também, quer deixar a fazenda, com intenção de viajar, ou caçar, ou casar ou pescar?

O novo impasse fez com que voltassem a reunir-se os irmãos, porque não lhes era agradável abandonar seus propósitos. Depois de muito debater e discutir, encontraram alternativa, que em seguida foi levada ao pai.
Pai, é simples! Nada ensine a Tugater, pois assim nunca, como nós, fará planos de deixar a fazenda.

- O velho , após ouvi-los, meditou por instante e respondeu-lhes: É possível deixar de ensinar tudo o que ensinei a vocês. Mas quem poderá impedir que Tugater observe, um dia, um tronco podre boiando sobre o leito de um rio? Quem poderá impedir que, um dia, o tear de Tugater se curve e impulsione a agulha para a frente, como se fora uma lança? Quem poderá impedir que Tugater observe o ninho dos passarinhos na primavera? Quem poderá impedir de encontrar um pequenino peixe, preso no galho de uma árvore, à margem do rio?

Impasse mais grave, não foi o bastante para fazer os jovens desistir de seus sonhos.
Mais uma vez se reuniram em busca de solução para o problema agora mais sério. Foi necessária muita conversa, muita discussão, e muita argumentação, ao término da qual saíram ao encontro do velho, para finalmente dizer-lhe, convictos: Pai, é fácil! Diga a Tugater que para uma moça é proibido, é pecado: viajar, caçar, casar ou pescar.

Não antes de refletir muito, e por longo tempo, o velho dirigiu-se aos rapazes e por, sabiamente, saber não ter contra-argumento, deu a eles a permissão para partir.

E pelo que consta, até hoje Tugater vive na fazenda, com seu pai, encarregando-se de todo o trabalho". Até as páginas do livro estão anotadas: 109 a 111. E você? Sentiu a presença de concepções de educação e de mundo nesta história?


quarta-feira, 4 de junho de 2014

Sobre classe média, meritocracia e uma parábola.

Em texto recente, Marilena Chauí desanca a classe média brasileira. Lhe atribui três abominações: uma abominação política, porque ela é fascista, uma abominação ética, porque ela é violenta e uma abominação cognitiva, porque ela é ignorante. Posteriormente o professor Renato Santos de Souza, da Universidade Federal de Santa Maria disse estranhar esta afirmação. Sentia-se atingido, ao se enxergar como um membro dela e aproveitou ainda para fazer reflexões em torno de uma outra palavra, a meritocracia. Mas ao debruçar-se sobre a questão, ele chega à certa concordância com Chauí, e numa frase categórica ele relaciona e soma as duas categorias: a classe média e a meritocracia.
Na entrevista para a revista CULT, entre outros temas, Marilena Chauí fala da classe média brasileira.
"A minha resposta, então, ao enigma da classe média brasileira aqui colocado, começa a se desvelar: é que boa parte dela é reacionária porque é meritocrática; ou seja, a meritocracia está na base de sua ideologia conservadora". O professor continua então, fazendo uma análise do discurso desta classe média e a compara com a classe média europeia e americana. Você certamente já conhece este discurso, a não ser que você tenha um grupo muito selecionado de amigos. Vejamos:

"Assim boa parte da classe média é contra as cotas nas universidades, pois a etnia ou a condição social não são critérios de mérito; é contra o bolsa família, pois ganhar dinheiro sem trabalhar além de um demérito desestimula o esforço produtivo; quer mais prisões e penas mais duras porque meritocracia também significa o contrário, pagar caro pela falta de mérito; reclama do pagamento de impostos porque o dinheiro ganho com o próprio suor não pode ser apropriado por um governo que não produz, muito menos ser distribuído em serviços para quem não é produtivo e não gera impostos. É contra os políticos porque em uma sociedade racional, a técnica, e não a política, deveria ser a base de todas as decisões: então deveríamos ter bons gestores e não políticos. Tudo uma questão de mérito". Eu não falei, você já ouviu este discurso inúmeras vezes.
Se não tratar com desigualdade.........a desigualdade social permanece. Espaços públicos para a construção da cidadania.

Depois o professor estabelece algumas relações entre as classes médias brasileira, que em sua maioria deve esta condição ao caráter patrimonialista da sociedade brasileira e não à meritocracia, com a classe média europeia, que a é, por fruto de um Estado de bem-estar, responsável pela criação de espaços públicos, onde os direitos sociais tomam forma e as pessoas ascendem social e economicamente e a americana, que ideologicamente aceita e prega a meritocracia mas morre de medo de perder todos os seus méritos, e o seu rico patrimônio, em uma única semana, caso acometido por alguma doença.

Observe bem as figuras. Representam a entrada e a saída da escola. Um, alguns e as massas.

O texto do professor Renato ganha intensidade quando ele expõe as consequências sobre o total da sociedade, quando nela imperam os valores atribuídos à meritocracia. Num ato de ousadia farei uma pequena síntese, mas vou procurar o link deste texto e passá-lo. As consequências seriam: 
a) não considera o ser humano como um portador de direitos. O Estado nada deve a ninguém;
b) é fator gerador de individualismo e de intolerância;
c) provoca o esvaziamento dos espaços públicos. O Estado deve ser mínimo;
d) a ética do merecimento é substituída pela ética do desempenho. Assim Sarney, Merval Pereira e Paulo Coelho tiveram méritos para entrar na Academia Brasileira de letras, e não Mário Quintana e Érico Veríssimo;
e) são estabelecidas relações de poder econômico e político nas avaliações meritocráticas;
f) naturaliza, racionaliza e preconiza as desigualdades sociais;
g) substitui a racionalidade dos valores pela racionalidade técnica e instrumental dos resultados. Assim os jovens não aspiram ser Mário Quintana ou Érico Veríssimo, e se espelham em Eike Batista ou outros milhardários;
h) dilui a subjetividade e a complexidade humana num reducionismo de desempenhos e resultados.

O professor Renato conclui o seu texto de forma enfática: "Enfim, a meritocracia é um dos fundamentos de ordenamento social mais reacionários que existe, com potencial para produzir verdadeiros abismos sociais e humanos".

Segue o link:  http://jornalggn.com.br/fora-pauta/desvendando-a-espuma-o-enigma-da-classe-media-brasileira.
Um enigma. loucura ou prenúncio de mudança.
A propósito, recentemente escrevi uma pequena e singela parábola a respeito da meritocracia, Ei-la:

"Hoje de manhã eu fui implacável. Eu fui trabalhar na minha horta, na chácara em Campo Magro. Pés no chão e mãos na terra. No meu trabalho eu apliquei critérios economicistas e produtivistas. Embora a produção seja apenas para o meu consumo e o dos meus amigos. Apliquei os critérios da meritocracia. Comprei mudinhas e preparei os canteiros. As mudinhas mais fortes e saudáveis eu plantei nos lugares mais centrais do canteiro, as mais mirradinhas eu plantei nas beiradas e, confesso o meu ato de crueldade. As mais feinhas mesmo, eu descartei, eu joguei fora. 

Alguém de vocês teria coragem de aplicar este princípio para as crianças na escola. Pasmem. Num dos destaques no Plano Nacional de Educação a ser votado na segunda feira, consta o princípio neoliberal da meritocracia. Por ele as escolas que obtiverem melhores resultados nos exames de avaliação receberão mais incentivos e verbas. Em consequência as que não obtiverem o bom desempenho, serão punidas ao não receber o incentivo. Para entender a minha historinha substituam as mudinhas da minha horta, pelas crianças das nossas escolas De cada dez palavras que o candidato a presidente da República, AécioNeves fala, uma é a palavra meritocracia. Para tornar os desiguais iguais, é preciso tratar as pessoas como desiguais, mas privilegiando os que mais precisam, ou seja, inverter os critérios da meritocracia. A meritocracia necessariamente gera desigualdade. Você concorda com isso! Ou como conclui o professor em seu texto de que a meritocracia tem "potencial para gerar verdadeiros abismos sociais e humanos.


Nos próximos posts farei uma análise dos princípios gerais do liberalismo e do seu discurso, impregnado dos conceitos e valores da meritocracia.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Sobre sujeitar o sujeito. A história de Ramón Mercader, o assassino de Trostki.

Nos anos 1990 eu tive forte militância sindical. Cheguei à direção estadual da APP-Sindicato, na qualidade de secretário para os assuntos educacionais. Ali conheci as tendências, grupos que se unem em torno de algumas ideias e formam, para dizer o mínimo, coletivos bastante fechados e que dialogam (seria este o termo correto?) sempre com as mesmas pessoas e, agindo desta forma, idealizam até revoluções. Isto me incomodava muito. Ouvia falar muito de consciência de classe e que esta consciência levava à formação de sujeitos coletivos. Esta expressão, sujeitos coletivos, também sempre me intrigou bastante. Eu sempre procurava contrapor a questão de um sujeito com consciência da necessidade de ações coletivas. O sujeito tem que preservar sua autonomia.
Neste livro estão reunidos alguns textos de Adorno sobre educação.

Um dia li os textos educacionais de Adorno. Tabus acerca do magistério e Educação após Auschwitz foram os que mais me impressionaram. Estes textos compõem o livro Educação e Emancipação. Na leitura de educação após Auschwitz me deparei com algumas frases, das quais passarei a destacar algumas. Algo como "Mas aquilo que gera Auschwitz, os tipos característicos ao mundo de Auschwitz, constituem presumivelmente algo de novo. Por um lado, eles representam a identificação cega com o coletivo. Por outro, são talhados para manipular massas [...]. Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego dos coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da civilização". Uma página depois, ele se torna ainda mais explícito:

"Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa". A realidade em que eu vivia não tinha toda esta dimensão de tragédia, mas eu deixei a direção do sindicato e voltei para a vida acadêmica.
Neste livro está o diálogo entre Ramón Mercader e o seu mentor.

Agora terminei de ler Leonardo Padura, O homem que amava os cachorros. Um dos focos narrativos do autor é a apresentação do perfil de Ramón Mercader, que sob as ordens de Stalin, cumpriu uma humanitária missão. Liquidar fisicamente Trotski, que impedia a realização dos sonhos proletários do mundo. Já usei o subjetivo de Mercader, para explicitar a metabolização de sua doutrinação como pertencente a um coletivo. Mostrarei as conversas tidas entre Kotov e Mercader. Kotov era o representante de Stalin e era o responsável para a preparação da missão de Mercader. Não interferirei no texto de Padura.
O escritor cubano, Leonardo Padura. Autor do magnífico livro O homem que amava os cachorros.

[...] - "Se puder, me conte mais, só para saber...
- Quanto menos souber, melhor.
-É que ...algum dia você você vai me dizer o seu verdadeiro nome?
Tom sorriu, terminou de engolir uma das empanadas que lhes serviram como entrada e bebeu mais vodka, olhando fixamente para o jovem.
- O que é um nome, Jacques? Ou agora é Ramón... Aqueles cachorros de que você gosta tanto têm nome, mas e daí? Continuam a ser cachorros. Ontem fui Gregoriev, antes era Kotov, agora sou Tom  aqui e Roberts em Nova York. Sabe como me chamam em Lubianka?... Leonid Alexandrovitch. Escolhi este nome para que não soubessem o meu, porque iam se dar conta de que sou judeu, e os judeus não são muito queridos na Rússia... Sou o mesmo e sou diferente em cada momento. Sou todos e não sou nenhum, porque sou mais um, pequenininho, na luta por um sonho. Uma pessoa e um nome não são nada... Olha, tem uma coisa muito importante que me ensinaram assim que entrei na Tcheka: o homem é irrelevante, substituível. O indivíduo não é uma unidade excepcional, mas um conceito que se soma e forma a massa, esta sim real. Mas o homem enquanto indivíduo não é sagrado e, portanto, é prescindível. Por isso arremetemos contra todas as religiões, especialmente contra o cristianismo, que diz que essa tolice de o homem ter sido criado à semelhança de Deus. Isso nos permite ser ímpios, desfazer-nos da compaixão que gera a piedade: o pecado não existe. Sabe o que isso significa?... É melhor que nem você nem eu tenhamos nomes verdadeiros e que nos esqueçamos de que alguma vez tivemos um. Ivan, Fiodor, Leonid? É tudo a mesma merda, é nada. Nomina odiosa sunt. Importa o sonho, não o homem, e menos ainda o nome. Ninguém é importante, todos somos prescindíveis... E, se você chegar a tocar a glória revolucionária, fará isso sem ter um nome real. Talvez nunca mais o tenha. Mas será uma parte magnífica do maior sonho que a humanidade já teve - e, erguendo o copo de vodka, brindou: saúde para os inomináveis".

E, em nome do sonho e da humanidade o crime foi perpetrado. Mais... Só lendo o livro.Só adianto o final. Eles se encontram novamente e..., conversam, rememoram... outro dia eu falo de Foucault, dos sujeitos sujeitados.