Como considero
Dos delitos e das penas um dos mais importantes livros, não apenas do Direito, mas de toda a humanidade, resolvi apresentar o prefácio do autor, uma vez que nele, ele apresenta todo o seu espírito, sentido e significado. Para situar Beccaria, no tempo e no espaço, o apresentamos como nascido em Milão, em 1738 e morto na mesma cidade em 1794. Já o livro é de 1764. Pertence, portanto, ao movimento do iluminismo ou esclarecimento. Lançou o olhar da razão sobre a legislação penal, bem como sobre a aplicação das penas. Um enorme avanço na humanização. Como fiz a resenha do livro, apresento o link.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/11/dos-delitos-e-das-penas-cesare-beccaria.html
Vamos ao prefácio:
"Fragmentos da legislação de antigo povo conquistador, compilados por ordem de um príncipe que reinou, em Constantinopla, há doze séculos, combinados depois com os costumes dos lombardos e amortalhados em um volumoso calhamaço de comentários pouco inteligíveis, são o antigo acervo de opiniões que uma grande parte da Europa prestigiou com o nome de leis; e ainda hoje, o preconceito da rotina, tão nefasto quanto difundido, faz com que uma opinião de Carpozow (jurisconsulto alemão), uma velha prática preconizada por Claro (jurisconsulto piemontês), um suplício que Francisco (jurisconsulto italiano, célebre por sua crueldade) imaginou com bárbara complacência continuem sendo orientações friamente seguidas por esses homens, que deveriam tremer ao decidir da vida e da sorte de seus concidadãos.
Um dos livros mais influentes de todos os tempos.
É esse código sem forma, produto monstruoso de séculos mais bárbaros, que desejo examinar nesta obra. Ficarei limitado, contudo, ao sistema criminal, cujos abusos terei a ousadia de apontar aos encarregados de velar pela felicidade pública, sem me preocupar em impor ao meu estilo o encanto que faz a sedução dos leitores comuns.
Se me foi possível indagar com liberdade a verdade, se pude elevar-me acima das opiniões do vulgo, tal independência devo à indulgência e às luzes do governo sob o qual tenho a ventura de viver. Os grandes reis e príncipes que desejam a ventura dos homens, seus governados, mostram-se amigos da verdade quando esta lhes é indicada por um filósofo que, do fundo de seu retiro, demonstra uma resolução sem fanatismo e contenta-se em lutar com as armas da razão contra as empresas da violência e da intriga.
Ademais, quem examinar os abusos de que trataremos, verificará que eles constituem a sátira e a vergonha dos séculos passados, porém não do nosso século e de seus legisladores.
Se alguém desejar honrar-me criticando o meu livro, procure antes apreender bem a finalidade a que me propus. Muito ao contrário de pensar em diminuir a autoridade legítima, constatar-se-á que todos os meus esforços foram no sentido de engrandecê-la; e ela de fato se engrandecerá, quando a opinião pública puder mais do que a força, quando a indulgência e a humanidade puderem fazer que se perdoe aos príncipes o poder que têm.
Críticos houve, cujas intervenções não seriam honestas, que desfecharam ataques a esta obra, modificando-a. Devo interromper-me um momento, para reduzir ao silêncio a mentira azoinada, as iras do fanatismo, as calúnias soezes do ódio.
Os princípios de moral e de política que têm aceitação entre os homens derivam, quase sempre, de três fontes: a revelação, a lei natural e as convenções sociais. Entre a primeira e as duas últimas não se pode estabelecer comparação do ponto de vista dos seus fins principais; completam-se, contudo, ao tenderem igualmente a tornar os homens felizes na terra. Trazer à discussão as relações das convenções sociais não significa atacar as relações que podem ser encontradas entre a revelação e a lei natural.
Desde que esses preceitos divinos, ainda que imutáveis, de mil maneiras foram desnaturados nos espíritos corruptos, seja pela maldade humana, seja pelas falsas religiões, seja pelas ideias arbitrárias de virtude e de vício, parece que é necessário verificar (deixando de lado quaisquer considerações estranhas) os resultados das simples convenções humanas, quer tenham sido realmente realizadas essas convenções, quer se suponha que sejam vantajosas para todos. Todas as opiniões e os sistemas de moral devem obrigatoriamente reunir-se nesse ponto, e jamais seriam bastante enaltecidos os louváveis esforços feitos para reconduzir os mais obstinados e os mais incrédulos aos princípios que levam os homens a viver em sociedade.
Podem, portanto, distinguir-se três espécies de virtudes e de vícios, a fonte dos quais está do mesmo modo na religião, na lei natural e nas convenções políticas. Nunca essas três espécies devem estar em contradição entre si; não atingem, entretanto, os mesmos resultados e não obrigam aos mesmos deveres. A lei natural é menos exigente que a revelação, e as convenções na sociedade menos do que a lei natural. Desse modo, é de fundamental importância distinguir com cuidado os efeitos dessas convenções, isto é, dos pactos expressos ou tácitos que os homens fizeram entre eles, pois nisso é que deve residir o exercício legítimo da força, em tais relações entre homem e homem, que não requerem a missão especial do Ser Supremo.
Pode-se dizer, pois, com razão, que as ideias da virtude política variam. Seriam sempre límpidas e exatas as da virtude natural se as debilidades e as paixões humanas não ofuscassem a sua pureza. As ideias da virtude religiosa não mudam, são constantes, porque foram de imediato reveladas por Deus mesmo, que as mantém inalteráveis.
Pode, portanto, aquele que discorre sobre convenções sociais e seus resultados receber a acusação de que demonstra princípios em desacordo com a lei natural e a revelação, porque nada diz a esse propósito?... Se afirma que o estado beligerante precedeu a reunião dos homens em sociedade, deve-se compará-lo a Hobbes, que não supõe para o homem isolado nenhum dever, nenhuma obrigação natural?... Não se pode, ao contrário, considerar o que ele diz como um fato, que foi apenas a consequência da corrupção humana e da ausência de leis? Finalmente, não é errado criticar um autor que analisa os efeitos das convenções sociais porque não admite, de princípio, a própria existência dessas convenções?...
A justiça divina e a justiça natural são, por sua essência, constantes e imutáveis, pois as relações que existem entre dois objetos da mesma natureza não podem jamais mudar. Mas a justiça humana, ou, se se preferir, a justiça política, como não é senão a relação que se estabelece entre uma ação e o estado mutável da sociedade, pode igualmente variar, à proporção que essa ação se torne vantajosa ou imprescindível ao estado social. Só é possível determinar com exatidão a natureza dessa justiça examinando atentamente as relações complicadas das inconstantes combinações que governam os homens.
Se todos esses princípios, em sua essência diversos, chegam a se confundir, já não se pode raciocinar com clareza a propósito dos assuntos políticos.
É atribuição dos teólogos fixar os limites entre o justo e o injusto, de acordo com a maldade ou a bondade intrínsecas da ação. Ao publicista, cabe-lhe estabelecer esses limites em política, quer dizer, sob as relações do bem e do mal que a ação possa fazer à sociedade.
Essa última finalidade não pode provocar nenhum mal à outra, pois todos conhecem o quanto a virtude política está abaixo das virtudes imutáveis que fluem da Divindade.
Torno a dizer, portanto, que, se desejarem dar ao meu livro a honra de uma crítica, não principiem atribuindo-me precitos contrários à virtude ou à religião, porque esses preceitos não são os meus; em vez de me apontar como ímpio ou sedicioso, contentem-se em demonstrar que sou um mau lógico, ou ignorante em matéria política; não tremam a cada proposição em que faço a defesa dos interesses da humanidade; constatem a inutilidade de minhas máximas e os perigos que minha opinião pode ocasionar; façam que eu veja as vantagens das lições recebidas.
Dei um testemunho público de meus princípios religiosos e de minha submissão ao soberano, quando respondi às Notas e observações que foram publicadas contra minha obra. Devo guardar silêncio quanto aos escritores que de agora em diante só me opuserem as mesmas objeções. Contudo, aquele que fizer a sua crítica com a decência e o respeito que os homens honestos se devem entre si, e aquele que tiver esclarecimento suficiente para não me obrigar a demonstrar-lhe os princípios mais elementares, de qualquer natureza que sejam, encontrará em mim um homem menos apressado a fazer a defesa de suas opiniões particulares do que um tranquilo amigo da verdade, pronto a confessar seus erros".
Mostro ainda os dois últimos parágrafos da introdução: "Sentir-me-ia muito feliz se não tivesse outro mérito além do de ter sido o primeiro a apresentar, na Itália, com maior clareza, o que outras nações ousaram escrever e já começaram a por em prática.
Contudo, se, por sustentar os direitos do gênero humano e da verdade invencível, contribuí para salvar da morte atroz algumas das trêmulas vítimas da tirania ou da ignorância igualmente prejudicial, as bênçãos e as lágrimas de apenas um inocente reconduzido aos sentimentos da alegria e da ventura confortar-me-iam do desprezo do resto dos homens".