terça-feira, 29 de agosto de 2017

Lima Barreto - Triste visionário.

Em minha vida acadêmica sempre ouvi dizer que a grande referência em termos de biografia é a de Trotski, em três volumes, escrita por Isaac Deutscher. Efetivamente ela é extraordinária. Além do mais, o personagem armado, desarmado e banido também ajuda com a sua agitada e densa vida. Agora, com o lançamento de Lima Barreto - Triste visionário, de Lilia Moritz Schwarcz, creio que temos uma nova grande referência.
Em matéria de biografia, seguramente o livro do ano. Lima Barreto, para compreender o Brasil.

A biografia não tem os três volumes de Deutscher. É condensado em um só, mas de 645 páginas, 511 de texto e 134 de notas e com uma - quase necessidade de lupa. Quanto ao biografado, ele também colaborou com as desventuras, desencontros e as marcas de sua vida, devidamente registradas em sua obra. Os seus escritos são o seu retrato. Ele escreveu à clef, termo que aprendi com esta leitura. Este escrever à clef  foi também a maior crítica que o escritor recebeu quanto à sua obra. Lima Barreto teve vida breve. Nasceu em 1881 e morreu em 1922, ano do centenário da independência e da realização da semana de arte moderna.

O autor de Policarpo Quaresma foi testemunha de muitos fatos. Quando menino, seu pai o levou ao Paço para assistir a cerimônia da abolição, bem como, alguns dias depois, à missa comemorativa ao ato. Viveu sob o impacto de fatos históricos como a Proclamação da nada republicana República, da Revolta da Armada de 1893, de Canudos e de suas consequências, bem como os impactos mais distantes - da Primeira Guerra, dos Tratados de Paz e da Revolução comunista na Rússia em1917. Quanto a literatura, viveu um "entre". Entre os naturalistas e realistas e os modernos que chegavam, enquanto ele se despedia do mundo. 

Ele viveu a literatura de seu tempo e teve convivência diária com os literatos que retratou. Alguns cordialmente, outros criticamente e a outros ainda, procurou desmontar. Teve muitos desafetos. Os literatos da época pouco viviam da literatura. Os bem sucedidos eram embaixadores e os não tão bem nascidos, os de cor azeitonada, como ele descrevia a sua, tinham que se contentar com funções burocráticas menores. Ele mesmo era um amanuense, vivendo nas entranhas burocráticas do Ministério da Guerra, onde a sua enorme capacidade criativa era entravada. Até parece uma sina dos grandes escritores.

Por que um triste visionário? Como qualquer ser humano que minimamente compreende o seu estar no mundo, ele teve desejos de ascensão social e reconhecimento profissional. Mas a cor da pele era o impedimento. Esta pele azeitonada é presença constante em sua obra. Ele a sofreu. Em Isaías Caminha e Clara dos Anjos ela está mais presente. Estes personagens são o próprio Lima. Ele teve formação esmerada. A mãe era professora e o pai tipógrafo e contava com padrinho. Estava destinado a ser doutor e fez o mais difícil, que era chegar ao ensino superior. Ingressou na Escola Politécnica, no curso de engenharia, mas segundo ele, felizmente, não se formou. Comparando com Machado de Assis, a sua formação escolar foi muito superior. Machado foi mais autodidata.

Precocemente perdeu a mãe. O pai sempre foi tudo em sua vida. No aspecto positivo ele não mediu esforços em sua formação. Já negativamente, ele ficou sob seus cuidados em seu longo tempo de loucura necessitando sempre de cuidados especiais. O livro de Lilia tem 17 capítulos, introdução e uma quase conclusão. O livro além de biografia é também um ensaio sobre a sua obra. A introdução é muito simbólica: Criatura e criador. Apresento o título dos capítulos e depois faço algum destaque:

1. O casal Barreto: quando educação parece sinônimo de emancipação; 2. Vira mundo, o mundo virou: a doença de Amália (a mãe), a ascensão e a queda de João Henriques (o pai); 3. Vivendo nas colônias de Alienados da Ilha do Governador; 4. Experimentando a vida de estudante: o curso da politécnica; 5. Arrimo de família: como ser funcionário público na Primeira República; 6. Central do Brasil: uma linha simbólica que separa e une subúrbios e centro; 7. Floreal: uma revista "do contra"; 8. O jornalismo como ficção: Recordações do escrivão Isaías Caminha; 9. Política de e entre doutores; 10. Bebida, boemia e desânimo: a primeira internação; 11. Cartada forte e visionária: fazendo crônicas, contos e virando Triste fim de Policarpo Quaresma; 12. Limana: a biblioteca do Lima; 13. Um libertário anarquista: solidariedade é a palavra; 14. Literatura sem "toilette gramatical" ou "brindes de sobremesa": a segunda internação; 15. Clara dos Anjos e as cores de Lima; 16. Lima entre os modernos; 17. Triste fim de Lima Barreto.

Dos dados biográficos destacaria o esforço dos pais em sua formação escolar e um apadrinhamento político, mas acima de tudo, a questão da cor, de uma abolição nunca metabolizada. A abordagem da questão racial, seguramente é dos pontos mais brilhantes do livro. As teorias científicas do atraso e da impossibilidade de desenvolvimento do país como determinismo oriundo da raça negra, e pior, da miscigenação. Teorias mundiais e nacionais (Nina Rodrigues) nos teriam predestinado ao fracasso.  No que isso pode ter contribuído na psique do pai e da sua?

Quanto à literatura, o título da introdução é um belo resumo. A sua literatura é um reflexo, uma exteriorização de seus problemas e de suas angústias existenciais. Desejo de ascensão, recusa dos padrões estabelecidos, crítica aos bem sucedidos e, ao mesmo tempo, o desejo do sucesso (Ingresso na ABL) e acima de tudo, o reconhecimento de sua obra que em termos de venda, nunca ocorreu. No entanto, foi muito percebido pela crítica. Era um leitor assíduo dos clássicos franceses e russos. Eles frequentavam a sua biblioteca, uma biblioteca de quase oitocentos volumes. Era a Limana, a mana de Lima, na disjunção da palavra.

Em seu Diário Íntimo, Lima Barreto escreveu: "A capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori". Esta era a sua dor existencial, o seu impedimento. E este, ele procurou afogar na bebida. Ela já esteve presente na vida do pai e, em maior volume, na sua.  Bebia na mesma medida com que escrevia. Sofreu duas internações, que também viraram livro: Diário do hospício e O cemitério dos vivos. A bebida o levou a uma vida de dificuldades e a uma morte precoce e, de imediato, lhe mereceu mais juízos morais do que a sua obra. 

Lima Barreto hostilizou muita gente e isso gerou incompatibilidades e, de imediato, um relativo esquecimento, tanto dele, quanto de sua obra. Ao final dos anos 1940 despertou a atenção de Francisco de Assis Barbosa, que escreveu a sua primeira grande biografia (1952). Mas não foi só isso. Fez também a reedição de sua obra, com notáveis prefaciadores (1956), entre eles Tristão de Ataíde, Sérgio Buarque de Holanda, Lúcia Miguel Pereira, Gilberto Freyre, Antônio Houaiss, entre outros. E neste ano de 2017 Lima Barreto foi o homenageado especial da maior Feira Literária do país, a Feira Literária Internacional de Paraty. Embora tardio, reconhecimento.

Quanto a Lilia Schwarcz, a autora, o que dizer. Foram dez anos de pesquisa e dedicação. Ela é suficientemente conhecida para lhe fazer loas. Mas o seu conhecimento e a sua capacidade de estabelecer conexões e contextualizações é extraordinária. O livro é uma preciosa radiografia dos primeiros anos de uma República, que até hoje insiste em não ser republicana. Deixo apenas um exemplo da vasta erudição de Lilia, quando ao final do livro ela traça um paralelo entre a Limana de Lima com a biblioteca de Peter Kien, do Auto de fé, de Elias Canetti. 

Se eu tiver alguma credibilidade para fazer uma recomendação de leitura, eu a faço, com a indicação de Lima Barreto - Triste visionário. Faço também uma pequena advertência: é um livro para leitores. Enquanto não terminei a sua leitura, não consegui me desgrudar do livro.

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