Em fins de janeiro - 2017 o filósofo italiano, Franco Berardi, concedeu entrevista para Juan Iñigo Ibáñez, que eu localizei no site pragmatismo político, mas também está disponível em vários outros locais. A entrevista tem tradução de Inês Castilho e Simone Paz. Como não poderia deixar de ser, ela está alcançando grandes repercussões. São reflexões seminais que nos mostram que a humanidade está sofrendo uma grande transformação, já percebida pela aguda inteligência de Pasolini nos anos 1970 e que a chamou de "mutação antropológica".
Franco Berardi, filósofo e professor da universidade de Bolonha.
A expressão "mutação antropológica" é uma metáfora para expressar os efeitos psicossociais produzidos sobre a mente por uma economia em transição, de origem agrária e industrial para outra, de cunho capitalista e transnacional. Vejam só o título do livro em que Pasolini afirma esta sua percepção.
Escritos corsários e cartas luteranas. Pasolini se referia à sociedade italiana, dominada por um novo fascismo imposto pela globalização. Esta mutação atingia jovens burgueses, "sem futuro" e que mostravam acentuada tendência para a infelicidade. Estes jovens, com poucas raízes culturais seriam as vítimas dos novos valores, da nova concepção estética e estilos de vida, dos tempos marcados pelo consumismo.
Mais de 40 anos depois, o filósofo da Universidade de Bolonha, Franco Berardi constata o caráter profético da percepção de Pasolini e a aprofunda. Hoje, estes jovens vivem uma "precariedade existencial", marcada por transtornos mentais causados pelo neoliberalismo. Franco Berardi se dedica aos estudos da comunicação, trabalhando em emissoras livres e TVs comunitárias. Toda a sua carreira é marcada por um forte compromisso político.
Esta precariedade existencial leva a doenças psíquicas que são as grandes responsáveis pela incapacitação para o trabalho, pela depressão e pela grande onda de suicídios, especialmente de jovens do sexo masculino. O suicídio é hoje, segundo a OMS, a segunda causa de morte entre jovens de 10 a 24 anos. Suicídio e violência sob a forma de assassinatos de massa são estreitamente associados às condições da hipercompetição, subsalários e exclusão promovidos pelo ethos neoliberal. Berardi atenta, ainda, para os fluxos informativos acelerados das novas tecnologias e a sua influência sobre a sensibilidade e os fluxos cognitivos.
As respostas ao seu entrevistador apontam para a dama inglesa do neoliberalismo, que em 1987, em entrevista à revista
Womans Own, perguntava e respondia: "Mas o que é a sociedade? Não existe esta coisa. O que existe são homens e mulheres, indivíduos e famílias". Indivíduos em isolamento e em competição. Poderia aí estar a origem dos males em nossa sociedade. Como a entrevista é longa e envolve uma complexidade bastante grande optei pela transcrição da entrevista em sua íntegra. As perguntas estão em negrito.
Em seus últimos trabalhos, você disse que o
efeito das tecnologias digitais, a mediatização da relação de
comunicação e as condições de vida que o capitalismo financeiro produz
estão estreitamente vinculados ao crescimento das patologias da esfera
afetivo- emocional, assim como de suicídios em nível mundial. Disse
inclusive que estamos diante de uma verdadeira “mutação antropológica”
da sensibilidade. De que maneira esses fenômenos estão relacionados ao
aumento de suicídios e de patologias psíquicas?
Trata-se naturalmente de um processo muito
complicado que não pode ser reduzido a linhas de determinação simples. A
combinação dessas condições técnicas, sociais, comunicacionais pode
produzir – e de fato produz, em um grande número de casos – uma condição
de individualização competitiva e de isolamento psíquico que provoca
uma extrema fragilidade, a qual se manifesta às vezes como predisposição
ao suicídio.
Não pode ser acaso o fato de que nos últimos
quarenta anos o suicídio tenha crescido enormemente (em particular entre
os jovens). Segundo a Organização Mundial de Saúde, trata-se de um
aumento de 60%. É enorme. Trata-se de um dado impressionante, que
precisa ser explicado em termos psicológicos e também em termos sociais.
Quando li pela primeira vez essa informação, me perguntei: o que
aconteceu nos últimos 40 anos? A resposta é clara. Ocorreram duas
coisas. A primeira foi que Margaret Thatcher declarou que a sociedade
não existe, que só há indivíduos e empresas em permanente competição –
em guerra permanente, digo eu. A segunda é que, nas ultimas décadas, a
relação entre os corpos se fez cada vez mais rara, enquanto a relação
entre sujeitos sociais perdia a corporeidade, mas não a comunicação. O
intercâmbio comunicacional tornou-se puramente funcional, econômico,
competitivo. O
neoliberalismo
foi, em minha opinião, um incentivo maciço ao suicídio. O
neoliberalismo – mais a mediatização das relações sociais – produziu um
efeito de fragilização psíquica e de agressividade econômica claramente
perigosa e no limite do suicídio.
Qual o sentido profundo do que disse Margareth Thatcher?
Quando Margareth Thatcher disse que não se pode
definir nada nem ninguém como sociedade, que só há indivíduos e empresas
que lutam por seu proveito, para o sucesso econômico competitivo,
declarou algo com enorme potência destrutiva. O
neoliberalismo,
a meu ver, produz um efeito de destruição radical do humano. A ditadura
financeira de nossa época é o produto da desertificação neoliberal. A
financeirização da economia é fundada sobre uma dupla abstração. O
capitalismo sempre se fundou sobre a abstração do valor de troca
(abstração que esquece e anula o caráter útil e concreto do produto).
Mas a valorização financeira não precisa passar pela produção útil. O
capitalista industrial, para acumular capital, tem de produzir objetos –
automóveis, petróleo, óculos, edifícios. Já o capital financeiro não
precisa produzir nada. A acumulação do capital financeiro não se faz por
meio de um produto concreto, mas tão somente através da manipulação
virtual do próprio dinheiro.
Nesse cenário, que peculiaridades você
observa nas formas como nos relacionamos com nosso trabalho –
diferentemente, por exemplo, do caso de um trabalhador industrial dos
anos 70 –, que nos deixa tão expostos à saturação patológica expressa em
seus livros?
O movimento dos trabalhadores do século passado
tinha como objetivo principal a redução do tempo de trabalho, a
emancipação do tempo de vida. A precarização e o empobrecimento
produzido pela ditadura neoliberal produziram um efeito paradoxal. A
tecnologia reduz o tempo de trabalho necessário, mas o capital codifica o
tempo liberado como parado e o sanciona, reduzindo a vida das pessoas a
uma condição de miséria material. Em consequência, as pessoas jovens
são continuamente obrigadas a buscar um emprego que não podem encontrar,
a não ser em condições de precariedade e subsalário. O efeito emocional
é ansiedade, depressão e paralisia do desejo. A condição precária
transforma os outros em inimigos potenciais, em competidores.
Você tem analisado com regularidade as
formas como as tecnologias da comunicação e o uso que delas fazemos
interagem com as condições de vida instauradas pelo capitalismo. Qual
papel pensa que cumprem as redes sociais, no marco de uma sociedade com
um tipo de capitalismo altamente desregulado? De que maneira os efeitos
que esse sistema econômico produz em nossas vidas são complementares ou
se relacionam com o uso que fazemos desse tipo de plataformas digitais?
As redes sociais são, ao mesmo tempo, uma expansão
enorme – virtualmente infinita – do campo de estimulação, uma aceleração
do ritmo do desejo e, ao mesmo tempo, uma frustração contínua, uma
protelação infinita do prazer erótico, embora nos últimos anos tenham
sido criadas redes sociais que têm como função direta o convite sexual.
Não creio que as redes (nem a tecnologia em geral) possam ser
consideradas como causa da deserotização do campo social, mas creio que
as redes funcionam no interior de um campo social deserotizado, de tal
maneira que confirmam continuamente a frustração, enquanto reproduzem,
ampliam e aceleram o ritmo da estimulação.
É interessante considerar o seguinte dado: no
Japão, 30% dos jovens entre 18 e 34 anos não tiveram nenhuma experiência
sexual, e tampouco desejam tê-la. Por sua vez, David Spiegelhalter,
professor da Universidade de Cambridge, escreveu em Sex by Numbers que a
frequência dos encontros sexuais foi reduzida a quase metade, nos
últimos vinte anos. As causas? Estresse, digitalização do tempo de
atenção, ansiedade. Isso produziu o surgimento do que, para
Spiegelhalter, é a “single society” [sociedade solteira], quer dizer,
uma sociedade associal, na qual os indivíduos estão por demais ocupados
em buscar trabalho e relacionar-se digitalmente para encontrar corpos
eróticos com os quais se relacionar.
Nesta mesma linha de análise, você também
disse que as formas de relacionamento com as novas tecnologias afetam os
paradigmas do humanismo racionalista clássico, em particular nossa
capacidade de pensar criticamente. Considerando isso, de que maneira as
dinâmicas multitasking [tarefas simultâneas], ou abertura de janelas de
atenção hipertextuais podem chegar a deformar as formas sequenciais de
elaboração mental?
A comunicação alfabética possui um ritmo que
permite ao cérebro uma recepção lenta, sequencial, reversível. São estas
as condições da crítica, que a modernidade considera condição essencial
da democracia e da racionalidade. Porém, o que significa “crítica”? No
sentido etimológico, crítica é a capacidade de distinguir,
particularmente, de diferenciar entre a verdade e a falsidade das
afirmações. Quando o ritmo da afirmação é acelerado, a possibilidade de
interpretação crítica das afirmações reduz-se a um ponto de
aniquilamento. McLuhan escreveu que quando a simultaneidade substitui a
sequencialidade — ou seja, quando a afirmação se acelera sem limites — a
mente perde sua capacidade de discriminação crítica, passando daquela
condição a uma neomitológica.
Apesar do déficit comunicacional ao qual
muitos especialistas atribuíram a derrota de Hillary Clinton e,
concretamente, à sua postura ante o estilo confrontador e “politicamente
incorreto” que Trump utilizou para enfrentar temas vinculados com as
guerras culturais, esta “redução da capacidade crítica” que você
identifica influenciou no resultado das eleições?
Nos últimos meses tem se falado muito da
comunicação da pós-verdade no contexto das eleições nos Estados Unidos,
que levaram um racista a ganhar a presidência. Porém, eu não acredito
que o problema verdadeiro esteja no circuito da comunicação. A mentira
sempre foi normal dentro da comunicação política. O verdadeiro problema é
que as mentes individuais e coletivas perderam sua capacidade de
discriminação crítica, de autonomia psíquica e política.
Embora alguns especialistas reduzam a
importância do termo “nativos digitais” (dizendo que não passa de uma
metáfora que fala mais do poder desproporcional que cedemos às novas
tecnologias do que dos efeitos reais que estas têm sobre os indivíduos),
o conceito guarda uma significativa relação com a “mutação
antropológica” que você identifica nos jovens da primeira geração
conectiva. Que valor você atribui ao conceito de “nativos digitais” e
como pode se relacionar com a noção criada por Marshall McLuhan de
“gerações pós-alfabéticas” que você tem retomado em alguns de seus
livros?
Em absoluto, não creio que a expressão “nativo
digital” seja meramente metafórica. Pelo contrário, trata-se de uma
definição capaz de nomear a mutação cognitiva contemporânea. A primeira
geração conectiva, aquela que aprendeu mais palavras por meio de uma
máquina do que pela voz da mãe, encontra-se numa condição
verdadeiramente nova, sem precedentes na história do ser humano. É uma
geração que perdeu a capacidade de valorização afetiva da comunicação, e
que se vê obrigada a elaborar os fluxos semióticos em condições de
isolamento e de concorrência. Em seu livro L’ordine simbolico della
madre (A ordem simbólica da mãe), a filósofa italiana Luisa Muraro
argumenta que a relação entre significante e significado é garantida
pela presença física e afetiva da mãe.
O sentido de uma palavra não se aprende de maneira
funcional, mas afetiva. Eu sei que uma palavra possui um sentido — e que
o mundo como significante possui um sentido — porque a relação afetiva
com o corpo de minha mãe me introduz à interpretação como um ato
essencialmente afetivo. Quando a presença afetiva da mãe torna-se rara, o
mundo perde calor semiótico, e a interpretação fica cada vez mais
funcional, frígida. Naturalmente, aqui não me refiro à mãe biológica,
nem à função materna tradicional, familiar. Estou falando do corpo que
fala, estou falando da voz. Pode ser a voz do tio, da avó ou de um
amigo. A voz de um ser humano é a única forma de garantir de maneira
afetiva a consistência semântica do mundo. A rarefação da voz transforma
a interpretação num ato puramente econômico, funcional e combinatório.
Em seu livro A linguagem e a morte – um seminário
sobre o lugar da negatividade, Giorgio Agamben diz que a voz é aquilo
que vincula o corpo (a boca, a garganta, os pulmões, o sexo) ao sentido.
Se substituirmos a voz por uma tela, o sentido erótico, afetivo e
concreto do mundo se desvanece e ficamos sós, trêmulos e desprovidos da
garantia de que o mundo seja algo carnalmente concreto. O mundo torna-se
puramente fantasmal, matemático, frio.
Em seu livro Heróis, você se concentra no
crescente fenômeno de suicídios a nível mundial e relaciona-o com os
crimes de massas que presenciamos no final dos anos 1990 — como os
massacres em Columbine ou Virginia Tech — até chegar a episódios
recentes, como o do piloto suicida da Germanwings, ou o atentado no
Bataclan. O que a história de vida dos agressores destes crimes te diz
das condições existenciais nos tempos do capitalismo financeiro? De que
forma esses episódios nos falam do espírito de nossos tempos?
Acredito que a financeirização é essencialmente o
suicídio da humanidade. Em todos os níveis: a devastação do meio
ambiente, a devastação psíquica, o empobrecimento, a privatização,
provocam medo do futuro e depressão. Basicamente, a acumulação
financeira alimenta-se por meio da destruição daquilo que foi a produção
industrial no passado. Como pode o capital investido ser incrementado
nos tempos do capitalismo financeiro? Somente através da destruição de
alguma coisa. Destruindo a escola você incrementa o capital financeiro.
Destruindo um hospital, incrementa-se o capital financeiro. Destruindo a
Grécia, incrementa-se o capital do Deutsche Bank. É um suicidio, não no
sentido metafórico, mas no material.
Nesse cenário, não me parece tão incompreensível
que os jovens se suicidem numa situação similar. Além disso, a
impotência política que o capitalismo financeiro produz, a impotência
social e a precariedade, impulsa jovens desesperados a atuarem numa
forma que parece (e que de fato é) ser o único jeito de obter algo:
matando pessoas casualmente e matando a si mesmos. Trata-se da única
ação eficaz, porque matando obtemos vingança, e matando obtemos a
libertação do inferno que o capitalismo financeiro tem produzido.
Pouco tempo atrás, em junho de 2016, um jovem
palestino chamado Mohammed Nasser Tarayah, de 17 anos, matou uma menina
judia de 13 anos com uma faca e, posteriormente, foi assassinado de
maneira previsível por um soldado israelense. Antes de sair de sua casa
para ir matar — e se matar — escreveu em seu Facebook: “A morte é um
direito, e eu reivindico esse direito”.
São palavras horríveis, porém, muito
significativas. Significam que a morte lhe parecia a única forma de se
libertar do inferno da violência israelense e da humilhação de sua
condição de oprimido.
A nível mundial, a taxa de homens que se
suicida é quatro vezes maior que a de mulheres que incorrem na mesma
prática, embora segundo a OMS, elas tentem em mais ocasiões. Da mesma
forma, não temos visto casos de assassinatos em massa realizados por
mulheres. Ao que você atribui que tanto os suicídios, como os crimes de
massas, sejam protagonizados quase exclusivamente por homens? De que
forma o capitalismo os compele a reproduzirem tais níveis de impotência,
violência e autodestruição?
A violência competitiva, a ansiedade que essa
violência implica, é uma translação de uma ansiedade sexual que é
unicamente masculina. As mulheres são vítimas da violência financeira,
bem como da vingança masculina e terrorista contra a violência
financeira. A cultura feminista pode considerar-se a única forma
cultural e existencial que poderia criar lugares psíquicos e físicos de
autonomia frente à agressão econômica e à agressão terrorista suicida.
Porém, hoje, quando falamos de suicídio, cabe ressaltar que não estamos
falando do velho suicídio romântico, que significava um desespero
amoroso, uma tentativa de vingança de amor, um excesso de pulsão
erótica. Falamos de um suicídio frio, de uma tentativa de fugir da
depressão e da frustração.
Para finalizar, poderia nos falar de
possíveis práticas que proponham soluções, ou das potencialidades que
você enxerga nesta geração pós-alfabética? Em seu livro Heróis você
retoma o interessante conceito de “caosmose”, criado por Félix Guattari,
o qual supõe um tipo de instância estético-ética de superação que daria
sentido ao contexto de super-estimulação e precariedade existencial que
você vê em nossos tempos…
Guattari falava de “espasmo caósmico” para entender
uma condição de sofrimento e de caos mental que pode ser solucionada
somente através da criação de uma nova condição social, de uma nova
relação entre o corpo individual, o corpo cósmico e o corpo dos demais.
Somente a libertação da condição capitalista, somente a libertação da
escravidão laboral precária, e somente a libertação da concorrência
generalizada, poderia abrir um horizonte pós-suicida.
Porém, a afirmação política dos nacionalistas
racistas “trumpistas”, em quase todos os países do mundo, me faz pensar
que estamos cada vez mais longe de uma possibilidade similar, e que, aos
poucos, estamos nos aproximando do suicídio final da humanidade. Eu
sinto muito, mas, neste momento, não vejo uma perspectiva de caosmose,
somente uma de espasmo final. Mas isso é o que eu consigo entender, e
está claro que meu entendimento é muito parcial.
Por não me atrever a trabalhar a entrevista é que optei por reproduzi-la na íntegra. Por outro lado, creio que ela merece o máximo de divulgação. É a sobrevivência da humanidade.