sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Contra LAVA JATO. Adel El Tasse.

"Ganhei este livrinho. Leia e depois me devolve", me disse o meu amigo Bernardo, em evento de comemoração das festas de fim de ano. Agora já o li e, pretendo não devolvê-lo. Isso significa que gostei muito, e que, de livrinho - ele tem apenas o seu tamanho. No conteúdo ele é enorme. São apenas 90 páginas. Trata-se de Contra Lava Jato, de autoria do professor de Direito Penal em várias universidades, Adel El Tasse.

Contra Lava Jato. Adel El Tasse. 2023. Uma publicação do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais.

O livro é uma verdadeira aula, sob vários e diferentes aspectos. Como El Tasse é professor de Direito Penal, este será o tema principal do livro, mas, subjacente a ele, existe toda uma concepção filosófica, sociológica e histórica e é nisso que consiste a sua grandeza. O Direito, como o concebemos hoje, é uma invenção da modernidade. E, como se sabe, a modernidade é uma invenção da ascensão do pensamento fundado na razão, em detrimento do pensamento absoluto emanado do direito divino. A modernidade arrebatou o poder dos céus e o colocou nas mãos dos homens, que para isso deveriam se dar ao entendimento. A razão, porém, tomou dois caminhos fundamentais. Uma razão humana e uma razão instrumental.

A razão humana é a responsável pela evolução dos chamados direitos. Estes, segundo uma definição clássica de Marshall, evoluíram em direitos "civis, políticos e sociais". Uma bela e longa história de avanços e de retrocessos. Os Direitos da cidadania. O surgimento do Estado Democrático de Direito. São criados diversos mecanismo que limitam o poder do Estado contra os seus cidadãos. Estes ganham uma série de proteções legais. É a tendência à democracia

Por outro lado, a modernidade também fez surgir a sua ordem econômica, ditada por interesses dos indivíduos e da liberdade econômica em que a competitividade passou a ser a grande palavra de ordem. Essa ordem passou a ter na razão instrumental a sua fundamentação. Essa razão faz cálculos utilitários e gera níveis insuportáveis de competição. As guerras são uma mera consequência. Os sistemas autoritários também. A tendência é para o autoritarismo. O Direito e as instituições jurídicas se movimentam dentro dessas visões.

O Brasil tem as suas raízes profundamente fincadas no autoritarismo, portanto, na ausência de direitos. Vivemos as heranças de um sistema colonial e escravocrata. Raízes que constantemente lançam à superfície os seus tentáculos. Creio que podemos afirmar que a modernidade brasileira é uma modernidade tardia. Apenas, a partir de 1930 ela dá os seus primeiros passos. Francisco Oliveira nos faz uma síntese dessa democracia entre os anos 1930 e 1988, a data da Constituição da redemocratização. Duas longas ditaduras (Vargas e a civil militar de 1964) e uma tentativa de golpe de Estado a cada três anos. Depois de 1988 vivemos o nosso mais longo período de democracia. Mas foi um período breve. Durou apenas até 2016. 2016 foi golpe, sim. Os motivos dos golpes sempre foram os mesmos. Contenção de direitos da cidadania, restrição a direitos civis, políticos e sociais, em benefício de cálculos instrumentais, movidos à leis de responsabilidades sociais, perdão, fiscais.

O que eu devo dizer! Estas são reflexões que eu fiz a partir da leitura do livro de EL Tasse. Elas foram suscitadas pela leitura do livro, reflexões livres, não presas ao texto mas, de uma forma ou de outra, presentes no livro. Considero que o livro faz um grande movimento perpassando a história do Direito e de suas fundamentações. Um direito limitador dos poderes do Estado em favor da cidadania e o Direito movido por um espírito punitivista, seletivo em favor dos detentores do poder do Estado ou por busca de meios para alcançá-lo.

Mas, vamos a um esboço do livro. Primeiro pelo conteúdo da contracapa e depois pelos títulos dos capítulos, das belas e ilustrativas frases em epígrafe que antecedem cada capítulo. E ainda, por tópicos (entre parênteses), os temas abordados nestes capítulos. Vamos a contracapa:

"Contra a Lava Jato é uma obra técnica que aborda de forma didática o sistema processual penal e o modelo punitivo utilizado na operação lava jato e que parece se impor a todo país, após enorme exposição midiática desta invenção criminal.

Com estrita análise jurídica da questão, dentro de bases puramente científicas o texto discorre sobre os movimentos de sustentação da lava jato, seus fundamentos, estratégia e métodos, concluindo em importante análise sobre os reais efeitos dela para o País e para o sistema de justiça criminal.

A ilustração de capa, 'Saturno devorando a un hijo' é uma das pinturas a óleo sobre reboco que fazia parte da decoração das paredes da casa do pintor espanhol Francisco de Goya, sendo parte da série conhecida como 'pinturas negras' de Goya, integrando desde 1876 juntamente com as demais 'pinturas negras' o acervo permanente do Museu do Prado, em Madrid.

A representação do deus Cronos (Saturno na mitologia romana) devorando um de seus filhos para não dividir seu poder permite uma metáfora ao autor da presente obra do próprio Estado, ou agências controladoras do Poder estatal a utilizar o poder punitivo para opressão e assim reafirmação de seu poder".

Vamos então aos capítulos, nove no total, a seus títulos, frases em epígrafe e aos tópicos trabalhados nos capítulos.

Capítulo 1. A título de marco. "A mim a imprensa sempre me tratou bem". Francisco Franco. (MBL - 2015 - bancadas evangélica, armamentista e ruralista - reformas, ajuste fiscal. A operação Lava Jato, o punitivismo e a corrosão da democracia).

Capítulo 2. Os avanços ocorridos no direito penal brasileiro após a década de 1980 e seu atual processo. "A liberdade diminui à medida que o homem evolui e se torna civilizado". Antonio Salazar. (A afirmação de direitos na redemocratização do país. Contra o punitivismo. A glamourização da prisão. Penas espetaculares, ao arrepio da lei. Da lógica nazista à "solução final".  O sistema lava jato).

Capítulo 3. O afastamento da dogmática penal democrática e a corrosão do sentido de proteção do tipo. "Quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver em liberdade e não a destrói, espere para ser destruído por ela". Maquiavel. (O pós 2ª Guerra e a contenção do poder punitivo. O afastamento dos princípios onto-ontológicos. Lava Jato e MBL. A flexibilização dos direitos. Condenações sem provas).

Capítulo 4. A admissão da lógica tortura aceitável. "Nós vamos te quebrar por dentro". Delegado Fleury para Frei Tito. (O sistema carcerário brasileiro. A tortura. Massacres físicos e morais. O cárcere processual. A tortura e a violação dos Direitos Humanos. "Ordem e moralidade". O clamor público. Métodos do colonialismo e da escravidão. Métodos inquisitoriais. Lava Jato e ações agressivas).

Capítulo 5. A total corrosão do devido processo legal e da lógica da necessidade probatória para a condenação. "Demos um modelo para o mundo, com a criação dos Codis, dos Dois e com alterações na Lei de Segurança Nacional como a incomunicabilidade de 30 dias". General Brilhante Ustra. (Um não ao mínimo de respeito pelo Estado de Direito. Prisões arbitrárias sob o clamor do povo. A mídia e a divisão da sociedade entre os bons e os maus. A vingança contra os maus. Poderes ilimitados, fim do processo legal e Estado totalitário).

Capítulo 6. AI-5 e 10 medidas de combate à corrupção: desagradável coincidência. "Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência". Jarbas Passarinho, na instituição do AI-5. (cerceamento à defesa. Junção de acusador com julgador. Não ao habeas corpus. Validade de provas ilícitas. O cidadão desprotegido. A delação premiada. Abuso de prisões preventivas. Prender para intimidar. Faltou apenas uma Guantânamo brasileira).

Capítulo 7. A moral como critério. "Humanitarismo é a expressão da estupidez e da covardia". Adolf Hitler. (A prisão de políticos e de poderosos. Neutralizar os inimigos. A seletividade na escolha dos corruptos. Uma volta aos tempos da inquisição e seus métodos. Raízes morais para a condenação. Um Estado moralista. O MBL e a identificação dos inimigos. A hostilização de todas as causas libertárias. "Guerra Santa " às diversidades).

Capítulo 8. A deslegitimação do sistema político- eleitoral. "A imprensa é a arma mais poderosa do nosso Partido". Joseph Stalin. (Moral e religião e a desmoralização da atividade política. A defenestração da classe política. Os discursos de ódio.  Conduções coercitivas. LULA como alvo. O voto universal e o não saber votar. O voto do nordestino. Um ataque à democracia em favor de um regime totalitário).

Capítulo 9. A retomada do pensamento oligárquico. "Somente um país inferior, ordinário, insignificante pode ser democrático. Um povo forte heroico tende para a aristocracia". Benito Mussolini. (Um balanço da operação Lava Jato. O esfacelamento da economia e a fragilização das empresas brasileiras. O descrédito internacional das Instituições  brasileiras. Parcialidade nos julgamentos. Necessidade de reconstrução).

Por fim, a epígrafe geral do pequeno mas esclarecedor e necessário livro. "O único ditador que eu aceito é a voz da minha consciência". Mahatma Gandi. E uma palavrinha mais sobre o autor. No livro, ele é assim apresentado. "Professor na cadeira de Direito penal em cursos de graduação e pós-graduação em diferentes instituições de ensino superior. Professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná, professor do Curso LFG (São Paulo/SP) e do Curso CERS (Recife PE). Mestre e Doutor em Direito Penal. Coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais. Autor de vários livros e artigos publicados em diversos livros, revistas e periódicos".


segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

O CRISTO RECRUCIFICADO. Nikos Kozantzakis.

Vou começar dando uma volta. Creio que muitos já ouviram falar do maravilhoso filme Zorba, o grego, do diretor Michael Cacoyannis.  O filme teve sete indicações ao Oscar de 1964 e levou três. Ele tem a atuação extraordinária de Anthony Quiin. Pois bem, o filme é uma adaptação do romance homônimo de Nikos Kazantzakis. E, agora sim, Nikos Kazantzakis é também o autor de O Cristo recrucificado, romance escrito em 1948 e que veio a público em 1954.

O Cristo recrucificado. Nikos Kozantzakis. Abril cultural. 1971.

Vamos falar um pouco do autor e, justiça lhe seja feita, ele é um revolucionário. Ele nasceu em Heraklion, a capital da ilha de Creta, Grécia. Morreu em Freiburg, em 1957. Peregrinou mundo afora, em busca de um significado para sua vida e participar de movimentos revolucionários. Sofreu múltiplas influências, com destaque para Nietzsche e Marx. Do livro de biografias e contextualização de obras que acompanha a coleção - Os imortais da literatura universal -, destaco um dado biográfico seu:

"[...] Encontrava-se em Viena (1922) quando lhe surgiu no rosto um grande eczema, que nenhum médico conseguiu diagnosticar. Um discípulo de Freud encontrou finalmente a explicação. A moléstia era de fundo psicológico, um refúgio de pureza encontrado pelo asceta em que se transformara Kazantzakis, para quem as relações sexuais eram pecaminosas.

Escrevia incessantemente: cartas, esboços, meditações. Nessa época, começou a elaborar o romance Ascese, onde sua doença aparece como um símbolo, representando a luta para manter-se puro. Mais de trinta anos depois, voltaria a reviver a experiência através de Manólios, o jovem protagonista de O Cristo recrucificado (1954), escolhido para representar o papel de Jesus no drama da Paixão encenado por sua aldeia".

Está aí a essência de seu romance, que não deixa de ser uma paródia. Sobre ele, acompanhemos o livro de biografias: "Uma reviravolta política em sua pátria obriga-o ao exílio. No pequeno porto de Antibes, o escritor vive o seu período mais criativo (1948-1950), quando inicia O Cristo recrucificado. 'Um romance sem o eu', afirma a respeito de sua obra. E, de fato, O Cristo recrucificado não é uma autobiografia. Contudo, apesar de situada a ação na Ásia Menor, o vilarejo de Lycovrissi, com seus costumes, modo de pensar, egoísmos, mesquinharias, retrata indiscutivelmente a pequena cidade de Heraklion, onde o escritor nasceu, em fevereiro de 1883, passou a infância e formou o caráter". Acompanhemos o livro guia, contextualizando o romance:

"Justaposição entre o imaginário e o verdadeiro, entre o grotesco e o trágico, O Cristo recrucificado contém toda a vida do autor. Pessoas que conheceu, fatos que testemunhou estão aí presentes. Suas próprias dúvidas e aspirações reencarnaram-se na figura de Manólios. O conflito com o pai, que Kazantzakis ao mesmo tempo amava por sua coragem e odiava por seu espírito rude e brutal, é revivido através de Michellis, o jovem abastado e indeciso.

O massacre de Lycovrissi, descrito com intensa emoção, também corresponde à realidade passada do autor. Kazantzakis não completara ainda oito anos de idade quando, em sua aldeia, o favorito do chefe turco - ou agá - fora assassinado. As prisões abarrotaram-se. Sangue inocente jorrava sob as espadas dominadoras. Não suportando as perseguições, o povo acabou matando o agá. Então desabou a grande tempestade. O ocupante engendrou a mais terrível das vinganças. A cidade cerrou as portas, os comerciantes fecharam as lojas. Nas ruas desertas não se ouvia um só ruído. De repente, estoura a fuzilaria. Gemidos e estrondos vão ter à casa dos Kazantzakis. O Capitão Michellis, de espingarda em punho, defende a sua entrada. Após quatro dias, volta o silêncio. Estava acabada a vingança. Os gregos saem às ruas. Tomando o filho pela mão, o Capitão Michellis caminha lentamente até a praça. Levantando os olhos, o garoto grita de pavor. No frondoso plátano à sombra do qual brincava com seus companheiros, três cadáveres gregos balançam ao vento. 'Prosterne-se diante deles!', ordena-lhe o pai. E como Nikos procurasse escapar, obriga-o a beijar os pés dos massacrados. 'Olhe muito bem', exclama novamente o velho, 'que enquanto você viver, estes enforcados não desapareçam jamais da sua memória. Quem foi que os matou? A Liberdade. Bendita seja ela'". Este era o fato real.

O romance explora a tradição do vilarejo, de celebrar, de sete em sete anos, a crucificação. Os notáveis da cidade se reuniam para escolher os personagens: Jesus, os apóstolos, Madalena e, aquele que ninguém queria ser, o Judas. São cenas de raro humor. O fato é que Jesus assume verdadeiramente o fato de ser Jesus. Põe em prática a sua doutrina. E a ordem - representada pela religião, pátria, família e propriedade - começa a ser questionada e desmoronada. E, esta ordem estabelecida passa a ser preservada pelo padre e pelos notáveis da cidade, em conflito com uma aldeia vizinha, empobrecida pela dominação turca e sob a liderança de um padre, o padre Photis, de quem Manólios passa a ser discípulo e aliado. Como se trata de uma recrucificação, o final está revelado pelo título - recrucificado -, mas não a forma e os personagens.

Um livro para ser lido por muitos e muitos, especialmente nesses tempos de tanta e tanta hipocrisia religiosa, de tantos falsos profetas e cristos. O verdadeiro Cristo sempre seria e será recrucificado. Com este romance Kozantzakis se tronou um precursor da Teologia da Libertação.


sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

OS TRÊS MOSQUETEIROS. Alexandre Dumas.

Antes da resenha, uma confissão. Se há um ponto fraco em minha formação, este é, sem dúvida, a literatura. Eu explico: A minha formação é de seminário. Com certeza, os padres temiam a literatura. Ah, os romances, histórias de amor! Lembro de uma canção de muito sucesso na época - Asa Branca - do grande Luiz Gonzaga. Em vez de cantar - Entonce'eu disse: adeus, Rosinha // Guarda contigo meu coração, nós cantávamos - adeus mãezinha... E, por simplicidade ou ingenuidade nem percebíamos a troca. Amor, só o de mãe.
Os três mosqueteiros. Alexandre Dumas. Coleção- Os Imortais da Literatura Universal.

Pois bem, este teria sido o tempo mais adequado para a leitura desse belo romance, Os três mosqueteiros, romance de aventuras e bravuras, de romantismo e de história, de traições e de vilanias, muitas delas praticadas pelo cardeal, o cardeal Richelieu, um dos personagens do romance, muito mais do lado do mal, do que do bem, certamente. Então, eu não reli este romance, eu o li pela primeira vez. Não tem como não gostar e, mesmo que não gostasse, não o ousaria dizer. Afinal, é dos mais consagrados e festejados autores.

O livro que eu li é da coleção Os imortais da Literatura Universal. Uma coleção maravilhosa. Três volumes de biografia e contextualização acompanham a edição. Basicamente será a minha referência para esta explanação.

No epílogo ao romance, Alexandre Dumas nos dá a seguinte informação: "Privada de socorro da esquadra inglesa e da divisão prometida por Buckingham, a Rochela se rendeu após um assédio de um ano. No dia 28 de outubro de 1628, assinou-se a capitulação". Dou essa informação pela sua importância na contextualização, para chamar a atenção para a data de 1628. Se observarmos as datas de vida e morte do autor, veremos que ele nasceu em 1802 e morreu em 1870. A obra, portanto, é uma retrospectiva, uma volta ao século XVII. Tempo de Luís XIII e de Maria da Áustria como rei e rainha da França, secundados no poder pelo poderoso ministro, o cardeal Richelieu. São tempos complicados, cheios de intrigas. Muitas guerras. França, Inglaterra, Espanha, Áustria... As guerras de religião praticamente já tinham se assentado. Os territórios já estavam razoavelmente estabelecidos. Não a demarcação das fronteiras.

Mas, vamos ao romance, bem como ao seu autor. O Alexandre Dumas de Os três mosqueteiros é o pai. Não confundir com o filho, também escritor, e autor de A dama das camélias. Ele nasceu nas proximidades de Paris, mas a mudança para a capital, foi para ele extremamente significativa. O ambiente de Paris era contagiante. São contemporâneos seus, Victor Hugo, Honoré de Balzac e Prosper Marimée. Entrou para o campo das letras, pelo seu gosto pelo teatro e o fascínio por Shakespeare. Ali encontrou o campo de seus sonhos da juventude: "amores impetuosos, emoções violentas, suicídios". Vamos acompanhando o livro guia.

Ainda no teatro, ele entra em contato com os temas históricos. Sob a influência de Walter Scott (Ivanhoé) ele envereda de vez nesse campo. O livro guia nos fala dessa concepção, bem como do seu Os três mosqueteiros: "Dumas seguia o método de Scott. Os leitores de um romance histórico queriam sentir no relato as mesmas emoções suscitadas pela representação teatral: encontrar pessoas humanas sob os escudos e os mantos reais, conhecer a história de seu país, os costumes das épocas passadas, sem o esforço que um compêndio escolar exigia". E, um amigo lhe trouxe o esboço de seu romance mais famoso:

"O ponto de partida é o caso amoroso entre o cavaleiro D'Artagnan e a dama Constance Bonacieux, camareira de Ana da Áustria (1601-1666). Através da amada, D'Artagnan acaba participando de uma intriga política: Ana de Áustria, mulher do rei Luís XIII (1601-1643), ofertara ao amante, Buckingham, um cofre de joias que o marido lhe dera de presente. Sabedor do fato e desejoso de provocar a ruína da rainha, o ministro Richelieu (1585-1642) sugere ao rei que peça a Ana para usar as joias no próximo baile da corte. Desesperada, a rainha pede a D'Artagnan que recupere o pequeno tesouro, transportado por Buckingham para a Inglaterra. O cavaleiro une-se a três amigos e juntos partem para a aventura, enfrentando as ciladas do pérfido Richelieu e os traiçoeiros encantos da demoníaca Milady, cúmplice do ministro". E os efeitos?

"Nenhum dos outros numerosos volumes de Dumas provocou tamanha emoção. Os romances que retomam a história de D'Artagnan, ou o famoso Conde de Monte Cristo (1845), não conseguiram suplantar Os três mosqueteiros (1844). Grande parte do êxito se deve à simpatia que os quatro heróis despertaram. O público devia ter sentido que representavam desdobramentos do próprio Dumas, também dado a aventuras e façanhas. Nenhuma dessas personagens é de criação original; todas figuravam na obra de Sandras e viveram realmente no século XVII. Dumas, porém, deu-lhes nova vida, ressaltou-lhes as características, tornando-as mais temerárias, e ampliou o âmbito de ação. Através de uma trama apaixonante e de um estilo cheio de vitalidade, reviveu toda a atmosfera do século XVII francês, o esplendor da corte e o sensacionalismo das intrigas políticas, o poderio econômico e cultural de uma época brilhante. Graças a sua imaginação, alcançou suprir as lacunas do conhecimento histórico, que sua inquietude jamais lhe permitira aprofundar. Seu próprio tempo, ocupado com atrizes e conspirações, forneceu-lhe muitos dos pormenores que aproximam do real essa pintura do século XVII". E, para terminar, vamos lembrar dos três, na verdade quatro mosqueteiros:

"Todas essas personagens, ávidas de ação, refletem o espírito aventuroso do autor, falecido em 1870, ele mesmo lutador, incansável em prol da arte e de seus princípios políticos. Ousado como D'Artagnan, corajoso como Athos, sedutor como Aramis, alegre como Porthos, não seria falsear a verdade acrescentar ao quarteto dos famosos espadachins um quinto mosqueteiro: o próprio Dumas, herói de pena em punho, esgrimindo pela fama e pelo amor".

O romance que eu li tem 511 páginas, com letrinhas dignas de uma lupa. São, ao todo, 57 capítulos de deliciosas e espetaculares aventuras e uma bela reconstrução histórica. Por se tratar de um romance histórico, deixo a resenha da obra inaugural desses romances. Ivanhoé, de Walter Scott.



quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

As igrejas de Porto Novo. Itapiranga. São João do Oeste e Tunápolis. Colonização e arquitetura.

Recebi mais um livro do meu irmão, Hédio José, que mora na cidade de Mondaí, no oeste do estado de Santa Catarina. Hédio é o meu irmão mais velho. Já completou 89 anos. Em compensação, entre cinco irmãos, eu sou o mais novo. A história de vida do meu irmão está toda ela voltada para esta região, na qual ele está, desde os idos da década de 1960. Ele foi um dos professores recrutados pelo Volksverein, a entidade colonizadora da região, como veremos logo a seguir. O livro referência é As igrejas de Porto Novo, de autoria de Jaine Ott, Carine Kaufmann e Douglas Orestes Franzen. Na apresentação as autoras e o autor falam da origem do livro: um trabalho junto ao curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Fai-Uceff. A publicação é da editora Schreiben, do ano de 2023.

As igrejas de Porto Novo. Editora Schreiben. 2023.

O prefácio do livro, que, em parte, também está na contracapa, é de autoria do padre Dionísio Körbes, da paróquia de São Pedro Canísio, de Itapiranga. Ele, sabiamente, destacou o princípio, o objetivo da colonização desta região e, como consequência, a sua arquitetura, toda ela centrada na religião. Vejamos o trecho da contracapa:

"No período em que Porto Novo foi colonizada existia, nas pessoas que aqui se estabeleceram uma cosmovisão ou um universo cultural religioso homogêneo, no qual o diferente não tinha espaço ou lugar. Tal constatação é verídica uma vez que o projeto de colonização era fechado ou exclusivo para famílias alemãs e católicas. Não é por nada que uma das finalidades era dar continuidade ao projeto da cristandade, que é o de defender a moral, os costumes, princípios e valores da Igreja Católica.

Para que tal visão-religiosa fosse acessível e formasse um imaginário religioso, criaram-se os núcleos comunitários, dentre os quais a Igreja se destacava. Foi através das inúmeras expressões religiosas, tais como devoções, rezas, novenas, mas acima de tudo, os símbolos ou figuras de santos (as) que tiveram um papel importante na formação do imaginário religioso. Quem, das gerações passadas, não se lembra do quadro dos anjos protetores, imagens do Sagrado Coração de Jesus e de Maria, o quadro da ceia, da cruz e outras tantas imagens e estátuas. Nas igrejas edificadas não podia faltar o padroeiro ou outras
imagens de acordo com as devoções. Tudo isso formava o imaginário religioso que alimentava a vida religiosa das pessoas". Em outro livro, que também recebi do meu irmão, vi que a colonização de Mondaí, então Porto Feliz, obedecia aos mesmos princípios, só que formada por cristãos protestantes.

O livro está estruturado em nove capítulos, mais prefácio e apresentação e, ainda, mapas de localização e referências bibliográficas. Tudo ao longo de 248 páginas, recheadas de fotografias. Vamos aos títulos dos capítulos: 1. A religiosidade como expressão da cultura em Porto Novo; 2. As igrejas como referência da paisagem; 3. A edificação de igrejas: o valor comunitário; 4. Igrejas em madeira; 5. Igrejas (neo) góticas; 6. Igrejas modernistas e ecléticas; 7. Altares góticos e modernistas; 8.O canto coral: Patrimônio imaterial da música sacra; 9. Arquitetura cemiterial. Em minha resenha vou me ater mais ao primeiro capítulo, embora não represente a centralidade do livro. Faço isso, apenas por ele contemplar mais o meu foco de interesse, que é o da colonização.

Vejamos os três primeiros parágrafos desse primeiro capítulo: "O projeto de colonização Porto Novo foi idealizado pela Sociedade União Popular, Volksverein, instituição que coordenou a implantação de outras colônias alemãs em novas frentes de colonização no sul do Brasil. O projeto Porto Novo nasceu a partir da aspiração confessional católica e da etnicidade germânica, tendo como proposta formar um núcleo colonial no extremo oeste de Santa Catarina que atendesse às finalidades da preservação moral católico-cristã e principalmente dos valores comunitários que aspirassem a homogeneidade étnica e confessional. O empreendimento foi fundado oficialmente no ano de 1926. Já no ano de 1928, a colonização recebeu o nome de Itapiranga, atual nome do município, gerando mais tarde a emancipação dos municípios de Tunápolis e São João do Oeste.

A Volksverein für die deutschen Katholiken von Rio Grande do Sul não era necessariamente uma empresa de colonização. Era, na verdade, uma entidade associativa fundada para dar assistência à população de descendência alemã e católica no sul do Brasil. Essa associação chegou a ter no período da Primeira Guerra Mundial cerca de oito mil associados. Notadamente de caráter étnico e confessional, o Volksverein se engajou em projetos de caráter social que vislumbravam manter os princípios do germanismo e do catolicismo, promovendo eventos e atividades culturais, agremiações, atividades de cooperação comunitária, atividades agrícolas de assistência aos colonos, além de ser uma força coadjutora do espírito comunitário católico-cristão, atendendo à necessidade de manter os valores morais e culturais nas colônias alemãs como a família, a comunidade, a religiosidade e o associativismo.

Nesse sentido, famílias originárias das colônias do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina compraram terras nessa colônia em busca de novas fronteiras agrícolas. Da mesma forma, adquiriram terras em Porto Novo, imigrantes que fugiam das duras condições de vida em vilarejos europeus, expulsos pelas atrocidades da guerra, pela perseguição étnico-política, ou pelas péssimas condições de vida e de trabalho lá existentes".

À frente deste empreendimento encontramos os padres jesuítas, sob a liderança dos padres Theodor Amstad e João Rick. Estes padres eram muito ativos. Não é a primeira vez que eu me encontro com eles, principalmente com o primeiro. A sede do Volksverein era na cidade de Venâncio Aires. Também encontrei muitas expressões, típicas de minha infância e juventude, como: Gott über alles; Alles nach dem Gottes Willen; Es regnet, Gott segnet; Der liebe Gott wolte es so haben; Gott nimmt; Gott erfühlt; Der Mensch denkt und Gott lenkt. Percebam a onipresença da palavra Gott, ou seja, Deus. E, uma lembrança minha: a cada encontro com o padre vigário, a saudação: Gelobt sei Jesus Christus. Trago da minha infância um presente maravilhoso, a língua alemã. Eu fui aprender português na escola.

No segundo capítulo é destacada a importância da igreja, como construção referência, que tomava conta ou configurava toda a paisagem da localidade e, já no terceiro, se destaca a ação comunitária na edificação das mesmas. As famílias contribuíam com valores estabelecidos (um porco de cem quilos), doação de materiais, trabalhos voluntários, quermesses... Elas são vistas como uma herança, um legado a ser transmitido. O quarto capítulo nos mostra que a construção das primeiras igrejas sempre foi em madeira, pois, dela dispunham em grande abundância. No começo elas também eram usadas como escolas (Schulkapelle).

Os capítulos cinco e seis também se constituem em preciosos capítulos de arquitetura. Antes de apresentarem as principais igrejas e suas localidades, há uma contextualização social, histórica e cultural do estilo das igrejas. Também merece destaque a importância do Concílio Vaticano II (1962-1965) e a sua influência na alteração da construção das igrejas. Também os altares passaram por essas transformações. Eles se tornaram menos distantes e mais aconchegantes, ou modernos. Antes eram verdadeiras obras de arte. Em minha memória, a lembrança de aulas da história da arte. Nos dois capítulos finais, nos são dados, primeiramente, os cerimonias fúnebres e o significado dos cemitérios, para encerrar com o canto coral, uma tradição bem alemã. Me lembro que cantávamos muito, tanto na igreja, quanto em casa. Não esquecendo, somos nascidos em Harmonia, na época, terceiro distrito de Montenegro (RS).

Em suma, um belo livro e de um valor inestimável e escrito com muito cuidado. E, antes de terminar, algumas coisas da memória. Me lembro da minha infância em Harmonia. A propaganda de Porto Novo nos chegava pelos sermões bilíngues do padre vigário, cônego Oscar Mallmann. Tios meus, da família de minha mãe (Reichert) foram fazer a vida lá. Lembro que eu levava as cartas que minha mãe escrevia para eles, para a agência do Correio. No envelope se lia: - Linha Macuco - Itapiranga. Também lembro de alguma visita desses tios, quando voltavam para visitar os parentes. Era dia de galinhada. Dia de festa.

A única cidade desta região em que eu estive foi São João do Oeste. Fui com o meu irmão. Fomos tomar uns Chopp num clube de lá. Lembro da placa na entrada da cidade, em que manifestavam todo o orgulho da cidade: uma cidade de origem germânica. E por falar em Chopp, também li, que em Itapiranga se realizou a primeira festa do Chopp no Brasil. Me bate um saudosismo quando eu leio estas histórias de colonização. Um dia, também eu deixei a minha Harmonia para trás, e, sem dinheiro para voltar. Tinha que dar certo. Muita gente me ajudou. Eu vim para Umuarama no Paraná e hoje estou estabelecido em Curitiba.  

Dos autores, já tive um contato anterior com Douglas O. Franzen pelo seu livro sobre Mondaí. Deixo a resenha.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/08/porto-feliz-mondai-o-centenario-da.html





sábado, 2 de dezembro de 2023

Em "OS ENSAIOS" - Montaigne deixa um Projeto de Vida. Seu testamento intelectual.

O capítulo XIII do Terceiro Livro de Os ensaios tem por título - Sobre a experiência. É o último capítulo de toda a obra. Vejamos a apresentação escrita pela tradutora Rosa Freire D'Aguiar:
O ensaios. Montaigne. Sobre a experiência.

"O capítulo final de Os ensaios fornece o fruto do julgamento de Montaigne sobre o lugar de nossa humanidade na vida de cada um de nós. Ele o amarra firmemente ao contexto aristotélico. A frase inicial ecoa a primeira frase de um dos livros mais famosos de Aristóteles, que diz que não há desejo mais natural do que o desejo de conhecimento. As últimas palavras de Os ensaios eram, na primeira edição, 'diversidade e discordância'. Oito anos depois, Montaigne escolhe concluir sua obra com a experiência. Assim, é tentador ver aqui seu testamento intelectual. Montaigne fala de si mesmo. Como envelhecer? Como enfrentar a doença e a dor? A morte? Suas respostas vêm não tanto da leitura dos grandes filósofos, mas do convívio com as pessoas, da observação do real. A sabedoria já não vem do alto, já não é ditada pela razão; resulta de observações e ensinamentos acumulados ano após ano: quanto mais envelhece, mais Montaigne se convence de que não erra em seguir a natureza e em fugir tanto dos conselhos dos moralistas como das consultas dos médicos. Apesar da dívida com Aristóteles, não acredita que a experiência que existe por trás da Metafísica ou Física substitua sua própria experiência: 'Estudo a mim mesmo mais que a outro assunto. É a minha metafísica, é a minha física'".

Deixo apenas a mensagem final, que vai das páginas 578 a 583:

"Quanto a mim, portanto, amo a vida e cultivo-a tal como aprouve a Deus nos outorgá-la. Não estou desejando que lhe faltasse a necessidade de beber e comer. E me pareceria cometer um erro não menos desculpável se desejasse que ela a tivesse em dobro. O sábio indaga com a mais viva paixão sobre as riquezas da natureza - (Sêneca). Nem que nos sustentássemos metendo na boca só um pouco daquela droga com que Epimênides se privava de apetite e se mantinha. Nem que produzíssemos estupidamente filhos pelos dedos ou pelos calcanhares, voluptuosamente. Nem que o corpo fosse sem desejo e sem excitação. Seriam queixas ingratas e iníquas. Aceito de bom grado e reconhecido o que a natureza fez por mim, e alegro-me e sinto-me satisfeito com isso. Somos injustos com esse grande e todo-poderoso Doador ao recusarmos Seu dom, anulá-lo e desfigurá-lo: tudo é bom, Ele fez tudo bom. Tudo o que é conforme à natureza é digno de consideração - Cícero. Abraço com mais gosto os princípios da filosofia que são os mais sólidos: isto é, os mais humanos e nossos. Minhas opiniões correspondem ao meu comportamento, humildes e modestas.

A meu ver, a filosofia finge-se de criança quando levanta a crista para nos pregar que é uma aliança selvagem casar o divino com o terrestre, o honesto com o desonesto. Que o prazer é qualidade bestial, indigna de ser provada pelo sábio. E que o único prazer que ele tira da fruição de uma bela jovem esposa é o prazer de sua consciência por estar praticando uma ação segundo as regras. Como calçar suas botas para uma cavalgada útil. Possam os sequazes dessa filosofia ter, no desvirginamento de suas mulheres, tão pouca firmeza, e nervos e suco quanto têm seus argumentos! Não é o que diz Sócrates, preceptor deles e nosso. Ele aprecia, como deve ser, o prazer corporal, mas prefere o do espírito, por ter mais força, constância, facilidade, variedade, dignidade. Este não anda sozinho, segundo ele (que não é tão fantasioso assim), mas é apenas o primeiro. Para ele, a temperança é moderadora, não adversária dos prazeres. A natureza é um guia gentil, mas não mais gentil do que sábio e justo. É preciso progredir do conhecimento da natureza e proceder a um exame muito aprofundado do que ela exige - Santo Agostinho. Procuro por toda parte sua pista: nós a confundimos com rastros artificiais. E esse 'soberano bem' da Academia e dos peripatéticos, que é viver segundo a natureza, tona-se por isso difícil de delimitar e demonstrar, e também o dos estoicos, próximo dele, e que consiste em estar de acordo com a natureza. Não será um erro considerar certas ações menos dignas porque são necessárias? Não me tirarão da cabeça que é muito conveniente o casamento do prazer com a necessidade, com a qual, diz um antigo, os deuses vivem conspirando. Por que desmembramos uma construção tecida com uma cor correspondência tão fraterna e estreita, levando-a ao divórcio? Ao contrário, retemo-la por serviços mútuos: que o espírito desperte e vivifique o peso do corpo, que o corpo detenha a leveza do espírito e a fixe. Aquele que exalta a alma como um soberano bem e condena a carne como um mal, com certeza a um só tempo acaricia a alma carnalmente e foge da carne carnalmente, pois tal opinião nasce da vaidade humana, não da verdade divina - Sêneca. 

Não há elemento indigno de nosso cuidado nesse presente que Deus nos deu: dele devemos prestar contas até cada fio de cabelo. E não é uma missão meramente formal do homem conduzir a si mesmo de acordo com a condição do homem; ela é expressa, inata e primordial, e o Criador confiou-a a nós séria e severamente. Só uma autoridade pode convencer as inteligências comuns: e pesa mais se em língua estrangeira. Portanto, neste trecho, voltemos à carga: Quem não reconheceria que é próprio da estupidez fazer com moleza e reticência o que deve ser feito, empurrar o corpo de um lado, o espírito de outro, e deixar-se puxar entre movimentos contraditórios - Sêneca. Ora, então, só para ver, fazei com que vos contem um dia as reflexões e as ideias que um homem põe na cabeça, e pelas quais desvia seu pensamento de uma boa refeição e lamenta-se do tempo que passa a se alimentar: descobrireis que não há nada tão insípido em todos os pratos de vossa mesa quanto essa bela conversa de sua alma (quase sempre seria melhor dormirmos profundamente do que ficar acordados para ouvi-la) e descobrireis que seu discurso e suas intenções não valem vosso ensopado. E se fossem os arroubos do próprio Arquimedes, o que seria? Não incluo aqui e não meto nessa cambada de homens que somos e nessa vaidade de desejos e cogitações que nos desviam do essencial as almas veneráveis, que se elevam pelo ardor da devoção e da religião a uma meditação constante e conscienciosa sobre as coisas divinas, e que provam de antemão, pelo esforço de uma esperança viva e veemente, o alimento eterno, objetivo final e última etapa dos desejos cristãos, único prazer constante e incorruptível, e desprezam a atenção a nossos bens necessitosos, flutuantes e ambíguos, e abandonam facilmente ao corpo o cuidado e o uso do alimento temporal e dos sentidos. Esse é um esforço das almas privilegiadas. Entre nós, há coisas que sempre vi em singular concórdia: os pensamentos super celestes e os comportamentos subterrâneos. Esopo, esse grande homem, viu seu amo urinando ao passear. 'Como assim', disse ele, 'teremos de defecar ao correr?' Organizemos nosso tempo: ainda nos resta muito dele, ocioso e mal empregado. Nosso espírito não tem talvez outras horas suficientes para fazer seus deveres sem se dissociar do corpo durante esse pouco tempo de que este precisa para suas necessidades? Os filósofos querem escapar a si mesmos e escapar ao homem. Isso é loucura: em vez de se transformarem em anjos, transformam-se em animais, em vez de se elevarem, rebaixam-se. Esses humores transcendentes apavoram-me, como os lugares altos demais e inacessíveis. E nada me é tão desagradável digerir na vida de Sócrates quanto seus êxtases e suas demonices. Nada me é tão humano em Platão quanto a razão pela qual dizem que é chamado de 'divino'. E de nossas ciências, parecem-me mais terrestres e baixas aquelas que estão colocadas mais alto. E não acho nada tão humilde e tão mortal na vida de Alexandre como suas fantasias em torno de sua imortalidade. E Filotas, numa resposta que lhe deu por carta, alfinetou-o divertidamente quando congratulou Alexandre por ter sido colocado entre os deuses pelo oráculo de Júpiter Amon : 'Quanto a ti, estou muito feliz; mas não motivo para lamentar pelos homens, que terão de conviver e obedecer a um homem que ultrapassa e não se contenta com a medida de um homem'. É porque te submetes aos deuses que reinas - Horácio. A nobre inscrição com que os atenienses honraram a chegada de Pompeu à sua cidade corresponde a meu modo de pensar: 

Tanto mais és Deus
Quanto te reconheces como homem - Plutarco.

É uma perfeição absoluta, e como divina, saber gozar lealmente de seu ser. Procuramos outros atributos por não compreendermos a prática dos nossos, e saímos de nós mesmos por não sabermos o que nele se passa. No entanto, pouco adianta subir em perna de pau, pois mesmo sobre pernas de pau ainda temos de andar com nossas pernas. E no trono mais elevado do mundo ainda estamos, porém, sentados sobre nosso traseiro. As mais belas vidas são, a meu ver, as que se conformam ao modelo comum e humano, bem ordenadas, mas sem milagre, sem extravagância. Ora, a velhice tem certa necessidade de ser tratada mais ternamente. Recomendamo-la àquele deus protetor da saúde e da sabedoria: sim, mas alegre e sociável: Concede-me, filho de Latona, desfrutar dos bens que adquiri, a um só tempo em plena saúde e com o espírito intacto, suplico-te, e não arrastar uma velhice vergonhosa, privada da lira - Horácio".