segunda-feira, 24 de junho de 2024

Deixe o quarto como está. Amilcar Bettega. Vestibular UFRGS - 2025.

É pela terceira vez que começo a resenha deste livro - deixe o quarto como ele está, de Amilcar Bettega. Trata-se de um livro muito difícil de ler, e muito mais de resenhar, pois trata-se de um livro inteiramente aberto. Ele exige leitura atenta, reflexões e interpretações suas, e que nunca necessariamente são as mesmas. É um livro de 2002 e uma indicação para o vestibular de 2025, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, indicação pela qual cheguei ao livro. A sua primeira edição é do ano de 2002.

Deixe o quarto como está. Amílcar Bettega. Companhia das Letras. 2020.

"Flertando com Kafka, Rulfo e Cortázar, Amilcar Bettega faz deste livro uma das melhores amostras da literatura brasileira contemporânea", lê-se na contracapa. Confesso que não li  Rulfo e Cortázar, mas senti os mesmos desassossegos que senti com a leitura de Kafka. Também tive as minhas lembranças: A sociedade do cansaço, de Byung-Chul Han, Necropolítica, de Achile Mbembe e, especialmente, de realismo capitalista - é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, de Mark Fisher. Deste último, a impactante ideia de que vivemos um fracasso há cinquenta anos, mas um fracasso inteiramente consolidado, que não se imagina em mudar. Um infelicitar de todos. Também lembrei muito do documentário Janela da alma, de João Jardim. Nele há uma fala de Saramago, se não me engano, sobre a necessidade de também ler as entrelinhas.

A interpretação de Deixe o quarto como está me ficou mais fácil depois de ver uma entrevista do autor, concedida ao Jornal da Universidade da URGS, que pode ser encontrada no Google, digitando - Escrevo porque não sei - jornal da universidade. A entrevista é datada de 10 de dezembro de 2020. Nela, Bettega está muito feliz, pois além da indicação de seu livro para o vestibular da universidade, também ocorreu o lançamento do livro em tradução para o italiano.  Algumas observações a partir dessa entrevista.

A primeira é uma dica preciosa, uma pista para a interpretação. Preste atenção ao subtítulo: ou Estudos para a composição do cansaço. O cansaço, não o físico, mas o moral, o emocional, aquele que adoece, aquele que infelicita é um dos temas que perpassa os contos. Sim, é um livro de contos, 14 no total. A segunda é sobre o título e a frase de epígrafe: "Deixe o quarto como está. Agora, está tudo pronto. Estamos prontos. Quer ir? A frase é do contista estadunidense, Raymond Carver, admirador e biógrafo de Tchekhov. É sobre a morte de Tchekhov, que, em seu leito de morte, atendido por um médico que constata não haver o que fazer, manda servir champanhe. Certamente uma celebração do momento derradeiro da vida. Quando o garçom do hotel procura limpar o quarto, a esposa lhe pede para deixar o quarto como ele está. Lindo, lindo. Mas trata-se da morte. Não há saída.

Outra observação, a partir da entrevista, é sobre o conto O encontro. Conta-se que o escritor espanhol, Vila-Matas fora convidado para um encontro literário em Paris. Ele chega, se hospeda em um hotel e espera o contato com os organizadores do evento. Como eles não aparecem, aproveita a ocasião para refletir e escrever sobre a espera, ficar esperando, rodando, aguardando. Para mim, também, uma reflexão sobre a dificuldade de encontros em nossa sociedade, muito mais dada a desencontros. 

Na entrevista também é interessante observar as perguntas, pois são muito bem feitas. Elas denotam conhecimento da obra. Elas contém o teor da obra, o que obriga o autor a responder sobre ela. Aí percebemos os temas fundamentais: cansaço, o vazio do cotidiano, falta de sentido, aprisionamento, ausência de perspectivas, insistências... No meu tempo de estudante de filosofia, a gente chamava isso de angústias da existência, ou o famoso "estamos condenados a ser livres". As pessoas sabem que vão perder, mas não desistem, responde Bettega, a uma das perguntas. Um dos mais belos contos, cheio de significados: Exílio. Tomar o trem de volta e, começar tudo de novo, apesar de se defrontar sempre com muralhas, como ocorre no conto sobre "o encontro".

Também é muito interessante dar uma olhada na biografia, na história de vida do escritor. Ele nasceu na militarizada cidade de São Gabriel, no emblemático ano de 1964. São Gabriel conta hoje com um pouco mais de 60.000 habitantes. Está a 320 quilômetros distante de Porto Alegre, para onde foi estudar engenharia civil, na sua conceituada universidade. Mas não era este o seu campo. O campo das Letras o levou a Paris, para a Sorbonne, para estudar escrita criativa. E isso ele consegue fazer, mesmo dentro da mais brutal e depressiva realidade. 

Acima de tudo, contos para refletir, para dar voltas ao redor dos fatos, para enxergá-los por todos os ângulos e lados. Um livro aberto, para nele, também você, inscrever as suas letras, aproveitando para isso, as suas entrelinhas. As reflexões precisam ter continuidade.

Deixo a resenha de Sociedade do cansaço:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/01/sociedade-do-cansaco-byung-chul-han.html

terça-feira, 18 de junho de 2024

um útero é do tamanho de um punho. angélica freitas. Vestibular - 2025. UFRGS.

"não queria fazer uma leitura // equivocada // mas todas as leituras de poesia // são equivocadas" (p. 52). Abro a minha resenha de um útero é do tamanho de um punho, dessa maneira como uma forma de prevenção. Confesso que tenho enorme dificuldade em ler livros de poesia. Faço essa ressalva, para antecipadamente justificar problemas de entendimento, usando para isso, as palavras da própria autora, a poeta gaúcha Angélica Freitas. Cheguei ao livro por meio de uma listagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para o vestibular de 2025. A edição que eu li é da Companhia das Letras, 2017, 9ª impressão.

um útero é do tamanho de um punho. angélica freitas. Companhia das Letras.

Procurando facilitar os caminhos, começo apresentando dados biográficos de Angélica, que, creio, ajudam na interpretação de sua poesia, ou então, fazem uma aproximação com os temas por ela trabalhados, os mesmos que foram por ela vividos. Angélica Freitas nasceu na histórica, tradicional e aristocrática cidade de Pelotas, no ano de 1973. Depois passou a ser uma espécie de cidadã do mundo, tomando a este, como o espaço de suas experiências, angústias e vivências. E também de sua poesia.

Em Porto Alegre, na sua Universidade Federal, fez o curso de jornalismo, indo depois para São Paulo exercer a profissão de jornalista, na redação do tradicional O Estado de S. Paulo. Vão vendo.... Duas vezes já usei a palavra tradicional. Rupturas à vista? Andou pela Holanda, pela Bolívia, mas as suas experiências mais marcantes ocorreram na Argentina e no México. Na revista TRIP encontrei uma entrevista sua, dada para Natasha Cortêz (Revista datada de 26.10.2012), em que ela fala dessas experiências.

Na Argentina ela conviveu com um grupo de mulheres, feministas, mergulhando no tema da construção da mulher (A mulher é uma construção) e no México, onde assistiu a uma colega, em um aborto. No México o aborto é legalizado e com cobertura da Saúde Pública. O fato que a sensibilizou foi a atitude de mulheres religiosas, católicas, que, primeiro, mansamente tentaram demover os familiares da sua prática e passando, progressivamente, para um discurso muito forte, violento. Esses fatos, segundo ela, a levaram ao tema - mulher, às suas inquietações e aos padrões que lhe são impostos. Está aí o núcleo central do livro.

Com essas questões em mente, ela retorna a Pelotas e, por um ano, se ocupa com a escrita do livro, começando com uma pesquisa sobre o corpo da mulher, quando se depara com a frase "um útero do tamanho de um punho fechado". Estava aí o título (apenas com a supressão do fechado) e o mais longo dos poemas do livro (Um útero do tamanho de um punho p. 59-66). Ela também fala sobre a razão de escrever o livro em sua cidade natal. Uma cidade provinciana, onde os papéis de gênero são bem definidos, com o patriarcado e o machismo empurrando a mulher para os espaços domésticos. Rupturas e ironias à vista?

Perguntada se ela teria uma predileção especial por algum dos poemas, ela diz que não, mas em sua resposta começa a falar sobre "Uma mulher limpa" (p.11-14), contrapondo-a com a mulher suja e feia. Ironia pura, um soco de punho fechado! No poema ela se recusa a ser a mulher padronizada, de como ela deve ser, se comportar, de se vestir, para ser mulher limpa e fofa. Para encontrá-la (essa mulher limpa e fofa) basta ir a uma loja de departamentos, ao setor de vestuário feminino, que você a encontrará. Tudo igual. Esse poema ocupa a primeira parte do livro, (e deixo uma dica, o poema mereceu a atenção de Márcia Tiburi, na revista Cult, datada de 12 de maio de 2013). Um poema que, além da ironia, também é de muita coragem nesses tempos obscuros.  Merecem também destaques - a mulher que incomoda muita gente e a ironia que a fez retornar a gracinhas de sua infância (i piri qui).

Vamos ainda ver um pouco da história do próprio livro, que além de prêmios, também ganhou um mundo, com traduções para o espanhol e para o alemão. A sua primeira edição é do ano de 2012, pela Cosac Naify, recebendo nova edição em 2017, pela Companhia das Letras. Pela data dos comentários das duas revistas, dá para perceber que o lançamento causou e, continua causando, agora com a indicação para o vestibular da grande universidade gaúcha. 

Vamos a dois pequenos aperitivos. O primeiro sobre a mulher limpa:

"porque uma mulher boa // é uma mulher limpa // e se ela é uma mulher limpa // ela é uma mulher boa"

há milhões de anos // pôs-se sobre duas patas //  a mulher era braba // braba e suja e ladrava

porque uma mulher braba // não é uma mulher boa // e uma mulher boa, é uma mulher limpa

há milhões, milhões de anos // pôs-se sobre duas patas // não ladra mais, é mansa // é mansa e boa e limpa (p.11 - tem sequência). ...

E - o segundo, sobre  a mulher em construção:

"A mulher é uma construção // deve ser

A mulher basicamente é pra ser // um conjunto habitacional // tudo igual // tudo rebocado //só muda a cor

particularmente sou uma mulher // de tijolos à vista // nas reuniões sociais tendo a ser // a mais malvestida

digo que sou jornalista

(a mulher é uma construção // com buracos demais

vaza

a revista nova é o ministério // dos assuntos cloacais // perdão // não se fala em merda na revista nova)

vocé é mulher // e se de repente acorda binária e azul //e passa o dia ligando e desligando a luz?

(você gosta de ser brasileira? // de se chamar virgínia woolf)

a mulher é uma construção // maquiagem é camuflagem

toda mulher tem um amigo gay // como é bom ter amigos

todos os amigos tem um amigo gay // que tem uma mulher // que lhe chama de fred astaire

neste ponto, já é tarde // as psicólogas do café freud // se olham e sorriem

nada vai mudar -

nada nunca vai mudar - a mulher é uma construção". (p.45-6). 

"Em seu segundo livro de poemas, publicado pela primeira vez em 2012, a poeta subverte imagens absolutamente gastas do que se espera da mulher - anunciadas em capas de revistas e em vitrines de lojas  de departamentos - para discutir, de modo transgressor, sobre questões de gênero". É o que lemos na contracapa do livro e, certamente, também a intenção da UFRGS, ao incluí-lo em sua lista para o vestibular.


quinta-feira, 13 de junho de 2024

200 livros para entender o Brasil. Folha de São Paulo. 4 de maio de 2022.

Pelos idos dos anos de 1990, estudando o tema da globalização e do neoliberalismo me deparei com o termo desterritorialização. Por que estou me lembrando desse conceito? É que em 2022 o Brasil (não) comemorou os duzentos anos de independência. A efeméride passou praticamente despercebida, mesmo tendo um governo que afirmava o princípio de "Deus, Pátria, Família e Liberdade". Ainda mais, os governantes afirmavam-se como sendo os verdadeiros patriotas. Acontece que, com a globalização e o neoliberalismo, a PÁTRIA ficou desterritorializada, e o território que antes era o da Pátria, agora passou a ser o do mercado globalizado, sem limites e fronteiras.

Quarto de despejo. Carolina Maria de Jesus. O livro com o maior número de indicações.

Essa é a razão pela qual os duzentos anos da Pátria brasileira, isto é, seu território, seu povo e suas instituições, passassem quase em branco, ao contrário do que ocorreu no centenário e no sesquicentenário, mesmo que este último fosse festejado sob o peso de chumbo da ditadura militar. Digo isso, para lembrar, que no espírito dessas comemorações, a Folha de S.Paulo fez uma pesquisa junto a 169 intelectuais sobre quais teriam sido os livros mais importantes para entender o Brasil. A classificação foi ordenada pelo número de menções recebidas. Para quem tiver interesse maior na matéria, a publicação dessa pesquisa ocorreu no dia 4 de maio de 2022.

Eu fiquei muito feliz, comigo mesmo, com os resultados obtidos, uma vez que li (ou o livro ou ensaio a respeito) e resenhei os dez primeiros da lista e a grande maioria entre os duzentos. Mesmo assim, devo dizer que ainda não conheço suficientemente este grande e maravilhoso país. Destaque-se que não são necessariamente os que melhor interpretam o Brasil e, possivelmente, numa listagem de um curso de uma universidade, ao menos entre os dez que mereceram o maior número de indicações, apareceriam outros. Os estudos das interpretações do Brasil sempre me trouxeram grande motivação. A Folha traz uma pequena síntese de cada um dos livros mencionados.

Mas vamos aos dez mais do ranking:

Em primeiro lugar: Quarto de despejo. Carolina Maria de Jesus. 1960.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/09/quarto-de-despejo-diario-de-uma.html  

Em segundo lugar: Grande sertão veredas. Guimarães Rosa. 1956. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/01/grande-sertao-veredas-joao-guimaraes.html

Em terceiro lugar: A queda do céu. Davi Kopenawa e Bruce Albert. 2015.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/04/a-queda-do-deu-palavras-de-um-xama.html

Em quarto lugar: Raízes do Brasil. Sérgio Buarque de Holanda. 1936. Uma síntese retirada do livro Um Banquete no Trópico - Introdução ao Brasil. Vol. 1. Lourenço Dantas Mota (organizador). O ensaio é de autoria de Brasílio Sallum Jr. (p. 235-256). Os dois volumes dessa introdução são altamente recomendáveis.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-11-raizes-do.html

Em quinto lugar: Casa Grande & Senzala. Gilberto Freire. 1933. Uma síntese retirada do livro Um Banquete no Trópico - Introdução ao Brasil. Vol. 1. Lourenço Dantas Mota (organizador). O ensaio é de autoria de Élide Rugai Bastos (p. 215-234).

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-10-casa-grande.html  

Em sexto lugar: Memórias póstumas de Brás Cubas. Machado de Assis. 1881.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/07/memorias-postumas-de-bras-cubas-machado.html

Em sétimo lugar: Um defeito de cor. Ana Maria Gonçalves. 2006.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/05/um-defeito-de-cor-romance-ana-maria.html

Em oitavo lugar: Macunaíma. Mário de Andrade. 1928.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/01/macunaima-uma-rapsodia-de-mario-de.html

Em nono lugar: Vidas secas. Graciliano Ramos. 1938.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/03/vidas-secas-graciliano-ramos.html

Em décimo lugar: Brasil: uma biografia. Lilia Schwarcz e Heloísa Starling. 2015.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/10/brasil-uma-biografia-lilia-m-schwarcz-e.html 

Além desses dez, faço mais algumas indicações da lista, mas sem obedecer a ordem de indicações. Entre elas cito: Os sertões. Euclides da Cunha. O povo brasileiro. Darcy Ribeiro. Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro. Triste fim de Policarpo Quaresma. Lima Barreto. Úrsula. Maria Firmina dos Reis. Escravidão. Laurentino Gomes. Os sete volumes de O tempo e o vento, de Érico Veríssimo. Os cinco volumes de Élio Gaspari sobre a Ditadura militar de 1964-1985. Além de toda a obra de Jorge Amado. E um que eu ainda não conheço, O genocídio do negro brasileiro, de Abdias do Nascimento e o livro pelo qual eu cheguei a esta pesquisa da Folha, A terra dos mil povos, de Kaká Werá Jecupé.

Deixo ainda a preciosa indicação de Antônio Cândido, numa listagem das dez mais importantes interpretações do Brasil. Ele separou por temas.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/10/dez-interpretacoes-de-brasil-indicacoes.html


segunda-feira, 10 de junho de 2024

Nada de novo no front. Erich Maria Remarque.

Não me lembro exatamente como cheguei ao Nada de novo no front, do escritor alemão, Erich Maria Remarque (1898-1970). Creio que tenha sido por algum comentário ouvido no rádio. Em todos os casos, fiquei muito satisfeito com a sua leitura, que me fez confirmar o escrito na contracapa, na qual o livro é apresentado como "o mais importante romance pacifista do século XX". A edição que eu li é da L&PM Pocket, com tradução de Helen Rumjanek. A primeira edição do livro foi de 1929 e, logo em seguida, foi levado ao cinema. A edição da L&PM que eu li é de 2023.

Nada de novo no front. Erich Maria Remarque. L&PM Pocket. 2023.

Para falar do livro, por mínimo que seja, é absolutamente necessário falar da biografia do autor, pois ela se confunde com o teor do livro. Vejamos a já mencionada contracapa: "Aos dezoito anos de idade, Erich Maria Remarque conheceu as trincheiras alemãs da Primeira Guerra Mundial. Foi ferido em três ocasiões. Saiu do conflito profundamente marcado e perplexo com a crueldade da guerra. Durante a década de 20, enfrentava a insônia carregada de fantasmas tomando notas sobre os horrores que viu e viveu no front. Os rascunhos formavam o núcleo de um romance". Este é o teor do livro, narrado ao longo de dez capítulos, sendo que cada capítulo se ocupa mais especificamente de um determinado tema. Mas vamos continuar com a sua biografia, agora de uma nota introdutória ao livro.

"... Parou de estudar aos dezoito anos para juntar-se ao exército alemão na Primeira Guerra Mundial. Nas trincheiras foi ferido três vezes, uma delas gravemente". Fora levado à guerra por um entusiasmo patriótico, incentivado pelos pais, imaginando que a guerra era também sua, mas, rapidamente descobriu que ela não o era.  Vou me ater ainda à questão biográfica, especialmente no que diz respeito às repercussões do livro, uma vez que reflete o espírito de uma época. Terrível.

"Após o conflito, lutando para sobreviver em um país completamente corroído pela guerra, exerceu diversas profissões: foi pedreiro, organista, motorista e agente de negócios, até estabilizar-se, mais ou menos, no jornalismo, exercendo funções de crítico teatral e repórter esportivo, entre outras, em alguns jornais de Hannover e Berlim". Mas o conflito não o abandonou. Ele continuou em suas longas noites de insônia, que aproveitou para escrever e, desta forma, não enlouquecer. Estes seus manuscritos foram publicados primeiramente sob a forma de folhetim e, em 1929 se transformaram em livro. Mas vamos às repercussões, lembrando dos horrores dos anos 1930, com a ascensão de tudo o que era sombrio e cinzento.

"Com o recrudescimento dos sentimentos nazistas, a perseguição a Erich Maria Remarque aumentou, pelo seu pacifismo manifesto nas suas obras (em 1931, publicou também O caminho de volta, que retratava as frustrações dos que regressavam das frentes de luta). Um ainda ascendente Joseph Goebbels e seus homens teriam interrompido sessões do filme, espalhando ratos brancos nas salas de projeção. Em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, o filme foi proibido. Remarque exilou-se primeiro na Suíça e, a partir de 1939, nos Estados Unidos. No dia 10 de maio de 1933, seus livros foram queimados na fogueira na praça da Ópera de Berlim. Em 1938, as autoridades alemãs retiraram sua cidadania alemã, por ter "arrastado na lama" os soldados da grande guerra e apresentado uma visão "antigermânica" dos acontecimentos da guerra". A essas alturas ele já estava seguro em seu exílio, mas a sua irmã pagou alto preço. Foi condenada à morte por decapitação. E, ainda sobre as repercussões vamos ao parágrafo final da apresentação biográfica:

"Remarque, que junto a Goethe é o escritor de língua alemã mais lido no mundo, faleceu aos 72 anos de idade, no dia 25 de setembro de 1970, em Lucarno, na Suíça. Não perdoou a Alemanha do pós-guerra pelo tratamento brando para com as autoridades nazistas. Constatou com amargura, por ocasião de uma visita ao seu país natal, em 1966: 'Pelo que sei, nenhum assassino do Terceiro Reich perdeu a sua cidadania alemã'". E, uma triste constatação: custa caro a luta pelo pacifismo. Mas voltamos ao livro, do qual "o protagonista é Paul, jovem alemão de família humilde que, como tantos de sua geração, deu ouvidos aos pais e professores, abandonou a escola e partiu para uma guerra que - conforme descobriria - não era a sua", como lemos na contracapa. Vamos ao livro, aos seus dez capítulos:

No primeiro, temos uma espécie de apresentação da guerra aos jovens. Paul, junto com seus companheiros, estão a nove quilômetros do front. Eram 150. Ainda restam 80. Isso, por alguns dias, propiciou uma grande anormalidade, qual seja, a comida farta. Mas a regra geral era sono e fome. A palavra covarde era usada com frequência, aplicada aos que tinham medo. Diante de roubos, atitudes autoritárias absurdas de comandantes, de ferimentos e amputações e, acima de tudo,  mortes, logo perceberam os absurdos da guerra.

O segundo capítulo é um primor de texto sobre os horrores da guerra, das vidas que ela interrompe, e sobre os absurdos da formação militar, definida como uma renúncia à personalidade e um vil embrutecimento. Sugiro uma atenta leitura das páginas 24 e 25. Eu voltarei ao tema, uma vez que - no Brasil pós extrema direita golpista - a abertura de escolas cívico militares, se transformou em meta em ascensão.

O terceiro capítulo é uma descrição do cotidiano do acampamento. A fome é companheira em todos os momentos. É pão, salada, prato principal e sobremesa de nabo todos os dias. Além disso é um suceder de futilidades e de vinculações entre a farda e o autoritarismo.

O quarto capítulo é dedicado a uma batalha no front. Nela os humanos simplesmente se transformam em animais, agindo instintivamente. Ao lado, o sofrimento dos cavalos e dos homens mutilados e mortos. Espasmos e êxtases. Cinco mortos e oito feridos.

No quinto capítulo voltamos ao cotidiano do acampamento, agora enfocando mais o ponto de vista psicológico. Vejamos uma descrição: "A guerra arruinou-nos para tudo", afirma uma dos personagens. E Paul continua: "Ele tem razão. Não somos mais a juventude. Não queremos mais conquistar o mundo. Somos fugitivos. Fugimos de nós mesmos e de nossas vidas. Tínhamos dezoito anos e estávamos começando a amar a vida e o mundo e fomos obrigados a atirar neles e destruí-los. A primeira bomba, a primeira granada, explodiu em nossos corações. Estamos isolados dos que trabalham, da atividade, da ambição, do progresso. Não acreditamos mais nessas coisas; só acreditamos na guerra" (p.74).

O sexto capítulo é dedicado à descrição dos ataques no front, um encontro, cara a cara com a morte. Somos algo parecido com seres humanos, mais como demônios em fúria. E muito preocupantes são os intervalos nos ataques, quando explodem os desconcertos da mente. Nos sentimos como mortos e nada nos poderá fazer renascer. De cento e cinquenta sobraram trinta e dois.

No capítulo de número sete, voltamos ao front, em raros momentos de paz. Estes são momentos de fuga da loucura que assola a todos. Se divertem com garotas francesas. Um leve sopro de juventude e de vida. Paul ganha uma folga de dezessete dias. Junto a família silenciada pelos aflitos da guerra, sente a percepção da mesma, a partir do imaginário popular. Os heróis na defesa da pátria. A guerra como forma de provar atos de heroísmo. O forte desejo do expansionismo... Tomar a Bélgica, o carvão francês, partir sobre a Rússia. Para Paul, um destroçar de todas as relações humanas, do mundo da afetividade e dos sonhos mínimos. Um dos mais duros capítulos.

No oitavo capítulo volta uma bela cena de ternura. No acampamento cuidam dos prisioneiros russos. Paul recebe a visita do pai e da irmã.. A mãe lhe manda bolinhos. São um raro banquete. Ele não hesita em reparti-los com os inimigos russos, feitos prisioneiros. Eles se tornam mais fraternos, talvez -, por estarem mais infelizes.   

O nono capítulo, o mais longo deles, é dedicado a reflexões sobre a guerra, quando os soldados concluem que a mesma não lhes diz respeito, mas que há gente que dela tira proveito: "Mas, então, para que serve a guerra? indaga Tjaden, Kat dá de ombros. - Deve haver gente que tira proveito dela. - Bem, eu não faço parte deles - ri Tjaden, irônico. - Nem você, nem nenhum de nós aqui" (p. 158). Outra reflexão forte está, já nas páginas finais do livro, quando afirma que os verdadeiros resultados da guerra só se conhecem no interior de um hospital e logo a seguir o jovem Paul emenda:

"Sou jovem, tenho vinte anos, mas da vida conheço apenas o desespero, o medo, a morte e a mais insana superficialidade que se estende sobre um abismo de sofrimento. Vejo como os povos são insuflados uns contra os outros e como se matam em silêncio, ignorantes, tolos, submissos e inocentes, Vejo que os cérebros mais inteligentes do mundo inventam armas e palavras para que tudo isto se faça com mais requintes e maior duração. E, como eu, todos os homens de minha idade, tanto deste, quanto do outro lado, no mundo inteiro, veem isto; toda a minha geração, sofre comigo [...]. Durante todos esses anos, nossa única preocupação foi matar. Nossa primeira profissão na vida. Nosso conhecimento da vida limita-se à morte. Que se pode fazer, depois disto? Que será de nós" (p. 200).

Do décimo capítulo, tomo as duas frases finais. "Tombou morto (Paul) num dia tão tranquilo em toda a linha de frente, que o comunicado limitou-se a uma frase: Nada de novo no front.

Caiu de bruços e ficou estendido, como se estivesse dormindo. Quando alguém o virou, viu-se que ele não devia ter sofrido muito. Tinha no rosto uma expressão tão serena, que quase parecia estar satisfeito de ter terminado assim" (p.220).

É a geração que depois enfrentou a Segunda Guerra Mundial e o mundo da Bipolaridade e da Guerra Fria. Talvez apenas a Guerra do Vietnã tenha provocado literatura semelhante. Prefiro ficar com o enunciado da contracapa: O mais importante romance pacifista do século XX.





sábado, 1 de junho de 2024

A terra dos mil povos. Kaká Werá Jecupé. Vestibular UFRGS - 2025.

As indicações de livros para os diferentes vestibulares também me levam à leituras. Dessa vez, vendo as indicações para 2025, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, me deparei com - A terra dos mil povos - História indígena do Brasil contada por um índio - de Kaká Werá Jecupé. A publicação não é recente, data de 1998, ainda no espírito dos 500 anos do "descobrimento". A pergunta que se impõe necessariamente é - mas o que havia aqui antes dessa data. Uma das teses do livro é a de que hoje temos a necessidade de pacificar os brancos, que nos trouxeram a "civilização". Isso implica num mergulho profundo na visão de mundo desses mil povos, anteriores ao processo civilizatório da cultura ocidental.

A terra dos mil povos. Kaká Werá Jecupé. Peirópolis. 2023.

A versão que tenho em mãos é a sua segunda edição, datada de 2020, em 5ª reimpressão, de 2023. O livro é da Peirópolis, mais que uma editora, uma Fundação de Educação em Valores Humanos. Kaká usou dessa Fundação para desenvolver a temática  e a visão de mundo da tradição tupi-guarani. Confesso que fiquei encantado com o livro, um dos melhores sobre a cultura indígena, junto com os livros de Darcy Ribeiro e de Manuela Carneiro da Cunha. Apenas mais recentemente temos outras obras como as de Ailton Krenak (Ideias para adiar o fim do mundo) e Davi Kopenawa (A queda do céu) escrito em parceria com o antropólogo Bruce Albert.

Outra observação a partir da leitura do livro é a do quanto que desconhecemos este mundo indígena na formação da identidade nacional brasileira e a relativamente pouca literatura existente a respeito. Digo isso, em comparação com a leitura que envolve a questão dos negros, originários da África. Nesse sentido o livro preenche uma enorme lacuna. Vale também a preocupação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul ao incluir o tema, sob a forma de livro incluído em seu vestibular.

Primeiramente algumas impressões ao longo da leitura. Uma cultura ou visão de mundo fundada na observação dos sábios da tribo e de experiências passadas de geração em geração, absorvendo a herança ancestral e em consonância com uma grande unidade com a natureza, unindo o espiritual ao material é muito diferente de uma cultura que foi prescrita. Por isso, entre eles, o maior respeito à natureza, à generosidade da Mãe-Terra. Muito semelhante com as outras culturas dos povos originários da América, de sua cultura à Pachamama. Muita semelhança também com os ancestrais africanos e mesmo com os gregos. E a força dos quatro elementos: Terra, Ar, Água e Fogo. Em suma, uma cultura oriunda da observação dos fenômenos da natureza, entrelaçados ao humano e perpetuada pelo culto à ancestralidade. Ou, uma cultura não fundada em livro de prescrições.

Entre os muitos trechos sublinhados, destaquei este, que tinha por título: "Somos parte da terra e ela é parte de nós". Diz assim: "Contudo, a maior contribuição que os povos da floresta podem deixar ao homem branco é a prática de um ser uno com a natureza interna de si. As tradições do Sol, da Lua, e da Grande Mãe ensinam que tudo se desdobra de uma fonte única, formando uma trama sagrada de relações e inter-relações, de modo que tudo se conecta a tudo. O pulsar de uma estrela na noite é o mesmo do coração. Homens, árvores, serras, rios e mares são um corpo, com ações interdependentes. Esse conceito só pode ser compreendido por meio do coração, ou seja, da natureza interna de cada um. Quando o humano das cidades petrificadas largar as armas do intelecto, essa compreensão será compreendida. Nesse momento, entraremos no ciclo da unicidade, e a terra sem males se manifestará no reino humano" (p. 64). Este mundo sucumbiu à civilização do branco, à chamada racionalidade do mundo ocidental. Lembro de Leonardo Boff, numa aproximação com esta visão, quando fala de três tipos de razão: a da inteligência, a do coração e a da espiritualidade.

Ele também nos apresenta crenças indígenas a respeito da origem do mundo e da humanidade. "De maneira geral, pode-se dizer que o índio classifica a realidade como uma pedra de cristal lapidado, com muitas faces. Nós vivemos em sua totalidade, porém só apreendemos parte dela pelos olhos externos. para serem descritas, é necessário ativar o encanto para imaginarmos como são as faces que não se expressam por palavras" (p.71).

Uma parte notável do livro apresenta uma pequena síntese cronológica da história indígena brasileira, o espírito do tempo, de 1500 a 1998, ano da escrita do livro. Pena que essa cronologia não foi atualizada até 2020, por ocasião da 2ª edição. É uma história de atrocidades e de resistências, atrocidades dos bandeirantes e de grande parte dos catequistas. De resistência pelas inúmeras lutas contra a dominação e colonização, como a experiência da República Comunista Cristã dos Guaranis e a luta presente até os dias de hoje, pela visibilidade e preservação de suas culturas e demarcação de terras. Aí ele nos apresenta os resistentes dos tempos mais recentes, como Mário Juruna, Raoni, Ailton Krenak, Álvaro Tukano e Sônia Guajajara, esta aliando à luta indígena, a luta das mulheres.

Outro belo capítulo é o das  múltiplas contribuições indígenas na formação da cultura brasileira, com destaque para a agricultura, o cultivo da terra, a classificação das plantas, contribuições para a saúde, para a ética e para a filosofia, para alcançar uma longevidade, além de seus saberes fármacos, entre outros tantos. A identidade brasileira tem as suas raízes plantadas nas três grandes culturas que a formaram, todos com os seus saberes. E, como nos lembra o grande mestre Paulo Freire, que não existem saberes superiores e inferiores, mas sim, saberes diferentes. Depois da leitura desse capítulo vi um vídeo sobre a atual agricultura biodinâmica. Impressionante a sua origem.

Ele também aborda a delicada questão religiosa, nos chamando a atenção para o conceito latino do religare. "Religar-se a alguma coisa. Com o Divino, com Deus. Foi essa a ideia trazida para esses trópicos no século XVI". Mas não foi bem isso. Werá Jecupé não se intimida em nos apontar para a terrível hipocrisia e contradição entre o pregado e a sua prática: 

"Vimos que, no decorrer deste século, essas ideias se manifestaram nos templos, nas catedrais, nas capelas, nos livros. E vê-se que essa ideia não surge na atitude da civilização. Enquanto isso, o espaço entre a ideia e a atitude tem gerado a miséria humana. A palavra corre pelo governo humano sem espírito, sem cumprimento do que se diz. Pois palavra e espírito estão longe. A voz sai morta, porém maquiada para dar a impressão de vida. A religião é surda, pois o espírito está mudo" (p. 99). Mais uma vez lembrei de Paulo Freire, numa inscrição em camiseta que ganhei numa participação em seminário sobre o grande mestre: É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática.

Com muita satisfação, quando eu li as duas últimas páginas do livro, que falam da biografia do autor, encontrei a referência de que A terra dos mil povos - História indígena contada por um índio - "...em 2022 foi listada pela Folha de S.Paulo dentre as 200 obras importantes para entender o Brasil, em levantamento de 169 intelectuais da língua portuguesa" (p. 125). Parabéns aos envolvidos que me fizeram chegar ao livro e, especialmente ao autor, pelo rico aprendizado.

E..., a partir do contido no livro, uma reflexão final. É preciso pacificar o branco e isso implica em...

Deixo ainda uma dica de Antônio Cândido, na sua indicação dos livros mais importantes para conhecer o Brasil. Para a questão indígena ele indicou o livro aqui resenhado:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/12/indios-no-brasil-historia-direitos-e.html

 E o grande clássico sobre o colonialismo, o colossal Os condenados da terra, de Frantz Fanon.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/03/os-condenados-da-terra-frantz-fanon.html