É pela terceira vez que começo a resenha deste livro - deixe o quarto como ele está, de Amilcar Bettega. Trata-se de um livro muito difícil de ler, e muito mais de resenhar, pois trata-se de um livro inteiramente aberto. Ele exige leitura atenta, reflexões e interpretações suas, e que nunca necessariamente são as mesmas. É um livro de 2002 e uma indicação para o vestibular de 2025, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, indicação pela qual cheguei ao livro. A sua primeira edição é do ano de 2002.
Deixe o quarto como está. Amílcar Bettega. Companhia das Letras. 2020.
"Flertando com Kafka, Rulfo e Cortázar, Amilcar Bettega faz deste livro uma das melhores amostras da literatura brasileira contemporânea", lê-se na contracapa. Confesso que não li Rulfo e Cortázar, mas senti os mesmos desassossegos que senti com a leitura de Kafka. Também tive as minhas lembranças: A sociedade do cansaço, de Byung-Chul Han, Necropolítica, de Achile Mbembe e, especialmente, de realismo capitalista - é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, de Mark Fisher. Deste último, a impactante ideia de que vivemos um fracasso há cinquenta anos, mas um fracasso inteiramente consolidado, que não se imagina em mudar. Um infelicitar de todos. Também lembrei muito do documentário Janela da alma, de João Jardim. Nele há uma fala de Saramago, se não me engano, sobre a necessidade de também ler as entrelinhas.
A interpretação de Deixe o quarto como está me ficou mais fácil depois de ver uma entrevista do autor, concedida ao Jornal da Universidade da URGS, que pode ser encontrada no Google, digitando - Escrevo porque não sei - jornal da universidade. A entrevista é datada de 10 de dezembro de 2020. Nela, Bettega está muito feliz, pois além da indicação de seu livro para o vestibular da universidade, também ocorreu o lançamento do livro em tradução para o italiano. Algumas observações a partir dessa entrevista.
A primeira é uma dica preciosa, uma pista para a interpretação. Preste atenção ao subtítulo: ou Estudos para a composição do cansaço. O cansaço, não o físico, mas o moral, o emocional, aquele que adoece, aquele que infelicita é um dos temas que perpassa os contos. Sim, é um livro de contos, 14 no total. A segunda é sobre o título e a frase de epígrafe: "Deixe o quarto como está. Agora, está tudo pronto. Estamos prontos. Quer ir? A frase é do contista estadunidense, Raymond Carver, admirador e biógrafo de Tchekhov. É sobre a morte de Tchekhov, que, em seu leito de morte, atendido por um médico que constata não haver o que fazer, manda servir champanhe. Certamente uma celebração do momento derradeiro da vida. Quando o garçom do hotel procura limpar o quarto, a esposa lhe pede para deixar o quarto como ele está. Lindo, lindo. Mas trata-se da morte. Não há saída.
Outra observação, a partir da entrevista, é sobre o conto O encontro. Conta-se que o escritor espanhol, Vila-Matas fora convidado para um encontro literário em Paris. Ele chega, se hospeda em um hotel e espera o contato com os organizadores do evento. Como eles não aparecem, aproveita a ocasião para refletir e escrever sobre a espera, ficar esperando, rodando, aguardando. Para mim, também, uma reflexão sobre a dificuldade de encontros em nossa sociedade, muito mais dada a desencontros.
Na entrevista também é interessante observar as perguntas, pois são muito bem feitas. Elas denotam conhecimento da obra. Elas contém o teor da obra, o que obriga o autor a responder sobre ela. Aí percebemos os temas fundamentais: cansaço, o vazio do cotidiano, falta de sentido, aprisionamento, ausência de perspectivas, insistências... No meu tempo de estudante de filosofia, a gente chamava isso de angústias da existência, ou o famoso "estamos condenados a ser livres". As pessoas sabem que vão perder, mas não desistem, responde Bettega, a uma das perguntas. Um dos mais belos contos, cheio de significados: Exílio. Tomar o trem de volta e, começar tudo de novo, apesar de se defrontar sempre com muralhas, como ocorre no conto sobre "o encontro".
Também é muito interessante dar uma olhada na biografia, na história de vida do escritor. Ele nasceu na militarizada cidade de São Gabriel, no emblemático ano de 1964. São Gabriel conta hoje com um pouco mais de 60.000 habitantes. Está a 320 quilômetros distante de Porto Alegre, para onde foi estudar engenharia civil, na sua conceituada universidade. Mas não era este o seu campo. O campo das Letras o levou a Paris, para a Sorbonne, para estudar escrita criativa. E isso ele consegue fazer, mesmo dentro da mais brutal e depressiva realidade.
Acima de tudo, contos para refletir, para dar voltas ao redor dos fatos, para enxergá-los por todos os ângulos e lados. Um livro aberto, para nele, também você, inscrever as suas letras, aproveitando para isso, as suas entrelinhas. As reflexões precisam ter continuidade.
Deixo a resenha de Sociedade do cansaço:
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/01/sociedade-do-cansaco-byung-chul-han.html