segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Grande Sertão: Veredas. João Guimarães Rosa.

"Mas, por fim, eu tomei coragem, e tudo perguntei:
'O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!'
Então ele sorriu, o pronto sincero, e me vale respondeu:
'Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais...'
E me cerro, aqui, mire e veja. Isto não é o de um relatar passagens de sua vida, em toda admiração. Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras.
Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O rio de São Francisco - que de tão grande se comparece - parece um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia".

Eis o romance, eis a história e acima de tudo, eis um jeito de contar. 608 páginas, da Nova Fronteira.

Assim termina a história contada por João Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas. Se você percebeu a existência de mistério neste final do livro e, se você se propuser a lê-lo, prepare-se. Este mistério perpassa a obra inteira. É uma história de jagunços e uma história de amor. Não é uma grande história, grande, muito grande, é o modo de contar, único. Não há nada igual, nada que se compare. Riobaldo conta a história diretamente para você. Além do dito, tem que prestar atenção no não dito, naquilo que vai além. Naquilo que transcende.

Vamos primeiro ao título do livro Grande Sertão: Veredas. Vamos ao Aurélio ver primeiro o significado de sertão:1."Região agreste, distante das povoações ou de terras cultivadas, 2. Terreno coberto de mato, longe do litoral, 3.Interior pouco povoado". O significado se repete. O longe, o despovoado é o sertão das Minas Gerais. Agora vamos ver veredas: 1."Caminho estreito, senda, 2. Atalho, 3. Rumo, caminho, direção". Agora vamos juntar Grande Sertão: Veredas. O sertão é viver. No sertão existem muitos caminhos. No sertão existem muitos labirintos. O sertão é a vida e a vida é travessia. Travessia é viver e...viver é muito perigoso. Deus e o diabo. O bem e o mal. O amor e o ódio. A ternura e a vingança.

Quem conta a história é Riobaldo, Rio... de travessia. Ele se embrenha no sertão, nos introduz nos principais temas, e se encontra com o grupo de Joca Ramiro, ao qual ele passa a integrar. Antes encontrara Zé Bebelo, mas é contra ele que passam a lutar. O julgamento de Zé Bebelo é um dos primeiros momentos em que a narrativa ganha um sabor maior. As leis do sertão. Ele vai embora para Goiás, para só voltar após a morte de Joca Ramiro. Neste meio se dá o encontro ente Riobaldo e Diadorim e um grande amor acontece. Um amor impossível de se manifestar, mas incomparável em sentimento e em grandeza. Joca Ramiro é jagunço vencedor.

Foto do grande escritor. Maneira única de escrever. O seu tema é o sertão, a travessia.

A história avança com a traição dentro do grupo. Joca é morto pelo personagem do mal, Hermógenes. Para vingar-se dele, faria pacto com o diabo, mas o diabo não seria o próprio Hermógenes? Toda a narrativa vai agora no encalço de Hermógenes e seu bando. Zé Bebelo, após a morte de Ramiro, também está de volta. Ele será o chefe. Riobaldo desconfia e assume ele a chefia. Riobaldo é tatarana. Riobaldo é urutu branco. Riobaldo não conhece medo. Mas, viver é muito perigoso. Com Riobaldo no comando só resta o grande confronto final. Entre as histórias de Riobaldo está o seu casamento com Otacília, a Penélope distante, para a ciumeira de Diadorin. Ficam um longo tempo no sertão, pois sertão é o mundo, um retrato do mundo, uma tensão com o mundo.

O embate final demora a vir, será no Tamanduá-tão. Sempre fugindo do perigo... para o perigoso e, Riobaldo, vendo o seu sorriso na boca de Diadorin. O tiroteio será feroz e no saldo final se contabiliza a morte de Hermógenes, mas também a de Diadorin. Este com valentia mata o Hermógenes, se vinga de seu pai. Joca Ramiro era o pai de Diadorin. Riobaldo está ferido e entra em delírio. Ao final de seu delírio, com a sua recuperação todas as verdades se revelam.

Riobaldo casa-se com Otacília. Em casa de Ornelas, fazendeiro amigo, recebe a visita de seu Habão, já visto tantas vezes na história. Seu Habão lhe traz o testamento, deixado por seu padrinho, recentemente falecido, Selorico Mendes, que orgulhoso dos atos heroicos do sobrinho lhe deixava as suas duas melhores fazendas. Da matriz de Itacambira, do batistério se trouxe um papel, onde se lia, registrado assim, nos idos de 1800 e tantos...Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins - "que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...Reze o senhor por essa muinha alma. O senhor acha que a vida é tristonha?" Era Reinaldo, era Diadorin.

Além do sertão e de jagunços, uma grande história de amor, amor impossível. Riobaldo e Diadorin.

Depois as coisas vão se acertando. O amor por Otacília também brota imenso e no sertão vai vivendo com os seus perguntares e com os seus perigos. Zé Bebelo também aparece, mas esse quer é viver na cidade, e ganhar muito dinheiro. Riobaldo prefere o sertão, que o sertão é do tamanho do mundo. O Ser Tão. Depois seguem as conclusões pelas quais eu comecei e, também, termino "Amigos somos. Nonada.O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia". Humano, travessia...

Ao ler o livro tive muitas curiosidades. Para ajudar a situar. Guimarães Rosa nasceu em 1908, em Cordisburgo MG e morre no Rio de Janeiro, morte súbita, em 1967. Morre três dias após assumir a sua cadeira na Academia Brasileira de Letras. Em seu discurso de posse declarara que "a gente morre para provar que viveu". A sua indicação para o Nobel de literatura foi suspensa com o seu falecimento. Guimarães Rosa foi médico de formação, além de naturalista e botânico, o que o ajudou a escrever de forma tão peculiar sobre o sertão. Em sua infância, o pai lhe escrevia cartas, contando causos do sertão. Em sua homenagem foi criado o Parque Nacional Grande Sertão Veredas, em Formoso, Chapada Gaúcha, na divisa de Minas Gerais com a Bahia.. Deu vontade de conhecer. Passeios pelo São Francisco em Pirapora,  e a cachaça de Januária e, muito mais. Em Cordisburgo tem museu e leituras.

Para terminar, coisa de professor. Localizei aquela célebre frase que contrapõe o ensinar e o aprender. Ela está assim: "Pergunto coisas ao burití; e o que ele responde é: a coragem minha. Burití quer todo azul, e não se aparta de sua água - carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez? Isto está nas páginas 309-10, no livro da edição de 2006, da Nova Fronteira.

Nota. 10.03.2020. Paulo Freire, na sua prisão em Olinda em meados de 1964: "Caiu-lhe nas mãos o clássico Grande Sertão: veredas. Incomodado com a linguagem de Guimarães Rosa, desistiu do livro e comentou com Clodomir (Santos de Morais) sua dificuldade com o estilo, o palavreado, o tom regional do romance. Surpreso, o companheiro explicou as circunstâncias que levaram aquela região entre o rio São Francisco e Goiás a manter uma espécie de dialeto próprio, o mesmo falado até então por sua mãe e alguns parentes que moravam ali. 'Se você quiser, eu, com toda a satisfação, vou tratar de traduzi-lo', propôs Clodomir, disposto a fazer anotações sobre as expressões idiomáticas no próprio livro. Paulo aceitou de imediato".  Página 23 do livro: O educador - um perfil de Paulo Freire. Autêntica. São Paulo. 2019, de autoria de Sérgio Haddad.

  


2 comentários:

  1. Um dos meus livros prediletos. Mas...
    ...Fez um "spoiler", rs... matou a curiosidade do povo.

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  2. Oi Cláudio. Não é a intenção. Pelo contrário, procurei provocar a curiosidade em torno do mais. Muito obrigado pelo seu comentário.

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