quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Salvador. Rua Alagoinhas 33. A Casa do Rio Vermelho.

Em maio de 2022 eu e o meu amigo Valdemar Reinert estivemos em Salvador. A nossa intenção primeira era a de assistir ao show de Caetano Veloso Meu Coco, no famoso e histórico Teatro Castro Alves. Em 1968 ele fora o palco de despedida de Caetano e Gil, no rumo de seus exílios. Tempos de endurecimento de um regime que não tolerava a democracia e a arte de seu povo. Mas a viagem foi muito mais.

Além das maravilhas de Salvador, de seu histórico Pelourinho, onde se localizava a Tenda dos Milagres do Jorge Amado, por ele transformada na Universidade Popular do Pelourinho, sob a chancelaria de mestre Pedro Archanjo e Magé Bassã; Conhecemos também o Dom Quixote do Pelourinho, na pessoa do "eterno menino", Clarindo Silva em sua "Cantina da Lua", além da Ilha de Itaparica e da terra de Dona Canô e do Bembé do Mercado, que é a cidade de Santo Amaro da Purificação, cidade do Recôncavo, onde experimentamos os sabores e sentimos os odores da cozinha da Bahia, no acolhedor "Lá em Carla".

A casa famosa, no endereço famoso. Rua Alagoinhas 33.

Mas uma das melhores visitas que fizemos foi num lugar que se tornou enormemente famoso. Lugar descrito em livro e transformado em local de romaria cultural. Dou o endereço. Rua Alagoinhas número 33, no bairro do Rio Vermelho. O local foi adquirido com direitos autorais da passagem de uma de suas obras para as telas do cinema. Visitamos a casa de Zélia Gattai e de Jorge Amado. Um local contagiante que transpira as alegrias dos sentimentos maiores do ser humano, como o cultivar amizades. Um local de encontro das maiores intelectualidades do século XX.

Não quero eu me por a falar da Casa. Vou transcrever o escrito de quatro cartazes e mostrar algumas fotografias desse lugar pleno de magia e de energia e deixar uma recomendação de leitura. Mas antes
quero deixar o escrito que tomei de um livro que lá eu estava folheando. Trata-se de Carybé - Verger e Jorge. A frase é de Carybé, um visitante assíduo da casa, e que me fez muito bem, por isso vou deixá-la em maiúsculo:

O busto do escritor, na casa famosa. 

"ENTREI PARA O CANDOMBLÉ PORQUE GOSTO. É A MELHOR RELIGIÃO. NÃO TEM INFERNO NEM PECADO E OS DEUSES, EM ÚLTIMA INSTÂNCIA, SÃO OS RIOS, O MAR, A FLORESTA, O VENTO, A CHUVA. OXUMARÉ É O ARCO ÍRIS. NA BAHIA É TRADIÇÃO". CARYBÉ.  Uma religião sem culpa.

No primeiro cartaz ou quadro a casa é apresentada. Ela leva o título de A Casa do Rio Vermelho e diz o seguinte:

Nos jardins da casa.

Revelar aos baianos, brasileiros e turistas a intimidade de Jorge e Zélia é mais do que um investimento em cultura ou turismo; é preservar a alma e a essência do povo baiano, ajudando a manter viva a memória que nos remete à nossa própria identidade e à construção dos nossos valores mais genuínos. Esperamos que a casa do Rio Vermelho seja, além de um memorial que conta a história de amor de um casal e como essa relação contagiou o mundo inteiro e todos aqueles que pela Rua Alagoinhas número 33 passaram, também seja fonte de inspiração permanente para o surgimento de novos talentos literários e pensadores libertários. Viva Jorge Amado! Viva Zélia Gattai!

Um tabuleiro de sabores e odores.

O segundo quadro é uma referência ao mundo de pessoas recebidas pelo casal, sob a beleza do que se chama de hospitalidade. O título é: A Amizade é o Sal da Vida. Vejamos:

Jorge Amado e Zélia Gattai foram pessoas agregadoras e, ao longo da vida, formaram uma grande coleção de amigos, vindos de todas as partes do mundo, das mais diferentes origens e ocupações. Muitos desses amigos foram importantes nomes da cultura e do pensamento do século XX. A Casa do Rio Vermelho esteve sempre aberta a eles, numa permanente celebração à alegria de viver e à união entre as pessoas. 

Uma obra de arte na apresentação da casa.

O terceiro quadro nos apresenta a Bahia. Ele tem mesmo esse título. A Bahia de Jorge Amado. Nele lemos:

A Bahia de Jorge Amado é a terra da mistura e da mestiçagem. É preta, parda, índia, branca. É a terra da diversidade e da convivência de diferentes crenças e religiões. É também terra violenta e desigual, com seus coronéis, jagunços e pistoleiros; seus heróis do povo, suas mulheres guerreiras. É a terra dos sabores e cheiros, da dança, do suor, dos amores cheirando a sexo, cravo e canela. Terra habitada por uma gente que, mesmo na pobreza e na adversidade, sabe dar valor à vida, em tudo o que ela significa de luz e alegria. E eu acrescento: Por toda essa sua diversidade, ela é terra para múltiplas aprendizagens. Não se aprende com o eco da própria voz.

Com o quarto quadro, rendo um tributo a Jorge Amado, pela sua luta em favor da Liberdade Religiosa. Foi dele, na qualidade de deputado constituinte, a inscrição em nossa Constituição de 1946 do artigo sobre esta liberdade e que depois nunca mais deixou de constar nas Constituições posteriores. Ela tem por título: Jorge e o Candomblé.

Jorge Amado também cultivava seus santos de admiração.

Depois que foi apresentado à magia do candomblé, aos 15 anos de idade, Jorge Amado se tornou frequentador assíduo dos terreiros. Filho de Oxóssi, foi amigo das grandes mães de santo de Salvador e lutou de forma incansável contra a violência e a intolerância e a favor da liberdade religiosa no Brasil. Essa luta de uma vida inteira transformou Jorge Amado em um dos mais importantes defensores do candomblé e da cultura negra na Bahia.

Devo ainda registrar que na saída passando pela lojinha que vende os livros do casal de escritores, além de lembrancinhas, e depois de uma longa conversa com a senhora que toma conta dessa lojinha, fomos por ela agraciados com o livro O Universo de Jorge Amado, um livro distribuído gratuitamente pela Companhia das Letras. Na capa se lê - caderno de leituras. Orientações para o trabalho em sala de aula. Ele também está à venda.

O livro com o qual fomos agraciados.

E, em sua próxima visita a Salvador anote em sua agenda a visita na rua Alagoinha número 33. A senhora da lojinha nos deu o espírito da casa. "Lá no Pelourinho, na Fundação, está a sua obra, mas aqui, na sua casa, está a sua vida". Memorável. Vejamos ainda a resenha do livro da Zélia. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/03/a-casa-do-rio-vermelho-zelia-gattai.html 


sábado, 10 de setembro de 2022

Galinhas. Reflexões de um anarquista sobre a propriedade privada. Rafael Barret.

Encontrei este texto clicando no Google - Biblioteca Terra Livre. Conto "Galinhas". Rafael Barret. Aí aparece este texto maravilhoso, uma produção genial saída de uma mente anarquista. Rafael Barret é espanhol, nascido em Torrelavega no ano de 1876 e que morreu na cidade de Arcachon, na França, em 1910. A sua vida literária foi desenvolvida em terras paraguaias. O autor começa a ter preocupações na vida, e preocupações sérias, quando começou a ter uma propriedade, a propriedade de uma galinha, apenas uma galinha. 

A fonte do texto portanto é a Revista Terra Livre n.° 2. O mordaz e satírico conto diz assim:

Já tem um cachorro intruso.

"Enquanto não possuía mais que minha cama e meus livros, fui feliz. Agora possuo nove galinhas e um galo e minha alma está perturbada. A propriedade me tornou cruel. Sempre que comprava uma galinha, a prendia por dois dias em uma árvore, para impô-la ao meu domicílio, destruindo em sua frágil memória o amor a sua antiga residência. Remendei a cerca do meu quintal, para evitar a evasão das minhas aves e a invasão de raposas de quatro e de dois pés.

Me isolei, fortifiquei minha fronteira, tracei uma linha diabólica entre meu próximo e eu. Dividi a humanidade em duas categorias: eu, dono das minhas galinhas e os demais, que podiam roubá-las. Defini o delito. O mundo para mim se encheu de supostos ladrões e pela primeira vez lancei para  o outro lado da cerca um olhar hostil.

Meu galo era muito jovem. O galo do vizinho saltou a cerca e começou a fazer corte às minhas galinhas e a amargurar a existência do meu galo. Expulsei o intruso a pedradas, mas ele saltava a cerca e voava para a casa do vizinho. Reclamei os ovos e o vizinho me aborreceu. Desde então vi sua cara sobre a cerca, seu olhar inquisidor e hostil, idêntico ao meu. Seus frangos passavam pela cerca e devoravam o milho molhado que deixava para os meu. Os frangos alheios me pareciam criminosos.

Tentando a fuga pela cerca.


Persegui eles e cegado pela raiva, matei um. O vizinho atribuiu uma importância enorme ao atentado. Não quis aceitar uma indenização monetária. Retirou o cadáver do seu frango de modo muito sério e, no lugar de comê-lo, mostrou a seus amigos, começando a circular pelo povo a lenda da minha brutalidade imperialista. Tive que reforçar a cerca, aumentar a vigilância, elevar em uma palavra, meu pressuposto de guerra. O vizinho dispõe de cão disposto a tudo; eu penso em adquirir um revólver.

Onde está a minha tranquilidade? Estou envenenado pela desconfiança e pelo ódio. O espírito do mal se apoderou de mim. Antes era um homem. Agora sou um proprietário".

Ah, esses anarquistas!


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Escravidão. Volume III. Da independência à Lei Áurea. Laurentino Gomes.

 Como Laurentino Gomes escreveu uma trilogia sobre a escravidão brasileira, antes de fazer a resenha do terceiro volume, apresento o link da resenha dos volumes I e II, já feitas nesse blog.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/03/escravidao-volume-1-laurentino-gomes.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/10/escravidao-volume-ii-laurentino-gomes.html

O terceiro volume da trilogia Escravidão. Globo Livros. 2022.

Apresento também os subtítulos dos três volumes. O título geral é Escravidão. O subtítulo do volume I é Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, o do volume II é Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil e o do volume III é Da Independência do Brasil à Lei Áurea. O terceiro volume é o mais volumoso deles. São quase 600 páginas de muito conteúdo. Ao todo, a soma dos três volumes atinge praticamente 1500 páginas, passando pelo tráfico, pela análise do sistema da escravidão, até a abolição, que, de fato não existiu. A desigualdade pela qual o Brasil passa ainda nos dias de hoje é um reflexo de que no Brasil pode ter havido um processo de  abolição da escravidão, mas não a sua obra, usando uma afirmação de Joaquim Nabuco.

O terceiro volume está estruturado em 29 capítulos e, conforme o subtítulo nos indica, ele faz a abordagem desde os tempos da independência até a abolição, de 1822 a 1888, portanto. A proclamação da independência, nada significou para a população brasileira escravizada. José Bonifácio era praticamente uma voz solitária na abordagem dessa  questão nessa época. Como os títulos dos capítulos são curtos, eu os apresento. Depois vou me deter em alguns deles.

Cap. I. Folguedos da libertação (um panorama geral do período); cap. II. O comendador (Sousa Breves, um símbolo da escravidão nesse período, já dominado pela lavoura cafeeira no vale do rio Paraíba); cap. III. Os esquecidos (por óbvio, os escravizados, não atingidos pela independência); cap. IV. Para inglês ver (a lei de 1831 que aboliu o tráfico negreiro, assinado junto a Inglaterra); cap. V. Hipocrisia (as relações comerciais com a Inglaterra, sem levar em conta a lei de 1831); cap. VI. Honoráveis beneméritos (traficantes benfeitores da humanidade e cidadãos exemplares); cap. VII. Barões e fidalgos (a distribuição de comendas da nobreza no vale do Paraíba, o coração escravista ao longo do século XIX).

Capítulo VIII. O Império escravista (O cotidiano escravista nas fazendas de café do vale do Paraíba); cap. IX. Vende-se, compra-se, aluga-se (Trabalho desumanizante, as diferentes formas de escravidão. Escravos de ganho, de aluguel, amas de leite, além de outras formas ainda menos dignas. Aborda também a questão de uma linguagem escravista); cap. X. O Valongo (o centro de comercialização dos escravizados no Rio de Janeiro); cap. XI. A testemunha (A história da escravidão é contada por brancos); cap. XII. O amigo do rei (os traficantes africanos, amigos dos reis - enquanto houver comprador, nós venderemos); cap. XIII. Nã Agotimé (A escravização de nobres e de reis africanos).

Capítulo XIV. Angola, frente e verso (As dores de Angola - o comércio de escravos); cap. XV. Medo, morte e repressão (24 de janeiro de 1835, a rebelião dos malês); cap. XVI. Manual do cativeiro (sob o princípio de que - quem se diverte não conspira. Como lidar com os escravizados para não chicotear 24 horas por dia. A dosagem entre a severidade e a "brandura", para evitar as rebeliões); cap. XVII. Na mira dos canhões (dos canhões ingleses. Lei Eusébio de Queirós - abolição do tráfico - 1850);  cap. XVIII. No limbo (Como eram tratados os ex escravizados, os alforriados. O tratamento dado aos lanceiros negros na Revolução dos Farroupilha); cap. XIX. Apogeu e queda (depois de 1870, ao término da Guerra do Paraguai, os alicerces da monarquia começam a tremer. Lei do Ventre Livre e Sexagenários). 

Capítulo XX. Os abolicionistas (Os radicais e os do interior do sistema); cap. XXI. O precursor (Luiz Gama, o famoso e temido Dr. Gama). cap. XXII. A conversão (Fatos marcantes que levaram ao abolicionismo: Luiz Gama, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e André Rebouças); cap. XXIII. Terra da luz (Ceará e Amazonas - os estados precursores da abolição. A lavoura cafeeira como polo de resistência); cap. XXIV. Reação (As resistências à abolição. A sedimentação de ódios e preconceitos); XXV. Aliança escravocrata (A vinda ao Brasil dos escravocratas confederados dos Estados Unidos); XXVI. Maré Branca (As teorias do branqueamento. O latifúndio permanece intocado. 1850 e a lei da terra no Brasil. 1862 e o Homestead Act nos USA).

Capítulo XXVII. Pânico (o clima pré emancipação. As rebeliões escravas e a aliança com os abolicionistas); cap. XXVIII. Isabel (Sua fragilidade. A agonia do império. José do Patrocínio e o título de Isabel - A Redentora. O 13 de maio X 20 de novembro); cap. XXIX. O dia seguinte (Da euforia à depressão. As favelas. A manutenção da brutal desigualdade).

Laurentino Gomes deu também três entrevistas ao Programa Roda Viva da TV Cultura de São Paulo. Recomendo muito assistir ao terceiro, sobre o terceiro volume. O ponto alto da entrevista é o relato sobre as transformações pessoais por ele sofridas ao longo da escrita da obra, transformações de vida, do modo de vê-la ao adquirir uma maior compreensão do nosso processo histórico. Quanto ao livro, ele é maravilhoso do começo ao fim, mas eu anotei alguns capítulos em particular, como os de número IX XV e XVI, XXII, XXV e XXVI.

Do capítulo IX, destaco a questão da linguagem. A linguagem é um importante passo para aquilo que hoje se chama de racismo estrutural. Do XV, o destaque se dá em função da revolta dos malês, na Bahia, em 1835, um capítulo pouco estudado em nossos livros escolares. Para mim o capítulo que mais me chamou a atenção foi o de número XVI. Os escravagistas chegaram a escrever um manual de como deveriam tratar os escravizados para que eles não se rebelassem. Tentaram construir uma espécie de hegemonia, para não usarem permanentemente a violência do chicote, o das chibatadas e açoites. Castigo em demasia, embrutece e o embrutecimento tem consequências imprevisíveis.

O destaque do capítulo XXIV é para a presença dos escravocratas confederados, que depois da Guerra da Secessão vieram se estabelecer aqui no Brasil, para continuarem a usufruir do sistema da escravização. Tentaram em vários lugares, mas os maiores êxitos estão relacionados à região de Americana em São Paulo. O destaque para o capítulo XXVI vai para a questão da terra, da reforma agrária. Que oportunidade perdida! Joaquim Nabuco e André Rebouças tiveram uma grande visão relativa a essa questão.

Enfim, a minha recomendação para a leitura do livro. Este terceiro volume vai para muito além da escravidão. Ele é um belo livro sobre o Segundo Reinado, a queda da monarquia e a instauração de uma República, nada republicana. Além disso é uma obra completa, não definitiva. Ele fornece as informações, os fatos históricos e os referenciais de análise também são excelentes, basta conferir a bibliografia usada  nesses seus livros. Super recomendo, especialmente quando completamos 200 anos de independência e o Brasil parece tentar não lembrar de sua história, ao não promover debates sobre a efeméride. Estaríamos praticando um historicídio, como denunciaram alguns historiadores, em texto do dia 03.09.2022 na Folha de S.Paulo.  

Deixo ainda o segundo parágrafo da orelha da capa do Livro: "A escravidão era, na definição de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, 'um cancro que contaminava e roía as entranhas da sociedade brasileira'. Disseminado por todo o território, o escravismo perpassava todas as atividades e todas as classes sociais. Ricos e pobres, fazendeiros, comerciantes e profissionais urbanos, instituições públicas e privadas, ordens religiosas, bispos e padres, brancos, mestiços e mesmo negros libertos - todos, indistintamente, eram donos de escravos ou almejavam sê-lo. Maior território escravista da América em 1822, o Brasil assim se manteria até o final do século XIX, com sua rotina pautada pelo chicote e pela violência contra homens e mulheres escravizados".