sábado, 25 de setembro de 2021

O século das luzes. Alejo Carpentier.

Sempre me impressionou a história do Haiti. Luís Fernando Veríssimo, em suas crônicas, muito falava da "Maldição do Haiti". Agora, há pouco, eu li Achile Mbembe, Necropolítica. Ele afirma categoricamente que os princípios do Iluminismo ou do Esclarecimento foram postos à prova com a independência do Haiti, em 1804. Os seus princípios, ao contrário de suas afirmações, não eram princípios universais. Não valeriam para as colônias e, muito menos ainda, para a libertação dos povos africanos da escravidão. Sempre quis ler mais a respeito. Deixo o link do Necropolítica. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/06/necropolitica-achile-mbembe.html

Ao ler Leonardo Padura, Água por todos os lados, tive um reencontro com Alejo Carpentier. Padura, nesse seu livro fala muito do principal livro desse escritor, O século das luzes. Sim, O século das luzes. O livro, apesar de ser um romance, não deixa de ser um grande e memorável livro sobre o Esclarecimento e sobre os seus princípios glorificados pela Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade e afirmação Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamados, ainda em 1789. Por um preço, ainda razoável, encontrei o livro na Estante Virtual. Deixo a resenha do Água por todos os lados, do Padura. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/08/agua-por-todos-os-lados-leonardo-padura.html

O século das luzes. Global editora. 1985. Tradução: Stella Leonardos. 

O livro é maravilhoso, embora não tenham sido maravilhosos os princípios trazidos ao Mar das Antilhas, os princípios deste "século das luzes". Vejamos: "Luzindo todos os distintivos de sua autoridade, imóvel, pétreo, com a mão direita apoiada nos montantes da Máquina, Victor Hugues se havia transformado, repentinamente, numa Alegoria. Com a Liberdade, chegava a primeira guilhotina ao Novo Mundo" (Página 139). Victor Hugues é um dos protagonistas do romance. Ele viveu e se adaptou aos diferentes momentos da Revolução Francesa nas Antilhas. O que mais ele viveu foi a transformação de símbolos cristãos em símbolos da razão e a sua ressignificação posterior, quando Paris voltou a abraçar Roma.

A história começa por Havana, com o velório de um rico comerciante, que deixa Sofia e Carlos como herdeiros, mais o primo Estevão. Pouco afeitos aos negócios, eles se dedicam aos estudos e às leituras. Estevão consegue a cura de sua bronquite asmática. A leitura faz circular as ideias, as "perigosas" ideias das luzes. A rotina dos três é quebrada com insistentes batidas da aldrava, na porta da casa. Quem chega é o revolucionário Victor Hugues. Revolucionário em todos os seus significados, a começar pelos costumes. Hugues também é comerciante.

Com os ecos da revolução chegando às ilhas, a família se dispersa. Estevão e Hugues irão a Paris. Carlos e Sofia permanecem. Há os reencontros e as mutações das personagens e situações. Isso eu não conto, mas, quem mais muda será a menina Sofia e, por força de seus cargos, Victor Hugues. A história se desenvolve ao longo de sete capítulos, subdivididos em pequenos tópicos. A leitura flui. São 365 páginas. Hugues, nos conta Carpentier, em adendo ao livro, era um personagem real. A escrita do romance, também nos conta o autor, foi feita entre os anos de 1956-1958, nas cidades de Guadalupe, Barbados e Caracas. Nesta época ele vivia o seu exílio, retornando a Havana, após a revolução castrista. O livro tem um esclarecedor prefácio, assinado por Otto Maria Carpeaux.

A história, as viagens e os personagens foram o grande pretexto para Carpentier expressar os seus sentimentos com relação ao "século das luzes" e é nisso que está o grande valor do romance. A revolução começou jacobina e terminou na acomodação napoleônica. A escravidão foi abolida e recriada. O ideal da liberdade por parte dos escravos sempre foi anterior às luzes, o que é atestado pelas inúmeras rebeliões negras e a existência de quilombos em todas as Américas. Há uma bela passagem sobre Palmares. Também existem dados curiosos ocorridos nesse período revolucionário, como, por exemplo, uma tentativa da venda da catedral de Notre-Dame.

Deixo ainda a síntese e a percepção sobre o livro, na contracapa da publicação da Global Editora: "Não existe outro romance latino-americano mais admirado do que Século das Luzes. É a maior obra do grande Alejo Carpentier. Apoiado por uma poderosa fabulação - a tentativa do aventureiro Hugues de instaurar uma nova Revolução Francesa no Caribe - a prosa metafórica leva o leitor ao pesadelo de um país cujo exaltado clima de revolta e frustração dos ideais fracassados resultam na paisagem política da América Latina". América Latina. Que sina. Liberdade e guilhotina, simultaneamente. Antes, a espada e a cruz. Hoje, o imperialismo e o militarismo e a justiça social sempre abortada nome da dita ideologia da Segurança Nacional. Um grande livro!


quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Quem escreveu Shakespeare? James Shapiro.

Sempre tive muita curiosidade com relação a grandes autores ou grandes personalidades. A minha curiosidade se centrava especialmente na formação dessas pessoas, que escolas frequentaram e, especialmente, o que e quem leram. Em suma, quem influenciou em sua formação. Quando da minha despedida da Universidade Positivo, ganhei, de alguns colegas, um livro de presente. O livro foi Quem escreveu Shakespeare? A história de mais de quatro séculos de disputa pela herança de uma autoria, de James Shapiro.

Quem escreveu Shakespeare? James Shapiro. Nossa Cultura. 2012.

Se autores, de uma maneira geral, me despertavam grande curiosidade, imagina então, sobre William Shakespeare.  Como na época empreendi viagens e me ocupei com outras coisas, dei aquela primeira olhada no livro e o deixei aguardando para uma próxima oportunidade de leitura. Isso ocorreu agora. Antes de mais nada, devo dizer que se trata de um livro destinado a especialistas. Afirmo isso para falar das dificuldades que tive na leitura, uma vez que apenas li algumas de suas peças e nunca estudei a sua obra de forma específica.

Eu sou mais ou menos cético com relação ao tema, não vendo muita diferença entre quem efetivamente teria escrito a obra, se não foi ele mesmo. Afinal, a obra, se sua ou não, está aí. Ao final do livro, Shapiro lança uma advertência: "Quando comecei a pensar em escrever este livro, há alguns anos, um amigo mexeu comigo ao perguntar: 'Que diferença faz quem escreveu as peças'? A resposta reflexiva que dei a ele é agora muito mais clara para mim: 'Muita'. Faz diferença para a forma como imaginamos o mundo em que Shakespeare viveu e escreveu. Faz ainda mais diferença para a forma como entendemos quanta coisa mudou da pré-modernidade para a modernidade. Mas a maior diferença de todas diz respeito a como lemos as peças"... (Página 316).

Mas vamos atender as curiosidades iniciais. Quem teria duvidado da autoria das peças e dos poemas de Shakespeare e quais seriam os seus argumentos? E, se Shakespeare não escreveu Shakespeare, quem o teria escrito e quais teriam sido as razões para não terem assumido a autoria? Respondo a primeira parte das perguntas. Para as demais, é necessária a leitura do livro. Então vamos lá. Primeiro, as pessoas que duvidaram. Só dou duas, pela sua fama: Mark Twain e Sigmund Freud. É obvio que eles se fundamentaram em pesquisadores. E quem teriam sido os supostos autores? Para Mark Twain teria sido Francis Bacon e para Freud, Edward de Vere, o 17º conde de Oxford.

Acho que ainda sobra uma curiosidade inicial. A esta eu também responderei. Quais teriam sido as razões para que duvidassem da autoria? Respondo com a dúvida apresentada por Mark Twain: "Twain reafirma sempre a ligação intrínseca entre escrever com grande efeito sobre o que o autor vivencia. Simplesmente não podia aceitar que um jovem da província, com 21 anos de idade, 'sem nenhuma qualificação preparatória, treinamento ou experiência' pudesse 'produzir grandes tragédias como um vulcão". (Página 154). De uma maneira geral, os céticos em relação a autoria de Shakespeare se centraram na sua falta de formação básica e acadêmica e o meio rural de onde ele procedia. Shapiro tem uma resposta: "O que eu acho mais desalentador na alegação de que o Shakespeare de Stratford não tinha a experiência de vida necessária para escrever as peças é que se menospreza, assim, exatamente aquilo que o torna tão excepcional: sua imaginação". (Página 313).

O livro de Shapiro, de 356 páginas, está dividido em quatro capítulos, epílogo e ensaio bibliográfico. Os capítulos tem os seguintes títulos: 1. Shakespeare; 2. Bacon; 3. Oxford; 4. Shakespeare. No primeiro é apresentada a polêmica da autoria. No segundo, são mostrados os argumentos em favor da autoria de Francis Bacon. No terceiro, os argumentos são em favor do conde de Oxford. No quarto, Shapiro assume a defesa de Shakespeare. No epílogo é mostrado um panorama da questão ao tempo da escrita do livro (2010). No ensaio bibliográfico são apontados todos os livros utilizados na pesquisa. Haja fôlego.

Para dar uma melhor ideia do livro, apresento a orelha da capa: "Por cerca de dois séculos depois da morte de Shakespeare, ninguém questionou a autoria de sua obra. Mas, desde então, dezenas de candidatos rivais - sendo os mais expressivos, Francis Bacon e o conde de Oxford - foram propostos como os verdadeiros autores das peças do bardo. Quem escreveu Shakespeare? explica quando e por que tantas pessoas começaram a questionar a autoria de Shakespeare. Mark Twain, Sigmund Freud e Henry James são apenas alguns exemplos de famosos que se declararam convencidos de que Shakespeare não foi Shakespeare.

A fascinante pesquisa feita pelo estudioso de Shakespeare, James Shapiro, sobre a origem dessa controvérsia reconstrói um caminho tortuoso recheado de documentos fabricados, alegações falsas, códigos, cifras e fraudes. Quem escreveu Shakespeare? levanta questões sobre o que essa controvérsia revela a respeito dos leitores contemporâneos e de nossas expectativas em relação ao maior escritor de língua inglesa da história. O livro pode não encerrar o debate sobre a autoria das obras de Shakespeare, mas esclarece a natureza desse debate e o que está de fato sendo contestado: os poemas e peças de Shakespeare são autobiográficos? Se a resposta for positiva, o que eles nos dizem sobre a pessoa que os escreveu"?

Um livro muito erudito. Com a sua leitura você aprende sobre todo o entorno de Shakespeare, sobre a rainha Elizabeth, sobre o rei Jaime I e toda a questão da passagem do século XVI para o XVII. E avança no debate sobre o autor nos séculos seguintes. E, uma nota sobre a tradução. Ela é de Christian Schwartz e Liliana Negrello, com revisão técnica de Caetano W. Galindo. Christian foi meu colega, como professor na Universidade Positivo e com o Caetano Galindo fizemos uma leitura comentada do Ulisses, de Joyce, livro do qual ele é o tradutor.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Psicopolítica - o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Byung-Chul Han.

Quando tenho dúvidas em torno do que poderia ser uma boa leitura, eu recorro a algum autores que me dão certezas. Um desses autores é o sul-coreano, hoje professor em Berlim, Byung-Chul Han. O livrinho da vez foi este extraordinário ensaio Psicopolítica - O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. É a dominação total, que poderia ser resumida da seguinte forma: Dos controles externos para os controles internos ou os autocontroles. Daí o título de psicopolítica. É uma revolução completa sobre o comportamento humano. O ser humano se tornou absolutamente previsível e controlável. Um horror!.

Psicopolítica - o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Byung-Chul Han. Ed. Ayiné. 2020. Tradução: Maurício Liesen.

Creio que não erro ao apontar duas ideias centrais desenvolvidas neste pequeno livrinho, fundadas na passagem dos controles externos para os internos. A primeira seria uma profunda alteração no modo de produção capitalista, em tempos de hegemonia neoliberal. Essa alteração se dá nas relações sociais de produção, em que já não mais encontraremos burgueses e proletários, uma vez que os proletários foram transformados em micro produtores individuais. Assim não temos mais uma sociedade de classes, mas o burguês e o proletário estão abrigados na mesma pessoa. Já não temos mais uma sociedade de trabalhadores revolucionários, mas sim, uma sociedade de trabalhadores/empreendedores deprimidos.

A segunda grande ideia é a da passagem do pan-óptico de Bentham e da sociedade focaultiana, do vigiar e punir, para a sociedade do Big Data. É a própria pessoa que fornecerá todos os seus dados, os exporá livremente nos novos meios de comunicação das redes sociais. Tem uma passagem muito significativa dessa grande transformação. Eu a apresento: "Devoto significa submisso. O smartphone é um objeto digital de devoção. Mais ainda, é o objeto de devoção do digital por excelência. Como aparato da subjetivação, funciona como o rosário, e a comparação pode ser estendida ao seu manuseio. Ambos envolvem autocontrole e exame de si. A dominação aumenta sua eficiência na medida em que delega a vigilância a cada um dos indivíduos. O curtir é o amém digital. Quando clicamos nele, subordinamo-nos ao contexto da dominação. O smartphone não é apenas um aparelho do monitoramento eficaz, mas também um confessionário móvel. O Facebook é a igreja ou a sinagoga (que literalmente significa 'assembleia') do digital" (Página 24).

O pequeno livrinho tem 117 páginas com o formato de livro de bolso. Ele aborda 13 temas, que são absolutamente correlatos, entrelaçados pela lógica. Aliás, esta é também uma das abordagens do livrinho: a razão é abolida e substituída pela emoção. São eles: 1. Crise de liberdade; 2. Poder inteligente; 3. A toupeira e a serpente; 4. Biopolítica; 5. O dilema de Foucault; 6. A cura como assassinato; 7. Choque; 8. O amável grande irmão; 9. O capitalismo da emoção; 10. Gamificação; 11. Big Data; 12 Para além do sujeito; 13. Idiotismo.

O primeiro tópico é o mais longo deles. Ele traz três abordagens: a exploração da liberdade, a ditadura do capital e a ditadura da transparência. No primeiro desses tópicos há uma revelação do significado da palavra "sujeito", que literalmente significa "estar submetido". Mas, acreditamos que não somos submetidos, acreditamos que somos livres. A depressão e o burnout são os sintomas dessa crise de liberdade. Nos subjugamos a nós mesmos na sociedade do autodesempenho. Na ditadura do capital o autor examina as novas relações sociais de produção, que unificou o burguês e o proletário em uma só pessoa pelo imperativo neoliberal do empreendedorismo, ou mais precisamente, pela transformação dos trabalhadores em microempreendores individuais. Já o tópico da ditadura da transparência apresenta as primeiras noções dos novos meios de comunicação das redes sociais.

Os demais tópicos são bem menores e são desdobramentos do primeiro. Assim, o poder inteligente é o da formação do sujeito submisso, sem que ele se acredite como submisso. Não há mais violência e coerção. As coerções agora são autocoerções. A toupeira é o animal símbolo dos controles externos, da sociedade disciplinar (família, escola, prisão, quartel, hospital, fábrica), enquanto que a serpente é o animal do movimento, do empreender, da fuga dos espaços fechados. Na biopolítica é abordada a questão da passagem do biopoder para o psicopoder, análise que continua com a apresentação do dilema de Foucault, da passagem do treinamento do corpo dócil para a psicotecnologia da otimização de si. Em a cura como assassinato, a abordagem passa pelos fins de semana motivacionais e pela violência da exploração da positividade. 

Em choque, a análise passa pelo livro de Naomi Klein, A Doutrina do choque. Estão em foco o psiquiatra canadense do choque, Cameron e o teólogo do neoliberalismo, Milton Friedman. Em o amável Grande Irmão é analisada a superação do violento Grande Irmão, substituído pelo irmão, agora totalmente afável, do pan-óptico digital. No capitalismo da emoção temos a substituição do capitalismo racional do fordismo-taylorismo pelo capitalismo emocional, da motivação para o empreendedorismo e a transformação do trabalho, pesado e cansativo em agradáveis jogos, com a exploração de muita emoção.   

Nos temas finais , o grande destaque vai para o Big Data, que também merece uma análise um pouco mais longa, sendo abordados os seguintes sub temas: o ovo de colombo (a estatística), o dataísmo, ou seja, a revolução da anotação dos dados, o quantifield self, ou seja, a anotação de todos os dados da sua vida e a escravização a eles (colesterol, glicemia...), o registro total de sua vida, que é transformado em um grande negócio, que é a comercialização de seus dados pelas empresas (como a Acxion).  O autor ressalta que precisamos de uma nova dialética do esclarecimento para ir além do sujeito, com a libertação do terror psicológico e, apresenta ainda, reflexões sobre o idiotismo, sobre as heresias e a necessidade do componente da dúvida.

Na contracapa do livrinho temos a seguinte síntese: "Uma possibilidade infinita de conexão e informação nos torna sujeitos verdadeiramente livres? Partindo dessa questão, Han delineia a nova sociedade do controle psicopolítico, que não se impõe com proibições e não nos obriga ao silêncio: convida-nos incessantemente a nos comunicar, a compartilhar, a expressar opiniões e desejos, a contar nossa vida. Ela nos seduz com um rosto amigável, mapeia nossa psique e a quantifica através dos big data, nos estimula a usar dispositivos de automonitoramento. No pan-óptico digital do novo milênio - com a internet e os smartphones - não se é mais torturado, mas tuitado ou postado: o sujeito e sua psique se tornam produtores de massas de dados pessoais que são constantemente monetizados e comercializados. Neste ensaio, Han se concentra na mudança de paradigma que estamos vivendo, mostrando como a liberdade hoje caminha para uma dialética fatal transformando-a em constrição: para redefini-la, é necessário tornar-se herege, voltar-se para a livre escolha, para a não conformidade".

De Byung-Chul Han eu já tinha lido Sociedade do cansaço, do qual eu deixo a resenha:

 http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/01/sociedade-do-cansaco-byung-chul-han.html


quarta-feira, 1 de setembro de 2021

O Atlântico negro. Paul Gilroy.

Em minhas leituras, andei pela África, pelas Américas e detive-me, particularmente, no Caribe. Li Leonardo Padura e Achille Mbembe. Água por todos os lados e Necropolítica. Cuba e o Haiti mereceram uma atenção maior. Por essas leituras cheguei a um livro extraordinário, O Atlântico negro, de Paul Gilroy. Aí se somaram os fatores de espaço e tempo, juntando quinhentos anos de história no espaço do Oceano Atlântico, por onde andavam europeus e africanos, uns livres e outros forçados, compondo o período histórico que chamamos de modernidade.

O Atlântico negro. Paul Gilroy. Editora 34. 2019. Tradução: Cid Knipel Moreira.

O livro de Paul Gilroy, O Atlântico negro é mais ou menos isso. No Atlântico se encontram os povos europeus, brancos, no novo tempo histórico da modernidade, alavancados por uma filosofia que atendia pelo nome de iluminismo ou esclarecimento, pelo qual a humanidade daria verdadeiros saltos no rumo de um progresso que não mais teria fim. A razão e a ciência seriam as responsáveis por esta tamanha façanha. Os europeus brancos vieram para a América, de norte a sul, passando pelo Caribe. Na África iriam buscar os trabalhadores que trabalhariam nas plantations, num novo velho sistema de trabalho, a escravidão. Essa reintrodução da escravidão nas relações de produção provocou a diáspora do povo negro, fadado a se submeter à supremacia branca. Ao menos é isso que nos é contado pelos livros de história.

Esses povos negros tinham um tradição e uma identidade cultural que, pela subordinação à condição de escravos, deveria ocupar um lugar secundário em suas vidas. A supremacia europeia branca lhes seria imposta. Mas eles não se rendem. Preservam seus traços originários e identidários. Preservam sua linguagem e formas de comunicação, especialmente pela literatura, pela poesia e pela música. Não abdicam de seus amores e de suas paixões. E as expressam. E as culturas se misturaram. Passaram a existir negros, também na Europa e na América. É a diáspora dos povos africanos.

Esses povos que navegam pelo Atlântico negro se encontram e mantém os mais diferentes tipos de relações. Essas relações se contrapõem frontalmente com os princípios da doutrina do esclarecimento, do iluminismo, especialmente com os ideais de emancipação humana, proclamados em seu hinos e slogans revolucionários: "Liberdade, igualdade e fraternidade". Em 1804, na proclamação da independência do Haiti, a casa caiu. Esses princípios seriam válidos apenas para os povos europeus, praticantes dos princípios da cultura ocidental, que continham em si a irrevogável hegemonia ou supremacia. Vejamos isso, numa frase de Du Bois, um dos autores analisados no livro de Gilroy:

"[...] a característica de nossa era é o contato da civilização europeia com os povos não desenvolvidos... Guerra, assassinato, escravidão, extermínio e devassidão: este tem sido reiteradamente o resultado de se levar a civilização e o abençoado evangelho às ilhas do mar e aos pagãos sem lei" (página 234). Que síntese!

O livro de Gilroy apareceu pela primeira vez no ano de 1991, em inglês. No Brasil, tivemos a primeira edição datada de 1993. Paul Gilroy é historiador e escritor britânico e fundador do Centro para o Estudo da Raça e Racismo Sara Parker, do University College de Londres. O título completo do livro é O Atlântico negro - Modernidade e dupla consciência. Na contracapa da edição brasileira lemos o seguinte comentário:

"Clássico contemporâneo da sociologia e dos estudos da cultura, O Atlântico negro, de Paul Gilroy, professor da Universidade de Yale, busca definir a modernidade a partir do conceito de diáspora negra e suas narrativas de perda, exílio e viagens. Histórias de deslocamentos e identidades caracterizam essa formação que Gilroy chama de Atlântico negro: um conjunto cultural irredutivelmente moderno, excêntrico, instável e assimétrico, que escapa à lógica estreita das simplificações étnicas, e se manifesta tanto nos escritos de W. E. B. Du Bois como nas letras dos rappers do século XXI".

"Nas letras e nos rappers". Essa é a construção do livro, de 427 páginas, divididas em seis capítulos e dois prefácios, um dedicado especificamente à edição brasileira. Os capítulos tem os seguintes títulos: 1. O Atlântico negro como contracultura da modernidade; 2. Senhores, senhoras, escravos e as antinomias da modernidade; 3. "Joias trazidas da servidão": música negra e a política de autenticidade; 4. "Anime o viajante cansado": W. E. B. Du Bois, a Alemanha e a política da (des)territorialização...; 5. "Sem consolo das lágrimas": Richard Wright, a França e a ambivalência da comunidade; 6. "Uma história para não passar adiante": a memória viva e o sublime escravo.

Fiz algumas anotações ao longo da leitura dos capítulos, mas vou me ater apenas a alguns comentários. Por óbvio, os capítulos 4 e 5 são uma análise dos autores que constam no título. No primeiro ele enfoca a questão do título da Modernidade e dupla consciência. O autor é negro e europeu. Aparecem também os primeiros autores analisados. Já no segundo capítulo, o foco se centra na dialética do escravo de Hegel, interpretada sob a ótica do negro. Nesse capítulo tem uma citação de um escritor, Frederick Douglas, muito interessante sobre os piores escravocratas: "Se eu tivesse de ser novamente reduzido à condição de escravo, em seguida a esta calamidade, eu deveria considerar o fato de ser escravo de um proprietário religioso o pior que poderia acontecer. De todos os proprietários de escravos com que me encontrei alguma vez, os religiosos são os piores" (página 133). No terceiro capítulo é abordada uma das mais ricas herança negras, a sua música. O último capítulo é dedicado a diáspora e às perspectivas. É feita uma comparação entre os dois povos que sofreram as maiores diásporas da história.

Tive muitas dificuldades na leitura do livro. O tema da identidade da cultura negra e o seu tratamento na literatura me é praticamente desconhecido. Dos livros citados e analisados li apenas Toni Morrison  Amada. Já dos autores da construção da modernidade Gilroy tem um domínio absoluto, passando por Kant, Hegel, Nietzsche, Foucault, Adorno, Benjamin, Jameson, entre outros. Um livro para especialistas, creio ter sido esta a dificuldade que eu encontrei para a sua leitura. Um livro de extrema erudição.